terça-feira, 28 de agosto de 2012

Um Sonho


Dizem que eu era, que fui
Outros que apenas sonhei
Que o que a sombra dilui
É vida que fabulei.

Dizem que o tempo é a trama
Que enreda o que desejei.
Com a linha avessa me engana
Com a outra tudo que amei.

Dizem que o mundo é ilusão
Um sonho que me sonhei
Que minha própria razão
É o cosmo que delirei

Que nada a tudo se iguala
Que nada é o espelho de tudo
E a fluida ilusão da fala
É o nada com que me iludo.

Dormi e tudo esqueci
Dormi e enfim me encontrei.
Recife, 20 de agosto de 2012.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Daniel Lima


O meu amigo lírico
era no entanto indiferente ao mar.
A paisagem que amava
Era um mar interiorizado.
Não um movimento de ondas
mas um pêndulo ritmando
as horas do ser e do não-ser
o abismo entre o finito
e a eternidade de um Deus
insondável e contudo real.

O meu amigo metafísico
alegremente bailando
a dança fugaz dos fenômenos.
Comia com voracidade
bebia como um pagão
amando a contingência
com a paixão do absoluto.

O meu amigo que já não é
amou a vida até o limite
do fim, da queda
imposta pela matéria finita.
Sua metafísica era tão carnal
tão aderente aos sentidos
que seu sonho de céu
era apenas o mundo da aparência
transposto para sua ideação.
Por isso conciliava a caverna
e a transcendência da Ideia.
Heráclito e Parmênides
São Tomás e Montaigne irmanavam-se
na sua ideação da eternidade.

Meu amigo conciliou
todas as contradições
com a euforia sincrética
de quem tudo acolhe
transfigurando a física em sonho
e a metafísica em feijoada.

Ao cabo, ou já no início
ou desde sempre
foi apenas um menino
um eterno menino
brincando com os mistérios do ser
que logo se dissolviam em nada
e entanto eram.

O meu amigo fundiu a lógica
na loucura
a ilusão na realidade.
O mundo era céu e circo
e o ser era apenas
a face eterna do não-ser
que na mesma chama da existência
tudo afirmava e dissolvia.

O meu amigo dizia sim
e não ao sim.
Por isso, liberto dos fenômenos
da frágil matéria que passa
não sei ainda se foi ou é.
Nem Deus sabe.
Recife, 14 de agosto de 2012.

domingo, 19 de agosto de 2012

Caetano versus Chico


Caetano Veloso completa 70 anos e a mídia não perde viagem. Convenhamos, vender notícia é o fim inscrito na natureza do seu funcionamento. Visando alcançá-lo, ela não mede princípio. Essa questão, de nítidas ressonâncias éticas, é tão velha quanto o ovo ou a galinha. Quero dizer, há críticos da mídia que a responsabilizam por alienar o público; outros, notadamente os que fazem a mídia e dela vivem, replicam alegando que vendem o que o público quer. Como não tenho resposta para a questão, nem sei de quem a tenha, retomo o caminho do qual me desviei.

A mídia não perde viagem, como dizia, e assim cuida de reacender uma rivalidade já esquecida. Quem é melhor: Caetano ou Chico? Para início de conversa, a rivalidade é invenção da mídia, não deles. Irrompeu no auge do tropicalismo, quando Caetano, Gilberto Gil e outros anárquicos astutos levaram ou fingiram levar a sério o lema: é proibido proibir. Se na França, de onde proveio o lema, o cassetete baixou sobre os libertários, o que dizer da ditadura brasileira? Bem, deu no que deu. Como todo mundo sabe disso, vou em frente. Antes esclareço a expressão “anárquicos astutos”, que não entrou no parágrafo por acaso. Chamo a atenção dos ingênuos, que ouvem na música apenas música, para o fato de que o tropicalismo foi um investimento astuto dos seus líderes, uma estratégia para converter o mercado da arte de massa em ascensão no Brasil em forma artística e trampolim para o estrelato.

Foi nesse contexto que a mídia e críticos de vanguarda de notável talento (penso antes de tudo em Augusto de Campos) forjaram a rivalidade. Reduzida ao essencial, dizia-se que Caetano simbolizava a vanguarda artística, a música de invenção para a massa. Apostava-se também no célebre trocadilho de Oswald de Andrade, um dos inspiradores do tropicalismo: um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico. Escrevo sem aspas porque estou citando de memória. Hoje o trocadilho parece hilariante, mas os vanguardistas acreditavam piamente na inteligência e refinamento educável da massa. Não era à toa que eram de vanguarda.

Voltando ao enredo, se Caetano simbolizava o novo (não confundam com novidade, coisa que hoje se forja muito mais do que naqueles tempos ainda relativamente pudicos em termos de ética de mercado), a invenção sintonizada com a montagem de uma sociedade de consumo moderna, Chico, coitado, foi reduzido a símbolo de um passado feito de realejos, serenatas, Carolinas na janela, um Noel Rosa de viaduto, um tocador de cavaquinho num mega show de rock. É claro que a chama alastrou-se chamuscando os astros em competição, até então amigos. As tensões e divisões daí decorrentes afetaram também outros astros já estabelecidos ou em ascensão, como seria de prever, mas Chico e Caetano eram as estrelas maiores do firmamento televisivo. Logo, seria natural que a mídia concentrasse os refletores sobre os dois. A rivalidade tornou-se notícia de vida longa e lucrativa. Os astros se reconciliaram publicamente num célebre show realizado em Salvador, depois do exílio de ambos, mas ainda sob vigilância severa da ditadura.

A ditadura recolheu a dentadura, e outros instrumentos mais atemorizadores, a Globo fez as pazes com Chico, censurado durante anos, e em meados dos anos 1980 produziu uma série de shows sob o título Chico e Caetano. Claro que o sucesso foi imenso (eu, que há anos não vejo televisão, vi e gravei tudo) e um dos programas, pelo menos, mereceria uma edição em DVD: o que teve Tom Jobim e Astor Piazzolla como convidados. Como veem, isso era biscoito fino para a elite do público de massa, o paradoxo é intencional, que alegremente se diluiu em farelo. Se antes Chico ludibriava a censura ditatorial cantando: “hoje você é quem manda / falou tá falado /não tem discussão...”, hoje me queixo em vão do mercado, que fala e vende o que quer à nossa subserviência consumista.

Que faz um astro ético diante da potência diluidora do mercado? Caetano Veloso, com seu talento camaleônico, faz o jogo da mídia e do palco com astúcia refinada pela prática que remonta ao tropicalismo, com seu narcisismo de muitos gumes. Quanto a Chico, de temperamento mais retraído, com um sentido de coerência mais retilíneo, mede à distância a corda bamba na qual Caetano se deleita em fazer malabarismos. Em suma, cada um com seu talento e modo de ser. O que é inegável é a importância da obra que produziram. É esta que importa e por isso não convém rebaixá-la à disputa fútil de um Fla-Flu, pois a isso se reduz a rivalidade promovida pela mídia.

Artistas de múltiplos talentos, Caetano e Chico têm personalidades e formas de expressão muito distintas. O primeiro, justificando seu narcisismo ostensivo, se transfigura no palco, na criação acionada pelo contato vivo com o público. O segundo, contrariamente, é artista cujas pérolas são lapidadas em estado de reclusão. Sendo assim, Chico resiste ao palco, se retrai no contato direto com o público. Para ele a criação estética é o avesso, por exemplo, do happening, tão afim ao estilo irreverente e despachado de Caetano. Prolongando no mais alto sentido a tradição lírica, compreendida tanto literária quanto musicalmente, Chico trairia sua força criadora se embarcasse num movimento como o tropicalismo. O que importa é que se renovou extraordinariamente. Calou assim a crítica que o opôs à rebeldia tropicalista levianamente reduzindo-o à medida de um artista ultrapassado.

Nos anos 1970, ambos amadureceram e renovaram sua obra. Chico associou a música ao teatro, experiência já iniciada na década precedente, também ao cinema. Caetano também compôs música para cinema, mas no geral confinou sua obra à música e à crítica ocasional, sempre exercida em tom inteligente e provocativo. O Chico tardio concentrou-se na paciente elaboração de romances que lhe têm valido o apreço da crítica e sobretudo do leitor. É claro que, apesar do seu talento literário indiscutível, o romancista muito se beneficia da fama do compositor e cantor. Quanto a Caetano, escreveu o melhor livro que temos de memórias da efervescência musical dos anos 1960 relacionada ao contexto social e ideológico. O leitor sabe que me refiro a Verdade Tropical.

Portanto, concluo repisando o que acima escrevi: cuidemos da obra, opinemos sobre ela à margem do espírito barato do Fla-Flu alimentado pela mídia interessada apenas em vender notícia. Um dos grandes privilégios da arte brasileira é ter produzido dois artistas tão extraordinários. Musicalmente, não tenho dúvida, perdem apenas para Tom Jobim. Mas este está acima de comparações e paralelos. Tom é simplesmente o maior compositor popular do século 20. E notem que não usei nenhum qualificativo geográfico, isto é, não afirmei que ele é o maior do Brasil. Tom é simplesmente o maior e ponto.
Recife, 5 de agosto de 2012.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Dialética Tropical


O novo livro de ensaios críticos de Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrécia, pouco varia nos temas, enquanto previsivelmente reitera a perspectiva teórica que embasa toda sua atuação como crítico. Machado de Assis, como também seria previsível, é a figura dominante. Além de fornecer o mote que dá título ao livro, é o foco do ensaio de abertura, “Leituras em competição”, de “A virada machadiana” e de uma das entrevistas que integram o volume. Além disso, a crônica de Machado que confere título e matéria ao livro vem reproduzida no final do volume. Repetindo procedimento já familiar para quem acompanha sua obra, as entrevistas se somam aos ensaios, como de resto vem explícito no subtítulo de Martinha versus Lucrécia. O ensaio de maior fôlego, que alcançou mais repercussão na mídia, como seria também previsível, é o que dedica a Verdade Tropical, livro de memórias de Caetano Veloso. Aliás, Schwarz o identifica como autobiografia quase-romance (ver p. 85). Schwarz também retoma alguns dos seus autores de eleição na cena literária contemporânea: Chico Buarque, Francisco Alvim, Paulo Lins. Por fim, os uspianos e afins: Giannotti, Bento Prado, Gilda de Mello e Souza, Francisco de Oliveira, Michael Löwy. Tentarei abaixo esmiuçar um pouco do que vai condensado neste parágrafo inicial.

Antes que o leitor apressadamente conclua que os muitos “previsíveis” acima anotados supõem algum juízo crítico negativo, me apresso a afirmar o contrário. Um livro de ensaios críticos de Roberto Schwarz contém muito de previsível, antes de tudo, porque ele, à diferença da usina recicladora de modas intelectuais que é a universidade, sobretudo a brasileira, periférica e portanto sempre deslumbrada com tudo que produzem os centros hegemônicos da cultura intelectual, ele é um crítico consistente e coerente. Podemos discordar de sua perspectiva teórica, é o meu caso; daí a desqualificá-lo deformando grosseiramente suas ideias, procedimento patente em resenhas como a de Nelson Ascher, publicada na Veja (2 de maio de 2012), é passar da divergência teórico-ideológica para o ataque grosseiro. Aliás, é isso o que também faz Caetano Veloso na entrevista que concedeu à Folha de S. Paulo (22 de abril 2012). Infelizmente, no Brasil raramente sustentamos um debate de ideias, que logo desanda para o bate-boca e o ataque pessoal. Há algumas explicações razoáveis para esse fenômeno, algumas identificáveis na própria leitura que Schwarz faz da obra de Machado e de outros autores, mas prender-se a elas seria fugir do foco desta resenha, além de alongá-la em demasia.

Roberto Schwarz declara sempre nitidamente de onde fala, em nome de que fala e intervém no debate ideológico e intelectual. A todo tempo, eis nele algo previsível que já se tornou lugar comum, reitera sua filiação ao pensamento dialético. Seus mestres supremos também são sempre invocados: Adorno, na tradição marxista alemã, e Antonio Candido, na brasileira. O primeiro me parece absolutamente ilegível, mas a culpa é certamente minha, talvez por não saber alemão nem me dispor a um treinamento de exegese e hermenêutica (que o leitor de blog me perdoe os palavrões) que consumiria anos de minha vida e me tornaria mais infeliz. Antonio Candido é outra história. É não apenas nosso crítico literário supremo, mas também autor dotado de um estilo de exposição crítica, de esclarecimento das ideias que lamentavelmente não fizeram escola na nossa capenga tradição universitária. Alguns dos seus discípulos confessos, é o caso de Walnice Nogueira Galvão e João Luiz Lafetá, são fieis à sua linhagem estilística, que prima pela clareza, elegância e aversão sistemática a qualquer modismo ou tentação obscura que muitos subletrados confundem com profundidade. Quanto a Schwarz, seu discípulo mais célebre, ostenta um estilo dialético demais para o meu gosto.

Mas sigamos voltando ao ensaio de grande fôlego dedicado ao livro de Caetano Veloso. Num dos seus ensaios mais citados (“Cultura e política, 1964-69”, incluído na obra O pai de família e outros estudos), escrito em 1972, Schwarz faz uma apreciação crítica do movimento tropicalista no contexto dos embates culturais e ideológicos daquela época turbulenta. Agora, 14 anos depois da publicação de Verdade Tropical, ele retoma as questões centrais daquele ensaio ampliando-as no exame de crítica dialética a que submete a trajetória artística e ideológica de Caetano Veloso. Perguntaram ao próprio Caetano a razão de Schwarz demorar tanto tempo para afinal escrever o ensaio. Claro que Caetano não tem resposta para isso. Pelo visto, nem o próprio Schwarz, que responde alegando ser mais lento do que deveria.

A julgar pelo que ele descreve sobre seu processo de maturação de intuições e ideias, é fácil seguir essa rota através das muitas entrevistas que concede e integra a várias das suas obras, Schwarz é um acadêmico típico consagrado ao convívio com os livros e ideias que o perseguem como obsessões inarredáveis. Seguindo o que historia sobre sua intuição fundamental da obra de Machado de Assis, concluímos que suas reflexões e análises que gradualmente se refinam prendem-no à obra de Machado desde a juventude até o presente. Embora tenha escrito apenas dois livros sobre o conjunto dos romances do Bruxo do Cosme Velho, livros aliás um tanto compactos, um intervalo de cerca de 15 anos separa as duas obras, sem contar tudo que matutou antes e depois.

Mas em que consiste essa intuição luminosa de Schwarz que provocou uma reviravolta na leitura da obra de Machado de Assis? Espremendo a matéria do modo mais sumário e claro possível, o crítico descobre na sua paciente leitura dos romances de Machado, notadamente os que datam a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma relação de homologia entre forma romanesca e processo social. A forma caprichosa e volúvel adotada pelo narrador machadiano corresponderia ao processo social singular que o crítico identifica na realidade brasileira na qual contraditoriamente (como convém ao jargão dialético) se combinam escravidão e liberalismo. O grande feito de Machado seria estilizar nossa realidade social contraditória onde escravidão e liberalismo, homens livres privados de mercado, favor e clientelismo se mesclam de forma peculiar. Em síntese, Schwarz parte dessa intuição para elaborar o dispositivo crítico que mobiliza e reitera para dar conta da obra de Machado de Assis e mais tarde de praticamente todos os autores que submete ao escrutínio de sua crítica dialética.

Para chegar aonde chegou, depois de muito ruminar ideias com a lentidão que é o primeiro a admitir, o crítico uspiano traçou um longo e complexo percurso de ideias passando pela tradição dialética alemã, em particular Adorno, e pelo estreito convívio com seus companheiros formados na Universidade de São Paulo. Esse convívio fecundo compreende sua aprendizagem da crítica dialética de Antonio Candido e seu debate franco e contínuo com amigos de geração. Esse debate é um fenômeno raro no ambiente intelectual brasileiro. Um exemplo pessoal. Estava em São Paulo em 1995, quando de uma das muitas celebrações acadêmicas do famoso seminário de estudos do Capital, de Marx. Os discípulos de Schwarz, Giannotti e outros dos participantes desse grupo não mediram esforços para converter essa experiência acadêmica singular numa lenda que, como convém ao pioneirismo de locomotiva dos intelectuais paulistas, eleva o feito a desmedidas incongruentes com o espírito desmitificador e desmistificador do marxismo.

Reunidos no auditório da USP, situado na lendária rua Maria Antônia, Schwarz, Giannotti, Fernando Novais, Paulo Eduardo Arantes e outras estrelas da universidade debateram exaustivamente a história e as consequências ideológicas e culturais do seminário de leitura de O Capital. O que mais me impressionou, além do bandeirantismo indisfarçável dos uspianos, não obstante as ironias corretivas de Schwarz e Giannotti, foi a franqueza isenta de qualquer complacência observável no debate entre estes. Surpreende-me ainda, tendo em mente minha experiência pregressa e prospectiva, ao considerar a forma como argumentavam e divergiam.

O título da minha resenha, que pouco trata do livro, admito, contém seu grão de ironia ou provocação. Como comecei assinalando, Roberto Schwarz continua manejando com sofisticação e pertinácia sua dialética tropical. Assim procedendo, ele se alinha dentro da longa tradição do pensamento crítico que procura ainda e em vão explicar o Brasil. Não que sua obra não esclareça muito de Machado, em particular, e do Brasil, em geral. Mas confesso que por vezes muito me custa, não raro às bordas da angústia, articular minha compreensão do Brasil, com seus impasses insolúveis, tendo as categorias dialéticas de Schwarz como norte.

Elas me parecem abstratas demais, a partir do próprio conceito de dialética que, como certa vez observou José Guilherme Merquior, é uma dama de bem pouca virtude. De fato, o conceito foi vítima de tanto uso e abuso que gente como eu, mal escolada no radicalismo teórico da academia, tende a encará-la como indigesta. No mais, descendo a um exemplo extraído do ensaio sobre Caetano Veloso, surpreendeu-me ler o tom elogioso com que Schwarz menciona um longuíssimo período de Verdade Tropical (cf. pp. 35-6) que é estilisticamente uma das passagens mais infelizes na prosa clara e lúcida de Caetano. Depois de qualificar o período como um autêntico “olé dialético”, Schwarz afirma que “... a síntese procura sugerir, ou captar, a complexidade do processo real. Pela abrangência da visão, pela sua potência organizadora, pelo teor de paradoxo e pela capacidade de enxergar o presente no tempo, como história, é uma façanha”. (p. 72).

Por fim, embora com razão tanto critique o radicalismo inoperante da cultura acadêmica, Schwarz pratica uma crítica dialética exposta ao risco de resvalar na impotência e no desespero político. Afinal, onde se inscreve o solo social da sua dialética inspirada numa ideologia que sempre insistiu sobre a necessidade de mudarmos o mundo? Como sabemos, o agente histórico dessa suposta mudança revolucionária pregada por Marx seria o proletariado urbano. Onde se esconde esse sujeito histórico na dialética de Schwarz? Até onde sei, não é mais o proletariado do ABC paulista, cujo líder chegou ao poder e nele se manteve e mantém aliado às forças mais retrógadas da política brasileira. Portanto, Lula Sarney ou Lula Maluf é carta fora do baralho dialético. Quem é, afinal, o sujeito histórico da dialética tropical tão refinadamente burilada e reiterada pela crítica de Roberto Schwarz?
Recife, 15 de julho de 2012.

domingo, 12 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher -Epílogo


A generosa atenção crítica que algumas amigas concederam à minha série de crônicas sobre as relações de gênero, digamos assim sumariamente, induziu-me a acrescentar este epílogo. Antes de tudo, tenho muito apreço pela opinião das minhas amigas. Aliás, é curioso observar como de ordinário apenas a mulher manifesta interesse especial por essa ordem de problema. Não sei de nenhum homem que conceda atenção refletida às questões de gênero, às relações amorosas etc, salvo por dever profissional ou acadêmico. Nos limites de minha experiência, os homens consideram as questões que discuti ao longo da minha série de crônicas em termos de fofoca, humor, queixa ressentida ou certo travo de misoginia que se dissolvem na epiderme dessas questões. É uma pena, pois afetam obviamente tanto a mulher quanto o homem, como procurei ressaltar numa das crônicas.

Tento agora explicar melhor parte do que erraticamente fui respigando nas minhas crônicas. Como já observei, esses meus escritos não têm maior ambição. Brotam de alguma intuição, algo que afeta minha experiência, ilumina bruscamente a andadura rotineira da minha vida, e de repente me sinto movido a plasmar a intuição em palavra, reter na duração da escrita algo do que intento salvar do fluxo contínuo das sensações e experiências. Por isso escrevo meio à deriva do momento. Retenho o facho de luz que anuncia a treva. Além disso, dada minha indisciplina intelectual, minha vexatória falta de método e ordenamento da matéria abordada, vou enfiando assunto por via associativa, pegando aqui, largando adiante, seguindo as curvas e tropeções do itinerário errático de um escritor bêbado. Logo, sei que há muitos furos nos meus argumentos, muita coisa silenciada ou esquecida nas entrelinhas do discurso. Daí minha necessidade de retomar o texto no seu conjunto para de certo modo comentá-lo visando melhor esclarecê-lo.

Começando pelo título, somente uma leitura muito apressada pode autorizar a interpretação de desapreço pela mulher. A expressão, tal como correntemente usada (Deus me livre de ser mulher) traduz antes de tudo um alívio de desapreço. Noutras palavras: que bom não ser mulher. Na minha crônica, porém, fica claro, por tudo que nela escrevo, que o sentido conferido ao título é irônico e provocativo. Minha intenção ao adotá-lo foi provocar a atenção da leitora para no desdobramento da crônica propor questões críticas, questionar experiências comuns à mulher e ao homem introduzindo na relação entre ambos diferenças de ordem social e natural que, no meu entender, afetam negativamente bem mais a mulher do que o homem.

Talvez a maior prova do quanto me alio à perspectiva da mulher consista na alusão aprovativa que faço a Eric Hobsbawm, quando se refere ao século 20 como o século da mulher. Não é exatamente isso o que diz. Portanto, traduzo em termos pessoais e mais simples. Também a crítica que faço à nossa tradição patriarcal, ainda tão viva no Brasil e notadamente no Nordeste, não dá margem a ambiguidade sobre meu ponto de vista. O paralelo que traço em tom de crônica de memórias entre mim e minha irmã deixa patente a subordinação social da mulher, o preço altíssimo que pagava para viver reclusa num estado de segurança que eu equivocadamente invejava.

Retomando a clave memorialística ou autobiográfica, atribuo minha sensibilidade à condição oprimida da mulher no mundo da minha infância e juventude a certas características singulares do meu pai que julgo haver herdado. Opostos incompatíveis, ele e minha mãe reverteram na minha experiência normas dominantes da nossa tradição patriarcal. Enquanto ela era voluntariosa e autoritária, não raro indo ao extremo da violência imposta aos filhos, meu pai era, como diz a expressão corrente, um doce de pessoa. Papai foi o homem mais delicado e amoroso que conheci. Não é pouco dizer isso num mundo povoado por machões, por cabras-machos que identificam na delicadeza de atitudes e sentimentos uma ofensa, ou fraqueza feminina. Além de herdar muitos desses traços, nosso convívio na minha infância com certeza os reforçou no meu modo de ser. Afinal, ele andava de mãos dadas comigo, me punha para dormir, cercava-nos, a mim e a meus irmãos, com uma delicadeza única, ademais acentuada pela perda da minha mãe, que nos abandonou fugindo para São Paulo na companhia do amante. Pois é, isso foi no tempo em que a mulher que ousava ir a esse extremo não se separava, fugia apagando as pegadas da fuga, pois doravante cavava sua própria desonra e a da família rejeitada.
Ferido por esse trauma, o maior da minha vida, tive que sofrer, entre outras consequências, os efeitos devastadores que causou dentro da minha família. Confuso diante da catástrofe, na adolescência os sintomas das dores e perdas agravaram-se ao ponto de me compelirem a procurar explicações, meios de compreender e assimilar o desastre em tudo que concorresse para iluminar a longa noite solitariamente atravessada. Num dado momento, descobri a psicologia, depois Freud e a psicanálise. Também Flaubert cuja obra-prima, Madame Bovary, foi minha fonte maior de compreensão da vida de minha mãe que eu completamente ignorava. Tudo através de leitura, da experiência refletida, das vias tortas do autodidatismo que está na raiz do que fui aprendendo pela vida.

Se algo aprendi ousando lidar com meus traumas e perdas, foi a necessidade de buscar a verdade sobrepondo-a sempre às ilusões consoladoras que tanto nos seduzem, mas ao preço da prisão na fuga da realidade, no autoengano, na ignorância que nunca ajudou ninguém. Nesse sentido, tornei-me um racionalista intransigente. Devo isso, claro, não às luzes do acaso, mas à leitura de gente como Freud, já citado, Bertrand Russell e muitos outros filósofos, psicólogos, romancistas, poetas... Não duvido de que fui salvo pelas luzes da razão, do conhecimento que vira pelo avesso nossas noções estreitas da vida, as convenções estúpidas que imitamos feito cãezinhos amestrados.

Foi graças às lições condensadas no parágrafo precedente que corrigi minha compreensão enganada do amor, em particular do amor romântico. Sei que o que escrevi sobre o amor romântico incomoda as mulheres confessadamente românticas. Queria por isso frisar que minhas críticas não são intencionalmente escritas contra elas. Escrevi-as antes de tudo contra mim próprio, contra uma noção herdada do amor romântico que me levou a amar tangido pela inconsciência da ilusão, pela idealização insensata da mulher. Quando a perdi, a que marcou profundamente minha revisão do amor, perdi-a confundido pelo amor ferido que se mescla ao ódio, ao ressentimento, à rejeição, todo esse complexo de emoções característico das separações amorosas traumáticas.

Precisei remover toda a fumaça romântica da minha percepção amorosa para afinal concluir que não perdera a mulher real, mas um objeto que idealizara. Se odiei a mulher que traiu minhas fantasias (jurávamos um ao outro amor eterno com toda candura dos jovens enceguecidos pela paixão de Romeu e Julieta), não poderia culpá-la por não corresponder às expectativas da minha idealização. Por isso afirmei que o amor romântico pode ser uma projeção do nosso narcisismo. Longe de mim afirmar que seja apenas isso. É claro que há muitos modos de ser romântico. Eu próprio tenho e quero preservar muito de romântico, pois ninguém ama com a razão. Amor é antes de tudo sentimento, expressão de desejos que não raro fogem ao nosso governo e às interdições sensatas da razão. No embate entre razão e emoção, as vitórias da primeira são sempre parciais e expostas ao risco da regressão. Não tenho dúvida de que o exercício da razão no ser humano é antes de tudo uma conquista penosa. Entretanto, também não duvido da luz que irradia.

Como assinalei, existem muitos modos de ser romântico. Enfatizei nas crônicas aqueles que me parecem nocivos, pois nos impõem, sobretudo à mulher, perda e sofrimento excessivos. Acima de tudo, procurei me concentrar na crise inegável dessa forma de amor. Ainda que tivesse competência para analisá-la em toda sua complexidade, na sua pluralidade de ângulos, não caberia fazê-lo em crônicas escritas para um blog. Os interessados mais esclarecidos sabem onde encontrar a bibliografia adequada para melhor examinar e conhecer a crise que abala o amor romântico.

Também lamentaria se a leitora enxergasse nas minhas crônicas apenas uma crítica impermeável a qualquer possibilidade de alternativa ou saída. Deixei claro que importa proceder à crítica do amor romântico, às ilusões e expectativas que envolve, não para mergulhar no desespero ou na descrença relativa ao amor. O sentido da crítica consiste em propor medidas passíveis de modificarem nossos modos de amor, a necessidade de revisar nossa compreensão do que seja nas nossas vidas. Como escreveu Malcolm Lowry, “non se puede vivir sin amar”. Por outro lado, não se pode amar dentro do figurino romântico dominante. Melhor dizendo, é claro que se pode, muita gente o faz, mas o final é previsível e o preço desastroso.

Os casais que sobrevivem bem ao chão movediço das relações conjugais são precisamente aqueles capazes de modular o amor de acordo com a realidade dos sentimentos e desejos humanos. O que não me parece razoável, nem realista, é acreditar que o amor romântico pode sobreviver indefinidamente como um movimento passional inexaurível indiferente ao tempo, à rotina, à realidade adversa, a todas as forças que tramam para esgotá-lo ou induzi-lo a mudar de objeto. O amor que sobrevive casado e durável, fonte das gratificações humanas de que mais carecemos, é o amor amizade. Quem disse isso há séculos foi Montaigne, o filósofo mais sábio que conheço. Como frisei, a expressão é muito vaga e portanto substituível. Se preferirem, chamem-no amor companheiro, amor parceiro... O essencial é esclarecer que aludo ao amor, precioso e raro, que sobrevive à fase passional e propriamente romântica gestando no convívio, na intimidade, nas vicissitudes compartilhadas o único modo de duração amorosa factível.

Casar o amor romântico, atar romantismo e duração, romantismo e rotina conjugal, é aspirar à realização de um paradoxo refutado pela história amorosa de figuras românticas modelares como Rousseau, Byron, Vinícius de Moraes e Oswald de Andrade. Sem contar toda a grande, também a pequena, tradição literária e artística que rendeu obras como a já citada Madame Bovary e Anna Karenina. No mais, ninguém precisa conhecer estas obras e a tradição de que são parte. Basta olhar com lucidez dentro e fora da nossa experiência. Em suma, o amor que casa e sobrevive precisa de algum tipo de juízo, coisa que o amor romântico desembestado nunca conheceu e até despreza.
Recife, 8 de agosto de 2012.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher III


Concluo minha série de crônicas sobre as relações entre o homem e a mulher invocando razões sobremodo pessoais para gostar de ser homem. Antes de tudo, é por ser homem que posso amar a mulher num sentido incogitável para uma mulher. Não esqueço de que existe o amor lésbico, cada vez mais corrente. Confesso que sempre achei belo e delicado o amor entre mulheres. Talvez meu modo de figurá-lo seja apenas fantasioso, mas o fato é que sempre me sensibilizou. Nunca me incomodou, pelo contrário, saber que minhas namoradas, quando o amor lésbico era bem mais reprimido, tinham amigas lésbicas. Embora não tenha nenhum preconceito contra o homossexualismo masculino, nunca consegui fantasiá-lo ou simplesmente imaginá-lo revestido dos tons de beleza e lirismo que associo ao amor lésbico.

Já que comecei aludindo ao amor homossexual, aproveito a cadeia associativa (quase sempre meu processo de composição escrita, como ressaltei no segundo texto desta série) para declarar minha posição ética e ideológica acerca do assunto. Sou liberal. Não o confundam com o sentido recentemente adotado em sites de prostituição. Se bem entendo este novo sentido adicionado a um termo tão polissêmico e incompreendido, ser liberal é topar tudo, como antes se dizia nos ambientes de língua solta. Sendo mais preciso, talvez convenha dizer que é topar tudo, em particular sexo anal. Voltando ao sentido que tinha em mente e de resto aqui defendo, sou liberal dentro da tradição do liberalismo anglo-americano. No Brasil, infelizmente, liberal é quase sempre um insulto ideológico, mesmo depois que a hegemonia do pensamento de esquerda ficou confinada na academia, sindicatos e outros nichos da política avessa ao liberalismo e à direita em geral.

Liberalismo e socialismo são linhagens ideológicas que ganharam força na primeira metade do século 19. No decurso desse período eles se afastaram, já que a burguesia triunfante traiu os ideais progressistas contidos no liberalismo. Mas este, tão ou mais ambíguo do que o socialismo, desenvolveu a tendência com a qual me identifico: a que postula a igualdade de gênero, a autonomia do indivíduo perante o Estado, com certeza sua característica essencial, e a democracia social. A direita liberal tende a reduzir a democracia a fundamentos puramente econômicos, isto é, reivindica antes de tudo a autonomia do indivíduo perante o Estado como se tal autonomia se reduzisse à liberdade econômica. Neste sentido, concordo com a crítica curta e seca de marxistas e afins: de que me serve a liberdade para morrer de fome?

Ora, é justamente por lutar pela autonomia do indivíduo não apenas enquanto agente econômico, mas também enquanto cidadão e membro de um gênero, que o liberalismo esteve e está na raiz dos movimentos de liberação hoje mais ativos do que os movimentos políticos convencionais. Refiro-me, noutras palavras, ao feminismo, aos movimentos em defesa dos direitos das minorias etc. É pena que o desenvolvimento do liberalismo no Brasil, associado sobretudo aos movimentos de direita, nos impeça de reconhecer o papel decisivo que a tradição liberal desempenhou no sentido de ampliar a conquista e exercício dos direitos humanos. Por essas e outras, acima de tudo por considerar a representação político-partidária do liberalismo no Brasil, sempre me constrangeu afirmar minha filiação ao liberalismo. Tanto me constrangeu que somente há bem pouco tempo ousei declarar-me liberal. Friso ainda que, em termos de representação política oficial, não seguiria nenhum dos partidos que se declaram baseados em ideais liberais. Noutras palavras, liberalismo para mim é um conceito investido de conotações antes culturais do que políticas.

Retomo o veio do meu argumento relativo ao homossexualismo para salientar que é precisamente por me definir como liberal que me sinto livre para defender os direitos do amor homossexual, os direitos de todas as minorias, em suma, a autonomia do indivíduo perante o Estado. Especificando: autonomia política, econômica, religiosa, sexual etc. Saindo dessas abstrações que por vezes me confundem, pois bem pouco conheço a história das ideias políticas, há muito me espanta o fato de tanta gente ser moralmente tolerante, quando não cúmplice, de políticos comprovadamente corruptos, de criminosos cujas infrações à lei resultam em danos sociais devastadores e todavia ser impiedosa no exercício do preconceito contra o homossexualismo. Ainda que se admita que este é moralmente recriminável, que mal ele causa a mim ou a quem não o pratica? Nesse sentido, acredito que a intolerância encerra um ingrediente inequívoco de insegurança psicológica acerca do que somos. A norma que deveria reger nossa atitude moral perante o homossexualismo parece-me simples: na medida em que não interfira na liberdade do outro, o indivíduo é livre para fazer sexualmente o que quiser.

Dei tantas voltas, errei acima através de tantos becos que acabei perdendo a mulher de vista. Como dizia, preciso ser homem para desfrutar do privilégio de amar a mulher como somente o homem a pode amar. Minha grande ventura foi amar e ser amado pela mulher. É uma experiência indizível que, na medida do que pude e precisei, notadamente quando sofri a dor e a perda, quando precisei limpar a chaminé da minha memória atormentada pelo amor ido e perdido, tentei toscamente traduzir em poema, em prosa lírica, em estados de epifania irredutíveis à palavra. Além disso, senti-me sempre tolhido pela consciência de que trato de uma ordem de experiência privada. Quando falo de amor, implico o outro, a mulher que não me autorizou a identificá-la e despi-la nas linhas da minha crônica. Portanto, além de defender minha própria reserva, minha própria privacidade, importa ainda mais preservar a privacidade de quem amei, de quem mergulhou comigo nos labirintos inconfessáveis da carne, da intimidade inefável.

De resto, é devido às razões acima grosseiramente expostas que detesto a cultura da exposição narcisista dominante no cenário contemporâneo. Repisando um trocadilho preciso, as pessoas se evadem da privacidade com um gozo de ostentação e vulgaridade que me inspira aversão. Não vou, portanto, incorrer nas práticas que reprovo. Sendo assim, encerro minhas três crônicas num tom decerto banal para quem se meteu a levantar tanta poeira nas páginas precedentes. Seguindo com uma distinção que me parece oportuna, critico o discurso sobre o amor e o sexo na medida em que se confunde com a vulgarização que sempre o rebaixa, além de remover seus objetos da esfera privada para a exposição contaminada pelo exibicionismo, a vaidade, a inveja, a ostentação de poder, todos esses modos de ser negativos incompatíveis com o amor e o sexo tal como os entendo e procuro vivê-los.

Esclarecendo a distinção acima proposta, afirmo hoje que o amor precisa manifestar-se em palavra, precisa sempre prodigamente declarar-se ao outro amado. Num poema tardio (“Quero”, incluído em As impurezas do branco), Drummond enfatiza o quanto precisa do amor declarado, o amor traduzido em palavra à exaustão repetida. Somente assim, frisa o poema, o poeta se sente amado. Lendo um dia esse poema, lembrei-me do quanto durante muito tempo me deixei trair pelo engano de que o amor deveria manifestar-se em ato, não em palavra. A palavra é fácil e frequentemente falsa. Isso todavia não anula a necessidade que temos de acreditar no amor do outro porque ele o declara. Talvez precisemos desse tipo de certeza precária ou confirmação simplesmente porque somos demasiado vulneráveis à incerteza, duvidamos demais do amor, duvidamos ainda da medida em que o merecemos. Além do mais, não bastasse a dúvida latejando na raiz do ser, duvidamos da sua duração quando o acreditamos real. Ele é hoje, mas será também amanhã? Essa insensatez corrói o amor, chega com frequência a ameaçá-lo, mas é com toda essa fragilidade insensata que no geral amamos.

O que sei é que aprendi, decerto tardiamente, porém ainda a tempo, aprendi a dizer o amor. Quando doravante voltar a vivê-lo, pois há ainda tempo para amar e amar com a maturidade serena que em mim tenho lavrado, direi o amor sempre que possível e necessário, sempre até quando prescindível. Nossa experiência do amor, nossa carência dele, tudo isso é incerto demais, precário demais para que a gente se contente simplesmente em vivê-lo enquanto ato. O poeta tem razão: é preciso dizer sempre o amor, dizê-lo todos os dias, quando de fato amamos. Contudo, é preciso antes encontrar o amor. E a verdade que antes a mim me toca, que antes em mim me fere, além da que observo à minha volta, é que andamos pobres de amor, andamos desavindos do amor. Assim, como tem sido difícil valer-me do privilégio de ser homem para amar a mulher num sentido somente concebível para quem é homem!

Já que acima aludi a Drummond, que até em matéria de amor é mais meu poeta do que românticos extremos como Vinícius de Moraes, concluo citando a quadra inicial de um dos seus poemas que não me canso de ler:
“Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva”.
Recife, 7 de agosto de 2012.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher II


Contei meio conto, agora a outra metade. Emendando associação de ideias, que é quase sempre meu modo de compor um texto, pois me falta disciplina e método para esboçar sequer um roteiro de composição, o andamento pré-traçado de um argumento, uma tese, uma demonstração organicamente estruturada, começo atando a segunda metade do meu conto à fantasia feminina da outra metade amorosa. Quantas vezes não ouvi, quantas vezes não li a expressão impensada dessa fantasia: a busca da outra metade? As mulheres a repetem como repetem outras fantasias amorosas que resistem inabaláveis às impossibilidades objetivas de realização de fantasias tão insensatas. Se se detivessem para refletir um minuto, logo constatariam que a fantasia da outra metade é apenas um sintoma narcisista. A outra metade é uma fantasia especular: a imagem do outro me refletindo no espelho. Noutras palavras, o ideal do amor seria encontrar fora de mim o outro que me reflete, o outro que completa minha metade cindida.

Penso precisamente o contrário dessa fantasia narcisista. Penso que o amor, o amor adulto que eu pelo menos procuro, se realiza na dimensão da diferença complementar, do outro que nunca será meu eu. É por isso que dele preciso, que, quando o tive, ele ampliou minha vida, enriqueceu-a com expressões de ser que me faltavam, que não sou e não posso ser. O outro que amo é minha diferença e meu igual, alguém que nunca poderia ser o que sou nem quero que seja. Se amasse o outro para ser minha outra metade, minha fração especular, então estaria procurando a mim próprio. Por isso afirmei que essa fantasia da outra metade é uma fantasia narcisista. Ora, a grande singularidade do amor, e aí reside sua fonte de generosidade e entrega ao outro, consiste na experiência de sair de si, de se desatar da tirania da nossa força egocêntrica.

Depois de tudo, depois do século da mulher, como antes observei citando Eric Hobsbawm, muita coisa deu e continua dando errado. A mulher conquistou a liberdade num grau sem precedente histórico, mas as relações entre gêneros, as relações de amor e família entraram em curto-circuito. O amor romântico, que passou a reger a consumação e duração dos casamentos e da constituição da família, vaza água por todas as juntas, inunda nossos desejos e fantasias mais profundos. Se fosse sociólogo, mobilizaria dados empíricos, acessíveis a qualquer pessoa letrada no site do IBGE, antes de tudo na nossa experiência refletida, para comprovar o que todos sabem, ainda quando não o queiram saber: o amor romântico está na UTI (O Teu Inferno, de acordo com minha tradução) das relações amorosas.

O amor romântico, que tem atrás de si uma história de séculos, segrega contradições insolúveis entre o que contém de fantasia amorosa e o teste da realidade, que tem sempre a última palavra. Para começar, ele consiste na idealização do outro amado. Não há idealização que resista à prova da intimidade e da rotina. Como disse alguém, nenhum homem é grande para seu criado de quarto. Traduzo mal, e de memória, mas sei que quem me lê entende perfeitamente o que quero dizer. A intimidade é demasiado reveladora para encobrir nossas idealizações. Viver sob o mesmo teto, compartilhar o mesmo cotidiano, a mesma cama, os mesmos odores, rotinas e reações em face da realidade é o modo mais banal e infalível de ver o outro como ele é, na medida em que ele se revela. Se não o vemos nessa medida aferível pela experiência, é porque nossas fantasias, nossa necessidade de ilusão é mais poderosa do que a força dos fatos que a todo momento nos dizem: ele é apenas humano e falível, apenas um homem, apenas uma mulher. Mas o amor romântico se lixa para essas evidências comezinhas da vida conjugada, do cotidiano doméstico, da família despida de romantização. O amor romântico precisa acreditar que o céu é sempre azul, que a vida é sempre bela, que o amor é sempre magia.

A realidade – ou o princípio de realidade, como repisava o estoico do charuto ao pé do divã – a realidade desmente todas essas nossas fantasias. No fim, sabem os iludidos mais renitentes, no fim é sempre ela quem triunfa. O amor se esfarela, o casamento se desmancha e cada um volta para sua solidão e endereço. Acaso insinuo, como um analista sadicamente negativo, que não há solução, que precisamos sempre sofrer essa via crucis? Bem pelo contrário, acho que a gente precisa mudar de disposição amorosa, reinventar o amor, ajustá-lo a uma medida humana mais realista. A leitora romântica certamente retrucará observando que o amor é sempre assim, assim romântico como ela o figura e compreende. Para ela o amor é um dado inalterável da natureza. Não, minha iludida leitora. O amor humano muda, como quase tudo que é humano muda, pelo menos nas formas sancionadas pelo costume, pelas formas históricas de organização da sociedade. Bem ao contrário do que espontaneamente imaginamos, durante a maior parte da história do Ocidente o amor e o casamento obedeceram a interesses inteiramente alheios à realização amorosa tal como idealizada pelo movimento romântico, obra de circunstâncias históricas apreensíveis por quem se disponha a estudá-lo, pesquisá-lo e interpretá-lo nas suas características distintivas.

Chego a este ponto e me detenho para avaliar espantado o estrago que acabo de causar. Ia desdobrar meu argumento visando justificar por que não quero ser mulher e todavia vejam onde acabei. Peguei o atalho do amor romântico, empurrado por uma arbitrária associação de ideias (relembrando: a metade do meu conto e a metade romântica sonhada pela mulher) e a essa altura nem eu sei mais onde estou, ou estava. Como precisamos sempre invocar alguma causa nobre ou suprema para justificar nossas imperfeições e erros, invoco Montaigne, meu herói filosófico e literário. Quem o leu com alguma atenção sabe que ele usa e abusa desse tipo de procedimento na composição dos seus ensaios. Quero dizer, promete falar sobre determinado assunto, por vezes já enunciado no título do ensaio, e logo deriva para outra matéria: entra por um beco, percorre uma vereda, atravessa uma ponte e quando damos por ele está nos revelando verdades insuspeitadas e imprevisíveis. Longe de mim presumir que a leitora conclua que me comparo a Montaigne. Afinal, se há em mim um orgulho que confesso à vontade, é o orgulho da humildade. Portanto, comparo-me a Montaigne tão-só em termos de forma de composição do texto ou argumento, não de valor. Afinal, interroga-se perplexo o narciso de TV, quem é Montaigne para se comparar comigo?

Retomo meu refrão: Deus me livre de ser mulher! Querem ainda razões que me justifiquem ou desgracem diante do olhar sombrio da leitora que teima ainda em descobrir aonde quero chegar? Pois invoco agora o argumento que me parece mais poderoso e por isso é talvez a fonte maior da infelicidade e da angústia feminina. Invoco a crueldade da mãe natura. Invoco-a para aludir mais precisamente ao corpo, ao lugar do corpo na nossa vida, à centralidade do corpo que por isso se projeta indomável na vaidade feminina, no seu senso de identidade e autoestima, no porte arrogante ou humilhado com que se move nas ruas, praias, festas, badalações, shoppping, no grande cenário do narcisismo de espetáculo em que foi convertido o mundo em que vivemos.

O corpo é nossa fração do ser mais falível, a mais vulnerável aos humores e movimentos mutáveis da nossa subjetividade. Isso é patente até no corpo de uma mulher linda e jovem. Basta-lhe uma noite de insônia, uma farra mal curada, um vinco de depressão ou desânimo e logo essas rachaduras do ser repontam no corpo. Se é assim quando somos jovens, o que dizer quando já ultrapassamos a fronteira da idade confessável, da idade que recobrimos com os disfarces que nos tornam ou semelham tornar-nos, não raro ao custo de um ridículo que a vaidade cega se recusa a admitir, aquilo que já não somos? Apesar de todos os avanços maravilhosos da ciência posta a serviço da beleza, do prolongamento da juventude, apesar da indústria do cosmético, dos muitos adornos e falsas fachadas, a rigidez e vitalidade da carne são parte da nossa natureza mais falível.

É aí que as mulheres são mais vulneráveis e com certeza sofrem mais que os homens. Estes, que evidentemente não passam impunes por essas mutações, continuam levando vantagens patentes sobre a mulher. Bastaria considerar a fragilidade do amor romântico, o amor que, como acima assinalei, está vazando água por todos os furos e juntas. Como rege ainda de forma imperativa o amor e o casamento, estes duram na medida em que ele é. Para a mulher isso parece ser condição inegociável. Os homens, escolados em milênios de dominação, além de dotados de uma força libidinal que se ramifica por muitas vias de gratificação (a política, o poder, o sucesso profissional, os esportes, as artes e o cultivo das práticas intelectuais...), raramente elegem o amor romântico como fundamento dos seus vínculos amorosos, mais exatamente do casamento e constituição da família.

Duvido que esta regra se aplique à mulher. Conheço mulheres inteligentes, cultivadas, com trunfos de sucesso profissional invejável etc. Nunca nenhuma me disse que isso lhe bastava, que se sentia realizada por alcançar essas formas de afirmação social e triunfo tão caras ao homem. O que sempre me dizem é: quero ser feliz no amor, quero ter filhos com o homem que amo e coisas parecidas. Por isso provavelmente a atmosfera confusa do amor contemporâneo, os abalos que sacodem a família, diretamente associados ao fenômeno precedente, atingem mais dolorosamente a mulher. Não bastasse tanto, ela envelhece (perdão, nesse mundo de eufemismo dissimulador da realidade não convém usar expressão tão ofensiva; digamos terceira idade, ou até boa idade, deixo a expressão ao gosto de quem mais queira ou não iludir-se) mais solitária ou mais privada de amor, de oportunidades amorosas do que o homem.

Quantos homens, já idosos e não raro barrigudos e carecas não se acasalam com uma mulher jovem no dia seguinte à separação da mulher mais velha que já não querem? Pior, mas não incomum, é descobrir que a causa da separação foi a opção inconfessada do homem pela mulher mais jovem e bela. Tenho amigas, além de conhecer outro tanto, que nunca mais voltaram a casar, a ter um homem permanente depois da separação conjugal. Mas se olhamos à volta, se deitamos o olhar sobre a paisagem onde transitam os homens maduros e idosos – barrigudos ou não, carecas ou não, feios ou bonitos – vemos quase sempre uma mulher jovem e bonita enlaçando seu braço, quando não mimando-o com modos servis. Portanto, apesar de reconhecer e louvar tudo que de admirável a mulher conquistou, concluo repisando meu irritante refrão: Deus me livre de ser mulher!
Recife, 3 de agosto de 2012.

sábado, 4 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher


Começo com uma confissão estarrecedora: desejei ser mulher quando era adolescente. Por isso invejei minha irmã mais velha, muito parecida comigo. Antes que pensem mal de mim (ou bem, já não se sabe), narro abaixo as devidas e indevidas explicações. Esse desejo repontou na minha consciência quando me tornei medroso da vida. Contei mais de vinte cicatrizes no meu corpo. Era a consequência de ser um diabinho solto nos campos, embora fosse ao mesmo tempo um garoto introvertido e sensível, tão recolhido dentro de mim em certos momentos que hoje bem poderiam pregar-me o diagnóstico banal de depressivo.

Solto no mundo, sem mãe ou rédea para me prender, vivia acumulando acidentes e desastres: queda de cavalo, de trem, pois vivia danado pulando de trem em movimento, fuga de boi brabo, três pedradas na cabeça, riscos de afogamento nas águas do rio que vazavam nas enchentes de inverno. No futebol, paixão obsessiva, levava muita pancada, pois jogava bem e era leal ao extremo do descuido. Queda de bicicleta guiada às loucas, de carrossel e outros brinquedos perigosos instalados na rua durante as festas de fim de ano. Várias mordidas de cachorro. Fragmento de bala alojado na minha perna quando assistia à disputa de tiro ao alvo dos homens embriagados em um piquenique. O pior foi a queda de uma árvore que por pouco não me arrebentou e ainda me despachou para o hospital. Enfim, vivia com o corpo marcado por todos os excessos e traquinadas da minha infância e adolescência sem governo.

Ainda pior foi o vaticínio supersticioso de minha avó. Alarmada diante de tantos acidentes, vendo-me sangrar e sofrer em todo tipo de circunstância, minha avó acabou acreditando que eu nascera para ser mártir. Pior que tudo foi o fato de eu próprio acreditar na sua superstição reforçada pelo coro de todos os crentes que me cercavam: parentes, amigos, vizinhos, um sombrio coro de cassandras selando minha desgraça. Daí brotou meu medo da vida, a premonição de que tudo sempre acabaria mal para mim. Ninguém imagina o quanto precisei lutar comigo para me libertar desses fantasmas que me encolheram a coragem e me privaram de arriscar caminhos e aventuras que teriam feito minha adolescência ainda mais conturbada, porém com certeza mais triunfante e forte.

Em contraste com a triste sina acima lambuzada com palavras que palidamente a exprimem, minha irmã me parecia protegida da vida como uma donzela de castelo: nenhuma das minhas cicatrizes, nenhum dos meus medos em face da adversidade e dos acasos desastrosos. Fechada na segurança da casa, fechada dentro dos muros do colégio de freiras, minha irmã simbolizava a segurança de que eu tanto carecia, a proteção sonhada contra os perigos do mundo. Daí (compreendem agora minhas razões?) meu desejo de ser mulher como ela. Ah, comigo fantasiava, como seria bom viver a segurança de ser mulher num mundo tão violento!

Talvez precise ainda acrescentar, para melhor descrever o mundo da minha infância, que no mundo rural pernambucano não havia fronteira entre o menino, o adolescente e o homem. Isso quer dizer que muito cedo mergulhei nos prazeres e riscos característicos do mundo adulto. Muito cedo me vi às voltas com o mundo de homens brutos, crus no trato com a sexualidade e sempre às bordas da violência. Era portanto previsível que assistisse a cenas de briga, socos, facada, toda sorte de violência. Aos dez anos fumava. Meu primeiro porre, grande trauma da minha infância, tomei-o com sete anos de idade. Ainda menino, vivia metido com jogos de azar, aprendendo putaria, fugindo de casa para as noites de serenata, me espojando na poeira do mundo baixo que é objeto de desejo e fantasia de toda criança mordida pela serpente da curiosidade. Não precisamos de Freud para saber, pelo menos depois dele, que o sexo é a matriz dessa curiosidade.

Eis que um dia, já não lembro quando nem precisamente como, penetrei na singularidade do mundo feminino o suficiente para me dizer aliviado por ser homem: Deus me livre de ser mulher! Esta conclusão logicamente decorreu da experiência acumulada o suficiente para que revisse minha equivocada noção de segurança distinguindo os gêneros, as possibilidades e escolhas de vida abertas ou fechadas na trajetória genérica traçada pela mulher e pelo homem na vida. Como afirmei, não lembro quando nem como respirei aliviado por ser homem. Mais que aliviado, descobri que ser homem era um privilégio, uma superioridade injusta, mas de qualquer modo uma superioridade, aferível no reino da natureza e da sociedade.

A essa altura ouço as pedras repicando no meu telhado de vidro. Um frio me corre a espinha ao ouvir o alarido das minhas amigas, da leitora ocasional que talvez nem conheça. Como ouso - eu que parecia tão normal, até delicado, dizem algumas amigas mais generosas – repisar com tamanha desfaçatez os chavões grosseiros urdidos e encardidos por nossa violenta e deplorável tradição patriarcal e machista? “La femme est l´avenir de l´homme”, como escreveu o poeta francês Louis Aragon. Na França o futuro pode ser mulher, mas o passado e o presente, pelo menos no Brasil, estão ainda longe do ideal feminino que, sem demagogia, desejaria real. Bem, para não me expor ao risco de deslizar na demagogia fácil do feminismo de academia e outras modas equívocas, conviria precisar melhor o que seria ou será esse futuro mulher, ou futuro feminino. Espero que o que virá abaixo torne minha perspectiva mais apreensível e compreensível – ou até perdoável, sei lá!

Começarei por revisar minha percepção míope do lugar ocupado pela minha irmã no mundo da minha infância e adolescência, também no que veio em seguida. Descobri que minhas cicatrizes, as pancadas que sofri, físicas e psíquicas, eram o preço cobrado pela liberdade que a vida lhe suprimia. Minha irmã não levou as pancadas que levei simplesmente porque o sistema de opressão secular em que vivia, nosso velho patriarcalismo, lhe impôs os muros do internato de freiras, a mordaça da religião - ministrada por mulheres, convém lembrar - e as formas de repressão interna correspondentes já denunciadas pelas mulheres – também pelos homens, convém não esquecer – conscientes da opressão social imposta à mulher. Suportei as pancadas parcialmente explícitas acima para ter acesso a uma forma de liberdade incogitável para minha irmã.

Também friso que muitas das pancadas foram fruto do azar, é o que ainda penso. Afinal, por que as pedras caíam exatamente sobre a minha cabeça, quando havia tantas à minha volta? Por que o trem descarrilhou para atrair minha curiosidade insaciável montada num cavalo em disparada dentro da noite, suas estradas desertas, o risco do atropelamento nas curvas imprevistas? Por que os vira-latas mordiam precisamente minha perna ou até minha orelha? Por que a sede do rio ameaçando tragar-me, afogar a mim quando havia tantos mais insensatos e imprestáveis? Por que o azar elegeu-me sua vítima preferencial, era isso o que me perguntava aflito e a superstição de minha avó e das cassandras dos canaviais replicavam mirando pesarosas meu corpo de mártir.
Minha irmã cresceu num mundo vedado à participação ativa da mulher. Enquanto eu desfrutava da liberdade de ser um diabinho solto na capoeira, levantando poeira na estrada e praticando o mal e a injustiça embalado pela santa inconsciência da infância e da adolescência, minha irmã vivia fechada por trás de sete chaves. Seu mundo era o da casa regida pela repressão, a virgindade compulsória, os horizontes mesquinhos de uma vida sem riscos, possibilidades e aventuras de qualquer natureza. E ai da louca ou rebelde que ousasse pular o muro, derrubar a cerca, invadir o mundo dos homens, que era a rua compreendida no sentido literal e sobretudo figurado. O mundo, o grande mundo era invenção e propriedade dos homens. Se alguma mulher ousasse saltar a fronteira nítida que separava os gêneros injustamente divididos, o preço cobrado era quase sempre a desonra, a exclusão social, no mínimo o preconceito implacável e a polícia impiedosa da vizinhança e da religião impondo cadeias à carne da mulher e tolerância hipócrita e complacente diante dos desmandos do homem.

Hoje, claro, a realidade é outra. O século vinte foi sem dúvida o século da mulher. Quero dizer, foi no seu decorrer que a mulher gradualmente desaferrolhou as portas, rompeu cadeias, aboliu a fronteira secular entre a rua e a casa, desatou muitos dos nós materiais e simbólicos da sua servidão. Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores contemporâneos, afirmou que o fenômeno histórico mais positivo do século vinte foi a mudança radical da condição social da mulher. Num século de tantos horrores e catástrofes sem precedente histórico – como guerras, revoluções, genocídios, destruição praticada em escala assombrosa – o grande sopro de renovação da história consistiu na ascensão da mulher a praticamente todas as esferas significativas da sociedade, à conquista de uma liberdade que mudou radicalmente a face do mundo, as relações de gênero, o ordenamento ético e afetivo da família, o lugar do corpo e da sexualidade na esfera dos costumes.

Ora, se tanto reconheço, como então justificar o título do meu artigo? Será acaso propaganda enganosa, jogada de marketing barato para atrair a atenção da leitora desprevenida ou ansiosa por uma polêmica sem acordo ou termo? Não é bem assim, já que do meu conto contei apenas meio conto. Apesar do parágrafo precedente, no qual sumariamente celebro o grande feito das mulheres na história recente, sabemos muito bem que nem tudo é azul nesse mar que descortino. Quantas mulheres não se queixam ressentidas, não raro com razão, do preço que hoje pagam pela liberdade conquistada? É aqui que repiso meu bordão polêmico: Deus me livre de ser mulher!

A mulher saltou o muro e a cerca, arregaçou as mangas, encurtou a saia, profanou seu corpo antes fechado à chave, envolto em sedas e outras máscaras que lhe abafavam a carne e foi para o campo de batalha ao lado e com frequência contra o homem. Este, encolhidos seus poderes, afrouxada a tirania exercida sem contestação, revidou do modo previsível. Mas é certo que as mudanças não se fazem apenas com conflito, batalhas intransigentes travadas entre forças antagônicas. Menos ainda nesse conflito, que tantas vezes começa ou acaba na cama compartilhada, no desejo imperativo que atrai e atrita essas duas metades complementares, mas irredutíveis, dependentes, mas também litigiosas. O que parece, nesse confronto entre termos ambivalentes e inapartáveis, pois ambos se querem e se precisam até para preservar a espécie (melhor dizendo, para superpovoar o mundo), o que parece, dizia eu, é que a batalha se sobrepôs à conciliação entre os sexos. Aguardem o próximo capítulo desta novela sem final feliz aparente.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Amor e Memória


De tudo fica um pouco, como diz o poema de Drummond. Do amor fica muito. Quero dizer, fica muita memória. Fica sempre a memória do amor com seus bons e maus bocados, com seu rastro de iluminação e devastação, pois o amor, por ser humano, contém forças ambivalentes na sua própria e impura raiz. Por ser uma força humana tão poderosa, ninguém o vive impunemente. Também não o vive sem a coragem do risco e da perda. O amor, disse um poeta passionalmente corajoso, é incompatível com a covardia.

O amor acaba, sempre acaba enquanto ato, enquanto viagem e aventura compartilhada. O que fica, o que sobrevive, acaba por força da natureza das coisas domesticado pela acomodação e a rotina. Logo, sobrevive antes como modo especial de amizade. Dou-lhe esse nome impreciso. Que outros melhor o definam. O que sei é que não há amor que sobreviva por muito tempo quando é movido pelas forças que associamos à noção do amor romântico, isto é, o amor movido à paixão. A paixão que todo dia provoca uma revolução cósmica, queima uma floresta, descarrilha um trem, devasta uma cidade, introduz a turbulência dos sentidos nos códigos ordeiros e tediosos da vida corrente. Essa corrente do amor passional é dominadora e indizível, mas realisticamente condenada ao tédio ou esgotamento. Por isso sempre acreditei que o amor romântico não deve casar. Ele começa como negação radical do mundo da rotina e acaba calculando orçamento, brigando por bens, detido na vara da família. É cruel dizê-lo, mas esta é a força dos fatos.

O amor acaba, no sentido romântico do termo acima esboçado, mas dele sobrevive a memória. A memória é infalível. Nos seus labirintos indecifráveis lateja, como duração, a presença consoladora do que perdemos, do amor que já não é. Mas aqui a ambiguidade é novamente reposta, pois a memória tanto consola quanto dói, sublima a perda na medida em que também renova a dor do amor perdido. Essa memória ambígua que transportamos pode sempre nos ensinar a amar ainda o que perdemos, mas também ensina que lembrar é uma ferida insanável. Por que insanável? Porque não há como decantar a memória, mesmo do amor mais belo e pleno, expurgando-a da dobra negativa que em tudo existe.

Estendamos a noção do amor para aqui também abrigar o amor que nos vincula à família, sobretudo aos pais que são nossos modelos primários. Indo além disso, acrescento os amigos a esse cortejo de sombras colado à própria sombra que somos movendo-se pelos incertos caminhos da vida. Essas sombras inapartáveis são a evidência de que nunca estamos sozinhos. Ao mesmo tempo, são também a evidência de que estamos sempre sozinhos, já que a sombra é apenas o resíduo, o caldo simbólico da vida vertida na corrente que passa.

A memória é já passado e todavia é sempre presente. Por isso convém moer com zelo o grão de sabedoria que nos liberta do peso do passado. O passado que mais dói é o passado da memória represada, o passado reprimido como defesa contra a memória sempre provando que nos movemos na corrente do tempo, um tempo cujas margens sempre avançam e recuam mesclando passado, presente sensível e nossas projeções factíveis, imaginárias ou puramente delirantes.

Por que tantos tendem a reprimir a memória do amor depois que ele acaba ou se separa, sobretudo quando o desenlace se faz de forma conflituosa, ressentida, traiçoeira...? Talvez a explicação genérica para esse tipo de reação ou defesa do ego decorra da força poderosa com que o princípio do prazer atua no nosso psiquismo. Se lembrar o amor separado ou perdido é sempre doloroso, pior ainda é quando a memória vem sempre envenenada pelo ressentimento, o sentimento de rejeição, a hostilidade em face da traição ou engano tolerado além das medidas razoáveis. No entanto, nosso engano maior e mais danoso é supor que a memória sufocada resultará em libertação do amor perdido ou arruinado.

Por tanto importar, por tanto vincar de forma profunda nossa experiência afetiva, ele teima sempre em voltar, arrombar as portas que aferrolhamos, as janelas vedadas pelo ego ferido. Ele volta, por exemplo, como memória involuntária, fenômeno que ninguém traduziu melhor em palavras e imagens, em análise psicológica iluminada, do que Proust. Quem o leu, direta ou indiretamente, sabe muito bem o que significa memória involuntária. O exemplo mais conhecido, acenando brevemente para a sua obra, é o da madeleine imersa na xícara de chá. Há muitos outros estímulos que atuam sobre nossos sentidos acionando a memória involuntária: sons, palavras, a música, certas imagens, nossos modos múltiplos de percepção da realidade. De repente, no som de uma canção irrompe a memória do amor perdido, não raro encadeada a imagens irreprimíveis.

Que fazer de todas essas forças psíquicas, dessa memória involuntária, ou até voluntária, que conspira para que o amor perdido sobreviva, bata sempre e sempre à nossa porta encrespada pela dor da perda inconsolada? Não tenho lições para dar a ninguém, salvo a que procuro dar a mim próprio. Em que consiste? Numa atitude inoperante se apartada do que chamaria de memória generosa. Quero dizer, não tente sufocar o amor ido ou perdido. Até porque, como acima salientei, ele não se vai, ele não pode ser apagado, suprimido da nossa memória como suprimimos um pesadelo depois que acordamos e refazemos nossos elos mecânicos com a vida consciente. Portanto, a única saída é a reconciliação com a memória impotente para expulsar o amor perdido ou rejeitado que nela se aloja. E a reconciliação se faz com o acolhimento da memória que nos magoa e desejaríamos suprimir.

Se não há como esquecer o outro perdido, melhor reconciliar-se com ele, ir lenta e dolorosamente decantando a memória, abstraindo os bons e os maus bocados do vivido e compartilhado. Esse processo se realiza na medida em que somos capazes de acionar na memória sua dobra generosa. Dizendo isso de um modo menos impreciso, se o amor foi tão grande e profundo, e por isso não pode nem deve ser suprimido, importa então concentrar a memória voluntária em tudo isso que lhe conferiu beleza e prazer. Os maus bocados, fonte do nosso tormento e dor, irão gradualmente refluindo, deslocando-se para o fundo da memória, cedendo o passo à rememoração do que houve de melhor no amor. Até que um dia descobrimos que o amor perdido foi salvo do desastre sobrevivendo no que a memória retém de momentos de beleza, prazer, afinidades compartilhadas, imagens e momentos que no passado o fizeram tão belo e intenso. Por isso importa salvá-lo na memória decantada depois da separação, do luto simbólico, da perda que por fim acolhemos isentos de ódio e ressentimento. Se somos capazes disso, podemos nos reconciliar com o amor perdido, convertê-lo em amizade, em memória pacificada liberta da repressão como meio desastroso de lidar com o passado do amor.
Recife, 30 de julho de 2012.