quarta-feira, 5 de março de 2014

Eliane Brum


Eliane Brum não existe. Não faltará quem leia esta frase certo de que estou troçando com a realidade ou simplesmente enlouqueci. Afinal, as evidências apreensíveis pelo senso comum são irrefutáveis: Eliane Brum é repórter, jornalista, colunista, documentarista, ficcionista... Eu próprio admito ter diante dos olhos outra evidência aparente: um livro intitulado A menina quebrada. Na aba da contracapa examino demoradamente a foto de uma mulher identificada como Eliane Brum. Ela me devolve o olhar com a cabeça pendida e um rosto indefinível: misto de ironia, acolhimento e uma audácia intrigantemente delicada e determinada. Mas resisto à ilusão dos sentidos e insisto em me dizer: Eliane Brum não existe. Por isso preciso inventá-la.
Vou inventar Eliane moldando-a numa personalidade passível de conter e expressar valores éticos e existenciais que eu condensaria nesta frase: nada do que é humano me é estranho. A frase, sabe o leitor, procede de Terêncio e inspirou gênios do pensamento como Karl Marx. Desdobrando esse princípio, Eliane desde cedo determinou-se a viver uma vida excepcional. Embora consciente dos limites por vezes cruéis impostos pela realidade objetiva, ela faz de sua inquietação uma permanente força de reinvenção de si própria. Dou-lhe a palavra para que não digam que desenho toscamente minha personagem como se ela fosse um fantoche à serviço da minha imaginação arbitrária:
“... não basta saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. (...) Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau de livre arbítrio”.
José Castello escreveu um fascinante capítulo no qual narra seus encontros com Clarice Lispector. Refiro-me ao capítulo que abre o volume Inventário das Sombras. Muito jovem e tímido, tateando ainda um caminho como escritor e jornalista, ousou enviar um conto para que Clarice o apreciasse. Ela respondeu com franqueza rude, mas necessária. Disse, noutras palavras, que ele era muito covarde para escrever. Escrever para remover os véus enganadores da realidade e reinventar-se, é o caso de escritoras como Clarice e Eliane Brum, é antes de tudo um exercício de determinação e coragem. Por isso Eliane se recusa a ser um clichê e faz da escrita um ato de intransigente reivindicação da sua individualidade, isto é, da sua singularidade irredutível. Eliane há muito descobriu este milagre banal, como é da natureza de quase todos os milagres: cada um de nós é a expressão de uma singularidade irredutível. Não é espantoso que entre tantos bilhões que somos, tantos bilhões que foram e na terra de algum modo deixaram impressos os rastros de sua passagem, cada um de nós seja em algum indeterminável sentido absolutamente único? A maioria, por inconsciência ou covardia, como disse Clarice exortando José Castello a se inventar através da literatura, dobra-se às conveniências, à ilusória segurança dos que se dissolvem no anonimato, na repetição alienada apreensível na sociedade das massas. Estes anônimos, que nunca escreverão uma simples linha portadora da sua singularidade, que nunca se empenharão num ato de recusa ao rebanho da repetição, não sabem nem querem saber da existência de mulheres como Clarice e Eliane.
É difícil determinar a natureza e os limites das colunas que Eliane Brum escreve. Aliás, ela é a primeira a reconhecer a insuficiência desta classificação. Depois de muito escavar um termo que melhor qualifique o que escreve, arrisca afirmar que escreve sobre direitos humanos. Consciente, no entanto, de que sua singularidade complexa transborda da medida dos conceitos cogitáveis, resigna-se a ser o que é e de resto indicia sua originalidade: uma mulher que escreve para importunar a falsa ordem do mundo e a ilusória segurança do leitor. Por isso este termo anódino, coluna, indica de imediato um fato irrelevante: Eliane assinava a coluna da última página da revista Época. Mais tarde passou a assinar a coluna na internet. É desta que extrai o conjunto dos textos que compõem A menina quebrada.
Se me desse ao trabalho de ler a revista Época, teria inventado Eliane há muitos anos. Mas confesso que também tenho preconceitos. À diferença do brasileiro típico, orgulhoso de não ter preconceito, fato que faz dele o pior tipo de preconceituoso, tenho sem dúvida vários. Quando vi a Época exposta pela primeira vez numa banca de revista, tive a curiosidade de a folhear. Fui até a última página e olhei com vago interesse a foto dessa mulher que tanto demorei a inventar. Não perdi tempo lendo sua coluna porque minha apreciação ligeira e preconceituosa da revista fez com que eu simplesmente a ignorasse. Afinal, a revista me pareceu apenas uma versão impressa da programação televisiva da Globo, um calidoscópio de imagens e textos talhados para leitores sem fôlego mental. Navegador ocasional do Facebook, vi recentemente algumas postagens de colunas (insistirei na designação anódina, já que identifica o conjunto de textos contidos no volume A menina quebrada) assinadas por Eliane. Desta vez, felizmente, cedi à curiosidade e logo descobri estar diante de minha melhor invenção jornalística.
Como acima sugiro, o termo coluna me incomoda, incomoda tanto que eu removeria o subtítulo do livro simplesmente por enquadrar as mais de 400 páginas da prosa radical e iluminadora de Eliane Brum num conceito demasiado genérico e portanto pobre demais para sequer indicar a múltipla, complexa e perturbadora personalidade da autora. Também penso que termos alternativos como artigo ou crônica seriam insuficientes para traduzir a real dimensão desses textos que vinculam certos gêneros do jornalismo à literatura, à prosa escrita para os periódicos, mas sempre tensionada pela intenção crítica e reflexiva, o mergulho destemido de uma inteligência e sensibilidade singulares na trama trepidante e confusa do mundo cotidiano que nos assalta e fascina. Pois o que Eliane Brum escreve é uma mescla indefinível de crônica de memórias, reportagem, confissão calibrada pelo fio cortante da (auto)apreciação isenta de complacência ou dócil acomodação às idéias feitas, que de resto não são idéias, apenas automatismos mentais passíveis de acomodar nossa alienada aceitação da realidade como ela não é. É por isso que ler Eliane é um exercício de reinvenção em duas vias: reinvenção do leitor pela autora, desta por aquele.
Convém ir um pouco ao próprio livro para melhor ilustrar o que acima imprecisamente escrevi. A Apresentação já anuncia, no próprio título, o mundo que Eliane desdobrará aos olhos do leitor: “Um percurso de (des)identidades”. Os ossos do ofício (meus estudos de muitos anos dedicados à sociologia da cultura e domínios conexos) propiciaram-me certa familiaridade com os escritos e práticas pertinentes à identidade. País de extenso e traumático passado colonial e escravista, o Brasil vive ainda engavetado nos impasses da identidade cultural, que é antes uma ideologia do que um saber baseado na e aferido pela realidade objetiva. Por certo, estados como o Rio Grande do Sul e Pernambuco se distinguem nessa obsessão traduzida inclusive em práticas institucionalizadas, mitos e fantasias compensatórias para os impasses emperrados pela tradição conservadora, entre outros obstáculos.
Eliane Brum investe contras essas brumas da ideologia seu pensamento aderente às tensões do concreto, da realidade viva que continuamente desmente nossas projeções consoladoras acerca do que seria nossa identidade, individual e coletiva. Sendo jornalista e repórter, ela lida por profissão e escolha com a realidade crua dos fatos, com a empiria de um solo minado pelos ventos da mudança e da incerteza, pelas tensões desnorteantes pulsando entre o mundo globalizado e Ijuí, seu obscuro lugar de origem; entre a tradição procedente da família de imigrantes e da cultura local e as turbulências da modernidade, pós-modernidade ou como queiram designá-la os acadêmicos e teóricos. Eliane afia as armas da razão e da experiência reflexiva mirando no fundo da retina o furacão que tanto nos desconcerta e tememos. E assim se apresenta ao leitor já nas primeiras linhas do seu livro: “Escrevo porque a vida me dói, porque não seria capaz de viver sem transformar dor em palavra escrita. Mas não é só dor o que vejo no mundo. É também delicadeza, uma abissal delicadeza, e é com ela que alimento a minha fome”.
Depois de expressar as motivações primárias que a impelem para a escrita, ela acentua o papel que a dúvida também desempenha no que escreve. O que oferece ao leitor não é a certeza que os carentes de amparo e os simplistas procuram. Ela respeita a inteligência e a coragem do leitor. Por isso lhe oferece a dúvida que é sua razão de escrever ou de chegar a algum outro lugar através dela. A certeza, sabem os que ousam duvidar, não leva a lugar nenhum. Por isso ela, impiedosa, afasta das suas páginas o leitor covarde e conformista. Assim, deixa claro que sua aspiração é descentrar o leitor, erguê-lo da cadeira da certeza preguiçosa e indiferente para que ele veja verdadeiramente o mundo. Ver o mundo com olhos livres, como disse Oswald de Andrade, é mudar de lugar, deslocar a perspectiva de quem vê.
A determinação perspectivista com que Eliane Brum se debruça sobre o mundo remete a afinidades profundas com a pensadora mais radical do século 20: Hannah Arendt. O que me parece explicar a radicalidade do olhar crítico de ambas é a coragem generosa e ousada com que se movem para a perspectiva do outro, ainda quando esse outro seja o nazista, no caso de Hannah Arendt, ou o pedófilo, no caso de Eliane. Mencionei o exemplo do pedófilo (conferir a coluna intitulada “Pedófilo é gente?, pp. 87-92) porque a boa consciência do presente passou a suprimi-lo do horizonte ético e humano como um monstro. No entanto, os que ousam pensar com radicalidade sabem muito bem que a vida não é assim tão simples. Alternativas maniqueístas como isso ou aquilo, médico ou monstro, para lembrar o famoso romance de Stevenson, vítima ou algoz, culpado ou inocente, puro ou impuro são o combustível ideológico e moral que move os simplórios, os intolerantes, fanáticos, dogmáticos e, no limite, os fascistas enceguecidos pelo desejo de aniquilamento de qualquer diferença. Hannah Arendt e Eliane Brum são radicais porque ousam sair de si próprias, dos limites de toda perspectiva individual para empatizar com o outro, colocar-se imaginariamente no ponto de vista do outro. Por ousarem tanto, elas chocam e levantam fúrias de indignação e intolerância. Na verdade, elas traduzem no exercício do pensamento a coragem dos que pensam com radicalidade. Pensar com radicalidade é ser capaz de tornar-se o outro.
Chegando ao termo das considerações acima esboçadas, movido por minha teimosa determinação de inventar Eliane Brum, perguntei-me se acaso poderia encontrar uma medida ou precedente para o que ela representa como expressão singular e radical do jornalismo brasileiro. Lembrei-me então de Millôr Fernandes e Paulo Francis. Mas logo admiti que o paralelo que tinha em mente era descabido. Estes, que tanto me ensinaram e tanto aprendi a admirar, tensionavam por vezes a liberdade de pensar ao extremo da arrogância brutal e do sadismo. Não é nunca o caso de Eliane Brum. O que nela mais me impressiona é a capacidade de pensar radicalmente o mundo inspirada pelo desejo predominante de compreender o próprio inominável. Ela sabe que a natureza humana é um poço sem fundo, sabe o que contém de horripilante, e todavia mergulha até o mais fundo do fundo. Mesmo diante do horror, resiste à tentação demasiado humana da condenação, da segurança assegurada por alguma fé consoladora. Por isso tentou-me dizer que é portadora da vontade sábia dos estóicos. Mas estes pregam e refinam um sentido de compaixão humana estranho ao amor com que Eliane acolhe o mundo e melhor se expressa na forma personalizada apreensível nos sentimentos que devota aos pais, à filha e ao marido. Além disso, duvido que ela aspire ao ideal da ataraxia indissociável da filosofia estóica, embora a determinação da vontade e a aceitação do mundo, a forma como diz sim ao real, sem dúvida a aproximem dessa tradição filosófica.
Eliane Brum é uma mulher tão rara que precisei inventá-la à medida que lia seu livro apaixonante e iluminador. Como duvido em demasia, ou me tornei demasiado cético à força de medir sem ilusão o mundo humano que vejo à minha volta e, pior ainda, sou forçado a tolerar, dei por favas contadas que ela não passava de uma invenção, mais uma invenção da minha imaginação descontente. Mas preciso concluir dobrando-me à força dos fatos: Eliane Brum existe, sim. Durante dias mergulhei no seu livro seduzido pela tentação de ser ela. Se eu fosse mulher, queria ser Eliane Brum.
Recife, 8 de dezembro de 2013


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