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quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Capitalismo Estatal e Cinema


Talvez importe iniciar este artigo declarando alguns fatos que sugerem meu trânsito à margem da realidade cultural pernambucana e sua rede de relações associativas. Faz muitos anos que não freqüento salas de cinema, muito menos a exibição de filmes brasileiros. O cinema que continuo vendo e revendo por escolha, fruição estética e prazer procede do mercado de DVD e redes como o You Tube. Ensaio este preâmbulo porque, depois de muito relutar, decidi enfiar minha colher torta no bate-boca que tomou conta do mural do Facebook, onde ocasionalmente ainda navego. Leio bem poucos. Alguns, como Cristiano Ramos e Mano Ferreira, me dão uma vaga noção de um incidente deplorável, mas culturalmente sintomático, como tentarei esclarecer adiante, ocorrido durante uma sessão no Cinema do Museu. Isento-me de sumariamente relatá-lo por ser de amplo conhecimento público. Meu interesse é partir do incidente encarando-o, antes de tudo, como um sintoma do nosso capitalismo estatizado. Reduzindo a questão ao campo cultural, passo a algumas ponderações inspiradas pelo ideário liberal que embasa esta coluna cujo título é A Letra Plural, publicada pela revista eletrônica Café Colombo.

Há vários anos, quando o chamado renascimento do cinema pernambucano ainda engatinhava, ouvi de um de seus participantes a frase seguinte: ninguém faz um filme no Brasil sem ceder 30% do patrocínio estatal (o truísmo intencional vale como ênfase) aos intermediários. O cinema nasceu e se difundiu pelo mundo como a arte do século XX. Convém todavia lembrar que é um misto de arte e indústria, talvez mais esta do que aquela. Além de produto financiado e controlado economicamente por capitalistas poderosos e ousados, depende de uma infraestrutura complexa, também de um processo de criação coletiva que o torna, não obstante a teoria falaciosa dos críticos do Cahiers du Cinema, obra de autoria coletiva.

No Brasil o enredo é outro e isso diz muito sobre a natureza do nosso capitalismo e a nossa cultura tutelada pelo Estado patrimonial. Bastaria lembrar que Fernando Collor, no auge do seu delírio privatista, dissolveu o cinema brasileiro com uma simples canetada. Aboliu a estatal e com ela se foi o cinema. Alguns mais talentosos, como Arnaldo Jabor, migraram para o jornalismo. Anos mais tarde o cinema renasceu novamente graças à tutela do Estado. Isso explica, em parte, a proliferação de tantos filmes ruins e sobretudo filmes que dão prejuízo aos cofres públicos, mas lucro assegurado a seus realizadores, para não falar dos ladrões que amealharam financiamento do qual não resultou nenhum filme. Enfiando aqui outra anedota autêntica, um amigo, sobrinho de cineasta famoso, me disse que o tio vive do que ganha dos filmes que dirige. De cinco em cinco anos realiza um filme cujos custos incluem seus ganhos pessoais previstos. É o chamado capitalismo sem risco. Assim funciona boa parte da nossa produção cultural.

No capitalismo moderno, largamente independente do Estado, as pessoas competem em todas as esferas. As relações culturais, ou o mercado da cultura, não foge a esta regra. No Brasil, todavia, a competição se concentra dentro e nas relações com o Estado entre agentes pautados não pelas normas impessoais do mercado, mas por um complexo de interesses e negociações dependentes de duas vigas: o Estado patrimonial e a renitente cordialidade admiravelmente dissecada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Indo aos miúdos que me interessa salientar, como ser um agente e/ou crítico independente no contexto acima grosseiramente esboçado? Como ser um liberal conseqüente dentro de uma ordem capitalista na qual o Estado mete o bedelho em tudo e a própria cultura, aqui compreendida no seu sentido socioantropológico, quase sempre funciona como a luva que veste a mão do Estado arbitrário? É por essas e outras que me constrange ainda declarar minha adesão ao liberalismo.

Tentei explicar o sentido em que o adoto através de uma citação de Vargas Llosa. Para quem queira compreender melhor o argumento deste artigo, e outros implícitos, recomendo a leitura do meu artigo inaugural já mencionado. Simplificando, limito-me a dizer que defendo um Estado regulador das relações gerais do mercado e interventor apenas na esfera das políticas públicas (saúde, educação, segurança, transporte público...). Por isso me oponho ao Estado empreendedor na esfera econômica, o Estado detentor de monopólios. Além de ineficaz, ele é fonte inevitável de corrupção e abuso de poder. A Petrobrás ilustra isso muito bem e só os inocentes ou desonestos podem acreditar que a culpa é apenas do PT ou de qualquer outro partido implicado nessa roubalheira colossal. Enquanto forem propriedade do Estado, as estatais serão fonte de abuso de poder político gerando privilégios, corrupção, nepotismo, superfaturamento e outras pragas correntes no Brasil. Enquanto o Brasil não reformar pela base o seu Estado, crises como que a estamos sofrendo serão recorrentes.

Mas quem quer reformar o Estado brasileiro convertendo-o de fato num Estado moderno, isto é, republicano e democrático? Nem o povo quer, ele que é a vítima desse modelo espoliador. Afinal, formou-se há séculos sob a tutela do Estado-pai encarnado mais recentemente em Getúlio Vargas e Lula. Raimundo Faoro traçou-lhe a genealogia demonstrando como se perpetuou através da nossa história. Dou um exemplo do seu oposto, o Estado democrático-liberal moderno, que vale por mil argumentos. Estava vivendo na Inglaterra quando o Estado totalitário soviético desmoronou. Quando destruíram o muro entre a Alemanha Ocidental e a Oriental li, com olhos de brasileiro perplexo, esta manchete de primeira página do The Sunday Times: 30 mil soldados ingleses sumariamente demitidos. Explicando melhor, as forças armadas que guarneciam o lado ocidental da fronteira foram automaticamente demitidas pelo Estado inglês tão logo o muro foi demolido e elas se tornaram portanto inoperantes. Não preciso acrescentar mais nada. Sugiro apenas ao leitor que imagine um dos nossos 39 ministérios sendo abolido e demitindo 1000, digamos 100, parasitas do nosso funcionalismo público. Que mais dizer, além do que o leitor crítico pode deduzir do meu exemplo?

Encurtando o artigo com uma provocação, pois as articulações entre Estado patrimonial, cordialidade e cultura são complexas demais para minha inteligência fatigada e cética, sugiro apenas a abolição dos patrocínios estatais ao cinema que não obedeça a funções rigorosamente educativas e culturais isentas de finalidades mercantis. Pelo menos uma conseqüência seria facilmente previsível: cessariam esses bate-bocas de gênio de província e o Recife – também o Brasil, por extensão – seria removido das páginas do Guiness como a cidade, e o país, que tem a mais alta taxa de cineastas por m2 do mundo.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Nos Murais da Internet


Transcrevo abaixo alguns textos curtos que escrevi e postei no mural do Facebook e no espaço de comentário de blogs e revistas eletrônicas dos quais sou ou fui colaborador. São textos obrigatoriamente sumários: ora uma nota crítica sobre assunto corrente, ora a apreciação sumária de alguma questão excepcional ou ainda banal, quando não evidência momentânea de impasses sociais ou existenciais. Sendo de tal natureza, é duvidoso que resistam à leitura isenta da circunstância que os animou. Ainda assim, arrisco-me a postá-los no meu blog. Receio que não interessem a quase ninguém, mas aí ficam como registro fugaz de um sopro do tempo e da história que de algum modo se imprime na minha vida e na do leitor improvável.

Biografia autorizada
Noto com prazer que o último editorial da revista Será?(que me desculpem os editores, mas insisto em designar a opinião semanal do periódico como editorial) está provocando muito debate. Sou um leitor apaixonado de biografias, que costumo incluir numa categoria mais ampla: a literatura íntima. Portanto, modéstia à parte, conheço razoavelmente não apenas a produção nacional, mas sobretudo a anglo-saxônica. Fiquei profundamente decepcionado ao constatar que artistas e intelectuais que admiro associaram-se para promover de forma pública e ativa um ato de violação fundamental à liberdade de expressão. Sei que a questão é complexa. Os comentários que andei lendo na mídia sugerem o quanto é controvertida. Por isso vou ressaltar alguns pontos que me parecem mais importantes.
O biografado é por definição uma figura pública. Quem já ouviu falar em biografia de algum anônimo? Sendo público, ele perde o direito à sua privacidade. Tanto isso é verdade que produz uma obra precisamente com o objetivo de sair do anonimato. Outra prova: todos querem que escrevam as biografias que aprovariam, a biografia que convém à sua vontade e narcisismo. Chico Buarque, por exemplo, aprovou e colaborou ativamente para que Regina Zappa (nem sei se escrevo o nome preciso, tão irrelevante é o perfil que escreveu sobre ele) publicasse um livro sobre a sua vida e obra que não agüentei ler a metade. A razão? Não passa de obra de celebração, livro de fã para exaltar o ídolo. Ora, não é este o objetivo nem a função principal da biografia. A biografia, no seu melhor sentido, é um subgênero da historiografia compreendida em sentido amplo. Portanto, obedece a critérios de pesquisa e interpretação que a tornam expressão relevante de toda grande tradição letrada.
O Brasil ainda produz muita biografia ruim, ou puramente jornalística, compreendido o termo no seu sentido meramente factual ou rasteiramente crítico, porque não firmou ainda uma tradição como a que se observa, por exemplo, no ambiente intelectual anglo-saxônico. A imposição da biografia autorizada é antes de tudo uma violação da liberdade de expressão, mas é também um obstáculo à lenta sedimentação de uma tradição de literatura íntima digna das grandes tradições intelectuais. É portanto desolador constatar que estamos ameaçados por esse retrocesso no âmbito da produção intelectual e artística. Mais grave ainda, e profundamente decepcionante, é constatar que esse movimento obscurantista é ativamente endossado por artistas e intelectuais que foram vítimas do arbítrio autoritário, que produziram uma obra admirável em condições adversas e por isso inspiraram tanta admiração e respeito aos extratos mais democráticos da nossa sociedade. (21 de outubro 2013).

Biografia autorizada – comentário II
Caro João Rego:
Grato pelo comentário que alonga o meu e o enriquece com algumas achegas psicanalíticas. Você cita apropriadamente um ensaio de Freud ao qual poderíamos acrescentar “Psicologia de grupo e análise do ego”. Acrescentaria que o público leitor de biografia, assim como o grupo que a produz, é muito diferenciado. Há o leitor, também o biógrafo, que reduz a biografia a voyeurismo barato, ou olha pela brecha da fechadura movido por pulsões sado-masoquistas, inveja e outras motivações espúrias. Essa impureza está em tudo que é humano. Quando for o caso, que o ofendido ou caluniado recorra à justiça.
Minha preocupação, que procurei sugerir no comentário precedente, está orientada para a biografia como exercício de liberdade crítica, como expressão de cultura capaz de articular de forma crítica e iluminadora o autor, ou o biografado, e a obra que produz. Grande parte da melhor crítica filosófica e literária inglesa, por exemplo, é obra de biógrafos. Citando um exemplo brasileiro, ainda que em escala bem inferior, um biógrafo como Ruy Castro concorreu de forma decisiva para repor Nelson Rodrigues e a Bossa Nova de forma renovada no cenário intelectual e artístico brasileiro.
Como você, admiro profundamente Chico Buarque e Caetano Veloso, expressões definitivas da nossa cultura. Além disso, sabemos que a importância deles transcende a esfera musical. Por isso precisam ser estudados e criticados de forma livre. Pelo visto, estão decididos a fazer o que possam para que sobre eles se publique apenas o que querem que seja publicado. Se isso não é censura prévia e atentado contra a liberdade de expressão, então, citando versos do censurado de outrora, “chame o ladrão, chame o ladrão”. (21 de outubro 2013).

Che, o filme
Ontem assisti num dos cinemas do Shopping Guararapes à segunda parte de Che, dirigido por Steven Soderbergh. Há uma evidente ruptura temporal entre a primeira e esta. A primeira acaba quando os revolucionários liderados por Fidel Castro e Guevara estão a caminho de Havana com a revolução já triunfante; a segunda concentra-se na Bolívia depois que Guevara renuncia à função dirigente que exercia no governo revolucionário para consagrar-se integralmente à ação guerrilheira nos campos e montanhas bolivianas.
Vi o filme numa sala quase entregue às moscas. Havia apenas uns três gatos pingados, todos ainda mais velhos que eu. Como explicar que o mito Guevara, estampado em camisetas, bandeiras e posters difundidos pela cultura de massa não atraia um jovem sequer à sala do cinema? Longe de mim propor qualquer explicação. Acho apenas que a sociedade de consumo devora tudo, até sua negação radical. Como admitir isso sem ser picado pela sensação de impotência ou até de niilismo em face dos poderes sociais vigentes? A política radical identificada como foquismo nos anos 1960 é puro delírio revolucionário, tão inviável quanto o radicalismo anarquista do grupo Baader Meinhof, também convertido recentemente em filme. Aliás, parece-me bem melhor do que os dois de Soderbergh dedicados ao mito Guevara. (04 de novembro 2009).

Os dez melhores livros
Já que tantos estão brincando de listar os dez melhores livros e até escalando seleção de livros, como é o caso de Cristiano Ramos, intrometo-me na brincadeira e posto a minha lista. Adianto que sigo o critério proposto por Elizabeth Hazin, isto é, livros que nos marcaram nas circunstâncias singulares em que os lemos. Daí pode-se logicamente deduzir que pelos menos alguns dos livros que incluo na minha lista poderiam ser excluídos se acaso os submetesse a uma releitura. Esclareço, por fim, que a lista é composta pelos dez primeiros livros que me vieram à memória. Se me detivesse rememorando leituras, por certo a lista seria outra.
1 – Hamlet – Shakespeare
2 – King Lear – Shakespeare
3 – Ensaios – Montaigne
4 – Dom Quixote – Cervantes
5 – Judas, o Obscuro – Thomas Hardy
6 – A Consciência de Zeno – Italo Svevo
7 – O Processo Maurizius – Jakob Wassermann
8 – Moon Tiger – Penelope Lively
9 – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
10 – Macunaíma – Mário de Andrade.
P. S. – Mal concluí a lista, lembrei-me de Crime e Castigo e Guerra e Paz, que com certeza entrariam na minha lista definitiva. (31 de janeiro 2014)






sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Gosto se não discute?


A voz corrente, que dizem ser a voz de Deus, afirma de pés juntos que gosto não se discute. Se Deus tem razão, então convém abolir a estética e de resto qualquer discussão, se é que queremos ser coerentes. Afinal, se gosto não se discute, qual o propósito de discuti-lo? O fato de discutir a questão já deixa claro o que penso: gosto se discute, sim. Tanto se discute que a voz do povo, ou de Deus, vive discutindo todo tipo de gosto, sobretudo o mau gosto que envenenou e corroeu toda uma tradição de debate sempre questionável, mas calibrada por padrões que há muito desceram pelo ralo. A relatividade diluidora promovida pelo mercado chegou a extremos tais que hoje as próprias instituições portadoras da tradição (a escola, o artista, a crítica especializada, o museu, a galeria de arte etc), portanto também detentoras dos meios de canonização da obra de arte, passaram a promover abertamente a desintegração dos critérios que conferiam suporte distintivo à obra e assim legitimavam o debate no campo artístico. Hoje impera o salve-se quem puder. Por isso passei a considerar perda de tempo a discussão do gosto estético, embora tenha acima deixado claro o que penso sobre esse tipo de discussão.
A introdução um tanto embrulhada deste artigo deriva do ânimo relutante com que me decido a entrar no debate meio que empurrado por sugestões procedentes de um artigo que Sérgio Buarque escreveu sobre o filme O som ao redor. Às sugestões do artigo somaram-se vários comentários, inclusive meus. Por fim, o próprio Sérgio escreveu para Sônia Marques e para mim propondo-nos um debate ou a redação de um artigo. Apesar de minha relutância já declarada, fica evidente que me apressei a escrever o artigo tomado pela esperança de que Sônia também amplie a discussão. Mas entro noutra digressão antes de ir ao cerne da questão.
À parte a qualidade notável da revista eletrônica Será, ressalto a coerência com que tem promovido o debate de ideias. Aliás, o ânimo questionador da revista está inscrito no próprio título que a identifica e vem estampado em letras nítidas no editorial definidor de suas credenciais. Sabemos que a história da mídia brasileira, talvez universal, está cheia de boas intenções programáticas. Quero dizer, é fácil pregar ideais democráticos e liberdade de opinião; o difícil é exercer uns e outra. Será? dá provas de sua coerência a partir do próprio corpo de editores e colaboradores que têm debatido livremente sem que até o momento nenhuma voz dissidente tenha sido condenada a trabalhos forçados na Sibéria, ou nos canaviais pernambucanos, para ficar em casa, por crime de opinião. Vamos agora ao que importa.
Quando me parecia estar consolidado na voz da mídia (não no gosto ao redor, segundo observação de Sônia Marques) o consenso ao redor do filme de Kleber Mendonça, Sérgio Buarque acelerou na contramão desencadeando essa arenga que não sei aonde vai dar. Aderi à voz dissidente até porque, como deixei claro, não morro de entusiasmo pelo filme. Mas paguei a carona que Sérgio me deu divergindo de passagem do que designei como o “psicologismo” de sua concepção da obra de arte. Dava já as favas por contadas quando Sônia inesperadamente se decide a discutir o gosto que não mais discuto, embora não ceda na minha convicção de que gosto se discute. O comentário de Sônia, assim como o de Homero Fonseca a propósito do meu artigo sobre Sérgio Buarque de Holanda, vale por um artigo. Entre outros méritos, ela me dispensou de esclarecer o que sumariamente anotara como sendo psicologismo, pois seus argumentos deixam claro que a emoção ou a sensação provocada pela obra de arte não é suficiente para qualificá-la.
Sérgio cita um verso de Manuel de Barros que aparentemente confirma sua concepção psicologista. Aliás, friso aqui, para não dar margem a maiores dúvidas, que entendo por psicologismo a recepção da obra reduzida a fatores puramente subjetivos. Se isso fosse suficiente para qualificar uma obra, então seria consistente dizer que uma música barata é cara simplesmente por estar associada a um grande amor perdido. A associação de raiz psicológica entre a canção e a perda do amor me comove independente da qualidade estética da canção. Se analisar ligeiramente a emoção que a música em mim desata, ficará claro que a emoção deriva de uma experiência irredutivelmente subjetiva, que nada tem a ver com a qualidade da música. Eu poderia chorar ouvindo qualquer outra canção associável à experiência da perda amorosa. Isso já aconteceu comigo, também com certeza com muita gente que teve a infelicidade de perder um amor ouvindo uma canção. Por isso convém ouvir Tom Jobim ou Chico Buarque na hora em que o amor nos deixa ou nos trai, pois é melhor chorar um amor perdido ou traído ouvindo Tom e Chico do que ouvindo Adilson Ramos ou Garota Safada. Como se já não bastasse a tortura do amor perdido! Estou apenas reiterando com exemplo e palavras próprias as observações agudas que Sônia anota no seu comentário.
Voltando ao verso de Manuel de Barros citado por Sérgio, aparentemente ele valida o psicologismo que critiquei. Penso, no entanto, que o sentido do verso está longe de ser unívoco. Introduzo aqui outra digressão que importa para melhor definir as linhas do debate. À diferença da linguagem científica e técnica, que visa a precisão, o rigor semântico que no limite alcança o alvo da linguagem unívoca ou de sentido único, a linguagem artística caracteriza-se precisamente pelo avesso do juízo que acabo de enunciar, isto é, quanto mais ambígua é a obra, melhor é a sua qualidade e seu poder de recontextualização e permanência. Toda grande obra de arte, noutras palavras, é composta de múltiplas camadas significativas. Evitando desdobrar o argumento, li há algum tempo uma longa entrevista concedida por Drummond a uma pesquisadora que estava então escrevendo uma tese de doutorado sobre a poesia dele. As perguntas, bem qualificadas, eram uma mescla de pergunta e comentário. Portanto, numa certa medida esclareciam de antemão parte do que o poeta respondia. Devido a essa circunstância, Drummond mais de uma vez concordou com pontos de vista contidos nas perguntas admitindo humildemente que o leitor não raro compreende o poema melhor que o autor. Há uma infinidade de exemplos dessa natureza.
Encurtando a argumentação, pois o artigo excedeu minhas expectativas, a recepção da obra de arte depende de múltiplos fatores, inclusive das nossas próprias expectativas, como novamente observa Sônia Marques. É por essas e outras razões que tantas vezes nos apressamos a dizer que gosto não se discute, ou que a qualidade da obra depende tão somente da emoção que desencadeia. Ou ainda, voltando a Manuel de Barros: o poeta não pensa, sente. Vou afinal esclarecer em que termos entendo o verso. Muitos poemas nascem de intuições, do fluxo emotivo que se apossa do poeta. Talvez por isso Manuel de Barros tenha escrito o verso endossado por Sérgio Buarque em defesa do seu argumento. Mas importa considerar que o poema que brota de uma emoção súbita, de uma sensação imprevista, obedece a princípios de composição racionalmente aprendidos. São os tais valores intrínsecos da obra de arte. No caso do poema, poderíamos lembrar o metro, a rima, o ritmo, a nuança semântica de um termo não raro arduamente extraído dos veios obscuros da língua. Nesse sentido, ser poeta é um ofício como qualquer outro, isto é, requer aprendizagem, disciplina, rigor estético e terminológico e sobretudo experiência vivida transposta para a linguagem. Parafraseando Tom Jobim, fazer poesia não é para principiante. O mesmo vale para as artes em geral.
Concluo justificando o título do artigo. O gosto artístico supõe gradações semânticas que, num certo grau, decidem até onde é ou não discutível. Para quem vai ao cinema matar o tempo (e sepultar a arte) ou fugir dos tormentos da vida, qualquer filme convém, sobretudo os que nos isentam de pensar. Para quem vê um bom filme, rico de significados, mas nisso se detém, apreende a obra dentro de limites pouco refletidos. Para quem vê esse mesmo filme com um amigo ou um grupo de pessoas e ao final livremente o discute à volta de uma mesa de bar, a própria discussão traz à tona sentidos e questões impensáveis no caso precedente. Por isso esta discussão concorre para apurar minha apreensão do filme, embora me falte o mais importante: a mesa do bar. Quem por fim vê um filme informado pelo olhar que a estética educa e refina, vê na obra imagens, sentidos, conexões e ambiguidades inexistentes para outras categorias de receptores. Tentei dizer tanto e todavia concluo consciente de que disse muito pouco. O pouco que disse eu devo em parte a Sérgio Buarque e Sônia Marques. Por que não decidimos esta questão ao redor de uma mesa de bar sem ruído ao redor?

domingo, 20 de outubro de 2013

Vinícius II


O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.

Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música. Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.

Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.

Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.

O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.

Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.

Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.
Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.

Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.

Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?

Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.
Recife, 16 de outubro de 2010.

Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.
Vinícius
Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.

Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.

Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Mulheres raras


Flores Raras, dirigido por Bruno Barreto, é um filme excepcional e belo, uma comovente obra de arte. Na verdade, é para mim um dos grandes filmes do cinema brasileiro e o melhor que vi nos últimos anos de que tenho memória. Inspirado no romance Flores raras e banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, condensa de forma primorosa, baseado no roteiro assinado por Matthew Chapman e Julie Sayres, a experiência brasileira de Elizabeth Bishop (Miranda Otto).

Quem no Brasil conhece Elizabeth Bishop? Ainda hoje, muito pouca gente. Embora compulsivamente despatriada, pois viveu grande parte de sua vida fora dos EUA, foi ainda em vida reconhecida como uma das grandes poetas americanas. Veio para o Brasil em 1951, intencionalmente apenas de passagem, e acabou fazendo do Brasil sua segunda pátria, onde viveu cerca de 20 anos. Tudo por causa de uma mordida acidental num caju, que no filme é uma variante da maçã mordida por Eva no Éden, e sobretudo por causa do longo, intenso e conflituoso amor que viveu com Lota de Macedo Soares (Glória Pires). Difícil imaginar duas mulheres de caráter mais diferente, e todavia afins, entrelaçadas pelo amor à imaginação inventiva e definitivamente unidas pelo amor lésbico.

O filme começa e termina com duas cenas ambientadas no Central Park, Nova York. Na primeira, Elizabeth lê para seu grande amigo e poeta Robert Lowell (Treat Williams) uma versão parcial de One art, que considero seu melhor poema; na segunda, lê o poema na sua forma definitiva, cerca de 20 anos mais tarde. A história que se desdobra no Brasil entre esses dois extremos aparenta simbolicamente sugerir que Elizabeth Bishop precisou viver, amar e perder muito para afinal conquistar a forma do poema tal como o conhecemos. One art, em suma, é um poema sobre a arte de perder escrito por uma mulher que nasceu perdendo. Perdeu o pai ainda bebê, pouco depois a mãe, internada num manicômio onde morreu anos mais tarde, cresceu dividida entre avôs maternos e paternos inconciliáveis e por fim, quando cresceu, fez dos mapas e geografias sua forma de pátria ou lar.

Lota de Macedo Soares também não teve uma história de família que se possa invejar, mas, por vias que ignoro, fez de sua condição de mulher brasileira dos meados do século xx um tipo raro de mulher: a mulher rica, voluntariosa e autoritária. Lota comporta-se como uma mulher decidida e afeita a dobrar obstáculos, qualidades apenas parcialmente comuns no ambiente público regido pela tradição patriarcal brasileira ainda fortemente tingida por remanescentes escravocratas.

Logo que se amam e Elizabeth docilmente dobra-se ao seu domínio, parece que ao cabo, se a corda se romper, a queda será desta, não de Lota. A fortaleza, no entanto, assim como seu avesso, a fragilidade, tem muitos modos de ser e perder. Assim, a tímida e delicada e frágil Elizabeth sobrevive a tudo porque nasceu perdendo e viveu uma vida de perdas. Talvez a grande âncora de tantas perdas tenha sido a literatura, em particular a poesia. Lota, por outro lado, era uma mulher de ação, uma mulher que, sobretudo no tempo do Brasil em que viveu, corresponderia ao estereótipo nordestino da mulher-macho.

Amiga e parceira de luta política de Carlos Lacerda (Marcello Airoldi), Lota projetou e dirigiu a construção do Aterro do Flamengo, obra infelizmente excepcional no Brasil de acampamentos urbanos que são nossas cidades. Samambaia, sua propriedade onde muitas cenas do filme são ambientadas, foi projetada por Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx. Hoje, bem melhor que então, sabemos bem o que isso significa. Basta olhar em torno ou sair para as ruas congeladas pelos automóveis e a paisagem brutal de arranha-céu, viaduto e concreto. Cidades desalmadas. Ambos, Lota e Carlos Lacerda, apoiaram ativamente o golpe militar de 1964, Lacerda de metralhadora em punho, e acabaram pagando caro por isso. O filme contém referências ligeiras, mas relevantes, que valem para assinalar de forma sutil os vínculos orgânicos entre nossa classe dirigente autoritária, a inércia servil dos herdeiros seculares da escravidão e as soluções de força impostas em momentos de crise.

A grande força de Lota consistia na vida ativa, na vida voltada para fora, para a ação sobre o mundo. A força dos poetas, seres aparentemente frágeis, sobretudo da mulher poeta, parece voltar-se para dentro, para a energia interior cuja irradiação se converte em poesia, arte e outros artifícios de enganosa fragilidade. Os fracos e sensíveis caem, não raro com tanta discrição que mal ouvimos o ruído da queda sobre o solo. É este o timbre, o eco remoto da poesia de Elizabeth Bishop, cuja mobilidade errante através de mapas, cidades e países, feita de uma dolorosa sucessão de perdas, se traduz numa forma penosa e obsessivamente trabalhada, tão sutil que faz da dor da perda uma forma velada de auto-ironia. A queda dos fortes, como a de Lota, é a de quem desmorona. Daí o ruído que provoca, pois ou cai arrebentando correntes fora de si ou cai por contração autodestrutiva. Lota, um admirável colosso de vontade e determinação, cai por contração afundando na depressão e por fim no suicídio. Talvez exista alguma sabedoria na fraqueza realista dos que sabem que viver é perder, contanto que se arrisquem. Os fortes temerários ostentam a força ilusória dos que acreditam que vivem para vencer. Não seria essa a fraqueza dos fortes como Lota de Macedo Soares? Glória Pires e Miranda Otto representam essas formas de vida e caráter de forma admirável.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Gore Vidal: Cinema e Autoria


Além de romancista de grande renome, Gore Vidal é um notável e provocativo ensaísta. Seu gosto pelo ensaio polêmico ou pelo jornalismo de opinião concentrou-se notadamente na crítica ao sistema político e econômico americano, que a depender dos seus prognósticos de Cassandra já teria desmoronado ou mergulhado em crise muito mais profunda. Na cena cultural, que mais me interessa, ele já cruzou armas com Norman Mailer e movimentos ideológicos poderosos, como é o caso do feminismo. Aliás, sua independência crítica de corte polêmico se afirma até diante do movimento gay, embora há muito, bem antes da moda, ele já houvesse corajosamente assumido sua condição de homossexual.

Seu ensaio polêmico relativo ao diretor de cinema compreendido enquanto autor é provavelmente o mais conhecido e discutido. Foi publicado em 1976 no The New York Review of Books. O argumento central do ensaio visa elevar o roteirista à condição de real autor do filme, não o diretor. Mas o argumento não incorre nas simplificações grosseiras comuns nos ensaios ou artigos de viés polêmico. Recuando no tempo, até a era do cinema mudo, ressalta que então a supremacia do processo de criação fílmica cabia ao diretor. Mas eis que o cinema começa a falar e, como se sabe, ninguém fala sem um texto. É a partir daí que sobrevém a supremacia do roteirista. Embora reconheça o timbre autoral de um diretor como Ingmar Bergman, que é de resto um escritor, Vidal reduz a figura do diretor, notadamente no decurso dos anos 1930 e 1940, ao papel de um técnico competente como tantos outros diretamente envolvidos no processo de realização de filmes nos grandes estúdios americanos.

Para Vidal, o diretor enquanto autor é uma invenção dos críticos franceses, de intelectuais ligados ao grande crítico André Bazin e à revista Cahiers du Cinéma. Criada em 1951, esta célebre publicação está ainda viva. Nela se iniciaram grandes nomes do cinema francês do século 20, como François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer e Jean-Luc Godard. Este grupo, Truffaut em particular, muito fez pelo reconhecimento estético e intelectual de diretores como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks. Embora ressalve a importância indiscutível do primeiro – que eu ousaria qualificar como um diretor-autor, embora não assinasse o roteiro dos filmes que dirigiu – Gore Vidal considera John Ford apenas um técnico competente. Vai adiante ao afirmar que o diretor típico da época de Ford via a si próprio desse modo e assim era tratado pelos grandes estúdios de produção e pela opinião crítica corrente à época. É fato que também ressalva a qualidade distintiva de Hawks, que trabalhou em parceria com grandes escritores empregados na indústria do cinema, como é o caso de William Faulkner. Em parceria com Hawks, Faulkner criou dois filmes importantes na história do cinema americano: To have and have not (Ter e não ter) e The big sleep (O sono eterno).

Ao salientar a distinção autoral do roteirista, Gore Vidal concede atenção a alguns escritores que escreveram roteiros para grandes estúdios americanos. Além de Faulkner, acima mencionado, argumenta em defesa de F. Scott Fitzgerald, Aldous Huxley, Nathaniel West e James Agee. Vidal não atribui muita importância literária a este último, para dizer o mínimo, mas ressalta a extraordinária precisão e qualidade visual ou cinematográfica da sua escrita como roteirista. Segundo Vidal, os roteiros escritos por Agee, cuja melhor crítica cinematográfica está reunida no volume Agee on Film, eram dotados de extraordinária exatidão visual. Como foi um cinéfilo e apaixonado crítico de cinema, além de portador de imaginação literária antes de tudo visual, Agee escreveu roteiros suficientes para assegurar-lhe a autoria da obra, que assim poderia em princípio ser dirigida por qualquer técnico.

A obra que acabo de mencionar, Agee on Film, foi publicada numa coleção cujo editor é Martin Scorsese. Ela reúne a crítica produzida por Agee entre 1941 e 1948 para dois periódicos americanos: The Nation e Time Magazine. Além de uma introdução assinada por David Denby, o volume é enriquecido por uma carta que Auden endereçou ao The Nation. Embora pouco apreciasse cinema, Auden fez questão de escrever a carta para expressar seu louvor à crítica de cinema de Agee, crítica que Auden distingue como o mais notável acontecimento do jornalismo americano da época. Mas não deixa de arrematar em tom mordente: “Pode-se prever o dia triste em que Agee on Films será objeto de uma tese de Ph.D.”.

Baseado em fatos extraídos da obra Some time in the Sun, de Tom Dardis, Gore Vidal realça a relação de escritores de renome com Hollywood, os que citei dois parágrafos acima, para reforçar seu argumento central em defesa do roteirista como autor. Cuida entretanto de corrigir Dardis ao afirmar que as características de exatidão visual verificáveis nos roteiros de James Agee não eram exclusivas dele, mas sim a regra observável nos roteiristas da época. Vale a pena, neste passo, citar uma observação de Kurosawa que Vidal com prazer transcreve no seu ensaio, já que leva água para o seu moinho: “Com um roteiro muito bom, até mesmo um diretor de segunda classe é capaz de fazer um filme de primeira classe. Mas com um roteiro ruim, até mesmo um diretor de primeira classe é incapaz de fazer um filme que seja realmente de primeira classe”. (Gore Vidal, De Fato e de Ficção, p. 76).

Vidal retraça a linha crítica de procedência francesa que resultou na entronização do diretor como autor. Para isso, ressalta em particular um artigo de 1948 assinado por Alexandre Astruc, discípulo de André Bazin. Nesse artigo ousadamente polêmico, cujo título é “La Caméra-Stylo”, Vidal identifica mais que um artigo polêmico, identifica um manifesto em defesa da autoria absoluta e solitária do diretor. Embora a tradutora brasileira, Heloísa Jahn, traduza stylo meramente como caneta, suponho que Astruc confere ao termo, além deste sentido, o de estilo, que confere singularidade autoral a uma obra.

Entre outras teses ousadas, Astruc sustenta que Descartes, fosse ele acaso nosso contemporâneo, faria um filme para expressar apropriadamente suas ideias contidas no Discurso do Método. Vidal retruca com razão que o cinema é incapaz de expressar ideias complexas. Acrescenta ainda que o Descartes contemporâneo, Sartre, expressou sua filosofia num romance, A Náusea, não num filme. Aliás, conviria acrescentar o fiasco cinematográfico que resultou da experiência de Sartre quando este se associou a John Huston para escreveu o roteiro – infilmável, segundo Huston – do filme Freud.

No meu entender, o cinema sempre precisará da palavra, isto é, da literatura para expressar dimensões da realidade cujo sentido último é abstrato e portanto inacessível à pura exposição apreensível pelos sentidos. Uma das grandes forças expressivas do cinema reside, por exemplo, no seu poder de descrição. Isso explicaria em parte o fato de hoje um leitor, mesmo dotado de cultivada formação literária, ter bem pouca paciência para atravessar páginas e páginas de descrição de paisagens, cidades, lugares, tipos humanos etc. Bastaria pensar nos grandes romances do século 19, uma época ainda privada da cultura audiovisual disseminada no mundo contemporâneo.

Eu mesmo confesso já não ter tempo e pachorra para fixar na memória, depois de páginas e páginas de descrição cerrada, uma cena de batalha ou um baile da alta sociedade ou ainda a simultaneidade febril de uma metrópole. Estas cenas são muito comuns na grande literatura do século 19 e sobretudo na do século 20. Se vemos um filme, bastam alguns planos gerais alternados com alguns planos médios e outro tanto de close-up. Isso importa mais e tem muito mais eficácia e economia expressiva do que dezenas de páginas de um romancista genial como Dostoiévski, por exemplo.
Um telefilme ou minissérie baseado em Crime e Castigo ilustra muito bem meu argumento. Produzido pela BBC e dirigido por Julian Jarrold, é uma obra que nada tem de especial e de resto não tem como traduzir em linguagem cinematográfica as abstrações psicológicas e metafísicas supremamente realizadas em termos literários por Dostoiévski. No entanto, do ponto de vista descritivo, o filme facilmente traduz em alguns enquadramentos e takes o que, na obra de Dostoiévski, demanda páginas e páginas de descrição minuciosa e alentada. Todo o ruído e a sujeira e a miséria humana das ruas e cortiços de Petersburgo podem ser sinteticamente expostos em alguns enquadramentos variáveis de câmera.

Nenhum diretor assistido por seu cinegrafista precisa de gênio descritivo para imprimir realidade e sentido a cenas ficcionais desse tipo que se tornaram banalidade no universo cultural contemporâneo saturado de tecnologia e imagens. Qualquer diretor de telenovela da Globo, qualquer cinegrafista pode hoje sem embaraço transpor imagens desse tipo para a tela e daí para os nossos sentidos que há algumas gerações atrás precisavam valer-se do talento descritivo dos escritores. Essa é uma das razões de obras de grande fôlego analítico e densa complexidade teórica resultarem infilmáveis ou então findarem amputadas de seu sentido mais definidor em adaptações cinematográficas. Que diretor, não importando seu talento, pode transpor Em Busca do Tempo Perdido para a tela e ainda, para considerarmos um pouco a nossa literatura, Memórias Póstumas de Brás Cubas? Conheço as tentativas feitas em ambos os casos, mas lamento dizer que os resultados são bem pobres.

Como sabemos, Gore Vidal tem razões pessoais de sobra para argumentar em defesa da função autoral do roteirista. Além de romancista e crítico de literatura, trabalhou também como roteirista nos anos 1950, entre o esplendor e a decadência dos grandes estúdios afinal arruinados pelo advento da televisão como veículo hegemônico da cultura de massa na cena americana. Convém todavia destacar que essas razões pessoais entram no seu argumento apenas por via indireta e de resto em nada comprometem a força objetiva do que postula no seu ensaio. Como já deixei evidente, o alvo que mira negativamente é o diretor, que no seu entender, salvo as exceções antes referidas, se apropria injustamente dos créditos autorais do roteirista. Avançando no argumento, ele também concede qualidades autorais ao fotógrafo – ou câmeraman, como vem escrito no ensaio. Aqui ele acentua o papel fundamental desempenhado por Gregg Tolland em Cidadão Kane, o grande ícone da história do cinema cuja autoria, à exceção da crítica devastadora procedente de Pauline Kael, é sempre conferida a Orson Welles às expensas de Tolland e do roteirista Herman Mankiewicz.

Indo além do próprio argumento de Gore Vidal, que de passagem atribui funções autorais ao fotógrafo e ao cinegrafista (por vezes os termos se confundem, como na obra Trajetória Crítica, de Jean-Claude Bernardet) e também ao montador, atualmente também confundido com o editor de imagens, acrescentaria que a direção de arte também exerce papel fundamental no processo de factura da obra. Lembro-me, a propósito, de que Hector Babenco honestamente declara no making of de Carandiru que seus filmes seriam irrealizáveis sem a contribuição decisiva de Clóvis Bueno, seu diretor de arte. Faço esse registro ligeiro para concluir que, no meu entender, o filme é uma obra de criação coletiva. Esqueceu-me também ressaltar o papel dos atores, que para o grande público são os únicos que de fato importam.

No frigir dos ovos, considero que o argumento de Gore Vidal em defesa da autoria do filme atribuível ao roteirista encerra peso ponderável. Os filmes que distinguiram a carreira de Joseph Losey no cinema inglês, conferindo-lhe uma discutível aura autoral, seriam inconcebíveis sem os roteiros assinados por Harold Pinter. Vidal sublinha este fato, que integralmente endosso. No presente, ficando ainda restrito ao cinema inglês, distingo dois entre vários outros roteiristas ingleses que ficam injustamente à sombra dos diretores para os quais escrevem roteiros extraordinários. Refiro-me a Christopher Hampton, que além de escritor é também diretor ocasional, e David Hare, nome importante da dramaturgia inglesa. Hampton tem entre outros créditos – ou teria, pois o crédito autoral conferido ao roteirista é sempre secundário em relação ao diretor – o excelente roteiro que escreveu para Atonement (Desejo e Reparação). Quanto a David Hare, ressaltaria o roteiro que escreveu para The Hours (As Horas).

Gore Vidal é injusto ou desatento ao passar ao largo de diretores como Charlie Chaplin, Hitchcock, cujo peso autoral menciona muito sumariamente, Fellini, sobre quem simplesmente silencia, e François Truffaut, a quem de resto recusa mérito autoral. Outros críticos do seu ensaio poderiam ainda, baseados em argumentos objetivamente sustentáveis ou inclinações subjetivas, acrescentar nomes fundamentais da história do cinema. Penso aqui, ao correr da memória, em Billy Wilder, Visconti, Pasolini, Glauber Rocha, Buñuel, Godard, Fassbinder, David Lean, Kubrick... Não entro nos meandros e no varejo da questão. O que acentuo, agora em defesa de Gore Vidal, é a importância decisiva do roteirista, quase sempre subestimada em benefício do diretor.

O fato é que a crítica francesa, no ponto de partida, entronizou o diretor como essa figura mítica a quem passamos a atribuir a função autoral da obra cinematográfica. É um excesso injustificável. Nisso concordo integralmente com o ensaio de Gore Vidal, que todavia incorre num outro extremo também insustentável na ordem objetiva da controvérsia ao reivindicar a autoria da obra para o roteirista. O que penso, e assim concluo, é que o filme é uma obra de autoria coletiva. Os pesos e papéis são variáveis, mas o resultado final é fruto de uma atividade colaborativa e grupal muito complexa. Por isso é injusto conferir o mérito da autoria a qualquer agente individualmente considerado, seja o diretor, o roteirista, o cinegrafista ou ainda, pensando nas projeções míticas do grande público, o intérprete.
Recife, 3 de outubro de 2010.

domingo, 15 de julho de 2012

Estação Tolstoi


O primeiro parágrafo de Anna Karenina, de Tolstoi, é justificadamente um dos mais atraentes e inesquecíveis da literatura universal. Mal o percorre, o leitor é prontamente seduzido por aquelas palavras impregnadas de ressonâncias imaginativas e assim atravessa o livro volumoso tomado pelo desejo de desvendar a história singular de cada família infeliz. As felizes decerto não lhe passam pela cabeça, já que são todas iguais, segundo a apreciação do autor. Ou será que há leitores seduzidos pela história de Anna Karenina supondo desvendar a história de uma heroína pertencente a uma família feliz? Cada família infeliz é infeliz de modo próprio ou singular.

O problema que de imediato me ocorre é refutar a ilusão contida na ideia de família feliz. Tolstoi, como sua heroína, não nasceu nem viveu numa família feliz. Nem como filho, cujos pais morreram quando era muito pequeno, nem como pai e ancião às portas da morte, como o comprova o filme de Michael Hoffman baseado no romance homônimo A última estação (The last station), de Jay Parini. Além de não conhecer o que muitos acreditam ser uma família feliz, Tolstoi foi um homem complexo e atormentado, sempre dividido nos seus desejos, ações, e convicções mais profundas. Depois de viver como sua esposa durante 48 anos, sua mulher Sofya confessou ignorar que tipo de homem ele era.

Comecei este artigo evocando o parágrafo de abertura de Anna Karenina porque o filme de Michael Hoffman me fez evocá-lo num sentido tragicamente irônico. O filme induziu-me ainda a uma outra associação que reforça a tragédia irônica patente no fim da vida do grande escritor e líder religioso, figura revestida de uma aura profética disseminada não apenas na Rússia autocrática saturada de misticismo, mas em grande parte do mundo. A outra associação que me ocorreu remete a Shakespeare e King Lear, tão grosseiramente incompreendidos por Tolstoi num ensaio intitulado “Sobre Shakespeare e o teatro”. Como não perceber essas duas ironias trágicas que singularizam o último ano de vida de Tolstoi condensado no filme de Hoffman? Difícil imaginar família mais infeliz que a dele, assim como é quase inevitável a identificação entre o ancião doente e atormentado fugindo da própria casa e família e o rei traído e desamparado pelas filhas a quem insensatamente transferiu seu poder.
Como observei, a ação do filme concentra-se no último ano de vida de Tolstoi (Christopher Plummer). Investido da liberdade imaginativa característica da literatura de ficção, mesmo quando inspirada em personagens e eventos históricos, Jay Parini nos revela o último ano da vida de Tolstoi, sua turbulenta relação com sua mulher Sofya (Helen Mirren), a implacável rivalidade entre esta e Chertkov (Paul Giamatti), líder do movimento religioso baseado nos escritos de Tolstoi, centrado na perspectiva de Valentim Bulgakov (James McAvoy). Bulgakov foi enviado por Chertkov para Yasnaya Polyana depois que o secretário de Tolstoi foi preso. Sua função expressa era não só substituir o secretário precedente, mas também espionar a ação de Sofya em benefício de Chertkov e do movimento religioso que este coordenava.

A rivalidade entre Sofya e Chertkov precipita o fim trágico de Tolstoi, disputado sem tréguas por interesses e paixões intransigentes. O inferno doméstico em que Tolstoi e Sofya viveram durante anos foi desencadeado quando o escritor adotou uma forma anárquica de cristianismo que acabou resultando na sua excomunhão da Igreja Ortodoxa, além de convertê-lo em inimigo da autocracia russa. Talvez o espectador que pouco conheça Tolstoi e o movimento religioso que liderou - em termos de organização e ação prática encabeçado por Chertkov, punido com dez anos de exílio – se surpreenda ao ler nas cenas iniciais do filme que Tolstoi era então o escritor mais celebrado do mundo. A informação seria mais precisa se esclarecesse que a celebridade decorria antes do papel religioso do que literário exercido pelo autor de Guerra e paz. Hoje o que antes de tudo sobrevive é o escritor literário, mais uma razão para a compreensível surpresa do meu hipotético espectador. O tolstoísmo que se difundiu pelo mundo durante o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, influenciando poderosamente personagens históricos excepcionais como Gandhi e Wittgenstein, é hoje uma pálida memória em meio à babel das seitas e movimentos religiosos concorrentes no mercado da fé.

O jovem e casto Bulgakov, dócil seguidor do tolstoísmo, tanto que de início nada questiona nos seus líderes nem nas ações e pregações correntes na comunidade em que passa a viver, sofre de um sintoma revelador da sua tibieza. Espirrar é sua reação compulsiva sempre que se defronta com uma situação que lhe provoca embaraço, relutância ou temor. Lembrei-me de que Mario Vargas Llosa usa artifício literário semelhante para caracterizar psicologicamente a cegueira ideológica do protagonista de A guerra do fim do mundo, inspirado em Euclides da Cunha. Por isso cheguei a supor que o livro de Vargas Llosa seria a fonte desse detalhe caracterizador de Bulgakov. Somente mais tarde descobri, ouvindo comentários do próprio diretor do filme, que a fonte inspiradora fora um conto delicioso e pouco conhecido de Tchekhov: “The Sneeze” (“O Espirro”). O alcance crítico da alusão é maior do que aparenta, pois me parece esclarecer o tom tchekhoviano (com perdão do neologismo), ou tragicômico que pontua muitas das melhores cenas do filme.

Mais do que o centro da propriedade rural do nobre Leon Tolstoi, Yasnaya Polyana tornou-se um lugar mítico, santuário para onde acorriam peregrinos e místicos tocados pela fé nos ensinamentos religiosos de Tolstoi. O cristianismo anárquico concebido por Tolstoi representa Jesus não como um deus, mas como um ser humano investido de virtudes humanas excepcionais. É baseado nesse princípio que Tolstoi define sua versão do evangelho e procura pautar sua ação no mundo. Inspira-se ainda nas tradições místicas do mujique, o camponês russo, fonte mítica inspiradora do populismo russo contraposto à corrente dos ocidentalistas, que divisavam nos valores modernos dos países europeus mais avançados a solução para o atraso social e político da Rússia.

Tolstoi pregou e tentou praticar, sempre emaranhando-se em contradições penosas agravantes do seu caráter atormentado, um tipo de socialismo do qual decorria sua convicção de que a propriedade era um roubo, inclusive a intelectual. Essa questão está na raiz da rivalidade entre Sofya e Chertkov. Enquanto este não mediu esforços e maquinações para fazer com que Tolstoi afinal assinasse um documento convertendo sua obra em propriedade pública (Tolstoi não escrevia para os editores, como afirma numa cena do filme, mas para o povo), aquela lutou tenazmente para preservar todas as propriedades do marido em benefício de si própria e da família. Chertkov venceu provisoriamente, como é evidente no filme, ao convencer Tolstoi a transformar sua obra em propriedade pública. Mais tarde, porém, já depois da morte do escritor, a lei do regime autocrático por ele combatido devolveu à viúva a propriedade causadora de muitos dos conflitos e tormentos compreendidos pela trama do filme.

Tolstoi afirma que o amor é o valor universal que liga todas as religiões. Se ele tem acaso razão, a verdade que prega, como todo órfão do absoluto, tem validade puramente abstrata ou teórica. Infelizmente, a história da religião desmente de ponta a ponta a verdade que prega, que antes dele Jesus Cristo e outros homens excepcionais também pregaram, não raro ao preço da liberdade e da vida. Saltando do absoluto religioso para o político, ou ideológico em geral, o que realisticamente se impõe é a impossibilidade do absoluto no reino contingente e falível da realidade humana. O que infelizmente vemos e sofremos acompanhando na tela as vidas dos seres que se amam, mas sobretudo se combatem e se castigam no microcosmo de Yasnaya Polyana, é a prevalência do mal. Eis mais uma ironia trágica pontuando o fim de Tolstoi, esse homem tão atormentado e perseguido pela miragem do absoluto.

Isaiah Berlin, um dos estudiosos que mais profundamente perscrutaram esse homem genial e indecifrável, escreveu um dos mais citados ensaios contemporâneos movido pela ambição de o explicar. Refiro-me a “O porco-espinho e a raposa” (“The hedgehog and the Fox”). Berlin propõe a tipologia que confere título a seu ensaio com o propósito de explicar o conflito insolúvel que atormentou a vida de Tolstoi. Como toda tipologia, esta não escapa ao risco da simplificação grosseira, sobretudo quando manejada por intérpretes canhestros ou dogmáticos. Não é o caso de Isaiah Berlin, talvez o mais refinado e perceptivo filósofo político e ensaísta da moderna tradição liberal. Seguindo a distinção que propõe ao esboçar sua tipologia, a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe apenas uma, mas ela é sumamente importante. Fixada esta baliza distintiva, o ensaísta enumera alguns dos grandes nomes da cultura identificando-os ora com a raposa (Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Puchkin, Joyce...), ora com o porco-espinho (Platão, Dante, Pascal, Dostoievski, Nietzsche...).

O grande infortúnio de Tolstoi, segundo a admirável argumentação que Isaiah Berlin desdobra ao longo do seu ensaio, foi acreditar que era um porco-espinho, quando era por natureza uma raposa. Nos seus escritos religiosos ou proféticos, quem se impõe é o porco-espinho, não raro enrijecido num moralismo que o impeliu a incorrer em erros e injustiças desconcertantes num homem dotado de gênio. Bastaria pensar na apreciação crítica absurda que faz de Shakespeare contida no ensaio acima citado. Sua pregação moralista e dogmática estende-se à apreciação da arte em geral, sem poupar sequer sua própria obra. Também sua percepção do mundo moderno, sua aversão à ciência e à tecnologia, é de uma estreiteza espantosa. Seu moralismo sexual beira a hipocrisia mais chã enredando-se em extremos de contradição e culpa. Portanto, o que me parece mais importar em Tolstoi, e é isso que lhe assegura a imortalidade incontestável, é a obra literária na qual se espelha sua autêntica natureza: a natureza da raposa que sabe muitas coisas, embora nenhuma seja exclusiva ou absoluta.
Recife, 10 de julho de 2012.

domingo, 10 de abril de 2011

Criação


Criação (Creation) é um filme que recria com admirável força dramática os tormentos morais e psíquicos de um gênio. Este termo está mais do que barateado no mundo de linguagem corrompida e falsas etiquetas em que vivemos. No caso de Charles Darwin, porém, o termo se justifica plenamente. Mesmo um leigo como o que escreve este artigo, um leigo que ouse ver o mundo com olhos limpos e livres, tem alguma consciência do significado revolucionário de A Origem das Espécies (The Origin of Species). Publicada em 1859, foi sem exagero uma revolução na história da ciência e do pensamento humano. Há na história alguns pensadores que de fato revolucionaram o mundo modificando assim de forma irreversível nossa percepção da realidade. Darwin é um desses poucos.

No entanto, como o filme bem nos revela, ele se consumiu num surdo tormento durante cerca de 20 anos dividido entre suas convicções científicas e o temor de perpetrar um crime ao dar forma e publicidade a uma teoria que sua própria consciência cristã encarava como uma afronta a Deus e à verdade revelada pela Bíblia. Homem típico do seu tempo, não obstante seu gênio, Darwin (Paul Bettany) descendia de uma família de posses e forte tradição cristã. Esse sólido enraizamento cristão da família se expressa em Emma (Jennifer Connelly), prima em primeiro grau e esposa de Darwin. A filha predileta Annie (Martha West) desempenha decisiva função dramática no filme. Além de desencadear a dor pungente da perda sofrida por Darwin quando morre prematuramente, Annie funciona na narrativa como a “consciência científica” de Darwin contraposta aos temores cristãos que o atormentam e paralisam encarnados em Emma e no Reverendo Annis (Jeremy Bentham).

É este, em suma, o nó dramático do filme: o conflito entre a convicção científica, aprisionada num baú que Darwin somente depois de uma luta prolongada ousa abrir para, baseado na pesquisa e matéria ali acumuladas, dar forma definitiva à sua obra revolucionária e a trava da consciência cristã, acrescida da poderosa pressão moral e religiosa ambiente. Além da função simbólica que Annie desempenha em favor da ciência e da consciência que por fim liberam o gênio de Darwin, pesam nesse lado da balança os apoios combativos de Joseph Hooker (Benedict Cumberbatch) e Thomas Huxley (Toby Jones).

O espectador tocado pela curiosidade que o filme aciona pode com grande proveito valer-se da leitura de uma excelente biografia de Darwin traduzida e publicada no Brasil em 1995: Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, escrita por Adrian Desmond e James Moore. Os autores estabeleceram um plano de composição e divisão de trabalho que lhes facultou apresentar um retrato abrangentemente rico e complexo de Darwin. Enquanto Desmond, segundo declaração de Moore extraída de uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo, explorou o contexto histórico e os aspectos da história da ciência pertinentes à composição da biografia, Moore ateve-se aos problemas de ordem religiosa e à visão de mundo de Darwin.

A tradição romântica vincou de forma indelével a perspectiva através da qual enquadramos nossa compreensão do indivíduo. Esse fato ressalta de forma mais nítida no gênero biográfico. Através dele representamos nossa noção da vida individual, notadamente a dos homens excepcionais. A concepção romântica tende a individualizar, num sentido idealizador, a vida do biografado. Antonio Candido, com sua argúcia crítica habitual, acentua essa deformação corrente ao corrigir certa visão romântica de Machado de Assis num ensaio de título modesto em face das intuições profundas que contém: “Esquema de Machado de Assis”. A associação é pertinente porque me foi sugerida pelo filme sobre Darwin, também sobre a biografia de Desmond e Moore e a ela me conduz de volta. Quero dizer, desbastado das tintas idealizadoramente românticas, Darwin foi um homem do seu tempo. Seu modo de ser e viver reflete com vincos profundos a mentalidade vitoriana que configurava a Inglaterra em que viveu.

Atormentado pela convicção científica de uma teoria que representaria um golpe tremendo sobre a religiosidade dominante no seu ambiente social, quando as questões de natureza religiosa eram questões públicas, sofreu tormentos prolongados, não raro paralisantes, até decidir-se a imprimir forma definitiva à Origem das Espécies. Como a maioria dos seres humanos, ele temia a opinião alheia, no filme expressa por agentes intimamente ligados à sua vida. O freio mais poderoso e temido era a própria Emma, profundamente fiel a suas convicções cristãs.

O filme contém uma imagem que sintetiza com extraordinária economia plástica o sentido essencial da teoria de Darwin. Refiro-me à cena em que ele toca com o indicador do braço estendido o indicador da macaca Jenny, que morre num dos momentos mais comoventes do filme. Aliás, essa morte fixa um paralelo similar ao que em seguida exporei. A morte de Jenny compõe com a de Annie um paralelo essencial à compreensão do filme, assim como o dos indicadores que se tocam remete a um paralelo óbvio com A criação de Adão, de Michelangelo, suspensa no teto da Capela Sistina como um dos momentos supremos da história da arte.

Darwin fez o possível para dissociar sua teoria das disputas ideológicas a que poderia prestar-se. Segundo Adrian Desmond, ele era um paranoico cioso de preservar sua respeitabilidade de disputas públicas que com certeza a comprometeriam. Essa questão aparece de modo nítido no filme, embora seja explicitada antes por Emma do que por ele, que se recolhia ao silêncio e à doença constante e abatedora. Esta, de resto, constituía uma somatização dos conflitos psíquicos e morais que o atormentavam.

Apesar da sua tibieza, das linhas de fuga de que se valeu para escapar ao combate público, sua teoria repercutiu, como seria previsível, no clima ideológico da época. Quem mais se empenhou para que isso acontecesse foi Thomas Huxley, que aliás acabou conhecido como o buldogue de Darwin. Embora participe bem pouco da trama, devido às opções dramáticas bem claras feitas pelo diretor Jon Amiel e o roteirista John Collee, Thomas Huxley e Joseph Hooker fazem e falam o suficiente para que o espectador atento componha uma noção razoável das implicações religiosas e políticas da teoria da evolução.

Houve quem temesse, suponho que fosse esse um dos tormentos de Darwin, e tema ainda que a teoria da evolução represente um golpe mortal sobre o mito criacionista contido na Bíblia. O próprio Darwin adotou posição contemporizadora quando declarou não haver incompatibilidade entre a teoria da evolução e a crença religiosa no criacionismo bíblico. Do ponto de vista científico e racional, acredito que ele está errado. Isso, no entanto, não impediu nem impede que as pessoas continuem equilibrando os dois pratos da balança – ou opondo um ao outro, como é o caso dos racionalistas científicos militantes, bastaria pensar em Richard Dawkins, e na outra ponta os religiosos obscurantistas.

Pessoalmente, não encontro razões científicas que sustentem a crença na explicação bíblica da nossa origem. Mas importa no caso considerar não propriamente a verdade cientificamente aferível, até porque a religiosidade ancora em motivações de crença inconciliáveis com a objetividade fria da ciência, em motivações psicológicas profundas do ser humano. Trocando isso em alguns miúdos, pois há outros que sequer vislumbro nesse terreno minado sobre o qual deslizo sem maiores especificações analíticas, quanto de verdade suportamos sobre a nossa condição? Quanto de verdade objetivamente verificável suportamos sobre nossa mortalidade e a vida falível que antes dela precisamos suportar no mundo? Num verso famoso dos Quatro Quartetos, Eliot afirma, com razão, que nós, seres humanos, somos incapazes de suportar a verdade. Traduzo livremente, esclareço.

Observem o próprio drama psíquico e moral de Darwin. A ciência privou-o da capacidade de continuar acreditando na fé que nutriu sua existência, abalando seu amor pela mulher e os filhos, sua necessidade de aceitação e reconhecimento no ambiente social em que vivia e conquistou respeitabilidade e prestígio. Seu heroísmo, expressão final do gênio mais poderoso do que as imposições do meio, consistiu na capacidade de afinal vencer suas dúvidas e irresoluções, dar forma à sua obra-prima e com isso provocar uma das maiores revoluções científicas de toda a história humana.

A questão que continuará nos interrogando e atormentando é a seguinte: quanto você suporta de verdade? Quanto de realidade isenta de crença consoladora na transcendência, numa imortalidade que nos salvaria da consciência para muitos insuportável de que somos apenas pó e ao pó regrediremos? Posso responder pelo meu ateísmo, mas longe de mim a presunção de doutrinar o crente, muito menos impor-lhe minhas convicções.
Recife, 10 de março de 2011.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Carrington e o Amor Romântico


Começo citando uma definição do famoso grupo de Bloomsbury vazada em termos de humor primoroso: “ They were couples who lived in squares with triangular relationships”. Li-a antes num livro de Michael Holroyd, biógrafo de Lytton Strachey e George Bernard Shaw, com variações que merecem registro: “...all the couples were triangles and lived in squares”. Infelizmente a definição é intraduzível, pois sua engenhosidade e witticism, falta-me termo adequado em português, é fruto precisamente de um jogo de palavras sem correspondente na nossa língua.

O parágrafo acima está longe de qualquer laivo de pedantismo. Comecei por ele por acreditar que condensa muito do que o espectador apreciará num filme como Carrington. Dirigido e escrito por Christopher Hampton, um dos meus roteiristas favoritos, o filme é livremente baseado na biografia de Lytton Strachey escrita por Michael Holroyd. Além de ser um dos membros mais típicos do grupo conhecido como Bloomsbury, por envolver um grupo de intelectuais sofisticados que se reuniam em algumas casas deste bairro onde se situam o Museu Britânico e a Universidade de Londres, Lytton Strachey (Jonathan Pryce) viveu com Carrington (Emma Thompson) uma longa relação amorosa cuja excentricidade ilustra à perfeição alguns dos valores fundamentais adotados pelo grupo. A casa para a qual convergiam os membros do grupo era a da família das irmãs Virginia Woolf e Vanessa. Depois que esta casou com Clive Bell, doravante identificando-se como Vanessa Bell (Janet Mcteer) o grupo passou a frequentar prioritariamente dois endereços: Gordon Square, onde vivia o casal Clive e Vanessa Bell, e Fitzroy Square cujo número 29, antes ocupado por Shaw, tornou-se a residência de Virginia e seu irmão Adrian Stephen.

Dora Carrington conheceu Lytton na casa de campo de Vanessa e Clive Bell. Adotando atitudes deliberadamente masculinas, cabelos cortados de modo sexualmente ambíguo, Lytton confundiu-a à primeira vista com um rapaz e sentiu-se prontamente atraído por ela. As cenas que narram esse encontro inicial transitam do cômico para o embaraçoso desdobrando-se por vias imprevisíveis. Encurtando a história, pois não é minha intenção aborrecer o leitor comprimindo o enredo do filme neste artigo, Carrington, que detestava seu primeiro nome, e Lytton se envolvem numa história amorosa de características e desfecho absolutamente singulares.

O roteiro obedece a um princípio de divisão em sessões temáticas baseadas nos personagens mais importantes da trama: Lytton e Carrington, evidentemente; Mark Gertler (Rufus Sewell), pintor então famoso cujo envolvimento tumultuoso e malogrado com Carrington acabou em ruptura; Rex Partridge (rebatizado Ralph por Lytton e interpretado por Steven Waddington) componente de um dos triângulos fundamentais da vida promíscua de Lytton e Carrington; Gerald Brenan (Samuel West), um dos amantes de Carrington; Ham Spray, a casa onde Carrington e Lytton viveram até a morte deste e o consequente sucídio dela. O título da sessão final é simplesmente Lytton.
O filme é fascinante em muitos sentidos. Destacaria, por exemplo, a forma como recria a atmosfera de convívio das pessoas associadas ao grupo Bloomsbury. Algumas cenas são filmadas em Garsington, casa de campo de Ottoline Morrell (Penelope Wilton) e Philip Morrell, que aparece na sequência em que Lytton comparece ao tribunal que o intimou a depor por defender publicamente uma política pacifista contra a Primeira Guerra. O grande símbolo intelectual desta facção foi Bertrand Russell, por isso apropriadamente citado no filme, que foi condenado à prisão. Ottoline, figura excêntrica e lendária, foi a grande amante de Russell, a que teve o poder de desatar as amarras racionalistas do matemático que acabou se tornando o sátiro supremo da pouco libertina intelectualidade inglesa.

Já que aludi a Russell enfiando na alusão dois termos porejantes de sensualidade, um dos pontos fortes do filme é precisamente a vida sexual promíscua de Carrington e Lytton para muitos ainda hoje chocante, apesar da fachada permissiva de muitos moralistas que aparecem na televisão praticando a mercantilização dos costumes. Intentando ser breve na exposição deste assunto, volto ao parágrafo inicial deste artigo detendo-me nas relações triangulares compreendidas na definição do grupo de Bloomsbury. O filme compreende muitas relações triangulares, para não falar de outras que não saberia como adequadamente designar. A primeira compreende o trio Carrington-Lytton e Mark Gertler; a segunda, Carrington-Lytton e Ralph Partridge; a terceira, Carrington-Ralph e Gerald Brenan; a quarta, Carrington-Ralph e Frances, que mais tarde casou com Ralph; a quinta, Carrington-Lytton e Beacus (Jeremy Northam). Algumas dessas relações seriam quadrangulares, se compreendêssemos a relação amorosa entre Carrington e Lytton como uma relação sexual isenta de relação genital. Dentro desse mesmo critério, outras ainda seriam triangulares. Penso, no caso, nas várias relações homossexuais de Lytton mencionadas ou mesmo explícitas no filme.

Condensada a rede de relações eróticas no parágrafo precedente, cabe agora introduzir o que me parece ser o aspecto mais original do filme. Como explicar que um amor tão excepcional quanto o de Carrington e Lytton tenha perdurado até a morte? À parte o enredo acima esquematicamente descrito, que pode sugerir ao leitor moralmente estreito um filme de sacanagem, Carrington e Lytton tinham uma qualidade rara nas histórias amorosas do seu e do nosso tempo: a que os tornava capazes de aceitar o outro amado tal como é. Esta expressão está demasiado corrompida pelos arroubos românticos de amantes que inconscientemente a repisam de pés e corações juntos: amo você como você é. Isso dura até o momento em que o outro ousa revelar-se tal como é.

Há no filme uma cena na qual Carrington comenta com Lytton os transtornos que lhe causam o amor exigente e possessivo de Gerald Brenan. Depois de justamente ressaltar o mal que os idealistas de qualquer natureza causam ao mundo, Lytton faz uma crítica devastadora e certeira ao amor romântico. Observa, noutras palavras, que as pessoas que se amam passionalmente não devem viver juntas. Se o fazem, ou o amor acaba, corroído pela rotina e outros venenos letais da realidade, ou um amante enlouquece o outro. Penso que aí radica o cerne do filme. O amor que Carrington e Lytton compartilham é singular e a tudo sobrevive, até à frustração dolorosa sofrida por Carrington - que ama e devotadamente aceita amar e servir a um homem incapaz de lhe dar amor sexual, filhos e tudo mais que uma mulher apaixonada deseja – porque ambos se aceitam e se querem como são, ambos acolhem a medida imperfeita do amor humano.

Carrington amou devotadamente Lytton e desejou com ele viver dimensões impossíveis do amor passional, mas era uma mulher de personalidade notável. Ainda jovem, tinha consciência do malogro do casamento, do que há de sórdido e hipócrita no amor casado e corroído pelas engrenagens insidiosas da instituição e da rotina. Há cartas dela, ainda jovem, reveladoras dessa consciência arguta e corajosa. Tinha noção bem crítica do que era o casamento dos seus pais e nunca quis para si própria uma vida de amor convencionalmente casado. O filme, por outro lado, é em muitos momentos revelador da consciência que ambos tinham dos limites e imperfeições do amor. Isso decerto explica o bom senso e o pragmatismo com que negociam e contornam conflitos amorosos previsivelmente comuns na experiência erótica tão promíscua que viveram. Aposto como os moralistas sentimentais se arrepiam diante das cenas em que desatam conflitos decorrentes das demandas e turbulências geradas pelos amantes com quem se envolvem valendo-se de recursos como o egoísmo esclarecido e a franca negociação dos interesses que os românticos encaram como sórdidos e incompatíveis com o amor.

Sabemos que o ideal do amor romântico, de longeva existência cujas raízes modernas remontam a Rousseau e outros românticos da segunda metade do século 18, está vazando água por todos os canos e juntas. No entanto, a maioria das pessoas, sobretudo as mulheres, resiste às evidências gritantes da realidade. Vivendo numa etapa do capitalismo de consumo hedonista que funciona no sentido de promover a realização com frequência ilusória da felicidade compreendida num sentido ferozmente narcisista, continuamos atados à idealização romântica do amor. O clichê que melhor sintetiza esse delírio neurótico da felicidade perseguida através do amor romântico é a frase: encontrar minha alma gêmea. É preciso uma poderosa força de autoengano para acreditar nessa ficção que não resiste a um minuto de análise sensata. Aspirar à fusão com a alma gêmea é claramente aspirar a si próprio, ao amor narcisista que se consome na fantasia de reduzir o outro à nossa imagem e semelhança. Isso me parece assim clamorosamente evidente e todavia milhões de pessoas continuam vivendo embaladas por esse sentimentalismo barato, por essa compreensão absurda e desonesta dos sentimentos amorosos, da intimidade amorosa. Os amores se desmancham como sorvete exposto ao sol dos trópicos, os casamentos se dissolvem em traição, hostilidade e ressentimento, mas continuamos devorando a porcaria sentimental e hipócrita que nos vendem como mercadoria a serviço da felicidade. Basta pensar na produção em cadeia de revistas sentimentais e baratas, na engrenagem da ficção folhetinesca difundida em escala global pela mídia.

Ouça um bom conselho que lhe dou de graça: inútil refugiar-se no amor aos cachorros, gatos e outros objetos de projeção narcisista do amor nutrido pela engrenagem feroz desse sistema reificador das relações amorosas. É inútil porque a dor não passa, a dor produzida pelo amor romântico nutrido por fantasias como o encontro da alma gêmea não cessa de doer. Além disso, nosso destino humano é o outro. Não há aqui nenhuma alusão ao humanismo sentimental, que é de resto uma variante do sentimentalismo desonesto que corrói o amor romântico. Afirmo que nosso destino humano é o outro porque, gostemos ou não, é no convívio, na busca e no encontro e nos desencontros com o outro que realizamos nossa condição humana. Nesse sentido, acho que Carrington poderia ensinar-nos algumas lições preciosas acerca da sobrevivência do amor numa época de individualismo feroz, de narcisismo e consumismo infrenes absolutamente incompatíveis com os ideais de amor que nutriram os três últimos séculos da cultura ocidental.
Recife, 4 de fevereiro de 2011.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Olhos Negros



Olhos Negros (Oci Ciornei, Dark Eyes, 1987) é um filme livremente baseado em três contos de Tchecov: The lady with the pet dog, Anna on the neck e The name-day party. O diretor Nikita Mikhalkov, também co-roteirista, transpõe a trama e os personagens destes contos para a Itália do início do século, no esplendor da belle époque, onde engenhosamente funde-os com personagens de extração italiana.

O filme começa a bordo de um cruzeiro turístico. Aí casualmente se encontram o garçom Romano (Marcello Mastroianni) e o comerciante russo Pavel (Vsevolod Larionov). Sentados no restaurante ainda vazio, o primeiro conta sua história ao segundo, que viaja pela Itália em lua de mel. A esposa o aguarda no convés do navio. A construção da narrativa é admiravelmente arquitetada, pois ao cabo saberemos que a esposa de Pavel é a russa que Romano amou ao ponto de tramar uma história que o levou à Rússia como suposto representante de uma fábrica de vidros.

Começando pelo começo, Romano é um arquiteto fracassado e parasita. Graças a seu casamento com Elisa (Silvana Mangano), filha de um banqueiro, vive numa mansão onde desfruta dos requintes de uma rica família italiana. Sua vida foi dissipada na ociosidade e em amores volúveis, pois não passa de um mulherengo insaciável que vive às custas da mulher rica. Homem desprovido de projeto, uso o termo no sentido mais genérico possível, Romano é um Macunaíma ítalo-russo às voltas com as mais engraçadas e sedutoras estripolias.

A pretexto de curar uma doença imaginária, mais uma das suas sucessivas malandragens, interna-se numa estação de águas (spa), onde conhece Anna (Elena Sofonova), a russa com o cachorrinho. Apaixonam-se e ao se entregarem ao amor vivem todas aquelas delícias e luminosos estados de intimidade e beleza que quem assim lindamente amou bem sabe o que é. Um dia Anna desaparece sem explicação. A explicação deixa-a numa carta... em russo. Que fazer, se Romano nada sabe de russo, se ninguém à sua volta sabe russo? Por fim, procura uma professora universitária, que traduz a carta. Só então fica sabendo que Anna, segundo suas próprias palavras, sumiu por fraqueza, por medo do amor intenso que com ele vivia. Romano ouve comovido a leitura da carta e então se decide a procurá-la na Rússia. Parece enfim que o amor terá o poder de infundir-lhe energia para lutar na vida por algo: o amor de Anna. Trama com Manlio, marido de Tina (interpretada pela linda Marthe Keller), a instalação de uma fábrica de vidros. Sua peregrinação através dos labirintos da burocracia czarista rende cenas de sátira primorosa à altura das melhores páginas de Gogol e Tchecov sobre o assunto.

Quando enfim a encontra, trocadas as juras de amor previsíveis, promete-lhe ir à Itália para se tornar um homem livre e afinal regressar à Rússia para viver com ela. Quando todavia reencontra Elisa, ocupada em fazer as malas e vender a mansão, pois os prenúncios de falência antes anunciados se confirmam, Romano recai na pusilanimidade de Macunaíma. Elisa encontrara a carta em russo escrita por Anna. Pergunta-lhe no momento decisivo da trama de quem é aquela carta perfumada cujo conteúdo evidentemente lhe é inacessível. Mais precisamente, pergunta-lhe se tem uma mulher na Rússia. Romano hesita e por fim nega Anna e seu amor diante de Elisa. Esta se recompõe e rasga a carta como quem diz: está tudo resolvido e assim novamente reinará a paz conjugal.

Consumada a falência da família rica que lhe garantia sustento privilegiado e dispensadas as explicações desnecessárias ao andamento do entrecho, eis Romano reduzido à condição de garçom. É nesse ponto, como de início assinalei, que o filme começa e agora é retomado. O filme acaba no momento em que Pavel vai ao encontro da esposa, a Anna da história, para levá-la ao restaurante onde encontrarão Romano.
Para além da personagem sedutora que é Romano, as mulheres não resistem a tipos assim, ressalta no filme uma questão de fundo ético que também pontua o universo ficcional de Macunaíma. Retomo este até porque identifiquei em Romano seu correspondente ítalo-russo. A questão de fundo ético se põe, por exemplo, na relação amorosa entre ele e Anna. Embora ela fuja do amor punindo-se por sua covardia, o verdadeiro covarde é Romano, homem privado da espessura ética necessária à experiência amorosa vivida no grau de autenticidade e entrega suposta numa personagem do feitio de Anna. O contraste ético é ainda mais nítido entre Romano e Pavel. Isso fica bem claro no final do filme quando este se indigna diante do descaso com que Romano arremata sua história de amor com Anna. Romano justifica-se alegando que estamos no século 20, quando ninguém mais se importa com ninguém. É aí que Pavel o contesta de forma veemente contrapondo-lhe seu amor paciente e tenaz por Anna, apesar de anos de recusa afinal abrandados por um casamento sem amor, firmado em bases de companheirismo afetivo.

Estou tão descontente com esse relato insosso e parcial do enredo do filme que por pouco não desisto desta resenha insípida. Acentuando uma verdade estética elementar, não importa na obra de arte o conteúdo, mas sim a forma como ele é transposto para o universo das convenções estéticas. Portanto, o enredo que acabo de toscamente resumir não dá ao leitor a mais vaga ideia da beleza extraordinária deste filme. Nikita Mikhalkov logrou recriar com fina sensibilidade fílmica o universo ficcional apaixonante dos contos de Tchecov mesclando habilmente tons líricos e satíricos cujos efeitos afetam o espectador de forma comovente. Há cenas de intensidade lírica e satírica –no spa, por exemplo, assim como na mansão de Elisa e durante as apaixonantes aventuras de Romano na Rússia – que me fizeram evocar o grande Fellini de Amarcord.

Aos méritos do diretor e co-roteirista somam-se a bela fotografia do filme e o elenco marcante do qual sobressai o talento excepcional de Marcello Mastroianni. Sua interpretação de Romano, esse Macunaíma italiano, é de fato soberba. Ele contracena com verve e histrionismo insuperáveis com os atores russos nas cenas ambientadas em Sisoiev, a cidade onde reencontra Anna. A cena campestre, de insólita beleza repassada pela nostalgia profunda da canção “Nanna Ninna”, comove o espectador de forma indizível. Romano evoca a imagem remota da mãe, da infância, e assim com ele mergulhamos numa atmosfera de sonho e sortilégio que somente a mais pura arte nos propicia. Como traduzir esses momentos de pura epifania numa resenha tão insuficiente? Melhor encerrar recomendando ao leitor que esqueça a resenha e veja o filme, o que vale como uma forma discreta de admitir a irrelevância da pequena crítica em face da grande obra de arte.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Edu Lobo Bossa Recife


O documentário Vento Bravo (2007) começa com duas cenas muito significativas que, enquanto tal, anunciam duas referências fundamentais para nosso conhecimento da música de Edu Lobo: a premiação de Ponteio, talvez o triunfo supremo da sua carreira; o sentido seminal do Recife, sua cultura e paisagem, na sua formação. No andamento desta cena, com Edu a bordo de um carro transitando contra o fundo da paisagem tropical recortada pelos coqueirais e o mar invisível, mas já insinuado na imaginação do espectador, a tela é invadida pelos sons de Candeias. A cena desdobra-se na projeção da sombra movente de Edu sobre a areia úmida e por fim se alarga no plano geral do mar com seus tons verde-azulados, barcos à vela cortando as águas. Logo Edu é enquadrado no mundo da sua infância, no Recife e suas extensões litorâneas.

A música de Edu e a forma como desde o início ele a situa nas raízes da sua memória e experiência ilustram uma verdade corrente na história da arte: a função seminal da infância na criação estética. Embora nascido no Rio de Janeiro, toda a sua infância significativa foi vivida no Recife, onde passava férias deleitando-se na atmosfera absorvente da família. Esse é de resto um traço profundo da história social recifense, por extensão nordestina: a dominadora presença da família ramificando-se numa rede de parentes, amigos e outras forças humanas agregadas e agregadoras. A isso somaram-se os ruídos dos pregões de rua, um deles aliás incorporado a uma das composições de Edu: Cordão da Saideira, o mais belo e lírico frevo que conheço. O fato é que o menino Edu Lobo impregnou-se dessas vivências da infância mais tarde convertidas em memória afinal recriada em som e arte. Ele as rememora, as vivências, em muitas passagens do documentário: Caruaru e suas ruas ruidosas cortadas pelos sons agudos das bandas de pífanos; Itamaracá e Pontas de Pedra, Candeias e o esplendor da lua cheia espelhada no mar; cirandas e maracatus; frevos e troças, tudo inundou a imaginação encantada do menino nele fermentando o solo onde anos mais tarde teceu seu mar de sons e poesia. Lembrem Cirandeiro (letra de Capinam), pérola injustamente esquecida evocada por Maria Bethânia numa cena do filme.

Carioca cuja juventude foi vivida à sombra imperiosa da Bossa Nova e de Tom Jobim, expressão suprema das duas gerações musicalmente mais importantes da música brasileira, a da Bossa Nova e da MPB desmamada nos festivais de música e no clima turbulentamente criativo de resistência cultural à ditadura militar, Edu admite que não teria chance de se afirmar como artista diante de Tom, Baden Powell, Carlos Lyra e outros valendo-se dos recursos de criação musical que estes dominavam. Assim, a via de expressão estética que emprega, a regressão ao mundo da sua infância recifense, foi também uma estratégia de sobrevivência num clima de extraordinária competitividade. A propósito, o crítico Tárik de Souza lembra que Edu entra na atmosfera musical da sua juventude através de Luiz Gonzaga e do acordeon. Outros, como Eumir Deodato, trilharam caminho semelhante.

Edu se afirma, portanto, integrando à sua música duas linhas de influência diferenciadoras e aparentemente antagônicas: a Bossa Nova, de extração carioca, urbana e visada internacionalista, e a música de procedência pernambucana impregnada de tradição rural, regional, e forte sentido de participação social. Foi esta, em síntese, a assinatura que acrescentou ao clima musical da época concorrendo de forma decisiva para desenhar o ponto de ruptura entre a Bossa Nova e a música que passa a ser sumariamente identificada como MPB: a música que explode nos festivais assaltados pelo espírito de competição estética e ideológica exacerbada pela inserção da música popular na máquina de consumo de massa que reponta na cena cultural brasileira em meados da década de 1960.

Edu representa de forma singular a cultura migrante que tanto vincou a formação cultural brasileira. Filho de Fernando Lobo, jornalista pernambucano que migrou para o Rio de Janeiro como tantos outros pernambucanos e nordestinos de talento, engrossou a corrente que desdobra no terreno musical uma tradição enraizada na literatura desde o século 19. Bastaria pensar em José de Alencar, Joaquim Nabuco, Franklin Távora, Sílvio Romero, Aluísio de Azevedo e muitos outros. No século 20 a corrente cresceu transportando sobretudo para o Rio de Janeiro, capital cultural e política do país, quase todos os talentos destacáveis na arte e na literatura.
Edu Lobo ouviu Chega de Saudade pela primeira vez quando de uma de suas férias em Recife. Acentua no documentário o sentido de choque estético que isso representou na sua vida. Passados já tantos anos, é difícil para um jovem de hoje avaliar o sentido radicalmente inovador desta música. Afinal, depois que o novo se rotiniza perde-se a dimensão de ruptura estética que introduz nos códigos dominantes. Ao evocar esse fato Edu reitera o sentido geracional simbolizado na primeira audição de Chega de Saudade. Quando tiveram a oportunidade de pronunciar-se sobre este assunto, também Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque reiteraram o sentido de choque estético expresso no depoimento de Edu. É provável que outros companheiros de geração, se acaso também se pronunciassem, repetissem a mesma história com as variações de ênfase e forma inevitáveis.

Outra experiência de cunho geracional liga-se ao fenômeno das casas abertas, pontos de agregação musical característicos da época em que Edu e seus contemporâneos ingressaram profissionalmente na música. Há quem diga que o símbolo maior dessa forma de associação artística era a casa de Vinícius de Moraes. Edu procura traduzir, também seu parceiro Paulo César Pinheiro, o que isso representou para seu acelerado desenvolvimento como músico. Antes de tudo, prevalecia naqueles grupos livremente compostos um sentido de gentileza, outros em contexto semelhante empregam o termo delicadeza, que definitivamente desapareceu do horizonte da nossa experiência social hodierna. Além de uma intensa e fecunda interação de artistas provenientes de diferentes formas de expressão artística, o convívio era pautado por um espírito de generosidade e senso comunitário impensáveis nos quadros do capitalismo ferozmente competitivo em que passamos a viver, competitividade exasperada pelo narcisismo que permeia todas as nossas relações sociais.

Outro tema interessante introduzido no documentário é o da relação entre Edu Lobo e a Tropicália, a grande explosão inovadora que sucedeu a Bossa Nova provocando reações de perplexidade e conflito nos círculos da MPB. Edu afirma que nunca brigou com a Tropicália. Enfatiza seu ponto de vista esclarecendo que gostava de tudo que Caetano Veloso e Gilberto Gil faziam desde que passou a conhecer o trabalho de ambos. Ressalta, no entanto, seu desagrado diante do caráter teatral do movimento, que na verdade traduzia a astúcia com que Caetano e Gil, narcisistas consumados, souberam explorar os novos recursos de projeção e sucesso forjados pela cultura de massa. É fácil imaginar que Edu, até por força de seu temperamento, do seu modo de aparecer como artista, não teria nenhuma afinidade com o que os baianos faziam na mídia, que então era outra coisa. Edu acrescenta – com razão, assim penso – que o grupo mineiro conhecido como Clube da Esquina tinha importância musical muito superior à Tropicália. Entretanto, pouco se fala disso, pouco se reconhece esta verdade nos estudos históricos relativos à música brasileira das décadas de 1960 e 1970.

Talvez nada melhor traduza a diferença de temperamento e modo de manifestação pública da atividade artística entre Edu e os baianos da Tropicália do que sua renúncia deliberada a ser um grande astro da música brasileira ou um pop star. No auge da sua fama como compositor e intérprete, depois de vencer dois dos festivais de música da época, sobretudo o de 1967, sem dúvida o mais importante dentro deste importante capítulo da história da música popular brasileira, Edu larga tudo e vai estudar música em Los Angeles com Albert Harris. Esta é uma das evidências da superioridade de sua formação técnica e estética se o comparamos à maioria dos grandes compositores brasileiros. As cenas relacionadas à longa temporada de estudos em Los Angeles são pontuadas por uma de suas mais belas composições: a jobiniana Quase Memória. Sugiro ao leitor que a ouça com o outro ouvido sintonizado em Saudade do Brasil, do nosso maestro soberano.

Edu renunciou à fama já consolidada para fazer de si próprio um músico de formação refinada e exigente, um artesão supremo das formas musicais. Nesse sentido, é também sintomático seu reconhecimento de Tom Jobim como nosso compositor supremo. Como bem lembrou, Tom, assim como Villa-Lobos, é o tipo de compositor que obriga seus pares, ainda quando não o queiram ou saibam, a trabalhar, a fazer melhor. Se a memória não me trai, numa outra ocasião, falando de Tom em escala universal, distinguiu-o como um dos cinco maiores compositores populares do século 20. Isento de qualquer viés nacionalista, diria que é talvez o melhor. Comparáveis a ele são George Gershwin e Cole Porter, cito apenas os que primeiro me vêm à mente, mas penso que Tom é ainda melhor que ambos.

Espanta-me que o autor de letras como as de Cordão da Saideira e Candeias tão pouco se tenha aventurado a escrever a letra de suas próprias composições. Talvez o excesso de rigor, o perfeccionismo do artista consciente de que arte é antes transpiração do que inspiração, tenha refreado o letrista de talento lírico notável que é Edu Lobo. O fato é que teve muitos parceiros. Alguns, como Paulo César Pinheiro e Joyce depõem no documentário. Sabemos que seu parceiro mais constante e sem dúvida supremo é Chico Buarque. Como seria previsível e justo, Chico contracena com Edu em boa parte do filme. Talvez apenas a parceria Tom Jobim e Vinícius supere a de Edu e Chico. De certo modo, isso afeta negativamente a grandeza musical de Edu em termos de reconhecimento público. Afinal, que parceiro poderia competir com Chico? Edu fica injustamente rebaixado a um plano tão secundário que ouço gente de bom gosto e bem formada aludindo a Beatriz e outras composições de ambos como se fossem de autoria exclusiva de Chico. Dando a Edu o que de justiça cabe a Edu, tenhamos a consciência de reconhecer que, dentre todos os seus companheiros de geração, nenhum manteve o alto nível de qualidade criativa que ele manifestou dos anos 1990 para cá, exatamente quando alguns dos seus competidores mais talentosos começaram a dar sinal de perda de força criativa.

Nota: direção e o roteiro do documentário: Regina Zappa e Beatriz Thielmann.
Recife, 25 de janeiro de 2011.