terça-feira, 26 de junho de 2012

A Mulher e o Mar


Que sonha a mulher na praia
De costas para a cidade
Enquanto a maré vadia
Deita a seus pés a saudade
De amores que vêm e passam
Como no mar a maré?
Ondas se atraem, se enlaçam
Mas logo se desenlaçam:
Tudo que foi já não é.

No mar da imaginação
Onde se perde a mulher
Vagando na imensidão
Do mar que sopra onde quer?
Quem nela acende o desejo
Que se dilui na maré
Que luz no seu mar não vejo
Quem sonha nessa mulher?

Miram-se o mar e a mulher
Na tarde com seu segredo
Ele beijando-lhe o pé
Ela transida de medo;
Ele, eterna natura
Ela, natura que passa
Entre a impureza e a brancura
Que a vida ama e congraça.

Recife, 16 de junho de 2012.

sábado, 23 de junho de 2012

Som e Fúria


Peço perdão a Shakespeare por saquear o título desta crônica de uma das passagens mais citadas, parafraseadas e parodiadas de sua obra. Não bastasse tanto, vou rebaixá-la ao nível do meio-fio em que servilmente medimos nosso cotidiano. A fúria, ou o ruído que sobressalta o ambiente urbano em que nos movemos, há muito suprimiu o espaço e a configuração contextual dentro da qual o som habitava. Como fruir o som e habitá-lo com nossa civilidade e sensibilidade num mundo movido pelo ruído que se tornou compulsório? Como conjugar o som à solidão num mundo cuja superpopulação ocupou o espaço vazio com seu alarido incessante?

O ruído não se impõe apenas nos ambientes mais densamente povoados, como o trânsito infernal das nossas grandes cidades e o shopping center, templo e paraíso da sociedade de consumo. O ruído foi imposto nas clínicas e hospitais, nas igrejas e até nos mosteiros. Talvez em alguma montanha remota, cuja existência ignoro e não foi ainda saqueada por nenhum guia turístico, sobreviva algum mosteiro consagrado ao exercício da religiosidade dissociada do século. Mas até isso me parece duvidoso, já que vivemos num mundo em que a fronteira entre o sagrado e o profano, fundamento da distinção entre a transcendência religiosa e a imanência secular, está se apagando. O padre, o pastor, o oficiante de qualquer seita religiosa, tornou-se um ídolo de massa como um artista pop. Basta lembrar o exemplo do padre Marcelo Rossi. Portanto, o espaço da religião já não é provedor de som e silêncio, já não existe fonte de separação momentânea do século regida pelo recolhimento e a meditação, a solidão impregnada pela corrente mística avessa ao tumulto do século. Saltando da esfera da religião para a da cultura letrada, como entregar-se ao exercício da leitura num mundo como o que acima esbocei? A conversão da livraria em espaço de comércio promíscuo, misto de discoteca, bar e cafeteria, dvdteca e parque infantil, anulou o leitor.

Costumava há alguns anos frequentar a Livraria Cultura, provavelmente a mais poderosa rede de livrarias do país regida por essas novas funções e expressões da cultura radicalmente mercantilizada. Meu dia preferido era o sábado à tarde. Ia à livraria para conferir os novos lançamentos, explorar prateleiras ainda desconhecidas e também comprar livros. Ocasionalmente via e conversava com amigos que já me habituei a encontrar apenas no Facebook. Ora, ninguém explora um acervo sem em algum grau o ler para formar uma noção razoável do que é, da medida em que interessa ao leitor. Portanto, a livraria é a instituição onde compramos livros e portanto é também um espaço de leitura. Como no entanto praticá-la, a leitura, atormentado pelo zum-zum dos consumidores ansiosos, os gritos das crianças que correm e saltam e gritam entre prateleiras, o ruído incessante do rock pauleira vibrando nas paredes e reverberando nos ouvidos sitiados do mísero leitor carente de reclusão e silêncio?

Tentei trocar o sábado à tarde, hoje intolerável, pela noite da terça. No domingo, nem pensar, pois é o dia em que os pais, letrados e iletrados, liberam a criançada para converter a livraria num parque de diversões. Afinal, aonde levá-la numa cidade privada de espaços de associação livre e lazer? As poucas praças e parques que temos, no geral degradadas pelo abuso da população e o descaso dos governantes, são de uso quase exclusivo da população pobre. Os abastados, as camadas possuidoras, refugiam-se nos shoppings e condomínios, também nas livrarias.

Por isso troquei o sábado pela terça à noite. Mas logo constatei desolado que a fúria não poupa o som e a solidão em nenhum dia da semana. Lá estão as crianças gritando e saltando, lá estão os pais e consumidores falando alto no celular, entretidos em conversas intermináveis e indiferentes ao leitor espremido entre as prateleiras; lá, ainda e sempre, vibra o som do rock pauleira ou o pagode. Apertado pela necessidade biológica, o leitor expelido da livraria vai em busca do sanitário – ou banheiro, como reza o eufemismo corrente. É lá, logo descobre, que a fúria é mais ruidosa.
Onde esconder-se na cidade povoada pela fúria? O leitor retorna à livraria e tenta entregar-se à leitura digestiva, que prescinde do som propício à leitura concentrada. Folheia a edição mensal da revista da Livraria Cultura e logo esbarra numa curiosa ironia: o editor dedica o editorial ao tema do barulho. Noutras palavras, deplora e até acusa o ruído dominante nos nossos formigueiros urbanos, como de resto o faço nesta crônica. A ironia consiste, claro, no fato de que é a própria livraria que hoje afugenta o leitor, que o impede de circular civilizadamente no seu espaço. Será apenas ironia ou a inconsciência gerada pelo fetiche da mercadoria, como diria Marx?

E se o leitor tiver por acréscimo a infelicidade de adoecer? Encontrará acaso, em meio à cura da dor e da doença um espaço onde possa se refugiar na leitura, na solidão propícia ao convívio indesejável com a doença? Vá o enfermo a qualquer clínica, hospital ou consultório da cidade. Encontrará uma televisão ligada em todas as salas, sobretudo na sala de espera. Como o que mais fazemos nas nossas instituições de saúde é esperar, não apenas a cura, talvez tenhamos a fortuna de encontrar remédio para a dor de adoecer, mas nunca para a dor de viver privado do som e do silêncio. Portanto, bendita seja a morte, último refúgio do silêncio.

Encerro a crônica com o relato de uma anedota que bem a ilustra. Há anos, provavelmente em 1998, recebi a visita de uma amiga inglesa com quem muito convivi na Inglaterra, inclusive imersos, ela e eu, na atmosfera de som e silêncio, de solidão e confidência. Casada com um baiano, veio ao Brasil e passou cerca de dois meses em Salvador antes de vir encontrar-me em Recife. Levei-a, logo que chegou, para conhecer a Praia dos Carneiros, então ainda uma praia quase privada. Graças à amizade generosa de Zildo e Léa Rocha, pude dispor da chave da casa onde tantas vezes, também na companhia do nosso amado Daniel Lima, vivi momentos preciosos de recolhimento, solidão e convívio prazeroso com esses e outros amigos.

Chegamos ao entardecer e logo nos acercamos do mar. De repente, a lua cheia emergiu do fundo das águas recobrindo a paisagem com sua luz majestosa. Foi um momento de beleza miraculosa e indescritível. Voltando-me para minha amiga, vi lágrimas escorrendo pela sua face iluminada. Perplexo, perguntei-lhe por que chorava. E ela me respondeu com estas palavras que ficaram gravadas na minha memória de brasileiro perdidamente desamparado de som e silêncio: “Fernando, I´m listening the silence in Brazil for the first time”. Hoje isso seria impensável na própria Praia dos Carneiros, que há anos entrou no circuito turístico do Brasil.

Recife, 2 de junho de 2012.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Trânsfuga


Sortilégios do tio que um dia partiu
Sem malas, mapa, um destino
Um rastro que a família
pudesse acaso seguir.
Tal como o tio
raspar com as armas da vida impura
Os elos de sangue, lei e lugar.
Ser na cidade sem rosto
Um outro por mim transfeito
Um nome sem sobrenome
Ou um outro que eu inventasse.
Nas veias deter o fluxo
Do sangue de que provenho.
Ousar com orgulho trair
A norma do clã, do grupo
E sobre a pele liberta
Gravar meu nome: indivíduo

Fernando da Mota Lima.
Buenos Aires, janeiro 1995.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Visita da Memória


Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Álvaro de Campos.

Ah, memória que não sossega
viva no amor que me nega
viva até quando esquecida
como se a vida vivida
fosse o que resta de vida.

O passado na praia me visita
de braço com os passos da memória.
assoma como um ranger de portas que se prolonga
uma dor de longe, de tão longe
crispando a pele escura da memória.
Entre o presente deserto e a bruma adiante medida
eis se interpõe sua sombra
tolhendo-me os passos ávidos de fuga ou futuro.
Eu dele sempre fugindo, a ano somando ano
cristalizando num engano
minhas fugas sempre vencidas.

Portas rangendo e o seu vulto
por toda a praia se estende.
Na hora em que sou eu, eu só desamparo
vem sobre mim abatendo sua irreparável matéria.
Nada na fronteira do presente
Nada no futuro configurável
segrega um vago de luz ou me infunde
a mais remota esperança
passível de contrapor ao peso da sua facticidade
sequer um grama de sonho
o rotineiro possível a outros sempre possível.

Sobre mim desce a memória, me visita
vai dispondo pela casa os objetos
aderentes à poeira, vermes, mofo,o meu suor.
Toda minha precária construção já desmorona:
caem janelas, as portas caem
e tudo que era engano range e cai.
Onde agora reina a memória absoluta
resta o sangue dessa visão coagulada
e o cheiro de mofo subindo dos porões irrespiráveis.

Fernando da Mota Lima.
Porto de Galinhas, agosto 1987.
Reescrito em setembro 1995.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Igarapeba Revisitada


Outra vez te revejo
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Álvaro de Campos.

Tuas ruas ainda as mesmas
quem sabe mais tristes, mais que desoladas
mais a inexorável morte cujo espectro pelo teu corpo se alonga.
Ando-te com medida lentidão e quase medo
como se teu ventre segregasse minas
tuas águas pântanos, tuas ruas túmulos.
Ando-te, Igarapeba, como se estranhos fôssemos.
Nos teus quintais procuro minha infância
na Rua do Comércio a minha casa
nas calçadas vestígios de um tempo
para sempre em tuas noites dissolvidos.
Iniludível a exatidão desta luz que nos cega:
estranha és para mim
estranho sou para ti.

De ti o tempo tão-só reteve
quando mesmo não agravou
a face mais brutalizada e triste, Igarapeba.
De ti este rio, murmúrio último
da eternidade que te sobra.
De ti a musculatura retesada
desde o princípio vencida
a errar solitária por essas ruas
gestadas do acaso e vão propósito.
De ti as casas ensombrecidas
em vagos corredores empilhando
memórias de família e agregados.
A luz fosca filtrada nos telhados
curvados sob a noite do sem-tempo.

Meu rosto, rompida fuga no tempo
eu o procuro na superfície das águas moventes
mas o leito é uma só compacta viscosidade
as águas a irrespirável matéria sobrante
de naufrágios e invernos sem reparo.
Teus homens, Igarapeba, o teu legado de sangue, são mortes
no desde-sempre-sem-som.
Conservam ainda, ó mistério, nula aparência de vida:
andam, conversam, mastigam, cochilam
entre a rotina e o sono.
O tempo é um tempo neutro de resignação e paciência
de desesperança e diluída memória.

Teus homens há muito estão mortos, Igarapeba.
Há entanto neles alguma coisa que semelha vida.
Alguns falam, me cumprimentam
outros - teimosa humana matéria! - até sorriem
um perplexo sorriso de conformação.
Teus homens, ébrios fantasmas, sobre as ruínas tombados
são pó poeira ruína
lutando nos muros e esquinas
contra a ciência da pedra
essa indomada matéria interpelando no tempo
a impotência dos que te habitam.

Teus homens há muito estão mortos, Igarapeba
e entanto a ti me devolvo
já tantas mortes morridas
já tantas vidas sofridas
para enfim andar-te certo, dolorosamente certo
de que meus passos estão já tão mortos
quanto estão teus mortos
minha vida viva quanto tuas vidas.

E eu que errei tantos dias
anos estradas sem mapas
para nas mãos tomar-te como se foras
ainda a mesma, ainda a que neguei
rasgo teu ventre à cata de raízes
que foram minhas sem que as quisesse.
A ti regrido mais que a mim e a tudo
e te devasso desnudo e te esquadrinho.
Mas tua face, a única sobreviva
é só o pó o poço
onde calaste o tempo o rio a minha infância
eco sem voz na memória.

Fernando da Mota Lima.
Recife, outubro 1975.
Reescrito em 14 outubro 1995.

domingo, 10 de junho de 2012

Primeira Memória


Mormaço e o sol da tarde
vestindo a casa deserta.
Ela tomava-me a mão
e me embalava guiando
meu corpo e sob ele deitava
na velha cama rangendo.
Gosto de quê, não-sei-quê
um gozo nunca vivido
o corpo me possuía.

Um dia, a tarde dormia
num sobressalto ouvi
mamãe aos gritos chegando
raivosa, esmurrando a porta.
Dela privou-me, bateu-a
por me manchar a inocência.

E ela chorando partiu
curvada como que ao peso
da mala que carregava
ao longo do meu quintal
meu paraíso perdido.

Fechado em dor, desamparo
vi-a na tarde sumir
fluida matéria borrada
por entre meu susto e lágrima.
Do fundo da minha dor
do gozo subtraído
o ódio surdo crescendo
em carne se constelando
de cinza vestiu minha mãe.

Recife, 15 outubro 1985.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Meu pai


Meu Pai

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.
Drummond.

Meu pai era dois olhos míopes
mãos largas pensas
lentas pesadas
longas suspensas.
Tinham os gestos do meu pai invariável delicadeza
indefesa mansidão, curso em contraste
à linha que nele era rudeza
vulto a mover-se
em currais pórticos
pontais porteiras
canaviais.
XX
Meu pai era duas pernas esquecidas
na viagem da cadeira de balanço.
Para sempre se gravaram nas retinas do menino
os ritmos desenhados pelas pernas
indiferentes ao tempo e à fadiga das estradas:
para lá, para cá.
Suas pernas ondulavam ritmando movimentos que transcendiam
minha medida de finitude e fato.
As pernas do meu pai
o corredor longo mais que o metro e os dias
o jornal e Getúlio Vargas
as cotações do açúcar que ele lia
a rua e a tarde
o quintal e o rio
a faixa de luz atravessando a porta
tudo era a secreta e íntima sensação
de minha eternidade para sempre morta.
XXX
Meu pai era a vigília do meu sono
o vulto protetor que me cobria
quando sonhos agitados me retorciam os lençóis.
Meu pai era o coração cúmplice
das perversões da infância.
Era o braço que não lembro erguido
para o golpe ou soco.
Era a comoção oprimida
desamparada
que vi em idade e ruga repontando sobre a face
onde a fuga de minha mãe para sempre imprimiu a sua dor.
Meu pai era pai, amigo
depois a mãe que não tive.
IV
Hoje meu pai é um quarto sombrio.
Um quarto pode ser o abrigo de um homem.
Meu pai, porém, viaja agora para além dessa medida.
Do que ficou, como medir um ser: homem?
Tudo é memória, despojos
imagens trepidando à flor do tempo
a quase invisível mancha de antigas fotografias.
Meu pai hoje é um quarto sem móveis.
Habitam-no medo, fantasmas
solidão e morte
ruas desertas.
Meu pai tem chorado muito.

Recife, 17 outubro 1979.
Reescrito em 14 outubro 1995.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Love Story


Mamãe ficou nos retratos.
Ali suspensa e ausente
seu corpo alto, nervoso.
Um sonho de paz diviso
nas desbotadas imagens
onde inteira repousou.

Mamãe errou de amores
errou de filhos, marido
da vida que a consumiu.
Embora tanto fugisse
de si, do que a retinha
na só fechada medida
do código, dor de ser mãe
de crias que não criara
mamãe em nada se achou
em metro nenhum mediu
a evanescente medida
do sonho em que nos medimos.

E entanto ia, teimava
em ir além do seu erro
que apenas se repetia.
E no meu pai desprezava
um fraco modo de amor
que o seu vigor repelia.

Que estranha lei ou acaso
na mesma casa casou
duas carnes assim hostis?
Um dia eis fatigada
do erro sem solução
na solidão repetido
transpôs mamãe a fronteira
última das convenções.

Meu pai, cabeça curvada
bebia, se dissolvia
num só silêncio, no nada.
Um só pesado fantasma
curvado pisava insone
as pedras do corredor.
Minha infância ficou muito triste.

Fernando da Mota Lima.
São Paulo, 25 julho 1980.
Reescrito em 15 outubro 1995.