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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nelson Rodrigues e a unanimidade



Uma das fontes inequívocas da celebridade de Nelson Rodrigues deriva do seu talento para criar frases de efeito, frases impregnadas de uma força inventiva que prendem num choque o leitor e se gravam na sua memória. Esse é um dos efeitos de recepção mais poderosos que seduzem o leitor da sua obra. Poderia citar uma infinidade de frases suas que entraram para o repertório de qualquer leitor de cultura média e midiática. As frases de Nelson Rodrigues são moldadas numa retórica inconfundível, pois jogam provocativamente com o paradoxo e a hipérbole, dispositivos retóricos típicos dos escritores exagerados e delirantes, caricaturais e satíricos. Acrescentaria o tom cabotino, a astúcia descarada com que manipulava e vestia os próprios ataques e críticas de que era vítima. Foi assim que fez bandeira do seu reacionarismo, da sua fama de perverso e maldito. Para os propósitos do meu artigo, no entanto, cito de imediato a frase que mais importa: “Toda unanimidade é burra”. Não é irônico que a posteridade puna o autor investindo contra ele a verdade de sua frase?

Pois, convenhamos, é isso que Nelson Rodrigues é ou se tornou: uma unanimidade. Ele que a vida inteira viveu provocando polêmica, atacando e sendo atacado, virando a mesa das ideias convencionais, fossem elas de direita ou de esquerda, populares ou impopulares, acabou empalhado numa das suas boutades mais ferinas. Hoje qualquer idiota, qualquer desses imbecis que babam na gravata (e aqui pululam, sabe o leitor informado, ecos de suas boutades agressivas e certeiras) escreve sobre ele apenas para irrestritamente louvá-lo. Flor narcisista hostil à indiferença ou ao coro unânime dos idiotas, Nelson certamente ficaria perplexo ao constatar que a posteridade diluiu ou apagou todos os traços complexos da sua personalidade provocativa.

Onde divisar o reacionário impenitente e autoirônico nessa figura anódina da unanimidade? Suas frases mais ousadas e desconcertantes, não importando no caso o que contivessem de verdade ou erro, dissolveram-se em lugares comuns inofensivos. Quem hoje não repete com tolo espírito provocativo que toda mulher gosta de apanhar? Salvo as neuróticas, claro, correção que fez em tom ainda mais provocativo, acentuando assim o tom corrosivo da boutade. Que esquerdista de idas eras, que antes o demonizava, não se apressa hoje a celebrar sua obra, seu destemor politicamente incorreto, empurrando assim para o fundo do esquecimento todo o ódio, não raro justificado, que inspirava às forças progressistas que durante a ditadura amargavam repressão, censura e medo?

Por essas e outras, prefiro celebrar o centenário de Nelson Rodrigues em tom divergente. Para começar, sinto-me à vontade para qualificar meus elogios, acentuando assim, na contracorrente, alguns dos seus erros e insuficiências que o espírito de unanimidade tende a empurrar para debaixo do tapete. Afinal, nunca o demonizei, nem quando fui de esquerda e companheiro de viagem de muitos comunistas. A grandeza e a permanência da obra de Nelson prescindem desses artifícios maniqueístas ou simplesmente levianos tão correntes na história da nossa desmemória nacional.
Sinto-me à vontade para criticá-lo, como dizia, simplesmente porque nunca o demonizei, nunca incorri na intolerância cômoda de negá-lo, como tantos dos seus inimigos ideológicos, com as armas da ignorância. Pois acreditem os jovens de hoje, que conhecem apenas o Nelson Rodrigues da unanimidade, que ele foi duramente combatido, não raro com bons bocados de razão, que foi confundido com o pior espírito reacionário da intelectualidade brasileira. De resto, ele, afeito ao combate e à negação, provocava esse tipo de intolerância convertendo-o em matéria de crônica provocativa. Bastaria lembrar personagens hilariantemente satíricas como a estudante de psicologia da PUC, o padre de passeata, D. Hélder olhando para o céu apenas para prevenir-se da chuva etc, Alceu Amoroso Lima impiedosamente ridicularizado no seu suposto catolicismo carola e hipócrita. A seara é fértil e o leitor deslumbrado pela obra e a personalidade de Nelson, o que não é o meu caso, pode à vontade preencher as muitas brechas da minha ignorância.

A unanimidade que cerca a obra de Nelson Rodrigues, e isso não é de hoje, representa, entre outras coisas negativas, a nossa inconsciência social e ideológica, a leviandade com que vivemos e esquecemos, a inconsistência de nossas supostas convicções que hoje converte em vaca sagrada o inimigo ontem demonizado, que hoje canta loas ao gênio que era ontem um autor pornográfico e um reacionário desprezível. Já me cansei de ler em qualquer crônica ou artigo de louvor a Nelson a exaltação do seu gênio, o primor irretocável de tudo que escreveu, desde a peça teatral mais injustiçada à crônica de futebol mais banal. Aliás, ontem mesmo li num blog um artigo exaltando o dom profético de Nelson como cronista de futebol.

Fazendo justiça à história documentada, também a Nelson, cuja glória prescinde de distorções do tipo das que acima assinalei, ponhamos os pontos em alguns is. Antes de tudo, o Nelson glorificado pela posteridade é o Nelson jornalista, o autor das crônicas e contos cujo estilo inconfundível e até repetitivo acima grosseiramente esbocei. Aludo ao Nelson politicamente incorreto, ao provocador dotado de raro talento para a frase de efeito. Investindo sua retórica afiada pelo paradoxo desabusado e o descaso diante de qualquer senso de propriedade e medida, Nelson desafiou todas as unanimidades, sobretudo as progressistas, ou assim consideradas no auge da sua militância de jornalista polêmico. Fulminava não apenas as esquerdas em geral, mas também o poder jovem e a liberação dos costumes que pipocaram nos turbulentos anos 1960.

Confesso admirar retrospectivamente a coragem com que investiu contra todas essas modas, tendências e poderes. Como todavia somos o país da desmemória, da futilidade que com uma mão hoje inverte o que a outra ontem denunciava, convém lembrar que foi muitas vezes inescrupuloso e desonesto. O Nelson que habilmente diluiu seu reacionarismo em folclore, seu apoio à ditadura militar em timbre de personalidade, escreveu crônicas de louvor aos ditadores nacionais no auge dos anos de chumbo. Dizem que, no caso, adulou os ditadores para salvar o filho, Nelson Rodrigues Filho, dos cárceres da ditadura. Aliás, esta foi uma das ironias trágicas de sua vida. Ele, um dos raros intelectuais de poder que emprestaram apoio público e constante à ditadura, acabou castigado pelo destino, ou outro nome acaso menos inconveniente, que converteu seu filho amado em militante da luta armada contra o regime militar. Também perseguiu impiedosamente nas suas crônicas as poucas vozes liberais e católicas que ousavam e tinham a coragem de criticar os excessos da ditadura num momento em que todas as nossas liberdades civis estavam amordaçadas. O leitor que se der ao trabalho de folhear um livro como O óbvio ululante (Uma das suas frases, aliás, que viraram chavão), facilmente verificará que Alceu Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara eram as vítimas preferenciais dos seus ataques.
Muitos dos ataques e polêmicas desencadeadas por Nelson Rodrigues contra figuras públicas eram inspiradas por motivações mesquinhas. Nem sempre ele as explicita. Mas Nelson era tão descarado no seu narcisismo sem freios, na sua personalidade de menino perverso, que muitas vezes nem se peja de expor essas motivações mesquinhas. Derivavam, não raro, de alguma crítica contra ele ou sua obra. Como tantas vacas sagradas da nossa cultura (pensem em Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Paulo Francis, Glauber Rocha, Caetano Veloso etc), não tolerava que lhe negassem o gênio ou lhe rebaixassem a grandeza. Deixa clara, por exemplo, a razão ou uma das razões de sua perseguição implacável a Dom Hélder, reduzido a imagens caricaturais de fato deliciosas, mas cruéis e, no contexto em que foram veiculadas, no mínimo inoportunas. O mesmo se repete com relação a Alceu Amoroso Lima, Drummond, Guimarães Rosa e Chico Buarque. O leitor curioso pode ainda consultar o capítulo de um livro hoje raro que Paulo Francis dedica a ele e Gianfrancesco Guarnieri. Refiro-me a “Impressões de Nelson Rodrigues e Guarnieri”, incluído no livro Opinião Pessoal.

Assim como importa distinguir a obra e a biografia a propósito da passagem do centenário de Nelson Rodrigues, importa igualmente sublinhar o processo inverso, isto é, lembrar de passagem a glória momentânea de alguns autores revolucionários ou de esquerda cuja distinção literária foi fruto exclusivo de fatores biográficos, mais precisamente ideológicos. Aludo a escritores e artistas cuja importância estética esgotou-se tão logo foram superadas as circunstâncias históricas de que dependia o valor de suas obras. Não citarei nomes. O leitor esclarecido pode facilmente indicar vários dentre os que tenho em mente. O fato é que, tão logo se esvaziaram como símbolos de arte politicamente revolucionária, de resistência à ditadura e outros fatores de duração contingente e extrínsecos à qualidade autonomamente estética da obra, todos mergulharam no poço da obscuridade merecida.

Não é evidentemente o caso de Nelson Rodrigues. Por isso embirro com esse clima de unanimidade diluidor da própria força e complexidade da sua obra. O Nelson reacionário, cabotino e tudo mais que de negativo se possa lembrar acerca do homem, este passou, ou algum dia passará. O que fica é a obra, volto a chover no molhado. O que importa reter e justamente louvar é o cronista e o contista excepcionais e acima de tudo o dramaturgo. Sei que não há como rigorosamente dissociar uma coisa da outra, a biografia da obra, já que a personalidade poderosa e marcante do autor projetou-se indelevelmente na obra. O que não engulo, e isso justifica meu artigo polêmico, é essa unanimidade póstuma onde os inconscientes e idiotas o aprisionam. Por isso concluo o artigo repetindo a frase que anula toda essa consagração ofensiva vomitada pelos idiotas sem opinião: “Toda unanimidade é burra”.
Recife, 25 de agosto de 2012.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Shakespeare por S. Greenblatt


Uma outra biografia de Shakespeare
Como convém ao espírito do tempo, a supremacia de Shakespeare também se manifesta no mercado. Em Stratford-upon-Avon, sua cidade natal, o nome Shakespeare serve para vender tudo: canetas, camisetas, citações da sua obra impressas em toalhas, diários, agendas, lojas e livros. Uma poderosa rede de instituições culturais acentua essa glória para além do consumo estrito de mercadorias. Além de uma companhia teatral exclusivamente consagrada à montagem da sua obra, a Stratford Shakespeare Company (também a Royal Shakespeare Company, sediada em Londres), existem o Stratford Shakespeare Institute e o Stratford Shakespeare Centre. Importaria salientar que, diferentemente de instituições similares no Brasil, estas concorrem, através de incessantes pesquisas e estudos, para ampliar o conhecimento e a difusão da obra e vida de Shakespeare. As brasileiras, que não têm nenhuma relação com Shakespeare, friso, servem no geral como fonte de prestígio social, parasitismo cultural e ação entre amigos.
Apesar dos ataques procedentes do radicalismo acadêmico, Shakespeare reina solitário no centro do cânone da literatura universal. O mercado editorial, assim como o conjunto da produção acadêmica, ratificam esse juízo. Também o teatro, seu domínio primário e supremo, e o cinema. Mesmo no Brasil, onde é tão pouco estudado e encenado, são lançadas novas biografias que se somam às muitas escritas ao longo de séculos. Recentemente resenhei neste blog As guerras de Shakespeare, de Ron Rosenbaum. A esta poderia acrescentar, sem intenção de proceder a um levantamento que o leitor pode facilmente fazer acessando os sites especializados, Frank Kermode, A linguagem de Shakespeare, Celeste Davidson, Quem foi William Shakespeare?, Claude Mourthe, Shakespeare. Por fim, encurtando a lista e chegando ao que mais importa para esta resenha, Stephen Greenblattt, Como Shakespeare se tornou Shakespeare.
Stephen Greenblat é o grande representante do Novo Historicismo, corrente teórica baseada na subordinação da obra e do autor às condições históricas. Objetiva assim interpretar ambos, a obra e o autor, no contexto cultural dentro da qual se situam. Greenblatt tornou-se a grande referência desta teoria ao propor sua formulação inicial em The forms of power and the power of forms in the renaissance (1980). Essa teoria nega autonomia aos agentes sociais, portanto também ao autor, que acaba reduzido a expressão do sistema ideológico vigente. Isso explica a hostilidade observável entre Greenblatt e Harold Bloom, outro celebrado crítico de Shakespeare. Suas perspectivas críticas são tão antagônicas que acabam transpostas para o plano da hostilidade pessoal. Isso me parece explicar o fato de que um não cita o outro, a não ser indiretamente como objeto de ataque.
Mas importa já de início ressaltar que Greenblatt, diferentemente de tantos teóricos ininteligíveis, escreve uma biografia legível, de leitura muito fluente cujo estilo expositivo prende de imediato o leitor. Como os muitos biógrafos que já se debruçaram sobre Shakespeare e seu tempo, ele reconstitui a vida do grande dramaturgo retomando as fontes documentais no geral já bem estudadas combinando-as com largos voos especulativos.
A vida e a obra de Shakespeare têm muito de obscuro, já que no seu tempo não se documentavam as vidas, mesmo de pessoas famosas, como hoje é comum. Aliás, diga-se que a Inglaterra do tempo era relativamente avançada nesse sentido. Foi isso o que tornou possível a sobrevivência de certo volume documental relativo a Shakespeare e sua obra. Mas o mito de tal forma se sobrepôs ao homem real através da história que seria um exercício detetivesco, algo à maneira de Sherlock Holmes, retraçar as muitas fraudes e supostas descobertas do autor real escondido sob a obra. Basta que se lembre que a obra de Shakespeare já foi atribuída a Francis Bacon, e a Edward de Vere, Conde de Oxford. Os autores dessas façanhas, aliás admiravelmente estudados numa das mais importantes obras dedicadas a Shakespeare e sua vida (The genius of Shakespeare, de Jonathan Bate) são conjuntamente identificados como os anti-Stratfordianos, isto é, os que negam a Shakespeare, nativo de Stratford-upon-Avon, a autoria da obra que o colocou no centro do cânone literário.
Imaginem que até Freud foi enredado num desses contos de vigário ou recriação mítica do autor depois de tomar conhecimento da obra de Thomas Looney, que sintomaticamente significa doido. Este senhor, um obscuro professor inglês, trabalhou obsessivamente durante muitos anos para afinal publicar uma obra na qual intenta provar que o verdadeiro autor das obras de Shakespeare seria o conde de Oxford. Freud engoliu essa invenção com tanta intransigência que morreu acreditando nela. Hoje ninguém mais leva a sério as interpretações delirantes de Looney e outros “reinventores” de Shakespeare. A propósito, Harold Bloom expõe uma interpretação engenhosa para a credulidade de Freud em O Cânone Ocidental. O leitor curioso pode cotejá-la com o ensaio de Peter Gay, “Freud e o homem de Stratford”, incluído em Lendo Freud.
Borges sintetiza a complexidade da obra de Shakespeare, já revestida dessas recriações míticas, ao afirmar que ele é todo mundo e ninguém. Devido a estas e muitas outras razões, Shakespeare continua a inspirar paixões, a dar emprego, pesquisa e fortuna a muitos acadêmicos. Um dos mais ilustres e devotados, o já citado Harold Bloom, sustenta a tese de que ele inventou nossa humanidade. Depois de Jesus Cristo, insiste Bloom, não há personagem mais seminal do que Hamlet. Ser ficcional, produto da imaginação transfundida em palavra, Hamlet traduz a complexidade da condição humana de forma absolutamente original, ou a inventa e dissemina no alvorecer da cultura moderna. É por essas e outras que críticos como Ron Rosenbaum atacam Bloom afirmando que ele pretende deificar Shakespeare. De fato, Bloom levou a bardolatria, o culto a Shakespeare, a um extremo tal que, como escreve textualmente, converteu a obra de Shakespeare em escritura secular, ou correspondente secular da Bíblia.
O que é bem curioso nessa indústria que continua produzindo biografias de Shakespeare é a opacidade dessa figura que os biógrafos perseguem. Repisando uma obviedade que alguns leitores ignoram ou desconsideram, Shakespeare viveu numa época isenta do culto da celebridade que hoje converte qualquer jogador de futebol ou arranhador de guitarra em Deus da mídia. Melhor dizendo, o status do ator e do autor de teatro no seu tempo era equivalente ao de vagabundos, de seres socialmente subordinados e portanto dependentes de patrocínio da nobreza ou do clero, expostos aos caprichos e variações da lei que a qualquer momento, por força de doenças contagiosas ou de pressões puritanas, poderiam ter as portas do teatro fechadas.
Stephen Greenblatt e muitos outros biógrafos demonstram o quanto Shakespeare também se singularizou ao converter sua condição socialmente subordinada em uma extraordinária experiência de ascensão social. Sabendo astutamente tirar proveito dos meios de patrocínio disponíveis à época, além das relações de competição impostas à atividade teatral, sua vida, até onde está irrefutavelmente documentada, foi um triunfo social. À diferença de outros grandes dramaturgos contemporâneos, bastaria pensarmos na trajetória atribulada e no desfecho chocante de vidas como as de Christopher Marlowe e Robert Greene, ele acumulou bens e prestígio sociais excepcionais para homens de sua condição. Marlowe morreu assassinado numa briga de taverna; Greene, em completa miséria, morreu acolhido na casa de um sapateiro desconhecido. Às portas da morte, Greene escreveu uma carta que sobrevive como documento valioso para que melhor se aprecie a condição precária do autor teatral à época.
Pondo sua teoria em prática, Greenblatt empenha-se em reconstituir as condições sociais do tempo para explicar Shakespeare, inclusive as muitas zonas obscuras de sua vida. Fiel a esse propósito, levanta documentação e hipóteses interpretativas relativas à escolaridade de Shakespeare, ao clima religioso dentro do qual se formou, dilacerado pelas lutas religiosas entre o catolicismo e a religião imposta por Henrique VIII e posteriormente por Elizabeth I. Shakespeare viveu em meio à ferocidade da guerra religiosa: conspirações, lutas pela sucessão no poder político, torturas e supressão impiedosa da tradição católica que durante séculos esteve no centro da tradição inglesa. Greenblatt também ressalta a influência que as festas populares e religiosas exerceram sobre a formação de Shakespeare e sua obra. Essa tradição popular de procedência medieval, tão viva na obra de Shakespeare que resiste aos princípios oriundos do teatro grego clássico, sobreviveu durante décadas aos controles rigorosos impostos pela Reforma.
Um dos problemas que salientaria na biografia escrita por Stephen Greenblat prende-se à recorrência das especulações com que visa preencher os claros da vida de Shakespeare. Enquanto outros biógrafos, é o caso de Jonathan Bate, conferem franca prioridade à obra, Greenblatt subordina a vida à obra, na medida em que intenta explicar aquela de acordo com elementos selecionados desta. Fiel ao espírito da sua teoria, subordina ambas, vida e obra, às condições sociais do tempo. Acrescentaria que essas condições sociais do tempo, recompostas dentro do espírito da teoria que adota, são frequentemente hipotéticas. Ademais, quando documentalmente comprovadas, é no mínimo duvidoso que sejam suficientes para explicar indivíduos excepcionais como Shakespeare.
Concluo com uma citação relativamente extensa visando ilustrar o que anotei no parágrafo precedente. O leitor decerto observará que ele especula, especula e por fim sensatamente repõe Shakespeare de volta a seu lugar supremo, o teatro, único que o explica na medida em que podemos explicá-lo:
“Ele recorreu, sem dúvida, a conceitos e termos legais, mas também era notavelmente receptivo a conceitos teológicos, médicos e militares. Teria ele se envolvido também, diretamente, com algumas dessas profissões? Como jovem sem muitas perspectivas, poderia ter se alistado no exército, para lutar uma guerra suja nos Países Baixos – ou isso é o que alguns foram levados a pensar, impressionados com o domínio de Shakespeare sobre o jargão militar. A partir do evidente fascínio que sentia por viagens marítimas, ele bem poderia ter arrumado um lugar num navio para a América – “Buscar novos mundos”, como disse Sir Walter Ralegh, “pelo ouro, pelo prazer, pela glória”. Mas a probabilidade estatística de retornar de aventuras desse porte era mínima. E nenhuma dessas possíveis profissões explicaria a trajetória que o teria levado de Stratford a Londres. Com efeito, todas elas parecem apenas distanciá-lo do lugar que mais importa em sua vida: o teatro” (p. 72).
Depois de tanta viagem especulativa, Greenblatt devolve Shakespeare ao teatro. Qual afinal o sentido de tanta especulação através de profissões hipotéticas e viagens fantasiosas? Shakespeare acaso precisaria exercer a profissão de militar ou viajar pelos mares para justificar seu domínio do jargão próprio a essas profissões e formas de experiência social? Confesso, já concluindo, preferir o livro de Jonathan Bate acima citado e infelizmente inédito no Brasil. Tecido com erudição impressionante e exemplar clareza crítica e expositiva, ele encontra na própria obra o que Greenblatt e outros estudiosos buscam sem sucesso fora do autor e da obra.
Em tempo: o título da obra em inglês é Will in the world acrescido do subtítulo How Shakespeare became Shakespeare. Este é evidentemente o que a tradução brasileira adotou como título. Penso, no entanto, que o título mais apropriado seria o que prevalece na edição original, isto é, Will compreendido como diminutivo de William (Shakespeare), com as conotações afetivas implicadas no uso do diminutivo. Diria ainda Will como sinônimo de vontade, volição. Quanto ao subtítulo que confere título à tradução brasileira, assinalaria apenas que é inapropriado ou infundado. O livro de Jonathan Bate explica muito mais do que o de Stephen Greenblatt como Shakespeare se tornou Shakespeare.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fotos, as fotos



Fotos, as fotos. São centenas organizadas em álbuns ou acumuladas dentro de pastas. Imagens de ruas, cidades, campos, monumentos sugerindo um mapa de viagens e experiências desmembradas no tempo e no espaço. São antes de tudo imagens de gente que amei e convivi. Também de gente tão transitiva e fugaz quanto a duração do flash congelando a imagem impressa sobre papel.
Uma foto é sempre mais que uma foto. Uma foto fere e comove e bouleversa não pelo que visualmente expõe, mas pela cadeia de vivência que subtrai e desata na memória involuntária quando esta lhe sofre os estímulos pulsantes no momento ou gesto miraculosamente gravados. A foto é a madeleine proustiana no cerne da visualidade infinitamente reprodutível.

Por exemplo assim: uma mulher alemã é surpreendida no momento em que remove uma luva da mão na minha cozinha. É linda e ri quase de perfil contra a janela aberta para a solidão noturna. Sobre o chão uma sacola na qual recolhera os objetos que lhe presenteara. Era minha última noite no meu apartamento da Mersea Road, Colchester. Na manhã seguinte me mudaria para o apartamento de Isabel, em Londres, onde morei e fui feliz, como talvez nunca fui feliz, até o dia em que retornei ao Brasil. A mulher é Anita. Rever sua foto é como restaurar na linha do presente nossos intraduzíveis momentos de beleza e comunhão afetiva. Um sopro, não sei se de melancolia ou saudade, move-me a interpelar o silêncio que nada me responde: onde andará Anita? Onde sua doçura e limpidez e generosa humanidade?
Por exemplo assim: a casa da Roman Road que frequentei durante uns dois anos. Nela morou Renato, meu amigo paulista ausente de todas essas fotos, e Paulo Branco, meu amigo de Brasília. Frequentá-la foi também um outro modo de frequentar outros moradores, todos estudantes da Universidade de Essex, e sobretudo pessoas de todas as nacionalidades e procedências que acorriam a suas festas e reuniões sociais. Isso explica a presença do norueguês John Skâtun e do chileno Claudio Andia bebendo cerveja na cozinha. Certa vez gravei uma fita com música brasileira, com ênfase sobre Tom Jobim e a bossa nova, e dei-a de presente a John. Como sobrara fita no lado b, gravei minha própria voz cantando Dreamer (Vivo sonhando) e me acompanhando ao violão. Quando me identifiquei, reagiu surpreso e me disse supor que se tratasse de um cantor e violonista profissional. Desmenti-o com minha melhor falsa modéstia.

Agora uma foto externa e noturna no quintal da mesma casa em Roman Road. Brian e Kate contra o fundo impenetrável da noite fechada sobre o Castle Park. Kate ri enquanto Brian se esforça. Kate foi meu grande e frustrado amor inglês. Durante uns dois anos ocupamos uma sala comum no Departamento de Literatura da Universidade de Essex. Como ela trabalhava numa tese sobre o teatro de Tennessee Williams, foi este o ponto de partida para uma longa e sensível e luminosa amizade antes de tudo literária. A ela incorporamos o teatro e a literatura americana e antes de tudo a literatura e o teatro inglês. Chegamos a ir juntos a Londres exclusivamente para ver After the Fall, de Arthur Miller, no National Theatre. Freqüentávamos ainda o teatro de Colchester e o teatro da universidade.

Um dia, passados já muitos meses de convívio e afetuosa amizade, não resisti à tentação de lhe confessar meu amor arduamente dissimulado por força da sua continência inglesa e da minha timidez. Na verdade, o episódio ocorreu pouco depois da foto de que me ocupo. Como morava no lado oposto do Castle Park – no Dutch Quarter, onde também vivi em três diferentes endereços -, acompanhei-a até sua casa. Animado pelo vinho, pela conversa sempre afetuosa e a beleza da noite deserta, disse-lhe assim entre esperançoso e apertado: Kate, I love you. Ela se voltou para mim, não sei se contrariada ou perplexa, e retrucou: Fernando, how can you say that? Love is a very serious matter. Nada mais disse nem me encorajei a argumentar.

Outra foto da Roman Road. No quarto de Phenia Stephanie, minha amiga grega. Com o chinês Chen, o africano Lau-Au, Paulo Branco e Phenia. Paulo e eu estamos fantasiados com coroas reais. Uso de acréscimo um leque vermelho entreaberto. Numa outra foto, dentro do mesmo cenário, representamos Chen e eu: enquanto faço pose de monarca, ele me abana servilmente com o leque.

Agora o cenário é a casa de Suzy e Maggie em Wivenhoe Park. Suzy linda, fazendo pose, olha a câmera de baixo para cima. Claire, ao fundo, também mira a câmera sorvendo uma tragada de cigarro. Na mesma casa, porém noutro cenário, fixo a imagem de Suzy e Leonor dançando. Leonor, minha amiga espanhola residente em Londres, era a dona da casa de Rebow St., Colchester, onde morei durante mais de um ano.

Neve, a neve. Com Justin Spencer, um dos meus melhores e mais constantes amigos ingleses. Descreve com a mão esquerda um gesto engraçado sobre a minha cabeça enquanto sorrio embrulhado em roupas de frio e cachecol. Flocos de neve, caindo do céu, imprimem à foto uma composição estranha. É noite e tudo é noite em Boxford, cenário da foto.

Os flocos ressurgem mais brancos e nítidos na foto em que estou de costas contra o campus deserto. Minhas luvas pretas, minha calça preta e uma bem dissimulada inquietação diante do frio e do isolamento que vêm com a neve borrando todo o fundo da foto. É neve e tudo é neve.

Neve no Square Four da universidade. Estou encolhido no centro da foto. No mesmo plano, uma mulher de preto caminha de costas. Algumas pessoas, ao fundo, circulam no Square já recoberto de neve. A piscina, no centro do Square, também recoberta de neve. Visão parcial das vidraças do Top Bar, onde bebia cerveja e jogava pool com meus amigos gregos e mexicanos.

Estou agora literalmente afundado na neve que chega quase aos meus joelhos. Meu chapéu inglês, presente de Paulo Branco, um casaco mais pesado e quente. O fotógrafo, lembro-me bem, foi Richard Waller, meu amigo residente do Dutch Quarter. Ao fundo, a fachada sombria do castelo romano que dá nome ao Castle Park. Relíquia inglesa do tempo em que Roma dominava o mundo. O mundo romano, bem entendido.

Rebow Street e alguns amigos que nela circulavam. Primeiro eu próprio lendo solitário sobre a poltrona vermelha. O livro, recém adquirido, é identificável pela foto de Freud na capa. Trata-se da aclamada biografia escrita por Peter Gay. Lia ou fingia ler. Quem sabe o que vai entre a pose ostensiva e o flash congelando o gesto ou atitude espontânea?

Agora os amigos. Richard Waller, que sempre me visitava na Rebow Street depois que deixei de ser seu vizinho no Dutch Quarter. Era um dos poucos ingleses expansivos e espontaneamente sociáveis que conheci. Tanto é verdade que partiu dele o primeiro movimento de aproximação e amizade. Bebíamos chá nas nossas casas e falávamos da África, onde sua irmã se engajara em trabalhos de missionária, ou coisa parecida, bem ao estilo da tradição colonialista inglesa. Falávamos sobretudo de religião e educação. Richard era um religioso dedicado. Aliás, quase todos os religiosos ingleses que conheci eram religiosos de verdade. O oposto, por conseguinte, do nosso catolicismo de conveniência ou fachada, um catolicismo inteiramente dissociado das nossas verdadeiras práticas de vida.

Com Nick e Phenia, que moraram comigo durante umas três semanas. A foto antes da desavença que definitivamente nos separou. Nick, pianista e compositor, está sentado entre mim e Phenia no sofá vermelho onde muito nos divertimos e cantamos. Guardo de Phenia uma foto ainda mais bela. É uma foto em preto e branco feita por um profissional grego, também estudante da Universidade de Essex.

No mesmo ambiente, porém com nítida variação de ângulo, Phenia, Paulo Branco e Carol. Mesclando sangue inglês e espanhol, Carol Hernandez era nossa linda amiga, musa de Paulo e minha que insensatamente namorava um bestalhão inglês chamado Simon. Como vivera alguns anos em Portugal, Simon tinha uma peculiaridade divertida e inesquecível: falava português com sotaque idem. Era um misto de estranheza e graça.
Um dia fui visitar Carol no apartamento em que morava na universidade. Ela começou a passar mal e a suar frio sozinha comigo no quarto fechado. Tocado por seu estado de perturbação de fundo inequivocamente sexual, sugeri que passássemos para a cozinha de uso comum aos outros estudantes. Seguiu-me com uma mug de chá fumegante na mão e prontamente se recompôs. Como sou às vezes estupidamente delicado com as mulheres.

Alícia. A espanhola que era de Múrcia. Nunca ouvira falar de Múrcia. Indicou-me sua cidade num mapa. Toco violão a seu lado. Ouve-me concentrada, direi mesmo meditativa. Novamente minha delicadeza. Abriguei-a no meu apartamento quando rompeu com o namorado inglês, um dos poucos ingleses ostensivamente ciumentos que encontrei na vida. Dei-lhe minha cama de casal, onde afundou solitária encolhida dentro do frio que às vezes feria minhas paredes desprovidas de central heating, e fui dormir na sala. Fiquei assim longo tempo dividido entre a hospitalidade civilizada e inofensiva e o desejo de ir para a cama com ela.

Estou sozinho em muitas fotos tanto da Rebow Street quanto de Mersea Road, meu último endereço em Colchester. Confesso gostar muito dessas fotos. Aliás, não apenas delas, mas da maioria das minhas fotos em cenário europeu. Acho isso muito curioso, senão mesmo intrigante, porque nunca antes demonstrara maior interesse em ser fotografado. Talvez porque não me ache um homem bonito, ou fotogênico. Tanto isso é verdadeiro que possuí apenas uma máquina fotográfica na minha vida. Somente depois, cerca de dois anos depois de viver na Inglaterra é que comprei uma câmera de boa qualidade. A que usei aqui no Brasil, quase que restrita ao tempo em que estive ligado a Cilene, fotografou mais paisagem e “natureza morta” do que gente. Muito pouco eu. Pois findei na Europa gostando de ser fotografado. Por isso acumulei tantas imagens em quatro anos de viagens, festas e reuniões sociais.

As fotos minhas que mais amo são as de Paris. Paris é uma cidade tão bela que qualquer sujeito feio acaba realçado pela beleza dos seus cenários. Isso talvez explique minha beleza fixada nessas fotos, beleza que sei nem de longe corresponder à verdadeira composição física do modelo. Fotografado às margens do Sena, diante do Arco do Triunfo, diante da Torre Eiffel, em Montmartre, além de múltiplos ângulos fixando no plano de fundo a Catedral de Notre Dame, sou eu um outro infelizmente não-eu, um Fernando ficcional transfigurado pela luz e a paisagem de Paris.

Se entretanto penso não só na beleza da cidade, mas também nas pessoas com as quais a compartilho e poso para fotos, não hesitaria em dizer que a série mais preciosa para a minha memória de turista ocasional é a de Roma. Pois foi em Roma, num belo domingo romano, que conheci por mero e feliz acaso a mais bela brasileira com quem cruzei em terras estrangeiras. Cristiane viajava com Cristina, que a seu lado compunha um quadro físico ironicamente contrastivo. À parte a semelhança dos nomes, no mais uma constituía o cabal desmentido da outra. Cristiane, a musa que aqui cultuo, era uma morena baiana alta e doce irradiando um sorriso envolvente. Cristina, pobrezinha, era uma curitibana gorda, baixa e castigada por um certo ar resignado de quem tem consciência de não estar aqui para seduzir e virar a cabeça dos homens. A natureza é cruel, talvez ainda mais cruel que a própria sociedade humana que desequilibradamente construímos. Há duas fotos de Cristiane que amo em particular. Por isso integram a seleção de fotos emolduradas que enfeitam as paredes do meu apartamento. Nesta seleção figuram quase todas as pessoas que dentro e fora do Brasil vivi e amei: Cilene, Isabel, Clara, Camila, Cristiane, Raíssa, Suzy, Justin e Gisela, Anita, Paulo Branco, Alex e Iarinha, Lisa, Angélica, Nice e Andrew, Antonella, Kate. O passado é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

Fotos, as fotos. Meu amigo Sean ri com ar abstrato ou fatigado enquanto me abraça sentado no sofá da Mersea Road. Sean era um marxista de filiação trotskista. Militante convicto, encontrava-o todos os sábados no centro de Colchester fazendo campanha agressiva contra o governo de Margaret Thatcher e vendendo jornais radicais nas ruas mais movimentadas. Por amizade, também por interesse de fundo sociológico, viajei com ele e Suzy para participar do congresso anual marxista promovido pelos trotskistas ingleses na Universidade de Londres.
Fotos de Isabel. Uma, a que tenho diante dos olhos, evoca Mersea Road, meus últimos dias em Mersea Road intensamente vividos a seu lado. Noutra dançamos sorridentes, vagando numa onda de prazer antecipatório, como se a dança e o riso sem reservas anunciassem toda a imprevisível felicidade que usufruiríamos na dobra da primeira esquina. Foi a dança da primeira noite, quando nos conhecemos em Londres e celebramos o aniversário da carioca Olga Becker. Estávamos a um passo de tudo, a um passo do que já não sonhava, e todavia nada pressentíamos. A dança e o riso premonitórios são decerto invenção tardia de quem escreve mirando as fotos do passado irreversível.

Fotos, as fotos. Margaret, mãe de Peter, acolhendo-me em Poole e me guiando através dos cenários de Dorset. Soubera, através de Peter, do meu amor pela obra de Thomas Hardy, que lera traduzido para o português aí por volta dos meus vinte anos. Pois, embora não me conhecesse, telefonou-me do outro lado da Inglaterra convidando-me para visitá-la e para participar das celebrações que assinalaram o sesquicentenário do nascimento de Hardy.

Foi comovente viajar, guiado por ela e Jack, pai de Peter, através da paisagem rural de Dorset que antes eu procurara imaginariamente visualizar lendo Jude The Obscure, Tess of the D´Urbervilles, The Mayor of Casterbridge, Far from the Madding Crowd. A leitura dessas vidas malogradas, sobretudo as de Jude, Sue e Tess - seres tão plenos do possível, tantas as possibilidades do futuro iluminado, e no entanto fadados à ruína na luta contra as restrições opressivas do ambiente - marcou na juventude minha própria construção identitária para além do que eu poderia conscientemente determinar.
Na foto que tenho diante de mim estamos Margaret e eu contra o fundo do cenário no qual se ergue a cottage onde Thomas Hardy nasceu. Margaret está protegida por uma capa vermelha enquanto porto um impermeável azul e uma sombrinha vermelha, ambos por ela emprestados. Era um fim de manhã de chuva, o que explica o uso da sombrinha e dos impermeáveis. Chuva inglesa, fina e quase invisível, mas insistente e importuna. A imagem não alcança sequer sugeri-la no momento em que Jack aciona o dispositivo da câmera.

Outro tempo e cenário. Cruzo o Mar do Norte no ferry boat. Muitas vezes o fiz em diferentes horários e condições climáticas. Quase sempre solitário. Gosto dessas fotos que repicam, lá no mais fundo da memória, um intraduzível gosto de viagem e de descoberta. Gosto não somente intraduzível mas também intrigante, talvez mesmo contraditório com o que julgo compor meus traços dominantes de personalidade. Pois sou antes de tudo um sedentário e, não obstante autoeducado para viver sozinho, definitivamente não me acostumei a viajar sozinho. Aprendi até a fazer prazerosamente sexo sozinho, mas nunca aprendi a viajar sozinho. Não obstante, aí estou eu cruzando as águas que separam a Inglaterra do continente. E como gostava disso, como me entretinha observando, dentro da luz do dia ou imerso na treva da noite, o movimento no geral tumultuoso das águas.

E assim viajei quase sempre solitário através de terras inglesas e européias. As fotos documentam esse percurso, retêm sob o silêncio instantâneo da imagem o vinco da memória na qual se depositam os passos, as visões e imprevistos da viagem. De Dover a Calais. De Calais a Bruges. De Bruges a Amsterdam. De Amsterdam a Ghent e Antuérpia. Ou de Bruges a Bruxelas. Outros roteiros: de Calais a Paris. De Paris a Malesherbe, onde viveu meu amigo Flávio Brayner e onde me embriaguei numa festa promovida por seus amigos franceses e portugueses. Antes disso fui delicadamente posto para fora da casa de uma antropóloga francesa que me hospedara equivocadamente supondo que nos tornaríamos amantes. Os desencontros e ambiguidades envenenando as relações humanas e minha quase incapacidade de dizer não a uma mulher.

Fotos, as fotos. Antonella na varanda do último andar do Royal Festival Hall. Ao fundo, o Tâmisa, Charing Cross Station e Embankment. O dia retorna em ondas, como se as águas vistas ou pressentidas me devolvessem a magia de um dia londrino com Antonella. Talvez somente a convergência dos sangues ou temperamentos latinos possa explicar esse amor tão fantasioso e divertido encenado dentro da frieza e rigidez dos costumes ingleses. Antonella saía na noite de Colchester comigo e me beijava nos restaurantes. Ou seria eu, já meio bêbado, que a beijava? Já não me lembro de quem partia a iniciativa. Lembro porém com clareza a reprimenda puritana dos poucos ingleses presentes ao restaurante. E nosso humor, nosso prazer de viver incontaminado pelo arrepio puritano dos que invejam quem vive para além da letra dos códigos e convenções sociais. Saíamos do restaurante para a noite deserta e dançávamos liricamente sobre as pedras frias da rua, e desafiávamos a paisagem fantasmal do Castle Park around midnight. It begins to tell `round midnight.

Antonella temia os trovões e relâmpagos assaltando o frio e a solidão da noite. Grudava-se a meu corpo sob os cobertores lutando contra os fantasmas acordados pela fúria dos elementos. Eu ria, ria para apaziguá-la, enquanto lhe acariciava o clitóris e sentia o toque umedecer-lhe a vagina e a penetrava em meio ao ribombar dos trovões e ela gemia fundindo gozo e temor nas trevas de Mersea Road.
Fotos, as fotos. Sou eu de óculos escuros fotografado em Swansea por Alex e Iarinha. As águas e barcos ancorados. Swansea de Dylan Thomas e Anthony Hopkins. As fotos documentam a beleza da cidade onde nasceram esses dois ilustres alcoólatras. Fotografo Alex a Iarinha ao pé da estátua de Dylan Thomas. Precisaram talvez reduzi-lo ao estado de estátua imortal para que se aguentasse de pé.

Seguindo ainda as rotas de Alex e Iarinha, hoje vivendo em algum inssabido endereço de Porto Alegre, movem-se as fotos de Swansea para Brighton. Depois de Colchester e Londres, Brighton foi a cidade mais vivida e amada nos percursos que as fotos documentam. Brighton e seus sebos onde adquiri mais livros, quase todos impecavelmente preservados, do que nos próprios sebos da Charing Cross Road. Brighton e seu mar onde no verão as velhinhas se banhavam com os seios expostos. Brighton e um show de Stéphane Grappelli que me comoveu não apenas com seus inefáveis solos de violino mas também com uma desconcertante exibição pianística. Brighton e seus parques onde jogava tênis com Bernardo e Mariana. Brighton e a Universidade de Sussex.

E a roda do tempo gira movida pelas imagens. Agora no Top Bar da Universidade de Essex. Gonzalo, Sandrine, Claudio e Carmen, entre outros. Esta foto evoca o mais quente e belo verão vivido na Inglaterra. Tão quente que cheguei a mergulhar nas águas de Clacton-on-Sea, às onze da manhã, já meio de pileque.
Carmen, a espanhola de Segovia, foi a musa dessa estação feita de festas noturnas à beira dos lagos da universidade, de farras e música na minha casa e nas towers onde residiam muitos desses amigos hoje dispersos pelo mundo. Sua beleza e acima de tudo o deleite com que nos seduzia prontamente a distinguiram dentre todas as mulheres latinas e inglesas que frequentavam nossas noites. Entre seus cultores e pretendentes alinhavam-se Claudio, John Mcgee, meu lírico e gordo amigo irlandês de Cork, Christopher, Walter, um paulista que fazia o tipo trator num jardim, e eu próprio. Entre tantas camas sedentas, Carmen escolheu a de Walter, o trator que, não bastasse ser trator, queria apenas gozar transitivamente no seu corpo.
A queixa deriva não tanto da minha frustração, contaminada por desejos igualmente voláteis, mas do amor mais belo e dedicado dos meus líricos amigos Claudio e John Mcgee. Feridos ao compararem sua medida de amor àquela que Carmen escolhera, não resistiam nos desabafos do Top Bar à generalização ressentida: as mulheres preferem sempre os brutos. Abandonada por Walter, Carmen nem foi para os braços de Claudio ou John Mcgee nem tampouco para os meus. Saiu da tórrida brutalidade do paulista para a fria sexualidade do inglês Christopher. Foi quando na verdade viveu mais perto de mim. Encontrava-me no Top Bar onde bebíamos chopp e, entre um e outro, insinuava sua insatisfação com o modo inglês de amor praticado por Christopher. Mas falávamos, falávamos, insatisfações recíprocas escorrendo entre um chope e outro, até que Chris aparecia e sentava conosco e falava do clima, dos mesmos e previsíveis assuntos e depois se iam os dois para casa frustrados como eu que me retardava no bar.

Fotos, as fotos. Há muitas outras, algumas que já nem lembro, que poderia interminavelmente traduzir em clave verbal, converter em matéria de memória escrita o que repousa em álbuns e gavetas esquecidas como uma cadeia de imagens da vida ida fruída e dissipada. Se acaso deplorasse o tempo irreversível, o que flui sem margem de regressão ou errata, em vão buscaria nessas fotos a vida perdida ou desperdiçada. Mas isso que escrevo é apenas um exercício de memória, que de resto também pratico valendo-me de outros meios e circunstâncias. Pois que isso é tudo o que resta ou fica: a memória generosa da vida ida com seu inumerável cortejo de sombras humanas e paisagens, com expressões de amor, tantas apenas esboçadas e intransitivas. A vida ida acrescida de erros irreparáveis que hoje em mim acolho como resignado sintoma de minha imperfeição. As fotos são, assim, bem mais que fotos, bem mais que neutras imagens impressas sobre papel ou tela. As fotos retraçam na memória e sentidos as mesmas obscuras veredas que no nosso corpo subjazem às rugas, cicatrizes e sopros de som e luz pontilhando o percurso de uma vida. Mais que puras imagens, as fotos condensam muito do que fui e converto em memória.

Diário - Recife, 20 de Fevereiro de 1998

Leia também: England, my England

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Deus Danado


Potiguar e Potiguares

Dentre as peculiaridades culturais do Recife, e extensivamente de Pernambuco, reponta o traço de persistente conservadorismo aferível no conjunto das suas expressões artísticas e mais nitidamente na ideologia que confere suporte a essas expressões. Tal conservadorismo, instância compensatória para a perda progressiva de peso político-econômico e cultural no cenário nacional e mesmo regional, é obra competentemente articulada por intelectuais herdeiros das tradições oligárquicas decadentes. Seu arquiteto supremo é Gilberto Freyre, figura intelectualmente complexa e portanto controversa. Por isso ressalto que esboço aqui sua figura de forma sumariamente negativa por considerá-la em termos estritamente ideológicos. É portanto prescindível ponderar o quanto noutros contextos ele se distingue pela obra fundamental que produziu. Voltando ao conservadorismo de que antes tratava, ele pontua o conjunto das expressões integrantes do sistema cultural pernambucano. No plano do teatro, acentua-se ao compasso de uma tradição ancorada no folclore e numa rica e resistente mitologia de extração rural e notadamente sertaneja.

É no cerne dessa atmosfera acima grosseiramente esboçada que emerge a peça Deus Danado, do dramaturgo potiguar João Denys, dissolvendo expectativas previsíveis, a estas incorporadas as do próprio autor deste prefácio, e alçando a temática sertaneja a planos de perturbadora universalidade. Quando tantos se acomodam ao culto de um regionalismo estético de metro fechado, passível de no limite reduzir a nossa expressão artística àquilo que Oswald de Andrade certeiramente chamava de macumba para turista, João Denys escreve e encena um espetáculo cujas credenciais o situam à margem e acima das duas pragas dominantes na cena pernambucana: o teatro digestivo, variando numa escala que se estende da comédia de costumes ao pornô brega, e nossa indefectível estética regional-naturalista.

Traduzindo as expectativas previsíveis em registro pessoal, confesso ter ido ao teatro com certa reserva. Previamente informado de que o texto da peça fincava raízes no árido sertão potiguar onde João Denys nasceu e viveu boa parte da sua vida, minha desconfortável expectativa era defrontar-me com mais uma variante da nossa estetização da miséria nordestina temperada por mitos surrados faiscando na moldura do pitoresco regionalista. Quais não foram, entretanto, minha surpresa e prazer quando me vi diante de um espetáculo capaz de exprimir de forma rusticamente bela e atormentada a tensão entre o particular concentrado no Nordeste rural e o universal oprimido pelo “silêncio de Deus”.

Intentando exprimi-la de um outro modo, essa tensão seria talvez traduzível na polaridade inscrita entre a sociologia, tendente a fixar o conflito dramático entre Teodoro e Luiz no cerne desse ossificado cenário de miséria que é o sertão nordestino, e a metafísica onde se aloja o nada último da nossa condição transcendente à matéria específica tematizada no texto de João Denys. Isso garantiria, me parece, o raro e tenso equilíbrio alcançado entre o fundo particular e universal do drama seco protagonizado por Teodoro e Luiz.
A concepção cenográfica, decisivamente enriquecida pelo inspirado trabalho de iluminação realizado por Eduardo Lemos de Santana, dissolve a fronteira física e cromática entre a degradação humana dos personagens e a do ambiente social em que interagem. Tão extremos são uma e outro, a degradação humana e o ambiente, que assistimos no espaço cênico a essa suspensão de barreiras como se uma e outro, indiferenciados, numa só cinzenta matéria se fundissem. O admirável é observar que tal rendimento cênico é alcançado sem sequer um apelo ao surrado museu estético do regionalismo naturalista.

Movendo-se na delicada linha de tensão entre o tudo e o nada, entre os elementos provenientes da nossa particularidade regional e a corrente do universal que a atravessa, João Denys assim caracteriza o projeto cênico de Deus Danado: “O mais importante em todo este projeto é concluir que o tudo e o nada estão aqui no Nordeste. Que a matéria prima das vanguardas artísticas contemporâneas está em nós, muito antes das tendências de última geração legitimadas pelos poderosos”.
Repelindo qualquer gesto de complacência com relação às formas correntes de exotismo estético, João Denys eleva a agonia e a solidão últimas dos seus personagens a um plano onde ressoam situações e atmosferas características do teatro de Samuel Beckett. Se ele próprio admite leituras concentradas na acentuação de afinidades e até equivalências estético-filosóficas entre Deus Danado e o teatro beckettiano, parece-me entretanto inexato reduzir a (não)significação da sua peça ao universo opressivamente niilista de Beckett. Pois se neste prevalece um supremo desprezo pela história (desprezo que é antes de tudo impotência), por qualquer forma de especificação do desespero terminal que devora seus personagens, em João Denys é inequívoca a tensão acima aludida entre sociologia e metafísica, entre a particularização histórica e a universalidade que a transcende. Se naquele o vazio da condição humana se espelha na própria articulação da linguagem murada numa espécie de grau zero semântico, em Deus Danado os personagens falam (e como falam!) falando algo para além do nada desesperante em que se congelam os conflitos expostos pelo teatro beckettiano.

Desfeitas assim minhas expectativas previsíveis, compartilhadas, quero crer, com o público investido da disposição de apreciar criticamente a nossa cena, o eixo dessa relação arte teatral e recepção crítica se refaz daí emergindo a convicção de que um sopro de renovação estética iluminou o palco do teatro pernambucano.
Nota: Prefácio escrito para a edição de Deus Danado, de João Denys, publicado na coleção Bastidores, Textos de Teatro. Natal, RN, s. d. A data de redação do prefácio foi provavelmente 1997, mas não tenho como comprová-la.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Tchecov - As Três Irmãs


As três irmãs Prozorov que conferem título à peça de Tchecov – Olga, Masha e Irina - sofrem o tédio e a infelicidade da vida provinciana num país atrasado de organização política autocrática ainda baseada no trabalho servil. Essa realidade, a do servo doméstico privado de autonomia e portanto dependente de senhores no geral despóticos, transparece em Anfisa, serva da família Prozorov, e em Ferapont, outra personagem de condição servil. Já idosa e desamparada de recursos, Anfisa vive exposta à tirania de Natasha, mulher de Andrei Prozorov. É certo que Olga (Rosalie Crutchley) a ama e protege, assim como suas irmãs. Afinal, foram provavelmente amamentadas e criadas por Anfisa que delas cuidou a vida inteira, realidade social também corrente no patriarcalismo escravocrata nordestino tão singularmente examinado por Gilberto Freyre. Embora a ação da peça seja posterior à abolição da servidão, importa lembrar que a abolição teve efeito antes formal do que real. A lei que aboliu a escravidão no Brasil em 1888 encerra uma realidade histórica muito similar à da servidão russa.

Além das afinidades culturais acima indicadas, seria possível fixar muitos outros paralelos culturais pertinentes e iluminadores entre a Rússia e o Brasil, esta Rússia dos trópicos. Gilberto Freyre, nosso mais refinado historiador social, chamou nossa atenção para esse veio comparativo. Mas ao salientá-lo tenho em mente antes de tudo Natasha´s Dance, de Orlando Figes. Figes foi minha grande descoberta no campo da história cultural. Lendo essa obra extraordinária, admirável painel da história cultural russa que se estende da época de Pedro O Grande ao século 20, aprendi muito sobre a Rússia e através dela sobre o Brasil. Na sua obra, assim como na de Gilberto Freyre, a história social torna-se uma leitura tão apaixonante quanto um romance das proporções de Guerra e Paz.

Orlando Figes é especialista em história cultural russa. Além de Natasha´s Dance, escreveu A People´s TragedyThe Russian Revolution, 1891-1924 e The Whisperers, uma história da vida privada na Rússia durante a era estalinista. Além de escrever com admirável clareza e precisão, Figes dá provas de uma erudição impressionante ao recompor cerca de três séculos da história cultural russa. Também ele ressalta em Natasha´s Dance o tédio e a infelicidade que oprimem as vidas das três irmãs, assim como das demais personagens. O fato de Tchecov não expor razões precisas para a atmosfera abafante da peça induziu alguns críticos a proporem explicações simplistas do tipo: mudem-se para Moscou e isso será o bastante para que suas vidas infelizes também mudem. Propor esse tipo de explicação é confundir a doença espiritual das personagens, como acentua Figes, com um simples estado de desenraizamento geográfico.

As três irmãs sonham com Moscou, onde nasceram e viveram os primeiros anos de suas vidas. Na imaginação exacerbada pelo tédio do horizonte provinciano que as sufoca, Moscou é antes um símbolo, um lugar de nostalgia e sonho pairando no avesso do presente real. Irina, a que mais padece da nostalgia de Moscou, é interpretada por Lynn Redgrave. Como a peça foi produzida pela Rádio BBC e transmitida pela primeira vez em 1965, tinha então 22 ou 23 anos de idade. É impressionante como sua voz soa irreconhecível, aparentando ser a voz de uma mulher muito mais jovem. Não a identificaria de modo algum, não fossem as informações fornecidas pela BBC. No entanto, identifiquei perfeitamente as vozes de Paul Scofield e Ian McKellen, que interpretam respectivamente o tenente-coronel Vershinin e o barão Tuzenbach.

Além do tédio que repassa essas vidas frustradas - e ressalto não aludir apenas às irmãs Olga, Masha (Jill Bennett) e Irina – são muitas as vias de fuga a que recorrem como um antídoto para a realidade que as aprisiona. Esses estados psíquicos e morais tão frequentes nas personagens malogradas da dramaturgia de Tchecov não expressam apenas uma condição metafísica, tédio e malogro próprios à condição humana abstratamente considerada. Como bem observa Elisaveta Fen esboçando um paralelo entre a atmosfera psicossocial da Rússia e a da Inglaterra – aquela caracterizada na realidade russa durante o vintênio em que Tchecov produziu sua obra, esta durante o vintênio correspondente ao entreguerras mundiais – é fácil nelas apreender um estado de espírito assinalado pelo desencantamento em face da vida, o desânimo espiritual, a opressiva sensação de descrença em si próprias e no futuro.

Uma das vias de fuga ou consolação para essas vidas malogradas é bem desenhada no comportamento do tenente-coronel Vershinin. Suas divagações filosóficas – ele sempre acentua em certo tom irônico estar “filosofando” – não passam de fato de puro devaneio, figuração imaginária de um futuro inapreensível tendente ao puro delírio. Das dobras do seu discurso reponta sempre um futuro radiante que será usufruído pelas gerações futuras, enquanto os vivos estão condenados a vidas fracassadas que logo afundarão no esquecimento dos pósteros. Também o barão Tuzenbach compõe variações à volta da mesma rota de fuga. Embora nunca tenha trabalhado na vida, fato que denota sua condição social privilegiada, já que é um nobre montado sobre um vasto exército de trabalhadores servis, vive divagando sobre a excelência do trabalho, sobre o trabalho como necessidade e fundamento da vida ideal que transpira de suas falas.

Masha, casada com o professor Kulighin, padece das mesmas frustrações de suas irmãs. Infeliz com Kulighin, infeliz no ambiente provinciano que tende a acentuar sua nostalgia de Moscou, apaixona-se por Vershinin, tão volúvel nos sentimentos com que a seduz quanto nos devaneios que confunde com projeções filosóficas da realidade. Assim, desmente seus supostos sentimentos de paixão por Masha com a mesma leviandade com que de início os soprara nos ouvidos da sua presa carente. Ele se despede dela e em seguida parte apagando com uma mão o que com a outra antes compusera no avesso das linhas em que os sentimentos se anulam. Quero dizer, onde antes supostamente palpitava a paixão, agora resta apenas a despedida sem pesar real e a inconsciência da dor sofrida por Masha.

No prefácio que escreveu para As Três Irmãs, incluído no volume Prefaces to the Experience of Literature, Lionel Trilling começa por observar que é uma das obras mais tristes da literatura, também uma das mais entristecedoras. Acrescenta, em defesa do seu ponto de vista, que vários membros do Teatro de Arte de Moscou, a companhia dirigida por Constantin Stanislavsky, choraram quando da primeira leitura da peça. O intrigante no episódio, que de resto ilustra o argumento geral de Trilling, consiste no fato de que para Tchecov a peça era uma comédia, quase uma farsa. E o mais intrigante consiste na admissão de que sua apreciação era sincera, não uma contradição provocativa formulada com a intenção de confundir ou contrariar interpretações infundadas ou pelo menos discutíveis. Tanto é verdade que, a julgar pelo testemunho de amigos íntimos, a começar pelo próprio Stanislavsky, manteve até o fim sua convicção.

Trilling empenha-se em desatar esse nó insolúvel. Ao fazê-lo acentua a ambiguidade da obra, assim como seu contexto de recepção. Compreendida no registro ambíguo que caracteriza toda grande obra literária, a peça de Tchecov contém inegáveis traços de comédia. Encaradas num registro irônico, personagens como Vershinin, com suas filosofices devaneantes, assim como sua complicada vida conjugal, o barão Tuzenbach, o Dr. Chebutykin e o capitão Soliony, que mata o barão num duelo estúpido, aniquilando assim o noivado do barão com Irina, são sem dúvida também figuras cômicas. Resta, portanto, a leitura ambígua da peça aqui sugerida e antes sublinhada por Lionel Trilling no seu prefácio. Essa perspectiva amplia a gama de sentidos e possibilidades da obra, o que constitui um modo sumário de reconhecimento da sua excelência estética.

As palavras finais de Sônia em Tio Vânia e as de Olga em As Três Irmãs expressam um doloroso murmúrio de resignação estoica, uma pungente incerteza diante do sofrimento e da vida. Salvo variantes acidentais, o sentido substancial do que dizem nas duas peças é o mesmo. Nada podemos fazer, a não ser continuar vivendo. Precisamos continuar vivendo, não obstante a inevitável sucessão de dias e noites tediosas. E assim continuaremos trabalhando sem pausa, sofrendo as adversidades que o destino nos impõe. E assim viveremos até o dia da nossa morte, quando afinal Deus terá alguma piedade de nós. E então Sônia, que acredita numa vida transcendente, prefigura o repouso que neste mundo nunca conheceremos. O que acabo de escrever é uma paráfrase ou tradução livre das passagens mencionadas neste parágrafo, notadamente a fala de Sônia que encerra Tio Vânia.
Recife, 25 de novembro de 2010.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Bergman - Depois do Ensaio


Há pessoas sem poço, pessoas que vivem como se a vida fosse uma superfície lisa e plana ou um espelho sem profundidade. Melhor dizendo, vivem como se fossem ocas por dentro ou fechassem todas as passagens que acaso dariam acesso a seus abismos. Essas pessoas desprezam os filmes de Bergman assim como desprezam a literatura de Clarice Lispector ou os abismos metafísicos subjacentes à obra de um Strindberg ou um Lúcio Cardoso.

Depois do Ensaio é um filme que mataria de tédio esse tipo de gente. Pois, além de escavar os poços obscuros dos três personagens que se confrontam – Henrik (Erland Josephson), Anna (Lena Olin) e Rakel (Ingrid Thulin) – concentra toda a ação nos limites de um palco vazio. Aliás, conviria frisar que a ação do filme, ou da peça filmada, não deve ser confundida com o que o público correntemente entende por filme de ação. Há um abismo intransponível entre Bergman, qualquer dos seus filmes, à exceção provável seria Fanny e Alexander, e esse tipo de público, que constitui a maioria esmagadora.

Depois do Ensaio foi filmado logo depois que Bergman realizou seu filme mais popular e mais acessível ao grande público, o já mencionado Fanny e Alexander. Vale ressaltar que os traços dominantes da sua filmografia também permeiam este filme: a herança puritana e a culpa, o amor e seus emaranhados conflitos, o desejo e a morte, as obsessões metafísicas... Enfim, os poços obscuros da nossa condição tão falível, os abismos nos quais nos perdemos e salvamos também desenham muitas das linhas narrativas de Fanny e Alexander. O que diferencia este filme é a forma narrativa, a forma usada por Bergman para recriar na tela a sua infância, a família realçada pelo fascínio e o choque identificáveis em toda narrativa de família.

Cada história de família é singular. No entanto, há muito de comum a todas elas, contrariamente à frase famosa escrita por Tolstoi como parágrafo de abertura de Anna Karenina. Traduzindo livremente: As famílias felizes são todas parecidas; as infelizes são singulares no seu modo de infelicidade. É sem dúvida uma abertura de forte apelo literário, mas pouco condizente com a realidade aferível das histórias de famílias, sejam elas felizes ou infelizes.

A ação de Depois do Ensaio, compreendida no sentido estético e amplo do termo, circunscreve-se ao espaço literal de um palco onde contracenam os personagens acima referidos: Henrik, Anna e Rakel. As unidades de ação, espaço e tempo são portanto precisas. O filme começa quando Henrik, solitário e cansado, está sozinho no palco depois de ensaiar O Sonho, de August Strindberg, o grande dramaturgo sueco tantas vezes levado ao palco por Bergman. Henrik confessa ter por hábito ficar sozinho e descansar no palco depois de ensaiar. Precisa disso como condição psíquica inerente à sua atividade criadora. Mas eis que Anna perturba sua solidão a pretexto de procurar um bracelete perdido ou esquecido durante o ensaio. A partir desse ponto os dois personagens são tensionados à volta de situações humanas correntes na obra de Bergman: o vínculo erótico entranhado na arte dramática, o poder mesclado de aversão e desejo que a figura paterna e o diretor, variante da primeira, exercem sobre a mulher jovem e bela, os sentimentos de amor e ódio entre mãe e filha.

Anna é uma jovem e bela atriz. Ela integra o elenco da peça de Strindberg dirigida por Henrik. É em torno da peça que ensaiam, O Sonho, que se tece o diálogo relativo à arte dramática, o mundo que Bergman verdadeiramente habitou, o único que tinha real sentido para ele. Rakel, mãe de Anna, foi também atriz e também representou sob a direção de Henrik. Morreu de alcoolismo. Ela é introduzida na narrativa através da memória dele e assim assistimos a uma regressão da ação no tempo. Enquanto Rakel, bêbada e carente de amor, contracena com Henrik, Anna, ainda menina, assiste silenciosa ao desdobramento da trama sentada no sofá.

Como acima já sugeri, Depois do Ensaio diz muito sobre a arte dramática, notadamente sobre a complexa relação que envolve o diretor e suas atrizes. Representar, imprimir sentido dramático à vida, recriando-a para além do fluxo errático compreendido no seu movimento rotineiro e inconsciente, é exercer controle racional sobre as paixões. Esse é um dos pontos fortes da tensão que confronta Henrik e Rakel. Para ele, o diretor precisa exercer o controle racional da experiência estética. É por isso que detesta as forças “espontâneas, imprudentes e imprecisas”, como afirma num momento de exasperada discussão com Rakel. Esta simboliza a força irracional e confusa que precisa ser plasmada esteticamente para que da desordem e do caos brote a arte lastreada nos seus elementos de ordem e organização significativa. O que deve prevalecer na atividade que se desdobra no palco, como enfaticamente ressalta Henrik, são a disciplina, a clareza, a luz e o silêncio. Para Rakel, no entanto, tudo isso é inconsistente e improvável. Contrariamente à teoria da pureza, da estética de fundo racional exposta com intensidade e exaspero por Henrik, ela acredita que o teatro é tumulto e energia emocional.

A história do teatro, assim como a da arte em geral, produziu inúmeras estéticas. Procedendo a uma redução grosseira, penso que todas poderiam ser alinhadas em dois grupos fundamentais: o das estéticas racionais e o da irracionais. Talvez surpreenda a muitos apreciadores do cinema de Bergman o fato de incluí-lo no primeiro grupo, o das estéticas racionais, quando consideram o confuso tumulto das paixões que atormentam o universo de suas personagens, sobretudo as mulheres. Depois do Ensaio constitui um dos melhores pontos de referência, no conjunto da filmografia de Bergman, para que melhor se compreenda essa questão exposta a tanta controvérsia.
Recife, 28 de setembro de 2010.