quinta-feira, 7 de junho de 2012
Meu pai
Meu Pai
Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.
Drummond.
Meu pai era dois olhos míopes
mãos largas pensas
lentas pesadas
longas suspensas.
Tinham os gestos do meu pai invariável delicadeza
indefesa mansidão, curso em contraste
à linha que nele era rudeza
vulto a mover-se
em currais pórticos
pontais porteiras
canaviais.
XX
Meu pai era duas pernas esquecidas
na viagem da cadeira de balanço.
Para sempre se gravaram nas retinas do menino
os ritmos desenhados pelas pernas
indiferentes ao tempo e à fadiga das estradas:
para lá, para cá.
Suas pernas ondulavam ritmando movimentos que transcendiam
minha medida de finitude e fato.
As pernas do meu pai
o corredor longo mais que o metro e os dias
o jornal e Getúlio Vargas
as cotações do açúcar que ele lia
a rua e a tarde
o quintal e o rio
a faixa de luz atravessando a porta
tudo era a secreta e íntima sensação
de minha eternidade para sempre morta.
XXX
Meu pai era a vigília do meu sono
o vulto protetor que me cobria
quando sonhos agitados me retorciam os lençóis.
Meu pai era o coração cúmplice
das perversões da infância.
Era o braço que não lembro erguido
para o golpe ou soco.
Era a comoção oprimida
desamparada
que vi em idade e ruga repontando sobre a face
onde a fuga de minha mãe para sempre imprimiu a sua dor.
Meu pai era pai, amigo
depois a mãe que não tive.
IV
Hoje meu pai é um quarto sombrio.
Um quarto pode ser o abrigo de um homem.
Meu pai, porém, viaja agora para além dessa medida.
Do que ficou, como medir um ser: homem?
Tudo é memória, despojos
imagens trepidando à flor do tempo
a quase invisível mancha de antigas fotografias.
Meu pai hoje é um quarto sem móveis.
Habitam-no medo, fantasmas
solidão e morte
ruas desertas.
Meu pai tem chorado muito.
Recife, 17 outubro 1979.
Reescrito em 14 outubro 1995.
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belo seu poema, Fernando. bonitos seus retratos do seu pai. para cada tempo do seu pai, um retrato seu. gostei muito. bjo.
ResponderExcluirLindo poema Fernando. Amei. Bj.Lillian
ResponderExcluirMuito bonito o poema para seu pai, Fernando. Abraço, Helga
ResponderExcluirMuito grato pela leitura, Helga. Bom saber que você gostou.
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