Mostrando postagens com marcador Música. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Música. Mostrar todas as postagens
domingo, 24 de novembro de 2013
Nomes próprios e impróprios II
Postei no meu blog uma crônica sob o título acima e alguns amigos tiveram a generosidade não apenas de a ler, mas também de a comentar no Facebook. Minha reação imediata foi responder também na forma de um breve comentário. É parte do meu código de ética intelectual considerar sempre a opinião do leitor. Afinal, é para ele que escrevo. Não importa o fato de ser ou não um escritor profissional. Aliás, esclareço que sou apenas um amador. Uso o termo no seu sentido original, infelizmente corrompido pelo mau uso, como ocorre com tantos outros. Bastaria pensar em cínico, anarquista, amante... Os cultores da etimologia poderiam citar uma infinidade. É um dos capítulos apaixonantes da história de qualquer língua. Infelizmente, falta-me erudição para escrever sobre o assunto.
Peço perdão pela digressão impertinente e retomo o veio do artigo. Como dizia, é parte do meu código de ética intelectual conceder a devida atenção ao que o leitor me escreve, notadamente quando me critica. Elogio importa muito, claro, mas ninguém discute elogio. O autor agradece, pois é o que busca recolher das leituras, mas não vai além disso. Os mais discretos simplesmente silenciam. Como sabe o bom leitor, o silêncio, no caso, é sintoma de discrição, de agradecimento sem palavras, não desapreço. A crítica, contrariamente, merece maior consideração. Se o autor não busca apenas assentimento irrestrito ou aplauso, é graças à crítica que ele dialoga explicitamente com o leitor. É o que cuidarei de fazer neste artigo. Em suma, tentarei esclarecer melhor meu ponto de vista com relação ao uso e abuso dos nomes próprios que os brasileiros adotam.
Não sei de nenhum escrito de alguma importância que não contenha algum grão intencional de ambigüidade e ironia. Esclarecendo melhor, aludo precisamente à produção intelectual inscrita no âmbito do que designamos como ciências humanas ou ainda humanidades, aí incluída a produção artística. Justificando o que acabo de escrever, é da natureza desse campo, o das humanidades e das artes, certo grau ontológico de indeterminação. Isso decorre da própria natureza do objeto considerado, que é noutras palavras a natureza humana investigada no convívio social (que é da competência da sociologia, da antropologia etc) e noutros modos de ser humano. Por mais que o estudioso ambicione compor um discurso unívoco, não importando o quanto seja genial, esbarrará sempre no que há de insondável, ambíguo, ambivalente ou simplesmente indeterminável na natureza humana.
Devido às razões grosseiramente esboçadas no parágrafo precedente, há sempre algo de ambíguo e irônico no tipo de discurso a que me refiro, mesmo quando o autor dá o melhor de si visando alcançar o máximo de precisão e transparência. Além disso, o autor consciente e inventivo recorre intencionalmente à ambigüidade e à ironia como dispositivos retóricos passíveis de distender as camadas de significação do texto. Autores como Shakespeare, Machado de Assis, Auden, Drummond e todos os grandes são por definição ambíguos e irônicos. Quanto maior a densidade e força de sobrevivência no tempo atestadas na obra, maior a sua carga de ambigüidade e ironia. Disso decorre ainda que a obra dilata seu poder de permanente atualização e recontextualização semântica graças também à colaboração do leitor inteligente, aquele que projeta luz nas camadas de sentido atual ou potencial da obra.
Mas que diabos tudo isso tem a ver com uma mera crônica de um autor amador postada num blog quase anônimo? Reconheço que muito pouco. Se me perdi através de digressões tão tortuosas, foi apenas para sugerir como mesmo uma mera crônica pode suscitar leituras parciais ou ambíguas. E é graças a esse tipo de leitura que me sinto motivado a retomar o assunto, espichá-lo, melhor esclarecê-lo, ou pelo menos melhor esclarecer o leitor acerca do que penso.
Elizabeth Carneiro, por exemplo, afirma que a leitura da minha crônica acordou na sua memória a leitura de dois livros que qualifica como muito bons: um de José Ramos Tinhorão e outro de Mário Souto Maior. Embora não vá além disso, ponderei se acaso teria associado minha crônica a estes autores supondo que endosso a perspectiva radicalmente nacionalista do primeiro e a concepção de pesquisa folclórica do segundo.
Já frisei que ela não afirma nada disso. Sou eu que, leitor inconveniente, aproveito o comentário para alongá-lo em considerações que me interessaria fazer com o propósito de esclarecer melhor meu ponto de vista sobre a questão dos nomes próprios. Ressalto portanto que nada tenho em comum com o nacionalismo radical e até intolerante de Tinhorão. Li alguns dos seus livros sobre música e admiro sua dedicação de pesquisador apaixonado pela história da nossa música popular ainda tão pobremente estudada e documentada. Sua perspectiva, porém, é o avesso da minha. Se acaso alguém me leu supondo que minha crítica à adoção colonizada de nomes estrangeiros é feita em defesa do nosso renitente nacionalismo cultural, retruco que me leu erradamente. Há de resto na crônica algumas breves alusões ao nacionalismo cultural que bastam para bom entendedor.
Tinhorão nunca foi capaz de compreender ou simplesmente suportar a bossa nova, sem dúvida a mais refinada e fecunda ruptura modernizante da nossa música popular, devido a seu nacionalismo de viseiras, à intolerância da sua concepção redutoramente nacionalista. Parafraseando o velho ditado popular, o cão ladra e a caravana passa. O cão, explicito, é o crítico de viseiras, incapaz de ver além do muro compacto com que fecha as fronteiras e linhas de comunicação entre as culturas; a caravana é a bossa nova, que passa no sentido de ir além, de continuar viva na história da nossa cultura e portanto sempre se renovar a cada retomada, a cada atualização feita pelas gerações sucessivas de artistas e ouvintes.
É verdade que alguns artistas mais americanizados ou colonizados daquele momento, Elizabeth cita nominalmente Dick Farney e Johnny Alf, adotaram nomes artísticos inspirados na cultura dos Estados Unidos. Mas a analogia com o fenômeno relativo à adoção dos nomes próprios que critico é infeliz, ou inapropriada. Por quê? Porque o exemplo que ela menciona é um mero detalhe dentro do processo complexo de relacionamento da bossa nova com a música americana. Ele serve para desqualificar a bossa nova apenas na apreciação de críticos estreitamente nacionalistas como Tinhorão, que ouve o galo cantar e no entanto não tem ouvido afinado para traduzir o real sentido da música.
A bossa nova foi impiedosamente atacada por críticos do tipo de Tinhorão. Tom Jobim, nosso compositor supremo, foi também impiedosamente desqualificado por Tinhorão e Cia. A crítica é de uma cegueira ideológica tão absurda que cabe perguntar se críticos desse tipo têm pura e simplesmente sensibilidade musical. Notem que não me refiro a conhecimento de técnica e teoria musical, a cultura refinadamente musical. Fico num limite bem mais modesto. Como é que alguém que de fato conhece o conjunto da obra musical de Tom Jobim pode acusá-lo de ser americanizado (ou vendido aos dólares americanos, como afirmou Ariano Suassuna, nacionalista talvez ainda mais intolerante do que Tinhorão)?
Se queremos pregar origens e influências na música de Tom Jobim, é claro que ele bebeu nas fontes do jazz e da grande tradição musical americana. Também bebeu nas fontes do impressionismo musical francês e noutras fontes. Isso tudo é de uma tolice e de uma intolerância intragáveis. Como todo grande artista, Tom tinha antenas muito sensíveis e livres. Portanto, captava sons de todas as procedências. Foi isso o que fizeram gênios musicais ainda maiores, como Bach e Mozart. Se na época destes as formas de intercâmbio musical e estética eram já correntes, o que dizer de um compositor do século 20? Não importa quem ouviram, mas o que fizeram do que ouviram, a forma como recriaram influências e sugestões musicais. De resto, se é para falar em influência, há muito mais Villa-Lobos e muito mais tradição musical brasileira em Tom Jobim (modinha, samba, choro etc) do que música americana.
Concluindo, não argumentei contra a macaqueação dos nomes de procedência estrangeira baseado em nenhuma ideologia nacionalista. Noutras palavras, sou internacionalista em cultura. Mas é evidente que sou antes de tudo brasileiro. Por isso me chamo Fernando e falo a língua portuguesa e dela me valho para escrever e melhor me traduzir e comunicar. Por melhor que falasse inglês ou qualquer outra língua, é óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, que minha língua é minha pátria, minha frátria... Bem, aqui o leitor nota que já estou citando Caetano Veloso. Por isso ainda, se tivesse um filho daria a ele um nome extraído da minha língua. É certo que me sentiria ridículo, me sentiria um colonizado se acaso batizasse um filho meu como William ou Giselle, Peter ou Kate, Hulk ou Isabeli (sic). Acrescentaria ainda que em muitos casos é compreensível e mesmo justificável a adoção de nome próprio estrangeiro. Por exemplo: no caso dos casais compostos por membros de nacionalidades diferentes.
Recife, 22 de novembro de 2013.
segunda-feira, 8 de abril de 2013
Tereza da praia
domingo, 13 de janeiro de 2013
Samba em Prelúdio
Luciano (voz) e Fernando (voz e violão) cantando Samba em Prelúdio, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Vídeo gravado, sem ensaio, no apto. de Mariângela Ribeiro e Giulia. Recife, novembro de 2012.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
London London
Fernando cantando London London, de Caetano Veloso, no apartamento de Mariângela e Giulia. Vídeo gravado em homenagem a Julia Oliveira em novembro de 2012.
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Memórias Musicais II

Apaixonado pela música, como anotei na primeira parte desta crônica, logo criei o hábito de copiar num caderno todas as letras cantadas por Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Anísio Silva, Ângela Maria, Orlando Dias, Caubi Peixoto e muitos outros. O desejo de cantar e aprender novas canções era tão grande que passei a esconder-me nos fundos da loja da minha tia, onde ficavam as instalações do serviço de alto-falante e a discoteca, e lá me perdia durante horas copiando as letras e cantando-as. As noites de lua cheia eram de uma beleza indescritível. Naquela vila remota, sitiada pelo canavial e privada de luzes artificiais, a lua derramava sua luz esplêndida sobre toda a paisagem apreensível pelo meu olhar maravilhado. Uma estranha comoção lírica me tomava quando erguia o olhar para a lua e em seguida girava-o sobre a paisagem recoberta por casas, canaviais, o rio, as pedras, o lajedo iluminado às margens do Pirangi. Então deitava-me sobre os lajedos, com os olhos extáticos presos à luz da lua e cantava as canções mais românticas e dolentes que sabia. Mais que isso, cantava imitando a voz do intérprete. Eram momentos de solidão epifânica vividos sem que eu soubesse o que era a epifania produzida pela arte.
Que me lembre, a solidão harmoniosa, elo inefável de comunhão entre mim e o ambiente deserto, esse acordo sutil entre mim e minha subjetividade, esteve na origem diretamente associado à música. Era a música cantada na solidão dos lajedos nas noites de lua cheia, assim como a Ave Maria ouvida com solenidade mística na hora do Angelus. Quando ouvia a Ave Maria de Bach e Gounod, introito místico de anunciação da noite, afundava num estado de melancolia serenamente recoberto pela beleza misteriosa da música. Esse momento se tornou tão precioso e comovente na minha infância que a ele me afeiçoei convertendo-o em hábito pontual. Mal escurecia, mal pressentia a hora do Angelus anunciada numa voz de soprano cantando a Ave Maria, e logo quietamente me recolhia aos degraus da calçada e ali me sentava contrito, rendido à beleza mística da música.
Nelson Gonçalves era o melhor cantor do mundo. Acreditava nisso como acredito na luz do sol e por isso aprendi todas as músicas que cantava imitando-o com a servilidade inconsciente de um papagaio. Na minha idolatria ingênua, chegava a me dizer que nunca existiria no mundo cantor igual. Enquanto menino e adolescente, essa atitude se renovou no culto de outros artistas da música, do cinema, também de jogadores de futebol. Chegou porém o dia, não me lembro precisamente quando, em que me libertei dessa idolatria cujas raízes são nitidamente eróticas, além de idealmente projetarem no objeto de culto tudo que não somos ou gostaríamos de ser. Chegou o dia em que, sem explicação precisa, libertei-me de todo esse culto que é parte de qualquer sociedade ou tribo, mas que a sociedade do espetáculo elevou a dimensões sem precedente. Hoje tenho a convicção de que a condição do homem subjetivamente livre é inconciliável com qualquer forma de culto subserviente orientada não importa para que objeto: um deus improvável, o artista mais sublime, o escritor mais extraordinário, o pensador mais profundo, o ídolo pop, o líder religioso ou político, o astro supremo da mídia... O homem livre jamais confunde a admiração, dedicada a quem dela é merecedora, com a idolatria.
Falando ainda dos ídolos musicais do mundo em que vivi, certamente chocaria o leitor saber que Luiz Gonzaga não fazia parte dos objetos de culto na minha infância e adolescência. O fato é ainda mais chocante se consideramos o lugar supremo que passou a ocupar em toda a cultura de massa nordestina e se a isso acrescentamos que sua música está enraizada nas tradições rurais brasileiras. O fato encerra significações sociológicas que merecem um breve registro. Antes de tudo, voltando às minhas memórias, Luiz Gonzaga era parte apenas do repertório obrigatório durante o ciclo das festas juninas. Aí ele imperava sem concorrente. Mas era só. Penso que um dos fatores de resistência à sua música derivava do preconceito de classe e região.
Talvez muita gente hoje esqueça que sua música passou a integrar o repertório e os padrões de gosto da classe média urbana graças ao movimento tropicalista. Foi o meu caso. Foi exatamente por força da influência do tropicalismo, que bravamente desafiou preconceitos e noções estabelecidas de qualidade estética, que comecei a ouvir a música de Luiz Gonzaga. Lembro precisamente que isso começou com as interpretações renovadoras de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. É também verdade que a era dos festivais de música, dominados ideologicamente pelo nacionalismo musical que privilegiava fontes musicais rurais e notadamente nordestinas, valorizava indiretamente a música simbolizada na figura de Luiz Gonzaga. Digo indiretamente porque a música dos festivais, apesar das fontes e tradições que exprimia, era recriada por artistas de classe média urbana e universitária num momento em que a incipiente montagem do nosso sistema de cultura de massa era ainda dominada pelos valores da elite urbana.
Apreciando a questão da perspectiva do presente, é claro que a dominação dos valores da elite era superficial e apenas momentânea. Basta observar agora quais são os valores dominantes da cultura de massa, que forma de cultura de massa prevaleceu no Brasil. Apesar da extraordinária expansão do capitalismo, agora globalizado de forma irreversível, de décadas de urbanização, da universalização dos meios de comunição de massa, da educação de massa e da revolução tecnológica extensiva em graus variáveis a todas as esferas sociais, o baixo padrão dominante de cultura é patente. Diria mais. Diria, para quem não receia ser levianamente confundido com um elitista desprezível, que o padrão da nossa cultura de massa constitui uma ofensa ao receptor inteligente e cultivado. O que prevalece no sistema midiático, sobretudo na mídia aberta, na que expressa os valores da maioria e por isso dá as cartas dos níveis de audiência, é o que há de pior nos valores dos diferentes grupos e classes constituintes da sociedade global.
Retendo a argumentação no domínio desta crônica de memórias, nossa música de qualidade refugiou-se, dentro do processo de segmentação cultural imposto pelos interesses e a complexidade do sistema dominante, em nichos somente acessíveis a uma minoria bem formada e portanto autônoma o suficiente para mover-se por conta e escolha própria através dos labirintos da cultura midiática. A minoria de qualidade, com perdão do truísmo, já que maioria e qualidade são incompatíveis, sobrevive em nichos tão inacessíveis que é preciso um bom trabalho de garimpagem para chegar a essas pérolas. Como não sou navegador frequente da internet, sei de algumas e descobri outras graças a alguns amigos melhor informados, ou mais pacientes no exercício da garimpagem; de outras, através do acaso afortunado. Seria contudo insensato esperar que essas pérolas tivessem lugar na televisão e na rede de consumo de massa.
Reato o fio volúvel da minha memória, demasiado poroso às digressões e desvios tecidos por fios associativos insondáveis, apenas para arrematar a crônica. Contraí pneumonia num certo dia do segundo semestre de 1967. Prisioneiro do repouso forçado, vi-me de repente atado a uma cama na sala de visita da casa onde morava a minha família. Como esta era bem maior que a casa, nunca desfrutei do privilégio de ter meu próprio quarto, o quarto só meu pelo qual durante muitos anos ansiei. Portanto, não precisaria ser feminista para compreender muito bem o sentido da expressão “um quarto todo meu”, que com a devida variável subjetiva confere título a uma das obras mais celebradas de Virginia Woolf. Um acaso feliz prendeu-me à cama diante da televisão precisamente quando começou o terceiro festival da música popular brasileira produzido pela TV Record. Foi o mais importante da era dos festivais de música. Foi também o ponto de inflexão da minha conversão apaixonada à MPB.
Diante dos meus ouvidos e olhos deslumbrados, passei a conhecer verdadeiramente a música da melhor geração musical que já tivemos: Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Francis Hime, Dori Caymmi, Sidney Miller e outros um pouco mais velhos ou mais jovens. Devo todavia acrescentar que o fato verdadeiramente revolucionário na minha obscura trajetória de amante da música ocorreu um pouco mais tarde. Entusiasmado ao adentrar aquele mundo musical que me penetrava os ouvidos e a imaginação lírica, passei a conhecer tudo que podia dessa tradição que desembocou na geração acima, protagonista dos festivais de música. Foi assim que num certo dia ouvi “Chega de saudade” e senti o choque de saber que Tom Jobim e João Gilberto existiam. Depois disso, sem exagero, aposentei Nelson Gonçalves e quase toda a música que amava ouvir e cantar durante minha infância e adolescência.
E assim, repetindo Drummond, cansei-me de ser eterno e então me tornei moderno. Ninguém sabe bem o que é isso, muito menos eu, mas quem resiste à fluida sedução dessa palavra tão desejada e contestada que, a troco de tudo e de nada, foi reiteradamente invocada durante o século vinte? Tanto a invocaram e ainda o fazem que, na falta de alguma exatidão conceitual, passamos a recorrer aos prefixos pré e pós também a troco de tudo e de nada. E por aí vamos nos desentendendo. Não importa. Importa apenas afirmar que aprendi a ser musicalmente moderno com Tom Jobim e João Gilberto. Depois deles, atirei o repertório da Amplificadora Santo Antônio na lixeira da história, como prezavam desprezivelmente decretar certos marxistas detentores das leis implacáveis da deusa História.
O que a experiência me ensinou, se com ela aprendi alguma coisa, é que convém dar razão ao humor cético e corrosivo de Millôr Fernandes: a história é apenas uma istória. E a memória é uma recriação ficcional do memorialista, acrescento eu. Longe de mim sequer insinuar, ao compreender a memória nestes termos deliberadamente provocativos, que tudo que acabo de escrever é pura invenção da minha imaginação. A matéria bruta da crônica são fatos e experiências vividos e retidos na memória. O que intento traduzir, ao afirmar que a memória é uma recriação ficcional, é a natureza do processo de composição de qualquer texto biográfico, diria por extensão qualquer texto baseado na memória e nos múltiplos modos de documentação do passado. Esse processo é sempre uma recriação parcial. Além de ser uma faculdade de poderes falíveis, como tudo que é humano, a memória é refém de uma infinidade de armadilhas, muitas inconscientes, que sempre deformam o vivido. Fico todavia por aqui. Ir além disso seria vestir-me da presunção de ser um teórico da história ou da psicologia.
Recife, 16 de agosto de 2012.
sábado, 8 de setembro de 2012
Memórias Musicais I

Who hears music, feels his solitude
Peopled at once.
Browning.
A música é talvez o mais poderoso catalisador da memória. À parte sua beleza intrínseca, ela converte o momento em duração enraizada na memória. Dado o fato de que povoa, como foco ou fundo, grande parte do que vivemos, impregna não raro de forma inconsciente fração significativa da nossa vida. O avanço extraordinário da tecnologia que a registra, difunde e amplifica concorreu, em escala sem precedente, para fazer com que penetrasse de múltiplas formas o cotidiano que vivemos. Afinal, agora ela está em tudo, sobretudo numa cultura privada de regulação, como é o caso do Brasil e notadamente do Nordeste. Isso a torna hoje, para gente do meu tipo, antes de tudo indesejável e até irritante, pois o que passamos a ouvir, de ordinário contra nossa vontade, não passa de lixo ruidoso. A onipresença da música inclassificável, por ser boçal e ensurdecedora, suprimiu as condições ambientes indispensáveis à recepção e à interpretação da música que importa para a minha vida, pois esta é indissociável do silêncio e da solidão.
A música é a nota dominante da minha memória, pois o próprio amor, no que contém de mais belo e memorável, está com frequência associado à canção que ouvia enquanto dançava, ou na amada me perdia dentro da penumbra do quarto ou da sala, à explosão de gozo e momentâneo apagamento do ser, ou fusão mágica que se esgota na duração do instante. Está ainda associada ao trânsito lírico dentro da noite, quando Recife e outras cidades eram propícias à livre expansão do amor fora do círculo privado da casa e do motel. Aludo a um tempo, não muito distante, em que ainda não se cavara o fosso intransponível entre a rua e a casa, entre o território público e o privado. Está ainda associada às festas que variavam da euforia, da diluição ruidosa dentro do grupo, à meia-luz íntima dentro da qual os corpos se respiravam e se apertavam antecipando a penetração e o gozo indizíveis. A música, até quando harmônica e ritmicamente “fria”, é expressão suprema do princípio do prazer e das pulsões dionisíacas.
Agora, entretanto, recuo no tempo, pois escrevo apenas uma crônica de memórias centradas na música, no lugar que ela ocupou na minha vida desde a infância. Os anos mais significativos da minha infância vivi-os na vila de Igarapeba. Um dia escrevi uma crônica sobre uma dessas enchentes previsíveis que devastam cidades e vilas do Brasil. Como Igarapeba, apesar de sua obscuridade, é também vítima dessas catástrofes que não queremos prevenir, dela fiz o objeto da minha crônica, antes de tudo uma crítica de fundo sociológico às nossas misérias seculares. Mas incorri na ofensa de qualificá-la como Sibéria tropical e outras analogias metaforicamente justificáveis. Não obstante minha consciência do quanto somos governados por paixões etnocêntricas, cuja estupidez não resiste a um parágrafo de apreciação racional, perturbaram-me as pedras e o orgulho ferido dos igarapebenses caindo sobre meu telhado de vidro.
Encurtando o enredo (que está documentado na crônica e devidos comentários postados no meu próprio blog e sobretudo no blog Amálgama), eis um conselho que dou de graça ao leitor avesso a brigas inúteis e insolúveis: nunca se atreva a criticar sua terra de origem. O orgulho ferido dos conterrâneos, não importando o quanto haja de verdade na sua crítica, jamais o perdoará. Em suma, a razão e o etnocentrismo tacanho nunca se entendem.
Pessoas que vivem infelizes dentro da atmosfera poluída, violenta e ruidosa das grandes cidades tendem compreensivelmente a idealizar a vida dos vilarejos e cidades pequenas. É um fenômeno tão compreensível e universal que se espelha tanto nas memórias nostálgicas das pessoas comuns quanto na mais alta tradição teórica apreensível no estudo da sociologia, da antropologia e da psicologia social. O exemplo mais célebre consiste na tipologia de farta e longa recepção crítica proposta por Ferdinand Tönnies: gemeinschaft e gesellschaft, isto é, comunidade e sociedade. O primeiro tipo, a comunidade, caracteriza-se pelas relações homogêneas amplamente baseadas nos vínculos de parentesco e em formas orgânicas de convívio entretidas por uma população restrita. Essa população confunde-se praticamente com os elos da vizinhança dentro de um mundinho onde todos se conhecem. O segundo tipo, em oposição, é regido pela divisão do trabalho, o individualismo, a competitividade, as relações impessoais e abstratas, em suma, por processos sociais geradores de solidão e isolamento, perda de vínculo significativo com o semelhante e outras consequências indesejáveis.
Embora não negue o fundo de verdade inequívoco contido na tipologia acima sumariamente descrita, vivi nos dois mundos e não tenho dúvida de que, apesar de tudo, prefiro de longe o mundo da cidade, a sociedade com tudo que contém de bom e de ruim. O ideal, claro, seria fundir o melhor dos dois tipos num tipo único de sociedade. Aderir a essa fantasia é renunciar à compreensão realista da sociedade, ou wishful thinking, como dizem em inglês. Comigo não, violão. Confesso odiar a cidade em que vivo, entregue a uma classe dirigente estúpida e corrupta que a empurra a passos acelerados para um inferno urbano nitidamente visível. Daí à regressão para uma comunidade idílica e fantasiosa... bem, a passada é grande demais para as pernas curtas das minhas fugas insensatas.
Vivi numa vila o suficiente para saber o quanto doem e frustram as rotinas rangendo ao longo do dia previsível na sua miudeza, na pobreza e miséria irreparáveis, no tédio abafante do dia sob o sol e da noite imersa em trevas. Que há de tão desejável num mundo de horizontes literalmente apertados, de vidas sem perspectivas diluindo-se na fofoca, na polícia que cada vizinho exerce sobre o outro, numa prisão comunitária cuja eficiência e olho inescapável tornam a instituição policial prescindível? Que há de tão desejável num mundo onde a tradição e o costume anulam qualquer veleidade de liberdade individual? Isso é tão verdadeiro que todos que migram para a cidade grande nunca mais voltam, embora zelosamente desatem o fio fantasioso da nostalgia quando o presente se torna irrespirável ou mesmo banalmente infeliz. Comigo não, violão. Logo, o olho do leitor é torto se o leva a confundir esta crônica de memórias com nostalgia, história social em registro memorialístico com regressão lírica ao passado.
A música – ainda que barata, como a qualifica Drummond num poema – foi desde cedo uma clareira aberta dentro do mundo opressivo em que cresci. Quis um feliz acaso que minha tia Vitória, comerciante viúva estabelecida na rua principal da vila, fosse proprietária do serviço de alto-falante, único meio público de difusão musical que animava nossas pobres noites sem variação. Nesse tempo não havia ainda luz elétrica, somente instalada em meados dos anos 1960. Havia apenas um motor gerador de luz fornecida entre as 18 e as 21h. Como a geringonça com frequência quebrava, Lula Pesseta, o mágico da luz, acorria às carreiras para consertar a máquina e repor a luz na vila que ruidosamente acolhia a repetição do milagre.
Desde menino fui tocado pela magia da música. A memória mais remota que a ela me prende está associada à morte do meu tio Edmundo. Vivia ainda em São Benedito do Sul, onde nasci. Fui levado pela família para assistir às cerimônias do enterro. Teria uns 4 ou 5 anos quando isso aconteceu. Enquanto na sala minha tia chorava descontrolada, em franco estado de histeria, eu brincava no jardim indiferente à morte e à dor que ela desencadeava no mundo dos adultos. Brincava no jardim quase frontal à casa onde pouco mais tarde passaria a viver, quando meu pai trocou sua vida de comerciante na cidade pelo cultivo da cana de açúcar numa propriedade que se estendia até às bordas da vila. De repente ouvi, no outro lado do muro, o canto da empregada que varria a sala com a porta aberta: “Lá de trás da minha casa tem um pé de ... Você vai? Você quer?” Há uma palavra apagada pela memória, como o indica a reticência, mas lembro ainda a música. Logo que a ouvi, prontamente me intrometi na cantoria escondendo-me atrás do muro e respondendo ao refrão da música: “Você vai? Vou; você quer? Quero”. A cantora gostou da minha intromissão e assim fomos adiante brincando com a letra da música. Essa anedota diz muito não apenas do meu amor precoce pela música, mas também da inconsciência da criança em face da morte e da dor que ela provoca nos que perdem seus entes amados.
Como observei, as noites, entre as 18 e às 21h, eram povoadas pela música emitida pelo alto-falante instalado no teto da casa comercial da minha tia. O locutor era Anibal Pontual, um pobre alcoólatra que se distinguia pela beleza do seu timbre de voz. Era assim que saudava a vila todas as noites: “Boa noite. Você está ouvindo a Amplificadora Santo Antônio, na frequência de 35 watts para um setor”. Mais tarde meu primo Mário Celso passou a dividir o serviço de locução e programação musical com ele. Como era proprietário, filho primogênito da minha tia, minha memória desconfia de que se sobrepôs ao locutor oficial. Mas convém não confiar muito na minha memória.
Nota: Como minhas memórias musicais são longas, em contraposição à paciência e o tempo do leitor, que são curtos, pareceu-me melhor dividi-las em duas partes. A próxima daqui a três dias.
Recife, 16 de agosto de 2012.
domingo, 19 de agosto de 2012
Caetano versus Chico

Caetano Veloso completa 70 anos e a mídia não perde viagem. Convenhamos, vender notícia é o fim inscrito na natureza do seu funcionamento. Visando alcançá-lo, ela não mede princípio. Essa questão, de nítidas ressonâncias éticas, é tão velha quanto o ovo ou a galinha. Quero dizer, há críticos da mídia que a responsabilizam por alienar o público; outros, notadamente os que fazem a mídia e dela vivem, replicam alegando que vendem o que o público quer. Como não tenho resposta para a questão, nem sei de quem a tenha, retomo o caminho do qual me desviei.
A mídia não perde viagem, como dizia, e assim cuida de reacender uma rivalidade já esquecida. Quem é melhor: Caetano ou Chico? Para início de conversa, a rivalidade é invenção da mídia, não deles. Irrompeu no auge do tropicalismo, quando Caetano, Gilberto Gil e outros anárquicos astutos levaram ou fingiram levar a sério o lema: é proibido proibir. Se na França, de onde proveio o lema, o cassetete baixou sobre os libertários, o que dizer da ditadura brasileira? Bem, deu no que deu. Como todo mundo sabe disso, vou em frente. Antes esclareço a expressão “anárquicos astutos”, que não entrou no parágrafo por acaso. Chamo a atenção dos ingênuos, que ouvem na música apenas música, para o fato de que o tropicalismo foi um investimento astuto dos seus líderes, uma estratégia para converter o mercado da arte de massa em ascensão no Brasil em forma artística e trampolim para o estrelato.
Foi nesse contexto que a mídia e críticos de vanguarda de notável talento (penso antes de tudo em Augusto de Campos) forjaram a rivalidade. Reduzida ao essencial, dizia-se que Caetano simbolizava a vanguarda artística, a música de invenção para a massa. Apostava-se também no célebre trocadilho de Oswald de Andrade, um dos inspiradores do tropicalismo: um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico. Escrevo sem aspas porque estou citando de memória. Hoje o trocadilho parece hilariante, mas os vanguardistas acreditavam piamente na inteligência e refinamento educável da massa. Não era à toa que eram de vanguarda.
Voltando ao enredo, se Caetano simbolizava o novo (não confundam com novidade, coisa que hoje se forja muito mais do que naqueles tempos ainda relativamente pudicos em termos de ética de mercado), a invenção sintonizada com a montagem de uma sociedade de consumo moderna, Chico, coitado, foi reduzido a símbolo de um passado feito de realejos, serenatas, Carolinas na janela, um Noel Rosa de viaduto, um tocador de cavaquinho num mega show de rock. É claro que a chama alastrou-se chamuscando os astros em competição, até então amigos. As tensões e divisões daí decorrentes afetaram também outros astros já estabelecidos ou em ascensão, como seria de prever, mas Chico e Caetano eram as estrelas maiores do firmamento televisivo. Logo, seria natural que a mídia concentrasse os refletores sobre os dois. A rivalidade tornou-se notícia de vida longa e lucrativa. Os astros se reconciliaram publicamente num célebre show realizado em Salvador, depois do exílio de ambos, mas ainda sob vigilância severa da ditadura.
A ditadura recolheu a dentadura, e outros instrumentos mais atemorizadores, a Globo fez as pazes com Chico, censurado durante anos, e em meados dos anos 1980 produziu uma série de shows sob o título Chico e Caetano. Claro que o sucesso foi imenso (eu, que há anos não vejo televisão, vi e gravei tudo) e um dos programas, pelo menos, mereceria uma edição em DVD: o que teve Tom Jobim e Astor Piazzolla como convidados. Como veem, isso era biscoito fino para a elite do público de massa, o paradoxo é intencional, que alegremente se diluiu em farelo. Se antes Chico ludibriava a censura ditatorial cantando: “hoje você é quem manda / falou tá falado /não tem discussão...”, hoje me queixo em vão do mercado, que fala e vende o que quer à nossa subserviência consumista.
Que faz um astro ético diante da potência diluidora do mercado? Caetano Veloso, com seu talento camaleônico, faz o jogo da mídia e do palco com astúcia refinada pela prática que remonta ao tropicalismo, com seu narcisismo de muitos gumes. Quanto a Chico, de temperamento mais retraído, com um sentido de coerência mais retilíneo, mede à distância a corda bamba na qual Caetano se deleita em fazer malabarismos. Em suma, cada um com seu talento e modo de ser. O que é inegável é a importância da obra que produziram. É esta que importa e por isso não convém rebaixá-la à disputa fútil de um Fla-Flu, pois a isso se reduz a rivalidade promovida pela mídia.
Artistas de múltiplos talentos, Caetano e Chico têm personalidades e formas de expressão muito distintas. O primeiro, justificando seu narcisismo ostensivo, se transfigura no palco, na criação acionada pelo contato vivo com o público. O segundo, contrariamente, é artista cujas pérolas são lapidadas em estado de reclusão. Sendo assim, Chico resiste ao palco, se retrai no contato direto com o público. Para ele a criação estética é o avesso, por exemplo, do happening, tão afim ao estilo irreverente e despachado de Caetano. Prolongando no mais alto sentido a tradição lírica, compreendida tanto literária quanto musicalmente, Chico trairia sua força criadora se embarcasse num movimento como o tropicalismo. O que importa é que se renovou extraordinariamente. Calou assim a crítica que o opôs à rebeldia tropicalista levianamente reduzindo-o à medida de um artista ultrapassado.
Nos anos 1970, ambos amadureceram e renovaram sua obra. Chico associou a música ao teatro, experiência já iniciada na década precedente, também ao cinema. Caetano também compôs música para cinema, mas no geral confinou sua obra à música e à crítica ocasional, sempre exercida em tom inteligente e provocativo. O Chico tardio concentrou-se na paciente elaboração de romances que lhe têm valido o apreço da crítica e sobretudo do leitor. É claro que, apesar do seu talento literário indiscutível, o romancista muito se beneficia da fama do compositor e cantor. Quanto a Caetano, escreveu o melhor livro que temos de memórias da efervescência musical dos anos 1960 relacionada ao contexto social e ideológico. O leitor sabe que me refiro a Verdade Tropical.
Portanto, concluo repisando o que acima escrevi: cuidemos da obra, opinemos sobre ela à margem do espírito barato do Fla-Flu alimentado pela mídia interessada apenas em vender notícia. Um dos grandes privilégios da arte brasileira é ter produzido dois artistas tão extraordinários. Musicalmente, não tenho dúvida, perdem apenas para Tom Jobim. Mas este está acima de comparações e paralelos. Tom é simplesmente o maior compositor popular do século 20. E notem que não usei nenhum qualificativo geográfico, isto é, não afirmei que ele é o maior do Brasil. Tom é simplesmente o maior e ponto.
Recife, 5 de agosto de 2012.
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Brasileiros e Universais

“O brasileiro em média soa mesmo expansivo, caloroso, simpático, mas isso no contato superficial. Grandes escritores, como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, viram que por baixo dessa atmosfera quente havia uma série de problemas existenciais e sociais, de ressentimentos e covardias, o que em geral os turistas não captam. Nações cultivam mitos? Sim, mas nações sérias os revêem constantemente. Como explicar tanta violência e tanto desrespeito num país que se gaba de ser uma alegre democracia racial? Por uma história na qual nunca houve disposição para alterações profundas, estruturais. Consultar Octavio Paz”.
As palavras acima são de Daniel Piza. Recortei-as de uma conversa entre ele e João Pereira Coutinho reproduzida na coluna que este assina para a Folha de S. Paulo. O assunto é de constante interesse para mim e de resto há muito me intriga. Nutrido pela minha leitura continuada dos nossos intérpretes, é ainda reforçado por minhas observações rotineiras relativas ao comportamento do brasileiro. Antes de tudo, ressaltaria concordar com Evaldo Cabral de Mello, que desqualifica as muitas interpretações do Brasil baseadas numa suposta psicologia dos povos. Para ele, tudo isso não passa de impressionismo sociológico. Argumenta ainda lembrando contradições meridianas, como a que nos singulariza pela nossa tristeza (ver Retrato do Brasil, de Paulo Prado) e a que põe o acento na nossa alegria. Esta, sabemos, é a versão dominante.
Mencionei Evaldo Cabral mas poderia mencionar com propriedade ainda maior o livro de Dante Moreira Leite: O Caráter Nacional Brasileiro. A primeira parte do livro, onde Moreira Leite desce às raízes histórico-antropológicas das noções de caráter e nacionalismo para acentuar-lhes a inconsistência científica, constitui a mais aguda crítica que conheço no contexto intelectual brasileiro à tradição dos nossos estudos baseados na psicologia dos povos. Dentro desses limites, endosso ainda as restrições enfáticas que dirige contra Mário de Andrade, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e muitos outros intérpretes do Brasil.
Nossos nacionalistas culturais mais triunfalistas têm inegável culpa em cartório. A eles devemos em larga medida a persistente disseminação de um mito que nos representa como sensuais e alegres, sempre a um passo do passo do frevo ou do samba, quando já não delirantemente por eles possuídos. O mito está de tal modo enraizado na nossa ilusória autopercepção que o ouvimos a todo instante escorrendo da boca de qualquer brasileiro orgulhosamente cotejando nossas virtudes com as qualidades depressivas de alguma cultura hegemônica. Dando nome a alguns bois, citaria Gilberto Freyre e Jorge Amado. É claro que ambos, sobretudo a obra do primeiro, têm méritos independentes da questão que aqui me ocupa. O que intento salientar de passagem é o quanto concorreram para difundir dentro e fora do Brasil uma representação mítica do país e do povo na qual prevalecem valores culturais que tendem a obscurecer ou idealizar o que temos de pior.
Daniel Piza tem razão ao ressaltar como na linha dos contatos epidérmicos projetamos essa imagem lisonjeira de um povo expansivo e caloroso e simpático. Como no entanto compatibilizar tal imagem com uma realidade social retalhada pela violência, a incivilidade, a grosseria corrente do brasileiro, o atraso social rançoso que explica tantos dos nossos horrores cotidianos? Se há para isso alguma explicação convincente, é preciso escavar bem mais além dos sintomas encontradiços, bem mais além da superfície recoberta por uma alegria enganadora. Piza indica o caminho das pedras, ou da mina desmitificadora, quando alude a escritores como Machado de Assis e Lima Barreto, que sem dúvida retratam um outro modo de ser brasileiro. Graciliano Ramos constitui talvez exemplo bem mais corrosivo de contraparte da nossa propalada alegria, já que o oposto desta se espelha não apenas na sua obra áspera e rabugenta, mas na sua própria personalidade. Aliás, se queremos acentuar o dado objetivamente aferível da nossa diversidade enquanto povo, conviria lembrar a imagem típica do sertanejo bem concentrada no perfil em demasia conhecido de Graciliano Ramos.
Saltando para o plano de minha experiência pessoal, cansei-me e me canso ainda de observar o contraste gritante entre os modos aparentes do brasileiro gregário e ruidoso e os desse mesmo brasileiro entretendo uma conversa íntima. De início o contraste intrigava-me e em alguns casos memoráveis chegava mesmo a chocar-me. Mas precisaria agora prender-me ao convívio mais íntimo para melhor justificar os termos em que acima propus os contrastes e contradições observáveis no comportamento do brasileiro. Vivi muitas vezes a experiência de freqüentar o ambiente de família de muitos amigos. Também os bares naquela hora sombria e semideserta propícia ao jogo das confissões e desabafos. Em suma, toda a variedade de contextos assinalados pelo convívio à margem das convenções hipócritas, da simulação de papéis e identidades aderentes de forma até inconsciente às máscaras que vestimos. A discrição, todavia, retém a mão que estendo para descerrar a cortina do palco onde poderia verter uma corrente infinda de expressões íntimas em tudo opostas a essa representação mítica de um Brasil festeiro, feliz e esperançoso.
Aliás, aqui no Recife é praticamente impossível dissociar o convívio com um determinado indivíduo do convívio com a sua família. Em grupo, predominam as manifestações de alegria ruidosa e afetividade derramada. Quando no entanto a relação é transposta para a atmosfera íntima, propícia aos tons confessionais mais reveladores do que subjaz à aparência ilusória, tenho com freqüência a surpresa de mergulhar em paisagens sombrias, visões atormentadas, cenas como que extraídas das páginas mais sofridas compostas pela pena de um Machado de Assis, um Lima Barreto, um Graciliano Ramos. De repente, o amigo risonho e galhofeiro, sempre desatado nos gestos de alegria contagiante, revela-se presa de angústias e ansiedades cuidadosamente abafadas. A mulher sempre sorridente e sensual, facilmente contagiada pela música e a dança, dissimula nas linhas do corpo desfrutável o travo de inconfessável tristeza, a infelicidade revestida em cores alegres. E assim constato que alegria e tristeza se acotovelam e até se irmanam no brasileiro como de resto em qualquer outro povo, pois somos humanos antes de brasileiros.
O argumento geral acima exposto poderia ser desdobrado com mais fortes evidências se deslocado para o campo da expressão musical. Além da importância cultural ocupada pela música no Brasil, provavelmente nenhuma outra forma de arte espelha de modo mais nítido nossas tradições populares, traços bem diferenciados da totalidade do povo brasileiro. Sempre que querem destacar nossa alegria, nosso esfuziante prazer de viver, estudiosos e observadores do assunto recorrem à música e ao carnaval, à sensualidade do samba ou à vibração do frevo e outros ritmos enérgicos e ruidosos. Esquecem todavia de considerar que na outra dobra do ritmo pulsam valores opostos. Se o carnaval sem dúvida manifesta num grau delirante nosso prazer de viver e celebrar desmedidamente a vida, também se impregna de tristeza e melancolia, de saudade e dor. Por isso há quem acertadamente o interprete como uma linha de fuga da realidade. Chico Buarque traduz bem esse fenômeno: “Carnaval desengano / deixei a dor em casa me esperando / E brinquei e gritei / e fui vestido de rei / Quarta-feira sempre desce o pano”. Poderia lembrar uma infinidade de canções compostas nessa clave para melhor esclarecer a natureza contraditória das expressões humanas.
No caso do frevo pernambucano, abundam exemplos de tristeza e saudade, dor e perda. O frevo de bloco transpira saudade e melancolia, pesar diante de um passado irreversivelmente perdido. A marcha lenta constitui outra evidência em defesa do meu argumento. Basta que se lembre e cante a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Não vou nem perder tempo citando-a, já que sua atmosfera emocional está inteiramente impregnada de dor e perda, saudade e melancolia. Lembraria ainda o Cordão da Saideira, de Edu Lobo. E os belos frevos de Antonio Maria.
Reiterando algo que acima de passagem registrei, parece-me que uma das mais graves inconsistências desses mitos ou representações idealizadoras de povos e culturas reside no desapreço pelo fato de que somos antes de tudo humanos. Sei que isso soa um tanto descabido numa época de nítida depreciação dos valores universalistas. Ainda assim, ou talvez por isso, insisto em ressaltar que antes de sermos ingleses, brasileiros, franceses, nigerianos, iranianos ou membros de qualquer outra nacionalidade, compartilhamos traços de humanidade comum. Acima de todas as nossas singularidades irrecusáveis, somos humanos e como tal portadores dos sentimentos fundamentais da alegria e da tristeza, do amor e do ódio, da euforia e da depressão. O resto é idealização mítica de discutíveis virtudes nacionais. Mas não me iludo presumindo que os mitos não estejam investidos de força poderosa. A história da humanidade está empapada de glória e devastação decorrentes de ações humanas inspiradas em mitos e representações míticas de grandezas e misérias. Melhor batucar agora um samba desses bem vibrantes e alegres e sensuais. Quero ver a mulata quebrando as cadeiras...
02 de dezembro 2008
segunda-feira, 18 de abril de 2011
O Triunfo da Música

Suponho que a maioria dos curtidores contemporâneos da música acredita com santa inconsciência que os músicos foram sempre elevados às alturas celestiais correntes no nosso tempo. Começo frisando partir de uma distinção deliberada entre amantes da música, ou melômanos, e curtidores, termo que aqui emprego para referir-me ao público de massa. É claro que a distinção contém um juízo de valor que preciso explicitar já de saída porque algo do que escreverei sobre o livro O Triunfo da Música, de Tim Blanning, implicará essa distinção. O amante da música ou melômano, no sentido aqui acentuado, é um apreciador esclarecido da música. Destaco, em tempo, que ele também existe como público de massa, dado o fato óbvio de que vivemos em sociedades lastreadas por veículos de difusão e recepção de massa. Por mais que invista emoção na sua recepção da obra musical, o melômano nunca se confunde com o mero curtidor da música. Este é aqui compreendido antes de tudo como o receptor que se vale da música como simples diversionismo ou veículo de extravasamento de energia psíquica. Para este, o problema da qualidade estética da música nunca se coloca, ou simplesmente inexiste. Ele curte Ivete Sangalo, por exemplo, com o espírito de um atleta de academia de musculação. Logo, o que busca na música desse tipo, pois é isso o que de resto ela fornece, é fonte de excitação e extravasamento de energia.
O livro de Tim Blanning, em muitos sentidos excelente, ignora por completo a distinção que acima faço. Embora considere indireta ou implicitamente a música enquanto expressão artística esteticamente qualificada, preocupa-se antes de tudo em descrever o longo processo histórico através do qual o músico transitou das funções socialmente subordinadas que exercia na sociedade para o triunfo singular que alcançou na cultura contemporânea. Esse triunfo se traduz em sucesso elevado à sacralização da música e do músico, na riqueza econômica e na fama ostentadas pelos músicos e na soberania da música sobre as demais artes.
Quando ocasionalmente roça a questão da qualidade estética da obra ou do artista, ele o faz baseado numa distinção supostamente simples e inquestionável. O leitor pode conferir melhor o ponto de vista de Blanning se for à página 345 e observar o que ele aí escreve sobre avaliação subjetiva (o exemplo de que se ocupa é o dos Beatles), baseada em critérios estéticos, por definição transitórios, e fato objetivo, isto é, o teste da durabilidade, ou do tempo, que assegurou aos Beatles um lugar excepcional na história da música. Outro critério supostamente objetivo que endossa, típico da ideologia consumista que domina nosso tempo, é o quantitativo. Quando afirma a importância extraordinária de artistas como Paul McCartney e John Lennon, assim como de Bach ou Mozart, ou ainda uma canção como Yesterday, lança mão apenas de dados estatísticos.
Voltando ao ponto de partida deste artigo, Tim Blanning demonstra com abundância de exemplos e meticulosa exposição histórica o processo através do qual o músico, não a música, ascendeu da condição de mero serviçal da nobreza, do clero ou do patrocínio individual de algum poderoso ao estado de deificação observável no presente. Se um exemplo famoso pode resumir esta questão, bastaria lembrarmos John Lennon afirmando, com razão, que os Beatles eram mais famosos do que Jesus Cristo. Muitos crentes ficaram chocados, mas a verdade é que Lennon e ídolos de igual fama inspiram estados de fanatismo e devoção de massa para os quais não sei de equivalentes religiosos na cultura ocidental contemporânea.
Valho-me de um outro exemplo para caracterizar na outra ponta, a da subordinação social do músico, os extremos seguidos pelo conjunto da exposição desenvolvida por Blanning. O exemplo que agora apresento refere-se ao pontapé na bunda que Mozart sofreu quando foi literalmente expulso dos serviços que prestava ao arcebispo de Salzburgo (p. 19). Entre este célebre pontapé e a frase de Lennon se interpõem mais de 200 anos de história. Mas importa ressaltar que o livro cobre um intervalo de tempo bem mais amplo. Dentro dele podemos apreciar a subordinação social, agravada por ocasionais humilhações, de que foram vítimas gênios da música como Bach, Haydn e Mozart. Liszt e sobretudo Beethoven e Wagner desempenham nesse processo papéis fundamentais como pioneiros do reconhecimento do músico como gênio e objeto de veneração, além de inequívoco prestígio conferido pelas instituições sociais do tempo.
O agente fundamental dessa mutação observável no papel social desempenhado pelo músico é o capitalismo. Foi graças a ele que se constituiu um mercado de arte capaz de assegurar ao músico a distinção e os privilégios de que hoje desfruta numa escala sem precedente histórico. Antes do desenvolvimento do capitalismo, como já assinalei, o músico, assim como o artista em geral, vivia subordinado ao poder da nobreza e do clero. É portanto curioso, senão irônico, o fato de tantos artistas lutarem no decorrer do século 20 pela destruição do capitalismo. O ideal de muitos deles era o comunismo que produziu sociedades totalitárias nas quais o artista era impiedosamente fiscalizado, censurado, instrumentalizado ideologicamente e no limite silenciado pelo Estado. Os exemplos são tantos que poupo o leitor do trabalho de ler alguns que de imediato me vêm à memória. Mas aqui vai um: quem viu o filme A vida dos outros sabe muito bem do que estou falando.
É claro que processos semelhantes também ocorreram nas sociedades de economia capitalista nas quais foram impostos regimes autoritários ou ditatoriais. Sofremos essa experiência em tempos recentes no nosso próprio país. Artistas como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em alguns exemplos restritos à música popular, foram vítimas de diversas formas de controle ou perseguição política. Mas não há como objetivamente situar no mesmo patamar a situação do artista num regime totalitário, como foi o caso da União Soviética, com a do artista que sofre as opressões impostas por ditaduras de regime econômico capitalista. Se a ditadura é imposta para controlar a liberdade do artista em benefício dos interesses do capitalismo, o controle com frequência entra em conflito com os próprios interesses da economia que a ditadura defende. Poupando-me de entrar nos detalhes desse tipo de processo social, encurto o assunto lembrando que isso foi frequentemente teorizado por críticos marxistas como expressão característica das contradições econômicas e culturais do capitalismo.
Seguindo no veio da realidade brasileira, que naturalmente inexiste no livro de Tim Blanning, podemos melhor apreciar a relação acima indicada entre o lugar social ocupado pelo músico e o desenvolvimento do capitalismo. Como aqui o desenvolvimento deste foi muito tardio, somente a partir da década de 1960, com o surgimento da televisão, da cultura jovem e de um amplo mercado de massa, o músico em geral passou a desfrutar dos privilégios invejáveis que agora plenamente detém. É verdade que antes, digamos a partir da década de 1930, já se constituíra um ralo mercado da música baseado na difusão dos programas de rádio, na indústria fonográfica e no mercado alimentado pelo carnaval.
Diante do que já expus, fica evidente que o livro de Blanning, como ele aliás cuida de esclarecer, não é uma obra de musicologia destinada ao leitor de formação técnica e teórica em música. Citando o próprio autor,
“Prestígio, propósito, lugares e espaços, tecnologia e libertação: estas são as cinco categorias que explorarei para explicar a marcha da música até a supremacia cultural. O que se segue é um exercício de história social, cultural e política, não de musicologia – nenhum conhecimento técnico de música é requerido” (p. 20).
Além de dedicar a cada uma das categorias acima especificadas capítulos exclusivos e extensos, Blanning acrescenta à obra uma introdução e uma conclusão sumárias nas quais ousa explorar até com algum ânimo polêmico questões de prestígio e poder, gosto e consumo característicos da realidade musical contemporânea.
Já considerei brevemente a questão do gosto musical, que ele menciona sem explorar mais amplamente a relação entre gosto e fundamentação estética e sociológica do gosto. Propondo a questão noutros termos: o gosto é puramente subjetivo, ou mensurável a partir de critérios puramente mercadológicos, ou se apoia de algum modo em critérios esteticamente objetivos? Como já assinalei, ele encara os critérios estéticos como se fossem meramente subjetivos, ou transitórios, passa recibo ao leitor e vai adiante. Quando se arrisca a discutir questões de gosto, apoia-se apenas na durabilidade assegurada pelo tempo, juiz sem dúvida supremo, ou na quantificação mercadológica da obra e do artista. O tempo, como venho de observar, é o juiz supremo da arte, mas é impraticável como critério restrito ao presente, que é de resto onde de fato vivemos. O tempo importa apenas como medida obviamente temporal. Logo, vale apenas quando fixamos relações comparativas entre épocas distintas, ou intervalos de tempo amplos o suficiente para que se possa com segurança afirmar a duração da obra ou do artista no tempo ou na linha da tradição.
Tim Blanning salienta com razão o papel decisivo desempenhado pela revolução tecnológica para que a supremacia da música se tornasse realidade na cultura contemporânea. O fato de torná-la acessível a massas de receptores incalculáveis supõe questões estéticas que ele prudentemente contorna ou finge ignorar. Por exemplo: a relação entre democratização da cultura e qualidade estética. Blanning celebra a supremacia da música, recorre a dados quantitativos e factuais para confirmá-la, mas não se atreve a ensaiar uma crítica ou interpretação que deslizariam para um terreno movediço e polêmico.
Enquanto lia o livro, em particular passagens que roçavam questões como as que indico nos dois parágrafos precedentes, pensei por associação no clima musical brasileiro. Confesso haver considerado a possibilidade de me valer da crítica ao livro para introduzir neste artigo algumas questões de gosto, também fatos caracterizadores da realidade musical em que vivemos, que com certeza inflamariam os ânimos do leitor que leva a sério o grosso da música correntemente consumida no mercado brasileiro. Foi com essa intenção que logo no início do artigo introduzi uma distinção, já de cara polêmica, entre o amante da música, ou melômano, e o mero curtidor, que constitui o grosso do nosso público. Mas deixo o dito pelo não dito e encerro o artigo por aqui. Antes, porém, reitero as qualidades excelentes da obra de Blanning enquanto exercício de história cultural da música, ou ainda de sociologia da música. Além disso, a exposição é clara e envolvente, fato que sem dúvida importa para o leitor que busca a leitura como meio de aprendizagem temperada pelo prazer.
Acrescento em tempo algumas ponderações finais ao artigo para não silenciar completamente sobre a relação entre a música e as demais artes, relação que ficou implícita na evidência da supremacia da música bem demonstrada no livro. Um fator já ressaltado para a realização dessa supremacia é a revolução tecnológica. Em países do tipo do Brasil, de baixa tradição letrada e relações sociais tão pouco regulamentadas, para não dizer de funcionamento anômico ou desregrado, a música alcança um grau de difusão impensável no contexto de um país como a Inglaterra, onde nasceu e vive o autor do livro. Aqui a música, geralmente de baixa categoria, invade todos os espaços sociais, inclusive aqueles tradicionalmente consagrados às outras artes. Bastaria considerarmos a moda das feiras literárias, cada vez mais badaladas, cada vez mais concorridas e cada vez mais subordinadas ao império da música e dos músicos.
A música ocupa agora praticamente todo o nosso espaço de convívio ou até de solidão harmônica ou simplesmente barulhenta. Em termos de hegemonia cultural, ela perde apenas para a televisão, que aliás não é uma arte ou forma de arte, mas um veículo de difusão de muita coisa, sobretudo de lixo cultural, no caso preciso do Brasil. Valendo-se da televisão para exercer supremacia ainda maior, a música reduziu as artes da palavra, em particular a literatura, a uma posição de servilismo comparável, dentro das distinções de contexto histórico óbvias, à que o músico sofreu nas sociedades de corte da Europa nos séculos que precederam o pleno desenvolvimento do capitalismo. Dependendo da solidão e do silêncio como meios essenciais de fruição, a literatura perde por completo o rebolado quando ouve o bater de um tambor, o sopro de um clarim ou o acorde ressoante de uma guitarra elétrica.
Se há hoje uma ditadura no Brasil, não tenho dúvida de que é a da música aliada à televisão e outros meios de difusão de massa isentos dos controles impostos nas sociedades onde se respeita a distinção democrática fundamental entre espaço público e espaço privado. Neste país de mãe Joana, onde invadimos de mil modos possíveis e impossíveis a privacidade e a liberdade do outro, há circunstâncias nas quais sequer podemos dormir em paz, imagine ler em paz ou até mesmo ouvir música em paz.
Recife, 20 de fevereiro de 2011.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
Edu Lobo Bossa Recife

O documentário Vento Bravo (2007) começa com duas cenas muito significativas que, enquanto tal, anunciam duas referências fundamentais para nosso conhecimento da música de Edu Lobo: a premiação de Ponteio, talvez o triunfo supremo da sua carreira; o sentido seminal do Recife, sua cultura e paisagem, na sua formação. No andamento desta cena, com Edu a bordo de um carro transitando contra o fundo da paisagem tropical recortada pelos coqueirais e o mar invisível, mas já insinuado na imaginação do espectador, a tela é invadida pelos sons de Candeias. A cena desdobra-se na projeção da sombra movente de Edu sobre a areia úmida e por fim se alarga no plano geral do mar com seus tons verde-azulados, barcos à vela cortando as águas. Logo Edu é enquadrado no mundo da sua infância, no Recife e suas extensões litorâneas.
A música de Edu e a forma como desde o início ele a situa nas raízes da sua memória e experiência ilustram uma verdade corrente na história da arte: a função seminal da infância na criação estética. Embora nascido no Rio de Janeiro, toda a sua infância significativa foi vivida no Recife, onde passava férias deleitando-se na atmosfera absorvente da família. Esse é de resto um traço profundo da história social recifense, por extensão nordestina: a dominadora presença da família ramificando-se numa rede de parentes, amigos e outras forças humanas agregadas e agregadoras. A isso somaram-se os ruídos dos pregões de rua, um deles aliás incorporado a uma das composições de Edu: Cordão da Saideira, o mais belo e lírico frevo que conheço. O fato é que o menino Edu Lobo impregnou-se dessas vivências da infância mais tarde convertidas em memória afinal recriada em som e arte. Ele as rememora, as vivências, em muitas passagens do documentário: Caruaru e suas ruas ruidosas cortadas pelos sons agudos das bandas de pífanos; Itamaracá e Pontas de Pedra, Candeias e o esplendor da lua cheia espelhada no mar; cirandas e maracatus; frevos e troças, tudo inundou a imaginação encantada do menino nele fermentando o solo onde anos mais tarde teceu seu mar de sons e poesia. Lembrem Cirandeiro (letra de Capinam), pérola injustamente esquecida evocada por Maria Bethânia numa cena do filme.
Carioca cuja juventude foi vivida à sombra imperiosa da Bossa Nova e de Tom Jobim, expressão suprema das duas gerações musicalmente mais importantes da música brasileira, a da Bossa Nova e da MPB desmamada nos festivais de música e no clima turbulentamente criativo de resistência cultural à ditadura militar, Edu admite que não teria chance de se afirmar como artista diante de Tom, Baden Powell, Carlos Lyra e outros valendo-se dos recursos de criação musical que estes dominavam. Assim, a via de expressão estética que emprega, a regressão ao mundo da sua infância recifense, foi também uma estratégia de sobrevivência num clima de extraordinária competitividade. A propósito, o crítico Tárik de Souza lembra que Edu entra na atmosfera musical da sua juventude através de Luiz Gonzaga e do acordeon. Outros, como Eumir Deodato, trilharam caminho semelhante.
Edu se afirma, portanto, integrando à sua música duas linhas de influência diferenciadoras e aparentemente antagônicas: a Bossa Nova, de extração carioca, urbana e visada internacionalista, e a música de procedência pernambucana impregnada de tradição rural, regional, e forte sentido de participação social. Foi esta, em síntese, a assinatura que acrescentou ao clima musical da época concorrendo de forma decisiva para desenhar o ponto de ruptura entre a Bossa Nova e a música que passa a ser sumariamente identificada como MPB: a música que explode nos festivais assaltados pelo espírito de competição estética e ideológica exacerbada pela inserção da música popular na máquina de consumo de massa que reponta na cena cultural brasileira em meados da década de 1960.
Edu representa de forma singular a cultura migrante que tanto vincou a formação cultural brasileira. Filho de Fernando Lobo, jornalista pernambucano que migrou para o Rio de Janeiro como tantos outros pernambucanos e nordestinos de talento, engrossou a corrente que desdobra no terreno musical uma tradição enraizada na literatura desde o século 19. Bastaria pensar em José de Alencar, Joaquim Nabuco, Franklin Távora, Sílvio Romero, Aluísio de Azevedo e muitos outros. No século 20 a corrente cresceu transportando sobretudo para o Rio de Janeiro, capital cultural e política do país, quase todos os talentos destacáveis na arte e na literatura.
Edu Lobo ouviu Chega de Saudade pela primeira vez quando de uma de suas férias em Recife. Acentua no documentário o sentido de choque estético que isso representou na sua vida. Passados já tantos anos, é difícil para um jovem de hoje avaliar o sentido radicalmente inovador desta música. Afinal, depois que o novo se rotiniza perde-se a dimensão de ruptura estética que introduz nos códigos dominantes. Ao evocar esse fato Edu reitera o sentido geracional simbolizado na primeira audição de Chega de Saudade. Quando tiveram a oportunidade de pronunciar-se sobre este assunto, também Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque reiteraram o sentido de choque estético expresso no depoimento de Edu. É provável que outros companheiros de geração, se acaso também se pronunciassem, repetissem a mesma história com as variações de ênfase e forma inevitáveis.
Outra experiência de cunho geracional liga-se ao fenômeno das casas abertas, pontos de agregação musical característicos da época em que Edu e seus contemporâneos ingressaram profissionalmente na música. Há quem diga que o símbolo maior dessa forma de associação artística era a casa de Vinícius de Moraes. Edu procura traduzir, também seu parceiro Paulo César Pinheiro, o que isso representou para seu acelerado desenvolvimento como músico. Antes de tudo, prevalecia naqueles grupos livremente compostos um sentido de gentileza, outros em contexto semelhante empregam o termo delicadeza, que definitivamente desapareceu do horizonte da nossa experiência social hodierna. Além de uma intensa e fecunda interação de artistas provenientes de diferentes formas de expressão artística, o convívio era pautado por um espírito de generosidade e senso comunitário impensáveis nos quadros do capitalismo ferozmente competitivo em que passamos a viver, competitividade exasperada pelo narcisismo que permeia todas as nossas relações sociais.
Outro tema interessante introduzido no documentário é o da relação entre Edu Lobo e a Tropicália, a grande explosão inovadora que sucedeu a Bossa Nova provocando reações de perplexidade e conflito nos círculos da MPB. Edu afirma que nunca brigou com a Tropicália. Enfatiza seu ponto de vista esclarecendo que gostava de tudo que Caetano Veloso e Gilberto Gil faziam desde que passou a conhecer o trabalho de ambos. Ressalta, no entanto, seu desagrado diante do caráter teatral do movimento, que na verdade traduzia a astúcia com que Caetano e Gil, narcisistas consumados, souberam explorar os novos recursos de projeção e sucesso forjados pela cultura de massa. É fácil imaginar que Edu, até por força de seu temperamento, do seu modo de aparecer como artista, não teria nenhuma afinidade com o que os baianos faziam na mídia, que então era outra coisa. Edu acrescenta – com razão, assim penso – que o grupo mineiro conhecido como Clube da Esquina tinha importância musical muito superior à Tropicália. Entretanto, pouco se fala disso, pouco se reconhece esta verdade nos estudos históricos relativos à música brasileira das décadas de 1960 e 1970.
Talvez nada melhor traduza a diferença de temperamento e modo de manifestação pública da atividade artística entre Edu e os baianos da Tropicália do que sua renúncia deliberada a ser um grande astro da música brasileira ou um pop star. No auge da sua fama como compositor e intérprete, depois de vencer dois dos festivais de música da época, sobretudo o de 1967, sem dúvida o mais importante dentro deste importante capítulo da história da música popular brasileira, Edu larga tudo e vai estudar música em Los Angeles com Albert Harris. Esta é uma das evidências da superioridade de sua formação técnica e estética se o comparamos à maioria dos grandes compositores brasileiros. As cenas relacionadas à longa temporada de estudos em Los Angeles são pontuadas por uma de suas mais belas composições: a jobiniana Quase Memória. Sugiro ao leitor que a ouça com o outro ouvido sintonizado em Saudade do Brasil, do nosso maestro soberano.
Edu renunciou à fama já consolidada para fazer de si próprio um músico de formação refinada e exigente, um artesão supremo das formas musicais. Nesse sentido, é também sintomático seu reconhecimento de Tom Jobim como nosso compositor supremo. Como bem lembrou, Tom, assim como Villa-Lobos, é o tipo de compositor que obriga seus pares, ainda quando não o queiram ou saibam, a trabalhar, a fazer melhor. Se a memória não me trai, numa outra ocasião, falando de Tom em escala universal, distinguiu-o como um dos cinco maiores compositores populares do século 20. Isento de qualquer viés nacionalista, diria que é talvez o melhor. Comparáveis a ele são George Gershwin e Cole Porter, cito apenas os que primeiro me vêm à mente, mas penso que Tom é ainda melhor que ambos.
Espanta-me que o autor de letras como as de Cordão da Saideira e Candeias tão pouco se tenha aventurado a escrever a letra de suas próprias composições. Talvez o excesso de rigor, o perfeccionismo do artista consciente de que arte é antes transpiração do que inspiração, tenha refreado o letrista de talento lírico notável que é Edu Lobo. O fato é que teve muitos parceiros. Alguns, como Paulo César Pinheiro e Joyce depõem no documentário. Sabemos que seu parceiro mais constante e sem dúvida supremo é Chico Buarque. Como seria previsível e justo, Chico contracena com Edu em boa parte do filme. Talvez apenas a parceria Tom Jobim e Vinícius supere a de Edu e Chico. De certo modo, isso afeta negativamente a grandeza musical de Edu em termos de reconhecimento público. Afinal, que parceiro poderia competir com Chico? Edu fica injustamente rebaixado a um plano tão secundário que ouço gente de bom gosto e bem formada aludindo a Beatriz e outras composições de ambos como se fossem de autoria exclusiva de Chico. Dando a Edu o que de justiça cabe a Edu, tenhamos a consciência de reconhecer que, dentre todos os seus companheiros de geração, nenhum manteve o alto nível de qualidade criativa que ele manifestou dos anos 1990 para cá, exatamente quando alguns dos seus competidores mais talentosos começaram a dar sinal de perda de força criativa.
Nota: direção e o roteiro do documentário: Regina Zappa e Beatriz Thielmann.
Recife, 25 de janeiro de 2011.
sábado, 1 de janeiro de 2011
Porto de Galinhas Era o Paraíso

Chegaram a Porto de Galinhas ao entardecer. Era como o paraíso estendendo-se diante de seus olhares maravilhados. O vento gemia nos coqueirais que se espraiavam rente à faixa arenosa. Um pouco além, na imensidão da tarde, as ondas quebravam em sucessão ritmada. O mar era o mundo alongando-se para além da linha do horizonte. Descobriram o paraíso naquele miraculoso entardecer de dezembro, 1971, e o paraíso chamava-se Porto de Galinhas.
Porto de Galinhas era então uma pequena vila habitada por pescadores, gente pobre e obscura que vivia da pesca, do trabalho nos canaviais que dominavam a paisagem entre a praia e a rodovia e de uns fiapos de economia coletora. Não havia luz elétrica, saneamento nem água encanada e o acesso à praia era difícil o suficiente para revestir-se de certo toque de aventura na imaginação exaltada daquele grupo de jovens universitários.
Alugaram a casa de um dos pescadores situada na rua que é ainda a rua central da praia. Era uma casa modesta, mas ainda assim uma das melhores da vila. Tinha dois ou três quartos nus, varanda e quintal. Levaram colchões e esteiras, além de alguns objetos necessários à sobrevivência durante um mês naquela praia remota. No decorrer desse tempo o grupo sofreu frequentes variações, pois parte dos jovens precisava dividir o tempo entre a praia e o Recife.
Ecoando o espírito da época, muitos eram politizados, embora impedidos de praticar a política ou já desinteressados de o fazer. O sentido de politização da vida era tão poderoso, mesmo naquela vila remota, que precisavam de algum modo justificar sua omissão, sua rendição prazerosa à gratuidade da vida, sua recusa da política. Foi ali, naquele remoto verão, que alguns descobriram a literatura hispano-americana lendo García Márquez, Vargas Llosa, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Neruda. Alguns, já conscientes do engodo que é a baixa literatura travestida de literatura engajada, riam de Thiago de Melo, em particular de um livro que embrulhava em versalhada as ilusões esquerdistas do tempo: Faz escuro mas eu canto. Era o caso de José Carlos Freire, que entre risos ameaçava os que à noite lhe tiravam o sono com brincadeiras importunas: “Se não me deixarem dormir, leio em voz alta três poemas de Thiago de Melo”. Era o suficiente para que todos, entre gargalhadas, o deixassem dormir em paz.
Alguns dentre aqueles jovens estudavam medicina. Representavam na Macondo que era então Porto de Galinhas a última geração de médicos inspirados por uma formação de tinturas humanistas e decidido sentido de participação social. Daí a saliência de uma noção política da vida, daí o exercício da medicina social que nitidamente marcou a formação de todos eles. Embora impedidos de militarem politicamente, compensavam esse veto estagiando em hospitais e clínicas públicas, atuando dentro dos limites possíveis nos diretórios acadêmicos da universidade. Mas aquele mês de verão vivido no paraíso de Porto de Galinhas foi um mês de pura e inocente farra, um mês de descoberta de prazeres virgens e insólitos.
O amor era uma descoberta iluminada, diria mesmo inocente. Embora simbolizassem uma geração pioneira, a que começou a rotinizar o sexo entre namorados e a fundação de uma ética avessa à tradição assimilada dentro da família, sintomaticamente criticada a partir de ideais libertários tangidos pelo espírito de uma nova esquerda, nunca se entregaram à promiscuidade sexual, à infidelidade, à dissipação erótica e à cultura da droga que alguns somente mais tarde abraçariam ou provisoriamente provariam inspirados pela curiosidade ou gosto do experimento. A amizade entre casais de namorados, tão intensa entre alguns, era revestida de certa inocência sublimadora das pulsões eróticas que noutros círculos já começavam a arrebentar e logo mais tarde desaguariam na permissividade hoje rotineira.
Embora desatados das repressões correntes na família de então, usufruíram daquele estado de liberdade única à beira das águas iluminados pelo esplendor das noites enluaradas e pelas canções de Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Baden Powell, Vinícius de Moraes e Toquinho comportando-se como um grupo de jovens alegres e inofensivos no seu espírito festeiro. É certo que mudaram a rotina da vila entrando madrugada a dentro na ronda da praia, mergulhando nas águas em noites de luar e dançando ciranda, inventando brincadeira para ver quem seria capaz de ficar aceso na praia até o amanhecer. Também bebiam, sobretudo batida de limão, tão comum nas bebedeiras da época. Certa noite, um deles excedeu-se e armou um dramalhão de menino embriagado. Depois de muita cena e até lágrima de meninão ainda oprimido por obscuros traumas de família, entregou-se às águas num patético simulacro de suicídio para morrer nos braços de Iemanjá, mas logo foi salvo pelo lendário Capitão América.
Havia a música adornada pelos sopros líricos daquele paraíso tropical. Para alguns, os mais líricos, quatro discos compunham o fundo musical fruído à beira mar sob os esplendores da lua cheia. Levavam lençóis que estendiam sobre a areia e se deitavam namorando ou contemplando a vastidão do mar onde a lua se espelhava. Foi ali decerto que um deles viveu iluminações de fundo místico que Freud designou como “sentimento oceânico” da existência.
Mas vamos aos quatro discos acima mencionados. O primeiro era “Lotus”, de Baden Powell. Nunca foi infelizmente reeditado na forma de cd agora corrente. Algumas faixas, entre as melhores num disco de comovente intensidade lírica, circulam agora em coletâneas. É o caso de Viagem. O segundo era “Como dizia o poeta”, um dos pontos altos da parceria Vinícius-Toquinho. O disco ainda hoje impregna a memória musical de alguns que viveram o verão aqui evocado, mas caberia ressaltar Tarde em Itapuã. O terceiro era “É doce morrer no mar”, disco que reúne o melhor das canções praieiras de Dorival Caymmi. Ouvi-lo naquela atmosfera de sonho era uma experiência de dimensão emocional intraduzível em palavras. Por fim, havia “Construção”, disco lançado naquela época que evidenciava o grande poder de renovação de Chico Buarque como compositor. A faixa que confere título ao disco era sem dúvida a melhor, mas talvez outras tenham marcado bem mais profundamente a memória do paraíso fugaz que foi Porto de Galinhas.
Que me lembre, o medo hoje corrente nas nossas praias e cidades ainda não invadira as vidas ruidosas daquele grupo de jovens. Havia, sim, o medo da repressão política imposta pela ditadura em plenos anos de chumbo. Mas esse temor importava apenas para os poucos politicamente ativos dentro do grupo, aqueles que de algum modo, com ou sem medo, moviam-se entre as brechas estreitas através das quais a liberdade e o espírito de oposição respiravam. À parte isso, Porto de Galinhas era um território livre, um paraíso ecológico animando os sonhos e fantasias daqueles jovens inconscientes de forças e poderes que mais tarde atravessariam suas vidas. O fato é que nas ruas, nas praias desertas e mesmo nas grandes cidades, como era o caso do Recife, residência de todos ali reunidos, não se banalizara o medo que no presente assalta nosso cotidiano.
Havia ainda as caminhadas em grupo ao longo da larga faixa de areia que se forma na praia quando as ondas recuam. Andavam muitos quilômetros, ora em direção ao Sul, passando por Maracaípe e o Pontal de Maracaípe, ora em direção ao Norte, onde alcançavam Cupe e Muro Alto. Essas caminhadas eram tão divertidas e variadas, oscilando entre as travessuras em grupo e a formação de casais entretidos em conversas por vezes sérias e confessionais, que nem se lembravam de cansaço ou desânimo.
Mas o fato é que os anos passaram, muitos anos passaram. A ditadura recuou, sobrevieram a anistia e a redemocratização, a década perdida e outras perdas acrescidas de alguns ganhos, já que ninguém é de ferro. Hoje, no momento em que digito essas memórias turvas e grupais, o Brasil move-se na maré montante da acumulação capitalista, da febre de consumo e do otimismo coletivo típico dessa época de festas, sobretudo quando o cenário econômico é tão animador. Como não sei de bem que não segregue males, reitero o lugar comum com alguma variação de forma, a própria expansão capitalista está gerando problemas que tendem a converter o Recife num inferno urbano. Em suma, Recife está se tornando uma cidade intolerável para gente do meu tipo com seu trânsito maluco, tão anômico e violento que mais semelha um ensaio de guerra civil.
Parte desses males estendeu-se para as cidades do interior e para as praias, notadamente Porto de Galinhas. Hoje ela é a mais badalada e concorrida do litoral pernambucano. Há anos, aliás, tornou-se um dos pontos de eleição procurado por turistas de todos os lugares do Brasil, além de muitos estrangeiros. A transformação de sua paisagem humana foi tão profunda no decorrer dos anos que a separam das memórias aqui evocadas que aquele remoto verão de 1971-72 semelha antes um sonho, uma fantasia tramada pela memória carente de evasão dessa realidade espremida entre muralhas de concreto, engarrafamentos opressivos e ruas ruidosas onde circulam massas histéricas.
Há muito felizmente libertei-me das prisões emocionais que tendem a produzir nostalgia, esse tipo de olhar desfigurador do passado tendente a recompô-lo com linhas e cores e situações humanas que nunca existiram, salvo na nossa memória carente de consolação ilusória. O que esbocei nesta breve crônica de memórias foi algo da realidade objetiva e da atmosfera emocional que marcaram minha vida e a daqueles amigos, há muito dispersos no tempo e no espaço, que descobriram Porto de Galinhas quando ela se abria ante nossos olhos deslumbrados e nossa imaginação como se fosse o paraíso, o paraíso fugaz que efetivamente vivemos naquele remoto verão. Mas sei que a própria noção de paraíso é antes de tudo um outro modo de consolação ilusória. Afinal, dentro do próprio paraíso que provei, ou antes figurei na minha imaginação, sentia já o gosto amargo da realidade que me espreitava dois passos além da praia, senão dentro da sua própria paisagem embriagante. O fato é que dali parti iluminado por um mês que transfigurou minha vida crivada de carência e incerteza. Foi graças àquele verão que descobri e fruí alguns dos mais belos momentos de minha juventude; também, por contraste, sofri o bastante para perder em definitivo a poeira das ilusões que deitei à margem da estrada ou lancei ao sopro da brisa que varria o mar de Porto de Galinhas.
Recife, 24 de dezembro de 2010.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
A Idade através das Idades

Há poucos dias Paul McCartney estrelou um show monumental no Brasil. Dentro de um estádio de futebol, ocupado por uma massa composta por 60 mil pessoas, o ex-Beatle deslumbrou o público com a vitalidade e o talento que confirmam sua posição mítica na história da cultura de massas universal no decorrer dos últimos cinquenta anos. O fato de estar com 68 anos não aparenta afetar sua condição de ídolo cuja atuação no cenário pop se mantém inabalável, quer consideremos o caráter da sua performance, quer a receptividade delirante do público. Esse fenômeno tornou-se tão rotineiro na história da arte de massas contemporânea que ninguém mais estranha a permanência do sucesso e da atuação pública de ídolos como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros, todos bem acima dos 60 anos.
Notem que citei apenas homens. Embora a mulher também espelhe na posição social que ocupa essa extraordinária mudança atinente à noção atual de idade ou valor etário, o grande beneficiário dessa mudança é sem dúvida o homem. Pois o fenômeno que até aqui considerei em termos restritos aos ídolos da música de massas é de extensão suficiente para que o caracterize como uma modificação profunda observável na concepção da idade e dos papéis sociais a ela referentes. Basta que se pense na frequência com que homens de meia idade, para não dizer idosos, hoje se separam e logo se envolvem com mulheres jovens e bonitas, quando já não é esse próprio envolvimento a causa de muitas separações. Nesse sentido, como em tantos outros, o privilégio é antes de tudo masculino, pois bem poucas são as mulheres maduras, separadas ou não, que desfrutam das oportunidades amorosas franqueáveis ao homem.
Lembrando um exemplo de caráter contrastivo que poderia ampliar ao infinito, por volta de 1920 o escritor inglês Lytton Strachey reagiu perturbado quando a pintora Dora Carrington declarou-se apaixonada por ele. O leitor maledicente ou preconceituoso que acaso tenha alguma noção de quem foi Strachey poderia alegar que a perturbação seria apenas fruto de sua homossexualidade. Isso também importava no contexto do meu exemplo, mas o motivo que mais perturbava Strachey decorria do fato de ter 34 anos, enquanto Carrington teria por volta de 18. Em suma, declarou-se um velho e isso não era decerto um exagero para os padrões etários e culturais da época.
Bem antes, no decorrer do século 19, os padrões etários e culturais seriam ainda mais inconcebíveis se fossem cotejados com os contemporâneos. Quem leu Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, sabe como ele caracterizava o lugar da criança naquela época. Condensando este outro exemplo contrastivo, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Por isso, a cultura do tempo lhe impunha um papel que era como que uma antevisão da velhice prematura já indicada nas roupas fechadas e austeras, num comportamento em tudo inconcebível não apenas para a criança do presente, mas para o próprio adulto, para não dizer o próprio velho, se me atrevo a pensar em gente como Paul McCartney e outros ídolos da sua geração como velhos.
Se o amor muda através das idades, como leio num poema de Drummond, também a idade muda através das idades. Hoje chegamos aos 60, ultrapassamos os 60 e todavia já não somos velhos. A noção de idade mudou tão radicalmente que seria hoje ofensivo identificar alguém maior de 60, seja ou não ídolo das massas, como velho. Parece-me muito positiva essa distensão da vida ativa e mesmo hedonista para além dos limites que convencionalmente separavam a velhice e mesmo a maturidade da juventude. Se esta era vivida e concebida como a estação própria à participação ampla no mundo, sobretudo o mundo do prazer, da festa e da experiência amorosa, a maturidade e a velhice tendiam a isolar o homem e sobretudo a mulher numa esfera da vida onde não mais conviria “entregar-se aos prazeres da vida” cedendo a tentações apenas concebíveis e aceitáveis na juventude.
Se numa ponta o adolescente ingressou no território “adulto” que garante acesso à vida desatada de limites e repressões consagrados pela tradição, na outra o ser maduro ou já idoso conquistou a liberdade de continuar no mercado, como agora se diz, traduzido este termo num sentido muito amplo. Dizendo de um outro modo: o mercado do consumo novamente compreendido num sentido muito amplo. Mesclando as idades no mesmo balaio, ou no mesmo show da vida, para repisar o lugar comum difundido por um célebre e já longevo programa de televisão, as fronteiras etárias convencionais foram diluídas no reino da permissividade desencadeada pela cultura do narcisismo consumista.
Frisei acima que esse fenômeno geral é positivo, mas importa também ressaltar o que na outra dobra encerra de negativo. Apelando para um outro lugar comum, não há afinal bem que não contenha mal, assim como não há solução que não gere outro problema. O problema do adultescente - valendo-me aqui de um neologismo que já empreguei no artigo Elogio da Inutilidade, também postado neste blog - é que agora todos tem horror à velhice e por extensão à morte. Envelhecer tornou-se um processo tão degradante, tão incompatível com nossa ilusão narcisista embalada pelo mito da juventude eterna que o discurso publicitário logo cuidou de suprimir estas palavras repulsivas: velhice, idoso e todos os similares que remetem à imagem crua e iniludível do corpo castigado pela idade e o tempo. Se o discurso publicitário se encarrega de refazer a linguagem e as imagens que remetem a essa dobra detestável da realidade, nosso narcisismo soprado por mil velas incandescentes cuida do resto. É certo que, se é impensável quebrarmos todos os espelhos que nos refletem como somos, todos hoje fazemos o possível para suprimir o insuprimível: até segunda ordem da ciência, a verdadeira religião do nosso tempo, somos ainda seres mortais.
Portanto, estamos condenados a um ciclo biológico que foi sem dúvida estendido e profundamente modificado, como acima indiquei, mas continuamos envelhecendo e morrendo. Paul McCartney e nossos ídolos da sua geração expressam um inusitado sentido de vitalidade e desafio às convenções do tempo e da cultura, mas eles próprios, condenados à contingência da espécie, envelhecem e morrem. No caso deles sobrevive a obra, símbolo de uma imortalidade inexistente na vida de quem a cria. É nisso e apenas nisso que transcendem nossa humanidade comum. No mais, continuamos todos sendo mortais. Portanto, seria prudente, talvez algo sábio, encararmos na linha do espelho mais real e imperativo a sombra do nada que lá no fundo da imagem nos espreita e espera. Como sussurra a voz arrepiante da Indesejada das Gentes: busca um sentido para tua mortalidade, pois um dia não haverá mais dia...
Recife, 24 de novembro de 2010.
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Chico Buarque do Brasil

Chico Buarque do Brasil, volume publicado em 2004 e organizado por Rinaldo de Fernandes, é um dentre muitos títulos que celebram em tom consensual a trajetória artística e biográfica de Chico Buarque. Se ligeiramente consideramos a importância extraordinária de Chico Buarque na cultura brasileira desde meados dos anos 1960, torna-se dispensável reconhecer o significado de obras dessa natureza. Começo no entanto por ressaltar esse aspecto dominante da obra precisamente por acreditar que a atividade crítica deve ser sempre crítica, mesmo quando sua função é apreciar artistas em torno dos quais se articula a rede consensual apreensível na fortuna crítica de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso e outras raras e definitivas expressões da música e da cultura brasileira.
Embora contenha pouca documentação original, o volume tem o mérito de reunir dados biográficos e críticos relevantes e talvez ainda desconhecidos dos que pouco leem sobre música brasileira. É muito interessante, por exemplo, a documentação reunida na Cronologia. Penso em particular na matéria de uma entrevista que Chico concedeu a Augusto Massi. Nela ele revela fontes preciosas para que melhor se aprecie sua iniciação literária. De início, lê exclusivamente autores franceses sob sugestão do próprio pai, Sérgio Buarque. Pelo que se sabe, a partir de declarações do próprio Chico, Sérgio era um estudioso incansável e metódico. Certamente a mais forte evidência disso está contida na obra de historiografia que produziu, talvez a melhor que temos, também na sua fina erudição crítica espelhada na produção jornalística reunida em livro por Antonio Arnoni Prado. Embora tivesse família numerosa, sua biblioteca era pouco acessível à intrusão dos filhos, provavelmente controlados pela sombra eficazmente protetora de Maria Amélia, sua mulher.
O próprio Chico confessa que sua iniciação literária foi uma tentativa de encontrar uma via de aproximação com o pai demasiado imerso no seu mundo de livros e símbolos. É de certo modo curioso, ou mesmo incompreensível, o fato de Chico aportar afinal na literatura brasileira não através do pai, fonte capital de conhecimento histórico e cultural sobre o Brasil, mas através de um amigo que o reprovou por viver discutindo literatura... em francês. Diante do que sei de Sérgio Buarque através de sua própria obra, causa-me estranheza saber que ele afastou o filho da literatura brasileira, quando o mais razoável seria aproximá-lo. Afinal, ele foi um dos grandes participantes do mais importante movimento literário que já tivemos na história da nossa literatura. O modernismo, dando nome ao boi, teve abrangência infinitamente maior que a literária, ainda que compreendida aqui em sentido elástico. Sérgio confirma de resto, quando consideramos sua trajetória intelectual, este fato que vai aqui brevemente mencionado e melhor expus num artigo já postado no meu blog: Modernismo e Ciências Sociais.
A opção de artistas literariamente privilegiados como Chico Buarque e Caetano Veloso pela música constitui evidência do status intelectual que nossa música popular conquista a partir da bossa nova e sobretudo da contribuição estética e intelectual fundamentais que Vinícius de Moraes e Tom Jobim transportaram para o seu curso tão admiravelmente renovado e elevado a partir de meados dos anos 1950. O primeiro, como se sabe, procedia da tradição poética canônica, portanto restrita a um público altamente letrado, enquanto o segundo era portador de uma sofisticada formação musical erudita, embora vivesse catando moeda como pianista nos inferninhos da noite carioca para sobreviver. Além disso, o pai de Tom, assim como o de Vinícius, era poeta, ainda que retardatariamente parnasiano. Este fato sugere o quanto é lenta a difusão dos grandes movimentos de renovação literária, mesmo no círculo das camadas letradas do qual ambos faziam parte.
Não fosse a mutação profunda sofrida pela música popular a partir desse período, jovens de formação privilegiada como Chico e Caetano teriam provavelmente derivado para outros campos de expressão cultural. O próprio Caetano sublinha bem essa circunstância. Como Chico, embora de extrato social inferior e preso na adolescência ao ambiente provinciano de Santo Amaro da Purificação, ele já lia autores literários de importância, já manifestava interesse pela filosofia e também já esboçara alguns passos de iniciação na crítica de cinema. Como ele próprio reconhece, foi a descoberta da bossa nova, antes de tudo da revolução estética introduzida por João Gilberto no cenário musical brasileiro, o que o atraiu para a música. A tudo isso se soma um fator de ordem sociológica importante, a expansão dos meios de comunicação de massa no momento em que a geração de Chico e Caetano ingressa no território musical.
Chico e Caetano tornaram-se amigos no início de suas carreiras. Mas logo a amizade foi estremecida pela própria turbulência estética e política que tão profundamente caracterizou a década de 1960, talvez a mais rica do século 20 brasileiro. É provável que somente a de 1920, desdobrada na década seguinte, lhe possa fazer páreo. A amizade foi abalada quando o tropicalismo irrompeu na cena musical em meio a uma extraordinária atmosfera de turbulência e radicalismo ideológico. A corrente dominante nos movimentos de esquerda era o nacionalismo cultural. Sua radicalização foi tão notável que mesmo representantes da bossa nova como Vinícius de Moraes e Carlos Lyra acabaram atraídos pela música engajada, pela regressão a temas que punham a música e a arte em geral na linha de frente do combate político à realidade social sustentada pelo regime militar. À parte Tom Jobim e João Gilberto, praticamente todos aderem a um movimento de regressão às fontes tradicionais da música e da cultura brasileira afastando-se assim da sofisticação camerística e liricamente apolítica da bossa nova. A pesquisa das fontes folclóricas e nordestinas, de braço dado com o sentido de engajamento político, prevalece na atmosfera agitada dos festivais de música que irrompem somando a celebração coletiva ao embate ideológico nas salas de espetáculo.
O tropicalismo provocou um autêntico curto circuito nas esquerdas, notadamente, por razões óbvias, na esfera musical. Como movimento que alimentou ambições muito amplas, é difícil traçar num artigo ligeiro suas linhas fundamentais. Ressalto aqui, tendo em vista minhas intenções específicas, sua associação com a vanguarda erudita identificável no movimento da arte concreta, liderado pelos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e por Décio Pignatari. Augusto, o mais afinado com a música, tanto a de vanguarda erudita quanto a popular, escreveu naquele momento uma série de artigos polêmicos, de alta tensão crítica, em defesa do tropicalismo. Esses artigos, acrescidos de outros assinados por Júlio Medaglia e Gilberto Mendes, seus companheiros de armas dentro da vanguarda erudita, visavam a defesa radical das mudanças introduzidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Os artigos, que compreendem ainda uma ótima apreciação geral da bossa nova escrita por Brasil Rocha Brito e entrevistas com Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram mais tarde reunidos no volume Balanço da Bossa. Este volume foi mais tarde ampliado e reeditado com o acréscimo de um subtítulo “e outras bossas”. Mesmo o leitor que dele em muitos pontos discorda, é o meu caso, curva-se à força dos fatos para reconhecer que é a melhor avaliação crítica da música à época produzida. Falando da minha experiência de leitor e amante da música brasileira, friso que muito aprendi com esse livro, decisivo para modificar e aprimorar um pouco minha percepção da música popular e das íntimas conexões que a atavam à realidade política e social daquele momento extraordinariamente turbulento e criativo.
Como é típico das vanguardas, o elogio da ruptura estética era indissociável do ataque às correntes opostas. Foi nesse contexto que Augusto de Campos identificou na música de Chico Buarque uma expressão conservadora que precisaria ser criticada sem complacência. Sendo assim, propõe uma relação de antagonismo personalizada em Caetano e Chico. Ampliando o elo das relações antagônicas para melhor definir as linhas de força da cultura brasileira a partir do modernismo, opõe Oswald de Andrade a Mário de Andrade. Estes constituíram as matrizes de um embate renovado na década de 1960 no tropicalismo liderado por Caetano em oposição ao nacionalismo conservador apreensível na música de Chico povoada por bandas, Carolinas e ecos nostálgicos do passado brasileiro.
Oswald de Andrade, que ficara confinado ao quase esquecimento durante duas décadas, é reposto na linha de frente dos movimentos artísticos que agitam a cena cultural nos anos 1960. Além do papel decisivo desempenhado pelos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, outros focos de radicalização estética desencavam sua obra para acirrar o clima de irreverência, rebeldia e ruptura anárquica dos códigos dominantes. É o caso do Teatro Oficina, liderado por José Celso Correa, de Glauber Rocha na esfera do cinema novo, sobretudo do tropicalismo capitaneado por Caetano Veloso, que num certo sentido articula todas essas correntes contestadoras não apenas da cultura oficial guarnecida pela ditadura militar, mas também do nacionalismo de esquerda.
Os representantes da arte concreta, adestrados na polêmica e no combate agressivo a tudo que lhes parecesse conservador, reiteravam assim o sentido mais definidor da vanguarda. Na sua obsessão pelo novo sempre contraposto ao velho, da ruptura no avesso da rotina ou da repetição, viam novidade até onde ela não existia. Apostando no caráter potencialmente renovador dos meios de massa, que poderiam ser agenciados em defesa da ruptura estética e política, associaram-se não apenas ao tropicalismo, mas também à jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos, também de Vanderléa. Eles, os concretistas, que tanto combateram em prol da radicalidade da arte contemporânea, acabaram fabricando aliados inexistentes quando festivamente se integraram à corrente da arte de consumo promovida pelos novos meios de massa. E o fizeram batendo de frente contra o nacionalismo cultural de esquerda e de direita, aí incluída a figura consensual de Chico Buarque e sua música que, sem dúvida, soava conservadora se apreciada pelo metro formal e temático da tropicália.
Outro artifício de que Augusto de Campos se valeu foi o de adotar a tipologia procedente de Ezra Pound, que opõe os inventores, ou a radicalidade vanguardista, aos mestres e por fim aos diluidores. É fácil concluir que identifica Caetano e Gilberto Gil com a invenção, deprecia Chico como um mestre e silencia sobre os diluidores, salvo se os identifica com o grupo impreciso que repisa e dilui os clichês do nacionalismo cultural. Augusto de Campos tem certa margem de razão, mas muito do que combate, assim como muito do que prega, transborda da sua receita polarizadora e intransigente. Em suma, o senso de mediação crítica sai bastante chamuscado pelo ardor vanguardista que singulariza sua ação no âmbito da crítica da música popular.
Dando provas de grande vitalidade criativa, Chico se renovou de forma extraordinária sem abrir mão de sua coerência e fidelidade substancial à melhor e mais viva tradição cultural do Brasil. Quando isso se tornou evidente, o próprio Augusto de Campos voltou à cena do crime em tom mais contemporizador observando que Chico “é ainda um mestre mas se contaminou de invenção” Como seria previsível, atribui o ingrediente de invenção à influência saudavelmente contaminadora de Caetano Veloso. O artifício crítico constitui apenas uma variação da leitura que ele e seu irmão Haroldo fazem de Macunaíma quando subordinam a obra inventiva de Mário de Andrade ao espírito da antropofagia ideado por Oswald de Andrade.
Assentada a poeira da polêmica, logo ficou claro que a aposta dos vanguardistas no caráter de radicalidade da música integrada ao circuito do consumo de massa não passava de canoa furada. É certo que a jovem guarda continha elementos de inegável renovação cultural, à revelia da consciência ingênua dos seus líderes. O exemplo dos Beatles, repetidas vezes invocado por Augusto de Campos, é ainda mais forte. Eles sem dúvida renovaram a música de massa, o pop internacional de modo extraordinário. Mas tudo não passou de um episódio isolado no cerne de um sistema de produção e consumo de massa cuja dominante é a repetição, a diluição que tanta hostilidade inspira àqueles identificados com a vanguarda.
Quanto a Chico e Caetano, felizmente se reencontraram em termos pessoais acima dessas polarizações artificiais propostas por Augusto de Campos. A evidência maior da inconsistência desses antagonismos infundados, tão frequentemente promovidos pelos que personificam a rebeldia estética e a radicalidade das vanguardas, está inscrita antes de tudo na própria qualidade da obra musical que produziram dos anos 1960 ao presente. Um dos grandes méritos do tropicalismo consistiu precisamente no combate que moveu contra a intolerância estética e política traduzida em preconceitos contra a jovem guarda, o baião simbolizado em Luiz Gonzaga e até a nossa tradição brega, o mau gosto em geral, para usar aqui uma expressão bem vaga. Como todavia não vivemos isentos de preconceitos e apreciações duvidosas, o próprio tropicalismo entronizou na cena cultural um outro modo de preconceito, o que visa o nacionalismo cultural sem as discriminações devidas, o que opõe arbitrariamente a tradição à ruptura. Felizmente há muito foi superada a necessidade de os grupos de criação e recepção musical oporem esquematicamente Chico Buarque a Caetano Veloso.
Marcadores:
Augusto de Campos,
Bossa Nova,
Caetano Veloso,
Chico Buarque,
Mário de Andrade,
Música,
Oswald de Andrade,
Sérgio Buarque,
Tom Jobim,
Tropicalismo,
Vinícius de Moraes
Assinar:
Postagens (Atom)