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quarta-feira, 5 de março de 2014

Eliane Brum


Eliane Brum não existe. Não faltará quem leia esta frase certo de que estou troçando com a realidade ou simplesmente enlouqueci. Afinal, as evidências apreensíveis pelo senso comum são irrefutáveis: Eliane Brum é repórter, jornalista, colunista, documentarista, ficcionista... Eu próprio admito ter diante dos olhos outra evidência aparente: um livro intitulado A menina quebrada. Na aba da contracapa examino demoradamente a foto de uma mulher identificada como Eliane Brum. Ela me devolve o olhar com a cabeça pendida e um rosto indefinível: misto de ironia, acolhimento e uma audácia intrigantemente delicada e determinada. Mas resisto à ilusão dos sentidos e insisto em me dizer: Eliane Brum não existe. Por isso preciso inventá-la.
Vou inventar Eliane moldando-a numa personalidade passível de conter e expressar valores éticos e existenciais que eu condensaria nesta frase: nada do que é humano me é estranho. A frase, sabe o leitor, procede de Terêncio e inspirou gênios do pensamento como Karl Marx. Desdobrando esse princípio, Eliane desde cedo determinou-se a viver uma vida excepcional. Embora consciente dos limites por vezes cruéis impostos pela realidade objetiva, ela faz de sua inquietação uma permanente força de reinvenção de si própria. Dou-lhe a palavra para que não digam que desenho toscamente minha personagem como se ela fosse um fantoche à serviço da minha imaginação arbitrária:
“... não basta saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. (...) Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau de livre arbítrio”.
José Castello escreveu um fascinante capítulo no qual narra seus encontros com Clarice Lispector. Refiro-me ao capítulo que abre o volume Inventário das Sombras. Muito jovem e tímido, tateando ainda um caminho como escritor e jornalista, ousou enviar um conto para que Clarice o apreciasse. Ela respondeu com franqueza rude, mas necessária. Disse, noutras palavras, que ele era muito covarde para escrever. Escrever para remover os véus enganadores da realidade e reinventar-se, é o caso de escritoras como Clarice e Eliane Brum, é antes de tudo um exercício de determinação e coragem. Por isso Eliane se recusa a ser um clichê e faz da escrita um ato de intransigente reivindicação da sua individualidade, isto é, da sua singularidade irredutível. Eliane há muito descobriu este milagre banal, como é da natureza de quase todos os milagres: cada um de nós é a expressão de uma singularidade irredutível. Não é espantoso que entre tantos bilhões que somos, tantos bilhões que foram e na terra de algum modo deixaram impressos os rastros de sua passagem, cada um de nós seja em algum indeterminável sentido absolutamente único? A maioria, por inconsciência ou covardia, como disse Clarice exortando José Castello a se inventar através da literatura, dobra-se às conveniências, à ilusória segurança dos que se dissolvem no anonimato, na repetição alienada apreensível na sociedade das massas. Estes anônimos, que nunca escreverão uma simples linha portadora da sua singularidade, que nunca se empenharão num ato de recusa ao rebanho da repetição, não sabem nem querem saber da existência de mulheres como Clarice e Eliane.
É difícil determinar a natureza e os limites das colunas que Eliane Brum escreve. Aliás, ela é a primeira a reconhecer a insuficiência desta classificação. Depois de muito escavar um termo que melhor qualifique o que escreve, arrisca afirmar que escreve sobre direitos humanos. Consciente, no entanto, de que sua singularidade complexa transborda da medida dos conceitos cogitáveis, resigna-se a ser o que é e de resto indicia sua originalidade: uma mulher que escreve para importunar a falsa ordem do mundo e a ilusória segurança do leitor. Por isso este termo anódino, coluna, indica de imediato um fato irrelevante: Eliane assinava a coluna da última página da revista Época. Mais tarde passou a assinar a coluna na internet. É desta que extrai o conjunto dos textos que compõem A menina quebrada.
Se me desse ao trabalho de ler a revista Época, teria inventado Eliane há muitos anos. Mas confesso que também tenho preconceitos. À diferença do brasileiro típico, orgulhoso de não ter preconceito, fato que faz dele o pior tipo de preconceituoso, tenho sem dúvida vários. Quando vi a Época exposta pela primeira vez numa banca de revista, tive a curiosidade de a folhear. Fui até a última página e olhei com vago interesse a foto dessa mulher que tanto demorei a inventar. Não perdi tempo lendo sua coluna porque minha apreciação ligeira e preconceituosa da revista fez com que eu simplesmente a ignorasse. Afinal, a revista me pareceu apenas uma versão impressa da programação televisiva da Globo, um calidoscópio de imagens e textos talhados para leitores sem fôlego mental. Navegador ocasional do Facebook, vi recentemente algumas postagens de colunas (insistirei na designação anódina, já que identifica o conjunto de textos contidos no volume A menina quebrada) assinadas por Eliane. Desta vez, felizmente, cedi à curiosidade e logo descobri estar diante de minha melhor invenção jornalística.
Como acima sugiro, o termo coluna me incomoda, incomoda tanto que eu removeria o subtítulo do livro simplesmente por enquadrar as mais de 400 páginas da prosa radical e iluminadora de Eliane Brum num conceito demasiado genérico e portanto pobre demais para sequer indicar a múltipla, complexa e perturbadora personalidade da autora. Também penso que termos alternativos como artigo ou crônica seriam insuficientes para traduzir a real dimensão desses textos que vinculam certos gêneros do jornalismo à literatura, à prosa escrita para os periódicos, mas sempre tensionada pela intenção crítica e reflexiva, o mergulho destemido de uma inteligência e sensibilidade singulares na trama trepidante e confusa do mundo cotidiano que nos assalta e fascina. Pois o que Eliane Brum escreve é uma mescla indefinível de crônica de memórias, reportagem, confissão calibrada pelo fio cortante da (auto)apreciação isenta de complacência ou dócil acomodação às idéias feitas, que de resto não são idéias, apenas automatismos mentais passíveis de acomodar nossa alienada aceitação da realidade como ela não é. É por isso que ler Eliane é um exercício de reinvenção em duas vias: reinvenção do leitor pela autora, desta por aquele.
Convém ir um pouco ao próprio livro para melhor ilustrar o que acima imprecisamente escrevi. A Apresentação já anuncia, no próprio título, o mundo que Eliane desdobrará aos olhos do leitor: “Um percurso de (des)identidades”. Os ossos do ofício (meus estudos de muitos anos dedicados à sociologia da cultura e domínios conexos) propiciaram-me certa familiaridade com os escritos e práticas pertinentes à identidade. País de extenso e traumático passado colonial e escravista, o Brasil vive ainda engavetado nos impasses da identidade cultural, que é antes uma ideologia do que um saber baseado na e aferido pela realidade objetiva. Por certo, estados como o Rio Grande do Sul e Pernambuco se distinguem nessa obsessão traduzida inclusive em práticas institucionalizadas, mitos e fantasias compensatórias para os impasses emperrados pela tradição conservadora, entre outros obstáculos.
Eliane Brum investe contras essas brumas da ideologia seu pensamento aderente às tensões do concreto, da realidade viva que continuamente desmente nossas projeções consoladoras acerca do que seria nossa identidade, individual e coletiva. Sendo jornalista e repórter, ela lida por profissão e escolha com a realidade crua dos fatos, com a empiria de um solo minado pelos ventos da mudança e da incerteza, pelas tensões desnorteantes pulsando entre o mundo globalizado e Ijuí, seu obscuro lugar de origem; entre a tradição procedente da família de imigrantes e da cultura local e as turbulências da modernidade, pós-modernidade ou como queiram designá-la os acadêmicos e teóricos. Eliane afia as armas da razão e da experiência reflexiva mirando no fundo da retina o furacão que tanto nos desconcerta e tememos. E assim se apresenta ao leitor já nas primeiras linhas do seu livro: “Escrevo porque a vida me dói, porque não seria capaz de viver sem transformar dor em palavra escrita. Mas não é só dor o que vejo no mundo. É também delicadeza, uma abissal delicadeza, e é com ela que alimento a minha fome”.
Depois de expressar as motivações primárias que a impelem para a escrita, ela acentua o papel que a dúvida também desempenha no que escreve. O que oferece ao leitor não é a certeza que os carentes de amparo e os simplistas procuram. Ela respeita a inteligência e a coragem do leitor. Por isso lhe oferece a dúvida que é sua razão de escrever ou de chegar a algum outro lugar através dela. A certeza, sabem os que ousam duvidar, não leva a lugar nenhum. Por isso ela, impiedosa, afasta das suas páginas o leitor covarde e conformista. Assim, deixa claro que sua aspiração é descentrar o leitor, erguê-lo da cadeira da certeza preguiçosa e indiferente para que ele veja verdadeiramente o mundo. Ver o mundo com olhos livres, como disse Oswald de Andrade, é mudar de lugar, deslocar a perspectiva de quem vê.
A determinação perspectivista com que Eliane Brum se debruça sobre o mundo remete a afinidades profundas com a pensadora mais radical do século 20: Hannah Arendt. O que me parece explicar a radicalidade do olhar crítico de ambas é a coragem generosa e ousada com que se movem para a perspectiva do outro, ainda quando esse outro seja o nazista, no caso de Hannah Arendt, ou o pedófilo, no caso de Eliane. Mencionei o exemplo do pedófilo (conferir a coluna intitulada “Pedófilo é gente?, pp. 87-92) porque a boa consciência do presente passou a suprimi-lo do horizonte ético e humano como um monstro. No entanto, os que ousam pensar com radicalidade sabem muito bem que a vida não é assim tão simples. Alternativas maniqueístas como isso ou aquilo, médico ou monstro, para lembrar o famoso romance de Stevenson, vítima ou algoz, culpado ou inocente, puro ou impuro são o combustível ideológico e moral que move os simplórios, os intolerantes, fanáticos, dogmáticos e, no limite, os fascistas enceguecidos pelo desejo de aniquilamento de qualquer diferença. Hannah Arendt e Eliane Brum são radicais porque ousam sair de si próprias, dos limites de toda perspectiva individual para empatizar com o outro, colocar-se imaginariamente no ponto de vista do outro. Por ousarem tanto, elas chocam e levantam fúrias de indignação e intolerância. Na verdade, elas traduzem no exercício do pensamento a coragem dos que pensam com radicalidade. Pensar com radicalidade é ser capaz de tornar-se o outro.
Chegando ao termo das considerações acima esboçadas, movido por minha teimosa determinação de inventar Eliane Brum, perguntei-me se acaso poderia encontrar uma medida ou precedente para o que ela representa como expressão singular e radical do jornalismo brasileiro. Lembrei-me então de Millôr Fernandes e Paulo Francis. Mas logo admiti que o paralelo que tinha em mente era descabido. Estes, que tanto me ensinaram e tanto aprendi a admirar, tensionavam por vezes a liberdade de pensar ao extremo da arrogância brutal e do sadismo. Não é nunca o caso de Eliane Brum. O que nela mais me impressiona é a capacidade de pensar radicalmente o mundo inspirada pelo desejo predominante de compreender o próprio inominável. Ela sabe que a natureza humana é um poço sem fundo, sabe o que contém de horripilante, e todavia mergulha até o mais fundo do fundo. Mesmo diante do horror, resiste à tentação demasiado humana da condenação, da segurança assegurada por alguma fé consoladora. Por isso tentou-me dizer que é portadora da vontade sábia dos estóicos. Mas estes pregam e refinam um sentido de compaixão humana estranho ao amor com que Eliane acolhe o mundo e melhor se expressa na forma personalizada apreensível nos sentimentos que devota aos pais, à filha e ao marido. Além disso, duvido que ela aspire ao ideal da ataraxia indissociável da filosofia estóica, embora a determinação da vontade e a aceitação do mundo, a forma como diz sim ao real, sem dúvida a aproximem dessa tradição filosófica.
Eliane Brum é uma mulher tão rara que precisei inventá-la à medida que lia seu livro apaixonante e iluminador. Como duvido em demasia, ou me tornei demasiado cético à força de medir sem ilusão o mundo humano que vejo à minha volta e, pior ainda, sou forçado a tolerar, dei por favas contadas que ela não passava de uma invenção, mais uma invenção da minha imaginação descontente. Mas preciso concluir dobrando-me à força dos fatos: Eliane Brum existe, sim. Durante dias mergulhei no seu livro seduzido pela tentação de ser ela. Se eu fosse mulher, queria ser Eliane Brum.
Recife, 8 de dezembro de 2013


sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sextilhas para Clarice


Clarice, quem foi que disse
Que a voz do amor era triste
Mais triste do que ninguém?
Há quem na vida, Clarice
Morra de dor e velhice
Só, sem amor de alguém.

A tua prosa, Clarice
Tece a tristeza mais triste
Tece alegria também.
Que outra mulher resiste
Agora que te partiste
No azul humano e além?

Se tantas foste, bem mais
Na tua mina és capaz
De outros Outros lavrar.
Sobre meu céu tua estrela
Brilha na noite mais bela
Clarice: deusa do mar.

Na noite longa, em Recife
Houve a menina Clarice
Vinda de mundos ausentes.
A vida reinventada
Nasce das formas do nada
Forjada no amor que sentes.

Adeus é a falta demente
De quem abole o presente
Depois de tudo perder.
Por isso não leio adeus
Nas linhas dos livros teus
Que são teus modos de ser.

Recife, 12 de abril de 2008.

domingo, 6 de junho de 2010

Mário de Andrade e alguns contemporâneos


Mário, G. Freyre, Graciliano...

Durante anos fui leitor apaixonado e acrítico de Mário de Andrade. Somente bem mais tarde me dei conta de que a paixão, fundada em altas motivações intelectuais e humanas, praticamente anulara em mim a percepção crítica de algumas insuficiências flagrantes no caráter e na prática intelectual de Mário. Poderia hoje com segurança assinalar alguns exemplos. Foi lendo com maior escrutínio crítico a obra de escritores como Gilberto Freyre e Graciliano Ramos que me apercebi do silêncio aparentemente inexplicável com que Mário tratou a ambos. Poderia ainda acrescentar, ocorre-me agora, Monteiro Lobato, além da corrente introspectiva e metafísica das décadas de 1930 e 1940 , na qual sobrelevam nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Clarice Lispector.

Como explicar que um crítico e leitor tão generoso e onívoro tenha ignorado de público ou considerado muito parcialmente a obra de contemporâneos tão importantes? No que se refere a Monteiro Lobato, é claro que o affair Anita Malfatti, inscrito nas origens remotas do movimento que Mário desde cedo liderou identificando-se confessadamente com seus ideais mais profundos, desempenhou papel decisivo. É compreensível que a luta por hegemonia estética e intelectual tenha dividido ambos em campos convencionalmente opostos. Digo convencionalmente opostos por ter hoje nítida consciência de que Lobato não era um pré-modernista, para ficar numa distinção superficial consagrada pela historiografia oficial do modernismo. É portanto compreensível que se tenham enfrentado nestes termos; não é porém aceitável o fato de Mário não haver nunca reconhecido de público os méritos literários e intelectuais do seu adversário, que de resto supera boa parte da corte medíocre que cercou o autor de Macunaíma. Mais que isso, os méritos do grande agente modernizador do Brasil que foi Monteiro Lobato. A omissão é ainda mais intrigante se consideramos o quanto a prática pública de ambos convergia.

A omissão de Gilberto Freyre na obra de Mário é uma injustiça ainda mais grave, indigna de um intelectual que pelejou por ser isento de paixões mesquinhas no trato das questões culturais. Decerto afetado pela antipatia recíproca que desde cedo os separou, é também compreensível, dentro destes limites, a reserva e frieza com que tratou o pernambucano. Quando porém Casa-Grande & Senzala vem a público, já não há como objetivamente silenciar sobre a grandeza do feito de Gilberto Freyre. Se a isso acrescentarmos o fato de que compartilhavam ideais nacionalistas convergentes, como explicar que Mário jamais tenha escrito e publicado sequer uma nota crítica reconhecendo os méritos extraordinários da obra marco de Freyre?

Ocorre-me neste passo evocar dois fatos provindos de fontes insuspeitas para evidenciar a parcialidade crítica de Mário e sua vulnerabilidade à ação ressentida contrária a tudo que de público pregou em nome do seu humanismo cristão. O primeiro está contido em Ramais e Caminho, ensaio de biografia intelectual assinado por Telê Ancona Lopez, zeladora fiel da obra e do acervo de Mário. A pesquisa em que o livro se apóia deixa claro não somente o fato de que Mário leu cuidadosa e anotadamente Casa-Grande & Senzala, mas que também distinguiu a obra como uma das fontes do seu projeto cultural em defesa dos valores nacionalistas.

O segundo fato provém de uma longa conversa com Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, que em 1995 franquearam-me o privilégio de uma demorada visita à sua casa. Conversamos livremente sobre muitos assuntos. Por motivos óbvios, os dominantes foram Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Confesso que me retirei levando comigo algumas grandes revelações e surpresas ouvidas do nosso grande crítico. Registrei um tanto extensamente a visita e a conversa no diário que então escrevia em São Paulo, onde provisoriamente residi, pela última vez, no primeiro semestre de 1995. Dada a oportunidade do assunto, aqui registro de memória o que importa para os argumentos desta entrada.

Ouvi de Antonio Candido a revelação de que Casa-Grande & Senzala era o livro que gostaria de ter escrito. Embora tenha feito severas restrições a Gilberto Freyre e a seu comportamento ideológico, sobretudo nos anos tardios deste, restrições que substancialmente endosso, foi de isenção exemplar no reconhecimento dos méritos da obra na medida em que independem da biografia do autor. Pena que de público tenha sido omisso por tanto tempo, o que novamente prova que o juízo e a ação de nenhum intelectual se manifestam integralmente a salvo do ressentimento e até das paixões mesquinhas.

Mas o que desejo observar a propósito de Mário é o fato de que, ainda segundo Antonio Candido, lá pelos idos em que Gilberto sofreu tenaz perseguição do interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa louvável de mobilizar publicamente a opinião intelectual paulista em defesa do escritor pernambucano. Teve então a idéia de circular um abaixo-assinado recolhendo assinaturas ilustres como ato de denúncia contra o arbítrio do interventor. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento, recusou-se a assumir qualquer posição pública em defesa de Freyre.

Quanto a Graciliano Ramos o juízo do tempo o confirma como a expressão máxima da corrente literária hegemônica a partir dos anos trinta: o Romance Social do Nordeste. É certo que à época era bem maior o prestígio de José Lins do Rego, prestígio confirmado e reforçado pela apreciação crítica de Mário que chegou ao extremo de nele identificar o maior romancista brasileiro. Isso está explicitamente anotado num artigo que dedicou à obra de Lins do Rego, como qualquer interessado poderia comprovar lendo O Empalhador de Passarinho. Que eu saiba, Mário nunca escreveu qualquer artigo sobre Graciliano Ramos. É um outro fato de difícil explicação. Seus contemporâneos de mais alto valor crítico (como Carpeaux, Álvaro Lins, Antonio Candido, para ficar na menção dos mais notáveis) foram unânimes em reconhecer o valor da obra de Graciliano. O juízo do tempo, como acima ressaltei, veio apenas confirmar a melhor apreciação literária brasileira. Hoje pode-se com segurança afirmar que o prestígio de Lins do Rego encolheu um pouco. O de um outro concorrente de peso, Jorge Amado, encolheu ainda mais, pelo menos aos olhos da crítica especializada. Eu mesmo há muito me desinteressei pela obra do baiano, que hoje releria muito seletivamente.

Dado o fato de que a orientação crítico-ideológica fundamental de Mário estava associada a esta corrente hegemônica da literatura brasileira, não há como explicar por aí sua resistência ou silêncio perante a obra de Graciliano. Embora dissentindo da orientação dos nordestinos quando estes tendiam a sobrepor a ideologia regionalista e política aos valores prioritariamente estéticos da obra, Mário alinhou-se substancialmente a esta tendência, tanto que foi talvez o crítico mais entusiasta da obra de Lins do Rego. Ora, dentre todos os nordestinos Graciliano foi o mais coerentemente literário no sentido de que sempre se recusou a subordinar a obra a interesses ideológicos. Qualquer leitor corrente da nossa literatura sabe que foi único entre seus pares na prioridade que sempre conferiu aos valores estéticos da obra, único no rigor ideológico e formal com que construiu sua obra sem qualquer concessão às pressões políticas do tempo. Seria um motivo adicional para Mário reconhecer-lhe a superioridade perante os outros, já que este era um dos critérios inegociáveis da crítica militante que exerceu no período. Como então explicar o fato de que nunca dedicou qualquer estudo ou artigo à apreciação do romancista alagoano?
Era por identificar-se com as tendências e valores expressos na corrente do romance nordestino, assim como na literatura compreendida em geral como uma complexa articulação de valores estéticos e pragmatismo social, que Mário fazia reservas ao romance socialmente desinteressado. Isso explicaria, presumo, suas restrições – às vezes asperamente injustas, como foi o caso da sua apreciação de Lúcio Cardoso – ao romance de corte psicológico e metafísico. Que eu saiba, não registrou de público, com o entusiasmo devido, a extraordinária estréia de Clarice Lispector. Outros contemporâneos, igualmente sensíveis aos valores ideológicos da obra, souberam identificar em Perto do Coração Selvagem um sopro surpreendente e renovador da ficção brasileira. Foi o caso de Sérgio Milliet – acho que também Álvaro Lins, não lembro agora com certeza – e sobretudo o então jovem crítico Antonio Candido, que soube perceber os méritos extraordinários da estreante. Mário, entretanto, passou ao largo de Clarice e de um outro importante romancista de orientação artística similar: Lúcio Cardoso.

Durante muito tempo, como principiei assinalando nesta entrada já extensa, não me apercebi destas insuficiências de Mário, algumas comprovadamente indignas do grande homem e escritor que foi. Não as percebia devido a minhas limitações intelectuais. Mas pondero haver um outro fator concorrente, talvez mais decisivo. É que li Mário com grande paixão desde que tomei contato com sua obra. Admito que a influência que exerceu sobre mim foi imensa, provavelmente maior que a exercida por qualquer outro escritor. Hoje conscientemente dou prioridade a vários outros, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A importância e influência da obra e da vida de Mário persistem em mim, claro, pois é em muitos sentidos um escritor definitivo na nossa cultura e literatura. Mas posso hoje medi-lo com uma isenção e uma consciência crítica que sem dúvida pesam no sentido de encurtar sua medida. Noutras palavras, acredito ler hoje mais a medida real e falível, como de resto a de qualquer indivíduo criador, do que a ideal nutrida por um leitor inexperiente, menos cultivado intelectualmente e demasiado apaixonado pelas virtudes humanas do escritor. Por isso já escrevi, e repito, que Mário de Andrade é um dos raros escritores que gostaria de ter conhecido. Segundo minha experiência, antes lida do que vivida, a maioria dos escritores importa pela obra que realiza, não a vida que viveram. Aliás, esta é com frequência decepcionante do ponto de vista ético e amplamente humano. Por isso há muito aprendi que o que verdadeiramente importa é a obra. É ela quem salva o melhor da nossa humanidade, a começar pela dos próprios que a inventam.

A paixão a que aludo deriva em particular da humanidade generosa que Mário de Andrade imprimiu a tudo que criou e escreveu. Neste sentido, diria ainda que é um artista único. Apesar de hoje pôr o dedo em algumas das suas insuficiências mais evidentes, acima grosseiramente indicadas, continuo distinguindo-o como nosso escritor mais generoso, como um artista tocado por valores humanistas palpitantes na obra quanto na biografia. É esta associação que me parece excepcional na maioria dos artistas. Até onde minha experiência de leitor e minha experiência de convívio intelectual (esta bem mais modesta) me autorizam ajuizar sobre o assunto, afirmo hoje com serena convicção que me desinteressei largamente das possibilidades de convívio com intelectuais. A razão disso, como acima salientei e não me poupo de repetir, radica na consciência de que o melhor deles está contido na obra produzida, não na biografia, não no convívio convencional com seus pares ou com o semelhante em geral. Vistos e vividos de perto, os artistas denunciam no que são e fazem as mesmas imperfeições da nossa humanidade pouco atraente ou edificante, se a despimos das idealizações narcisistas com que a vemos e nos vemos.

Mário de Andrade é talvez o único exemplo de artista cuja vida no sentido acima proposto é passível de ombrear com os méritos da obra, senão mesmo superá-la. Esta verdade é aferível antes de tudo na leitura da sua correspondência e no depoimento muitas vezes comovente dos que tiveram o privilégio de merecer sua amizade e dedicação. Sua correspondência, documento único na cultura brasileira, está aí para quem queira verificar o quanto imprimiu de humanidade generosa a tudo que criou e sobretudo às amizades que soube conquistar e manter. É esta para mim a grandeza maior da obra de Mário de Andrade. A ela devo, quando ainda mais jovem e carente de um sopro de humanidade substitutiva na minha solidão amargada no meio em que vivi, uma inesquecível experiência de beleza e generosidade simbolicamente compartilhada.

31 de julho de 2004.