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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural


Já observei de passagem, noutros textos aqui postados relativos ao modernismo e ao regionalismo, a importância que a questão da identidade cultural ocupa nas obras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, assim como na de praticamente todos filiados a esses dois movimentos. Apesar do tempo que nos separa da irrupção desses movimentos na cultura brasileira, a questão da identidade se mantém ainda muito viva entre nós. Um fato que bem ilustra a evidência desse fenômeno é a instituição de uma secretaria de governo exclusivamente dedicada à administração política da questão, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. De imediato, isso parece contradizer a crença de que somos dotados de uma cultura forte e integrada. Afinal, se somos assim, por que precisaríamos de uma secretaria empenhada em defender e promover nossa identidade cultural?

Até onde sei, essa secretaria é uma instituição singularmente brasileira. Ela parece denotar que somos ainda um povo inseguro acerca da sua identidade cultural. Outra evidência dessa insegurança é demonstrável na frequência com que esse assunto vem a público, não raro em tom polêmico. Um dos que mais enfática e polemicamente se pronunciam sobre ele é o escritor Ariano Suassuna, que tem sempre se conduzido na esfera pública como um defensor intransigente da nossa identidade e do que no seu entender seria a autêntica cultura brasileira, baseada nas tradições enraizadas no catolicismo ibérico conservado pela história do sertanejo nordestino. Com seu dom de criar frases polêmicas, ele há pouco afirmou numa entrevista que não troca seu oxente pelo okei de ninguém.

Mas voltemos no tempo para melhor caracterizar o problema da identidade cultural brasileira. Desde o século XIX as ciências sociais aqui produzidas imprimiram relevo ao problema da identidade cultural. Também a literatura, conviria acrescentar. Basta que se pense na ênfase que nossos românticos conferiram à questão, em particular Gonçalves Dias e José de Alencar. Como antes observei (ver os textos Modernismo e Cultura, Modernismo e Regionalismo), os modernistas e regionalistas retomam a questão nas décadas de 1920 e 1930. Mas ela esteve sempre presente nos estudos e nas reflexões de nossos principais escritores. Menciono alguns com a intenção de sugerir a persistência do problema da identidade cultural no desenvolvimento da nossa cultura: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim. É curioso observar que nosso escritor mais universal e importante, Machado de Assis, passou ao largo das obsessões e polêmicas e teorias relativas ao nacionalismo e à identidade cultural.
Completando neste parágrafo a síntese do percurso histórico acima esboçado, a questão da nossa identidade cultural prolonga-se muito além das décadas de 1920 e 1930, que assinalam o auge dos movimentos modernista e regionalista. Ela é retomada durante os anos 1950, marcados pela euforia do nacionalismo desenvolvimentista orquestrado pelo governo Juscelino Kubitschek e adentra pelos anos 1960. Mesmo depois do golpe militar de 1964 e da associação flagrante do regime militar com o capitalismo estrangeiro, que promoveu a modernização autoritária atrelada à globalização econômica e cultural acelerada a partir da década de 1970, a angústia da identidade esteve no centro da ideologia nacional popular característica dos movimentos políticos e culturais, perdeu força durante as décadas de 1970 e 1980 e hoje aparenta estar diluída no clima da globalização dominante no país.

A identidade cultural é no geral considerada como um equivalente da identidade nacional. Não é à toa, por exemplo, que os dois termos percorrem o conjunto da tradição acima indicada, em particular a história do modernismo e do regionalismo, que tão obsessivamente se prenderam a uma e à outra. Macunaíma, de Mário de Andrade, é uma tentativa de responder ao problema que tanto o angustiava acerca da identidade coletiva, que na sua imaginação se confundia com sua própria identidade. Um verso famoso contido num dos seus poemas de Paulicéia Desvairada, “Sou um tupi tangendo um alaúde”, traduz sua identidade dividida entre a herança indígena e a europeia.
Também Gilberto Freyre declarou que a motivação decisiva para que ele escrevesse Casa-Grande & Senzala foi a necessidade de descobrir quem ele era como indivíduo e como brasileiro, isto é, a identidade individual era indissociável da nacional. Noutras palavras, descobrir a cultura brasileira e sua identidade, ambição maior desta obra fundamental, era também descobrir a própria identidade do autor.

O modernismo e o regionalismo, através da obra dos seus representantes maiores, desempenharam papel decisivo no sentido de melhor situar o brasileiro dentro da sua própria cultura, no sentido de integrar sua identidade à cultura plural e real do país. Antes deles, nossas elites ilusoriamente se representavam como se fossem europeias, antes de tudo francesas. Era nesse sentido que Sérgio Buarque de Holanda afirmava que somos desterrados em nossa própria terra. O brasileiro da elite via a si próprio como herdeiro da cultura europeia e assim lutava para suprimir de sua identidade seus traços indeléveis de procedência indígena e africana.

As políticas de imigração adotadas por São Paulo a partir de fins do século XIX, a teoria do branqueamento da população brasileira e a política de reforma urbana do Rio de Janeiro, inspirada no modelo do barão de Haussemann para a reforma de Paris, são evidências desse desejo de ser europeu nos trópicos. O livro de Jeffrey Needell, Belle Époque Tropical, documenta e analisa muito bem essa pretensão da elite brasileira, sua fantasia de ser europeia. Como viver essa ilusão sem reprimir ou marginalizar os fortes elementos diferenciadores da nossa cultura, precisamente aqueles que nos distinguem da Europa e resultam do nosso processo de miscigenação racial e cultural envolvendo o indígena, o português e o africano? Como indiquei noutro texto já acima citado (Modernismo e Cultura), a passagem do poeta suíço-francês Blaise Cendrars pelos círculos modernistas brasileiros ilustra muito bem essa questão.

Foi nesse sentido que os modernistas e regionalistas concorreram de forma decisiva para alterar de forma efetiva a representação da nossa identidade cultural ou a representação da cultura brasileira. Assim como Mário de Andrade converte nas páginas de Macunaíma valores culturais depreciados pela nossa elite em valores positivos, antes de tudo nossa miscigenação racial e cultural, Gilberto Freyre procede de forma semelhante ao compor num grande e poderoso ensaio o processo da nossa formação cultural. Através da apreciação positiva da nossa cultura mestiça, que desde suas origens integrou valores conflituosos ou antagônicos provenientes das diversas matrizes culturais que forjaram a cultura brasileira, ele pintou um quadro da cultura brasileira e do nosso povo tão admirável e compreensivo que levou o brasileiro a reconhecer no quadro sua própria imagem. Assim fazendo, Gilberto Freyre contribuiu de forma decisiva para reconciliar o brasileiro com sua própria cultura, com sua própria identidade.

Notem que até aqui não me arrisquei a propor um conceito de identidade cultural. O motivo dessa omissão é claro: não acredito que exista uma identidade cultural objetivamente dada, uma identidade que possamos reconhecer no universo objetivo das relações culturais. Penso que a identidade é uma construção ideal, um recorte seletivo feito pelos teóricos da identidade a partir da representação ideológica que propõem sobre o que seja a identidade cultural de um povo. Mário de Andrade afirma em certos contextos de sua obra (ver o Ensaio sobre a música brasileira) que ela já existe como realidade inconsciente expressa na criação popular – na música popular, por exemplo. Nesse sentido, o papel que caberia a um intelectual como ele seria organizar essa identidade inconsciente, dar-lhe forma estética e ideológica através da criação intelectual cuja função maior seria integrar a cultura popular à cultura da elite. Noutros contextos, porém, ele se contradiz. Isso ocorreu quando se empenhou numa verdadeira cruzada proselitista destinada a promover a valorização e o reconhecimento da cultura e da identidade brasileira. Isso é evidente na passagem que abaixo transcrevo de uma carta que escreveu para Carlos Drummond de Andrade em novembro de 1924:
“Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime.” (A lição do amigo, p. 5).
A citação acima contradiz claramente o que Mário afirma no Ensaio sobre a música brasileira e noutros pontos da sua obra. Se o Brasil tem já uma identidade detectável na inconsciência cultural do povo, nas formas espontâneas e tradicionais da sua cultura, por que então ele afirma para Drummond que o Brasil não tem ainda uma alma e por isso precisamos lutar para dar uma alma ao Brasil e por fim integrá-lo no concerto das grandes nações do mundo, como ele também afirmou? Do mesmo modo, se temos hoje uma cultura e uma identidade consolidadas que nos inspiram confiança e orgulho, por que então precisamos instituir uma secretaria da identidade cultural, um órgão governamental para trabalhar pela afirmação da nossa identidade e da nossa cultura?

O fato acima parece antes de tudo traduzir a persistência da nossa angústia de identidade. O historiador Evaldo Cabral de Melo observou com razão que esse problema da identidade, da necessidade de afirmação de uma cultura nacional, é um problema típico de países de passado colonial, como é o caso do Brasil, incapazes de realizar integralmente seu ingresso na modernidade. Seria também o caso de países como a Rússia, que ficaram na periferia da modernidade. Como Gilberto Freyre ressaltou, são fortes as afinidades culturais entre a Rússia do século XIX e o Brasil da época em que ele escreveu seus livros fundamentais sobre a nossa história cultural.

A observação de Evaldo Cabral de Melo parece-me abrir uma trilha fecunda para melhor compreendermos a persistência da questão relativa à identidade cultural do Brasil. No meu entender, ela não foi nem poderia ser resolvida pelos nossos teóricos da identidade, não importando a grandeza da obra que produziram visando interpretar e resolver nossos impasses culturais. De Sílvio Romero a Darcy Ribeiro, passando pelos modernistas, regionalistas, desenvolvimentistas, nacional-populares e nacionalistas em geral, dispomos de uma grande e admirável tradição de estudos e interpretações correntemente alinhada sob o rótulo do pensamento social brasileiro. Muitos desses estudos importam, além dos seus valores teórico-interpretativos, como indicação de medidas de ação prática para a modificação da nossa realidade sociocultural. Mas o nó da questão, segundo entendo, radica na necessidade da transformação estrutural da nossa sociedade. Quero dizer, enquanto mantivermos grande parte dos brasileiros, como é fato, à margem das conquistas da modernidade, será ilusório acreditar numa identidade que não esteja sempre sonhando ser o outro, sobretudo o outro simbolizado na cultura norte-americana. Trocando em miúdos a questão do ingresso do conjunto da população brasileira no horizonte da modernidade, que no Brasil é ainda muito parcial ou restrita, somente ingressaremos de fato na modernidade no dia em que o brasileiro em geral tiver acesso efetivo à democracia social e cultural. Isso quer dizer acesso à habitação, educação, saúde, justiça, segurança social e transporte público. Em suma, qualidade de vida substantiva, que não é bem comprável nas vitrines de shopping center, como nos enganam os publicitários cuja função principal é vender ao preço de qualquer mentira.

Visando acrescentar alguns indicadores objetivos para uma melhor compreensão da identidade cultural, concluiria acrescentando que o núcleo duro da identidade cultural, valho-me de expressão escrita por Teixeira Coelho no seu Dicionário crítico de política cultural, é composto pelos traços culturais mais fortes e constantes na história do nosso povo. Eles se manifestam nas tradições orais presentes na língua, nas tradições religiosas, nos mitos e narrativas populares, nas tradições artísticas. As tradições religiosas compreendem as formas de crenças, mitos e ritos coletivos. Caberia ainda acrescentar a essas manifestações sagradas as formas da cultura profana: carnaval, tradições folclóricas, os esportes, sobretudo o futebol, as festas e as manifestações artísticas.

É preciso, no entanto, também considerar que a cultura geral do Brasil compreende uma grande diversidade de expressões ligadas às diferentes regiões, classes sociais e múltiplos grupos formadores do conjunto da nossa nacionalidade. A isso seria ainda preciso acrescentar, na realidade do mundo globalizado em que vivemos, valores e comportamentos culturais compartilhados por múltiplas nacionalidades culturais. Esse fato cada vez mais poderoso no mundo em que vivemos – o fato relativo à cultura globalizada – complica a existência da identidade cultural baseada na noção de núcleo duro. Enquanto o núcleo duro pode ser compreendido como o conjunto de valores e práticas culturais comum à maioria do povo brasileiro, a dimensão relativa à cultura globalizada, típica da sociedade contemporânea, segmenta ou fraciona as características culturais de acordo com a variação dos grupos baseados nas diferenças de região, classe e vinculação à cultura globalizada que concorre visivelmente para mudar os padrões de identidade nacional.

Referências bibliográficas:
Lourenço Dantas Mota (org.). Introdução ao Brasil – Um banquete no trópico. Volumes I e II. São Paulo: Editora Senac, 1999 e 2001.
Mariza Veloso e Angélica Madeira. Leituras Brasileiras. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Paz e Terra,1999.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Modernismo e Regionalismo




A história das relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife parece o romance familiar de dois irmãos desunidos brigando por heranças e feitos que, quando avaliados de forma isenta, são bens comumente amealhados, refeitos e transmitidos a seus herdeiros, que somos todos nós. Para ser mais fiel à analogia, a briga, ou os rompantes de desunião, são antes de tudo do irmão pobre, isto é, do regionalismo nordestino. O fato é sociologicamente compreensível. Como São Paulo tornou-se, à altura em que o modernismo lá eclodiu, a força hegemônica do país, é compreensível que não conceda importância demasiada ao irmão pobre. Aliás, o fato mesmo de o modernismo eclodir em São Paulo com as características que marcaram seu ímpeto modernizador e internacionalista constitui por si só uma evidência da hegemonia mencionada.

O fato é que só recentemente se afirma uma corrente nos estudos de crítica literária e cultural tendente a reconhecer e sobretudo demonstrar as afinidades que atam esses irmãos desavindos. O crítico pioneiro dessa corrente foi provavelmente José Aderaldo Castelo, como se pode verificar lendo seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo (1961). Aliás, antes dele Sérgio Buarque de Holanda fez o que pôde, com exemplar isenção crítica, para conciliar os irmãos desunidos quando escreveu em 1951 uma série de três artigos sob o título “Fluxo e Refluxo”. Esquecidos durante muito tempo, podem agora ser consultados pelo leitor na obra O Espírito e a Letra, composta por dois volumes que reúnem seus estudos de crítica literária dispersos durante muito tempo em periódicos inacessíveis ao público.

Sérgio Buarque põe o dedo na ferida, ou no motivo da briga, quando ressalta que o modernismo, embora de início universalista e até cosmopolita, foi também nacionalista e regionalista. Ele faz essa observação, comprovada pela história do movimento, visando corrigir o ponto de vista de Gilberto Freyre, que em 1941 escreveu uma introdução polêmica para seu livro Região e Tradição opondo o regionalismo de Recife, por ele liderado, ao modernismo de São Paulo. O eixo do conflito, ou o ponto de separação entre os dois movimentos, residiria no caráter internacionalista e até europeizante do movimento paulista. No lado contrário, Gilberto Freyre argumenta que se colocaria o regionalismo de Recife cuja inspiração regionalista procurou revalorizar a cultura brasileira a partir de suas fontes regionais e tradicionais.

Também José Lins do Rego, o discípulo mais fiel e arrebatado de Gilberto Freyre, assinou o prefácio do já citado Região e Tradição em tom de exaltada devoção à liderança intelectual exercida por Gilberto Freyre. Indo além disso, engrossou a briga aberta contra os paulistas atacando o modernismo e reiterando em tom polêmico o pioneirismo do nacionalismo postulado por Freyre a partir da perspectiva regionalista que adota no livro e no conjunto da sua obra. A valorização das fontes regionais da cultura brasileira levou Gilberto Freyre e seus seguidores a reivindicarem para o Nordeste uma posição de originalidade e fonte de valores nacionais que volta e meia são repostos em termos polêmicos.

Sem a intenção de resolver essa briga regional, que com certeza vai além das disputas atiçadas por Gilberto Freyre e José Lins do Rego, assim como por outros intelectuais e artistas nordestinos, um dado fundamental para compreendermos de modo criticamente isento essas disputas sem fim deriva com certeza das relações de rivalidade e ressentimento nutridas pelo irmão pobre contra a dominação e os preconceitos provenientes do irmão rico. Como este tem mais poder, a historiografia oficial do modernismo, produzida sobretudo em São Paulo, tendeu a subordinar o regionalismo ao modernismo tratando muitas vezes Gilberto Freyre, José Lins do Rego e outros grandes nomes da cultura nordestina como capítulos da história geral do modernismo, quando não meros anexos. Nesse sentido, é compreensível o ressentimento de Gilberto Freyre e de muitos dos seus seguidores. Mais que compreensível, é necessário salientar que a obra de Freyre, assim como dos grandes representantes do regionalismo nordestino, se fez de forma independente do modernismo paulista.

Vejamos melhor a questão da independência ou autonomia tanto do regionalismo de Recife quanto da obra dos grandes representantes do regionalismo nordestino. Gilberto Freyre formou-se até academicamente nos Estados Unidos. Além disso, sua filiação à cultura inglesa está muito bem comprovada não só em muitos dos seus depoimentos, mas sobretudo na sua obra e na sua formação geral. Gilberto foi provavelmente o primeiro jovem brasileiro que fez estudos sistemáticos de sociologia e ciências humanas nos Estados Unidos. Quando voltou a Recife em 1923, portanto no ano posterior à eclosão do modernismo, cuja data de batismo é a Semana de Arte Moderna, era portador de ideias próprias e independentes com relação à arte moderna e à cultura brasileira. Quanto a José Lins do Rego, este formou-se sob o influxo direto de Gilberto, a quem sempre devotou a mais irrestrita admiração e amizade. O caso de Graciliano Ramos também reforça o argumento relativo à autonomia do regionalismo nordestino. O mesmo, em linhas gerais, se aplica a Jorge Amado. Portanto, é coerente a resistência que todos opõem ao modernismo, resistência que em alguns chegou ao extremo da recusa a qualquer filiação ou afinidade estética e ideológica.

Considerado o argumento exposto no parágrafo precedente, é compreensível que os nordestinos, antes de tudo Gilberto Freyre, se tenham empenhado em reivindicar a autonomia do regionalismo sediado no Recife. Se já nos anos de 1920 Gilberto se ressentia do modernismo, propondo a partir de Recife um movimento de renovação cultural independente, seu espírito de independência certamente acentuou-se depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, que logo o consagrou como o mais importante intérprete da cultura brasileira. Em 1941, quando lança Região e Tradição, como acima observei, desfecha com a ajuda de José Lins do Rego uma polêmica contra o modernismo que durante muito tempo sobreviveu e alimentou muito mal-entendido. É a tal briga entre irmãos a que aludi na abertura deste texto.

Tentando pôr ordem na casa, se possível reconciliando de vez os irmãos brigados, conviria destacar que modernismo e regionalismo têm bem mais em comum do que tendiam a admitir nossos regionalistas ressentidos. Personalizando a questão, pois a briga foi com frequência encarnada nas figuras dominantes dos dois movimentos, Mário de Andrade e Gilberto Freyre, Mário e Gilberto seguiram linhas muito convergentes na obra que produziram e nos caminhos que trilharam visando interpretar e valorizar a cultura brasileira. Corrigindo a crítica enviesada de Gilberto Freyre, que negou caráter nacionalista e regionalista ao modernismo com o propósito de reivindicar exclusivamente para si próprio e para o regionalismo que liderou os méritos das realizações culturais do período, é preciso reconhecer que o modernismo concorreu de forma decisiva para a valorização da cultura nacional, para o estudo e a defesa da identidade cultural brasileira, para os estudos dedicados à exploração e esclarecimento de todas essas questões.

Ambos os movimentos, através de vias autônomas, convergiram na busca de uma melhor compreensão da origem e formação da cultura brasileira, assim como no reconhecimento da importância de valores culturais reprimidos ou depreciados pelas elites brasileiras. Livros como Macunaíma e Casa-Grande & Senzala traduzem esses valores e sentidos culturais no sentido mais alto das realizações intelectuais do Brasil. Quase tudo que o modernismo realizou depois de 1924 está associado à busca de uma cultura brasileira autêntica e renovada. O mesmo se pode afirmar com relação ao regionalismo recifense, em particular, e ao regionalismo nordestino em geral, que viveu nos anos de 1930 o ponto alto das obras de inspiração regionalista, ou pelo menos geograficamente situadas na região que, embora empobrecida em decorrência da longa e lenta decadência da oligarquia açucareira, mostrou-se dotada de grande vitalidade artística e cultural.

Em suma, talvez o melhor modo de conciliar os dois movimentos, ou indicar suas afinidades substanciais, consista em reuni-los à sombra do designativo neorromantismo, termo empregado por José Aderaldo Castelo no seu livro pioneiro acima citado para traduzir o fato de que ambos constituíram uma atualização do espírito do movimento romântico. Este, como sabemos, tem como características dominantes traços comuns ao modernismo e ao regionalismo: o espírito nacionalista, a valorização da cultura e da identidade nacionais, a acentuação dos valores particulares e subjetivos.

Referências bibliográficas:
Gilberto Freyre. Região e Tradição. Com Introdução do autor e prefácio de José Lins do Rego. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1941.
Idem. Manifesto Regionalista. 7ª. edição revista e aumentada. Prefácio de Antônio Dimas. Recife: Fundaj; Editora Massangana, 1996.
Valéria da Costa e Silva. A Modernidade nos Trópicos: Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.
Ver também os dois artigos contidos nos links abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/brasileiros-de-sao-paulo-e-de.html
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/nacional-e-universal.html

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Valores Lusos na Cultura Brasileira


A Continuidade de Valores Portugueses na Cultura Literária Brasileira

O propósito deste texto é traçar as linhas gerais de uma série de exposições relativas à continuidade de valores culturais lusos, e amplamente ibéricos, na cultura literária brasileira. Embora o título acima proposto especifique a literatura como horizonte e limite dos argumentos a seguir esboçados, importaria desde já acentuar que a ela, a literatura, se incorpora a cultura compreendida na sua dimensão socioantropológica. Se tal propósito, aparentemente ambicioso, amplia acaso em demasia as proporções do que intento livremente expor, é no entanto indispensável para que se logre compreender satisfatoriamente os valores aqui discutidos e a real natureza dos dois movimentos culturais dominantes na primeira metade do século xx no Brasil: o Modernismo de extração paulista e o Regionalismo de Recife. Demarcados estes limites gerais, a eles acrescentarei, como apreciação conclusiva da nossa exploração panorâmica, uma atualização da matéria fundamental estendendo-a, noutras palavras, ao cenário sociocultural contemporâneo.

Começando pela relação observável entre o Modernismo e nossa herança portuguesa, talvez o estudioso apressado tendesse a anular de pronto qualquer associação relevante entre os dois termos propostos. Afinal, prevalece ainda hoje nos quadros da historiografia do Modernismo uma leitura orientada para a caracterização do movimento pautada pelo critério da renovação estética, pelo ânimo da mudança e atualização artística e cultural. Como bem sugere a síntese proposta por Oswald de Andrade, o fim visado pelos modernistas era acertar os ponteiros do relógio do Brasil com os da vanguarda européia. Dito de outro modo, a ambição dos modernistas era superar o peso da nossa herança portuguesa suprimindo o descompasso entre a modernidade européia e as condições de atraso sociocultural dominantes nos trópicos brasileiros.

Se pensamos no Modernismo da primeira hora, tocado pela euforia dos impulsos renovadores, tal caracterização é sem dúvida sustentável. As evidências disponíveis são fartas e solicitam um registro genérico passível de apoiar o argumento em questão. A consciência teórica do movimento, associada antes de tudo à obra e atuação intelectual de Mário de Andrade, enfatiza os fatores de renovação e ruptura. O periódico Klaxon, criado logo depois da Semana de Arte Moderna, ressoa de ponta a ponta a euforia vanguardista dos modernistas. Os temas que frequentam e pontuam nosso processo cultural – herança lusa, nacionalismo e identidade cultural, por exemplo – cedem o passo ao cinema como expressão da modernidade e da renovação expressiva das artes, à temática urbana marcada por traços típicos da vida moderna: o culto da civilização técnica, da velocidade, da indústria, da cultura do imigrante, da internacionalização das artes. É significativo que neste momento, assim como no decorrer da década de vinte, a questão da autonomia linguística seja a única matéria de debate e rejeição explícita da nossa herança literária portuguesa.


Supondo porém que o estudioso proceda a um exame mais detido do processo, modulando acentos e pontos de continuidade e mudança, logo fica claro que o desdobramento da dinâmica modernista é bem mais complexo. Se é verdade que seu momento inaugural obedece aos traços acima indicados, pouco mais tarde, em 1924, ocorre a inflexão nacionalista que desloca o movimento do cosmopolitismo inicial para a cena brasileira. Os sintomas dominantes de tal inflexão radicam na busca sistemática dos temas e particularidades da cultura brasileira, na teorização e pesquisa da identidade nacional, na retomada da tradição, do mundo provinciano e rural do Brasil. Retendo ainda o exemplo dos periódicos representativos, bastaria assinalar o sentido nacionalista da linha que vai de Klaxon a Terra Roxa e outras terras passando por Estética.
Mário de Andrade, a personalidade paradigmática de todo esse processo, empenha-se numa ação sistemática e continuada de pregação nacionalista da qual resultarão seus estudos sobre o barroco mineiro e a música brasileira, o folclore e a defesa de uma linguagem literária especificamente brasileira. Daí resultam obras de criação artística cuja expressão suprema é Macunaíma, publicado em 1928. Sob seu influxo, poetas como Drummond vão harmonizar renovação estilística com temas da província impregnados dos valores da tradição.

Saltando para a década seguinte, observamos que o conjunto da produção literária reitera e amadurece as tendências e expressões de nacionalismo cultural emergentes na década anterior. O nacionalismo, compreendido na moldura onde se desenham seus motivos correlatos: a reinvenção da tradição brasileira e a busca da identidade cultural, torna-se hegemônico em todos os sentidos e modos de expressão do país. João Luiz Lafetá sintetiza o conjunto desse processo muito bem quando afirma que na década de trinta o projeto ideológico do Modernismo se sobrepõe ao projeto estético prevalecente nos anos vinte.

É nesta década, sobretudo a partir de 1933, ano da publicação de Casa-Grande & Senzala, que o ideário e as realizações do Regionalismo de Recife alcançam amplitude nacional. Mais do que isso, definem a medida da hegemonia de um discurso literário nacional na medida em que escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos estabilizam e difundem uma forma de narrativa que se impõe aos próprios modernistas empenhados em fundar um modo renovado de narrativa ficcional no Brasil. Ora, o que a narrativa nordestina realiza, noutros termos, é a retomada dos temas da região e da tradição, para usar os termos que dão título a um livro polêmico de Gilberto Freyre publicado bem no início dos anos quarenta. Ao reunir em volume os ensaios que compõem esta obra, seu objetivo, francamente polêmico, foi não apenas proceder à apologia do nacionalismo ancorado na especificidade regional brasileira, mas também reivindicar para o Regionalismo de Recife o papel pioneiro de agente formulador e estabilizador da moderna cultura nacional do país.

À diferença do Modernismo, cujo processo de desenvolvimento foi acima grosseiramente esboçado, o Regionalismo se distingue pela coerência e espírito de continuidade que o vinculam aos valores de extração portuguesa. Desde quando Gilberto Freyre retorna ao Recife em 1923, depois de cinco anos dedicados a estudos realizados nos Estados Unidos, as expressões de regionalismo que logo se empenha em produzir e orientar obedecem a uma confessa e entusiasmada filiação lusa e genericamente ibérica. Embora isso explique a oposição que o divide das linhas de atuação estabelecidas pelo Modernismo, sua ação e influência ficam restritas ao âmbito regional, sobretudo recifense. A partir do momento em que publica sua obra-prima, e consequentemente se projeta como intelectual renovador em escala nacional, Gilberto Freyre se torna, com inteira justiça, um intelectual cuja interpretação do nosso passado nos reconcilia com uma condição cultural – lusa, antes de tudo – que por muito tempo pesou na consciência das elites nacionais como fator de constrangimento, quando não de vergonha dissimulada por certa expressão de bovarismo cultural assinalada pela representação ilusória de uma identidade européia.

Talvez mais que qualquer outro intelectual individualmente considerado, Gilberto Freyre concorreu para que o brasileiro, constrangido pelas suas condições de atraso social e miscigenação invariavelmente castigada por diagnósticos e prognósticos racistas, se reacomodasse na carne do seu corpo mestiço e revisasse seu passado português não somente como uma expressão bem-sucedida de acomodação do europeu somado a outros grupos culturais, mas até com o orgulho de quem se identifica com um ethos contemporizador de conflitos. Usando uma expressão muito do gosto do próprio Gilberto Freyre, o colonizador português distingue-se por sua capacidade de equilibrar antagonismos.

Na medida em que projeta tal identidade intelectual, sendo encarado e antes de tudo encarando a si próprio como o grande explicador do Brasil, Gilberto Freyre não reluta em ler e revisar certos fatos da nossa história cultural movido antes pelo desejo de reivindicar méritos próprios e discutíveis pioneirismos do que pela fidelidade aos fatos objetivamente aferíveis. Dois exemplos, em particular, merecem registro nesta exposição, já que ainda muitos dos seus seguidores mais passionais ou desatentos ratificam sua versão indiferentes à história cultural documentada. O primeiro refere-se à acusação infundada com que sempre pretendeu desmentir o caráter pioneiramente nacionalista do Modernismo ao qualificá-lo como europeizante, votado ao desprezo da tradição e das nossas características mais definidamente brasileiras. Como antes procurei ressaltar, tal acusação é sustentável na medida em que se atém à fase inicial do Modernismo. O próprio Gilberto Freyre valida meu ponto de vista quando já no fim da vida incorre em flagrante contradição ao referir-se ao assunto numa passagem do prefácio assinado para a última edição de Order and Progress:
“The beginning of a systematic search for Brazilianness (Brasileiridade) is recent, dating from the modernist movement, which originated in São Paulo in 1922 and spread to Rio two years later, and from the regionalist and traditionalist (and, in its own way, modernist) movement in Recife (1924) which gave us the first modern teaching of sociology and social research (1927) and launched the First Congress of the Study of Afro-Brazilian subjects (1934).” (Order and Progress, p. xxv).

O segundo exemplo concerne à verdadeira data de publicação do Manifesto Regionalista. Segundo Gilberto Freyre, o manifesto de sua autoria, que ele logrou estabelecer como o documento fundante do Regionalismo de Recife e, por extensão, de todo o processo de renovação nacionalista da cultura brasileira, foi lançado em 1926, durante a realização do Congresso Regionalista de Recife por ele organizado e liderado. Joaquim Inojosa, à época seu principal adversário intelectual em Recife, há anos provou com documentação irrefutável que o texto do manifesto correntemente conhecido somente foi publicado em 1952, data da sua publicação efetiva em opúsculo prefaciado pelo próprio Gilberto Freyre.

Evidentemente, estas correções em nada afetam a magnitude da obra realizada por Gilberto Freyre. Precisam entretanto ser explicitadas, e até reiteradas, por servirem, entre outras coisas, como advertência para o estudioso que por vezes acata sem qualquer exame crítico inéditos do autor publicados por ele próprio muitos anos depois da suposta redação original. O caso de Mário de Andrade, por outro lado, é de natureza totalmente oposta, pois seus inéditos de publicação tardia, no geral póstumos, foram publicados por pesquisadores que os submeteram a critérios rigorosos de apreciação textual.

Procurei acima sugerir, ainda que de forma pouco ordenada, que o nacionalismo cultural, associado à tradição lusa, permeia o conjunto do processo histórico no qual se inscrevem os dois movimentos fundamentais da primeira metade do século vinte no Brasil. Sua presença é de fato mais abrangente. Como certa feita observou Antonio Candido em uma passagem muito citada de um ensaio de síntese sobre o desenvolvimento geral da vida espiritual brasileira, nossa história tem sido marcada pela dialética do cosmopolitismo vs. nacionalismo. A atmosfera de globalização cultural agora extraordinariamente acelerada repõe esta antinomia no cerne da nossa realidade sociocultural. Ao mesmo tempo em que o país mais e mais se vincula aos circuitos de produção globalizados, assiste-se à retomada de um discurso fundado nos valores da particularidade irredutível a qualquer horizonte de natureza universalista.

A dissolução dos antagonismos ideológicos provocada pelo desabamento do socialismo totalitário em 1989 teve reflexos inevitáveis na cena cultural brasileira. Este fato, associado à recente celebração do centenário do nascimento de Gilberto Freyre, concorreu significativamente para que sua obra fosse positivamente reavaliada. Dar a Freyre o que é de Freyre é questão de justiça histórica e intelectual que os leitores e admiradores da sua obra devem saudar com entusiasmo. Do mesmo modo, importa reter da tradição firmada pelo Modernismo paulista o seu legado positivo. Em ambos os casos, o legado é indissociável de valores nacionalistas que atuaram no sentido de renovar e enriquecer nossa história cultural concorrendo, de outro lado, para a modernização social do país.

Feitas porém estas ressalvas, as questões e dilemas fundamentais clamam ainda por mudança e resolução. Dados os limites visíveis desta exposição, que são noutras palavras os meus próprios, fica à margem da argumentação aqui esboçada qualquer análise de fundo especificamente político e econômico que de resto escapa à minha competência. O que intento ensaiar nas linhas finais desta exposição é a proposição de um debate passível de em modesta medida esclarecer algo das relações complexas entre o nacionalismo cultural, a teorização sociológica da cultura e os vínculos que ambos retêm com as condições de manutenção do atraso social brasileiro. Noutras palavras, de que modo a tradição cultural acima esboçada concorre para alterar ou manter as condições de dominação e desigualdade observáveis no conjunto da sociedade brasileira? Até que ponto o ideário nacionalista brasileiro, tão múltiplo e contraditório na recorrência de suas manifestações, constitui um obstáculo para a realização de um projeto substantivo de modernização social ou exerce uma função social e culturalmente positiva?

Tentando especificar um pouco estas questões formuladas de modo demasiado abstrato, proporia que se debatesse duas das alternativas culturais propostas como meios de resolução dos nossos impasses mais dramáticos. Refiro-me à polaridade iberismo vs. americanismo. Ela tem permeado com intensidade variável o conjunto dos estudos e interpretações da cultura brasileira desde o século xix. No primeiro pólo situam-se os que reivindicam a especificidade de valores e práticas culturais originários da colonização ibérica nos trópicos e inconciliáveis com valores e práticas entendidos como especificamente europeus, sobretudo quando derivados da tradição anglo-saxônica. No segundo, em contrapartida, alinham-se os adeptos de uma incontornável integração brasileira à corrente central do Ocidente, com ênfase sobre a América de formação inglesa.
Esta polaridade desenha-se, noutras palavras, em torno de conceitos genéricos e polêmicos tais como modernidade, modernismo, modernização e derivados correntes. Os que se identificam com a permanência de valores ibéricos, ou restritamente lusos, resistem em maior ou menor grau à adoção ou aprofundamento dos nossos vínculos com o Ocidente reclamando para o Brasil uma identidade oposta aos valores do individualismo liberal; contrapondo o ludismo, a magia, a expressão emotiva e vínculos de base comunitária ao utilitarismo, à ciência e à tecnologia, às relações abstratas da gesellschaft. Emprego este termo de longeva presença na história da teoria sociológica porque, contraposto a seu avesso gemeinschaft, cristaliza as oposições e antagonismos básicos compreendidos nos dois tipos de cultura aqui considerados. Difundidos pela obra homônima de Ferdinand Tönnies, publicada em 1887, expressam idealmente, no sentido derivado dos tipos ideais propostos por Max Weber, dois modos fundamentais de organização sociocultural.

Acentuando que o português realiza nos trópicos brasileiros uma experiência de colonização inspirada pelos valores da gemeinschaft, já que a cultura hegemônica que estabiliza é regida por valores comunitários enraizados na família patriarcal e na religião católica, livremente mescladas aos valores dos grupos dominados, sobretudo o escravo africano, os iberistas caracterizam sempre como postiços ou artificiais os contatos de assimilação de valores baseados no contrato social abstrato, na impessoalidade competitiva do mercado, em suma, na gesellschaft.

Há poucos anos Richard Morse, Simon Schwartzman e José Guilherme Merquior empenharam-se numa atualização inevitavelmente polêmica do confronto iberismo vs. americanismo.O debate foi provocado pela publicação de um livro de Morse, O Espelho de Próspero, no qual ele retoma a polaridade fazendo a apologia da tradição ibérica e repelindo com veemência as características fundamentais do americanismo, ou da tradição ocidental. Talvez sintomaticamente, o livro não encontrou editor no mercado americano, sendo então publicado no México e em seguida no Brasil. José Murilo de Carvalho, um crítico mais sereno, discute a obra de Morse acentuando os aspectos considerados por Schwartzman, Merquior e Lúcia Lippi Oliveira – esta, mais limitada, contenta-se em descrever as linhas gerais do debate isentando-se de avançar juízos mais pessoais ou categóricos. Como bem observa Murilo de Carvalho,

“O desapontamento com a sociedade individualista, racional e desencantada dos Estados Unidos talvez tenha sido a motivação principal da busca empreendida por Morse de uma alternativa que ele acredita ter encontrado ao sul do Rio Grande. Aí, na América ibérica, ele julga existir uma civilização distinta, portadora de valores, ou de um foco cultural, que por serem pré-modernos não seriam menos desejáveis. Pelo contrário, por ter esta civilização escapado da reforma protestante e da revolução científica, teria preservado elementos de comunitarismo, de organicidade, de encantamento, que podem constituir alternativas ao impasse do mundo anglo-saxônico.”

Murilo de Carvalho prossegue seu comentário destacando o fato de que os críticos de Morse atacam-no seja por compor uma imagem demasiado pessimista de Próspero, seja por propor uma descrição demasiado otimista da civilização ibérica. Seu crítico mais áspero, Simon Schwartzman, toma o conjunto da sua argumentação como grave equívoco de interpretação cultural, acrescentando ser obra de conseqüências politicamente danosas para a realidade latinoamericana. Citando ainda Murilo de Carvalho,
“A valorização do comunitário, do mitológico, do afetivo, do não redutível à racionalidade ocidental, seria para esse crítico uma receita para aventuras messiânicas, para populismos autoritários.”

José Guilherme Merquior, por outro lado, encara com sérias restrições a apologia ibérica de Richard Morse. Sendo um crítico de linhagem radicalmente racionalista, portanto vinculado à tradição crítica do Iluminismo, Merquior não concebe nenhuma solução para os impasses da América Latina à margem da modernidade ocidental. Corrigindo a versão canibalista com que Morse refuta o modelo civilizacional simbolizado na figura de Próspero, Merquior repõe a versão canibalista de inspiração oswaldiana, isto é, uma estratégia de interação com o colonizador assinalada pelo espírito de absorção crítica e adaptação dos valores ocidentais. Assim procedendo, o Brasil poderia realizar-se culturalmente como uma forma específica de modulação do Ocidente, não como sua negação irracionalista baseada numa compreensão equivocada de particularidade cultural irredutível.

Concluo este roteiro um tanto errático, em parte explicável pela complexidade e abrangência da matéria aqui tratada, citando mais uma vez Murilo de Carvalho:
“(...) O caráter mais humano que Morse atribui à cultura ibérica, o maior solidarismo, seriam compatíveis com o grau de miséria social que afeta as populações do continente? Inversamente, o unidimensionalismo do homem ocidental, para usar uma expressão da Escola de Frankfurt, cara a Morse, não teria também sido responsável pela geração da vasta riqueza que trouxe para os modernos países ocidentais níveis nunca vistos de progresso e bem-estar? Não correria Morse, ao enfatizar os traços não ocidentais, ou não modernos da cultura latino-americana, o risco de aproximar-se de Gilberto Freyre em detrimento de Sérgio Buarque de Holanda, contra suas próprias declarações de simpatia pelo último?” (Pontos e Bordados, pp.402-4).

Berkeley, 21 de outubro de 2002.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nacional e Universal


Começo este breve ensaio enunciando a contradição relativa ao movimento dialético que permeia toda a nossa história cultural baseada na antinomia do nacional e do universal. Entendo que esta perspectiva teórica é fundamental para que adequadamente se coloquem os problemas atinentes à nossa formação cultural. Aplicável ao conjunto dessa formação, ela me interessa, em particular, na consideração dos dois movimentos culturais decisivos da nossa cultura no século vinte: o modernismo paulista e o regionalismo recifense. Retomo portanto essa contradição para novamente conferir alguma atenção a esses movimentos e a seus dois líderes incontestes: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Penso que Antonio Candido é o estudioso que melhor empregou esse esquema dialético na análise da nossa literatura compreendida em suas conexões essenciais com o contexto histórico-cultural. Seu emprego do método dialético consiste na função integradora, não excludente, dos polos contraditórios implicados no processo da análise. Nos termos que importam para este ensaio, os pólos compreendidos na relação entre o nacional e o universal não se relacionam de modo excludente, mas sim integrador. É por compreender a relação deste modo que represento o desdobramento histórico do modernismo e do regionalismo como forças que se negam continuamente ao mesmo tempo em que se alimentam manifestando-se de forma indissociável.

Não haveria modernismo paulista sem os fecundos empréstimos culturais provenientes dos movimentos da vanguarda européia. A própria inflexão nacionalista do movimento muito deve à contribuição de um europeu e vanguardista como Blaise Cendrars. Toda a teorização estética e cultural de Mário de Andrade, assim como de Gilberto Freyre, é em boa medida tributária do contato que estabeleceram com outras fontes de cultura e estudiosos que confessadamente os influenciaram. É por adotar este ponto de vista que discordo da tradição nacionalista ou regionalista ciosa de conceber nossa história cultural como autônoma, como explicável baseada apenas em fatores dissociados e até hostis a nossos vínculos com a cultura ocidental. O que pressuponho como atitude fundamental de análise das culturas é a interdependência necessária entre elas observável.
Ainda hoje, não obstante o acelerado processo de globalização cultural em que vivemos, há quem pretenda sustentável uma noção de nacionalismo dissociada do intercâmbio entre valores culturais. Há ainda quem critique a importação de ideias, ou a imitação cultural, como pura e simples subserviência de povo colonizado. Um dos mais lúcidos estudiosos da história das ideias no Brasil há muitos anos corretamente assinalou que
“A inteligência brasileira formou-se pelo mesmo processo que plasmou o povo brasileiro, isto é, graças às contribuições estrangeiras. Eduardo Prado diz que ´escrever a história do Brasil é escrever a história da imigração neste país`. Escrever a história de suas ideias é, também, descrever as aventuras das ideias estrangeiras no Brasil. Nesse lento processo de formação intelectual é natural que tenha havido e que haja imitação. Era compreensível que imitássemos os colonizadores. Estes, porém, ao exercerem a sua ação, sofreram também a influência das condições novas que o meio lhes oferecia e aí já se encontra uma primeira modificação do modelo original europeu. Certos autores, muito ciosos de originalidade, costumam denunciar a imitação como a fonte dos nossos defeitos e erros. É mister, porém, não esquecer que a imitação é um fenômeno social natural e universal”. (Cruz Costa. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6).
Acredito que o melhor da obra dos nossos escritores expressa a interação fecunda dos empréstimos culturais. Além disso, procuro demonstrar que o nacionalismo adotado por Mário de Andrade está longe de algumas interpretações redutoras tendentes a figurá-lo como um nacionalista avesso à cultura universal. O próprio herói Macunaíma, símbolo maior do nosso nacionalismo literário e cultural, foi descoberto graças aos vínculos profundos que Mário de Andrade estabeleceu com a cultura alemã. Lido por muitos como sendo pura e simplesmente o símbolo cultural do brasileiro, realização suprema do nosso Modernismo nacionalista, Macunaíma é todavia muito mais complexo. No estudo crítico que reputo o melhor e o mais agudo já produzido sobre este herói, argumenta Gilda de Mello e Souza precisamente no sentido de ressaltar o sentido universalista ou europeu da obra. Este sentido está de resto explícito no título do seu estudo, composto de um binômio, tupi e alaúde, empregado por Mário de Andrade num poema de Paulicéia Desvairada para traduzir sua identidade bifronte, isto é, nativa e européia. Como ela certeiramente observa,
“... o núcleo central de Macunaíma, não obstante os mascaramentos de toda a ordem que despistam ininterruptamente o leitor, permanece europeu, ou, mais exatamente, universal, e se liga ao tema eterno da busca do objeto mágico, de que a Demanda do Santo Graal representa no Ocidente a realização mais perfeita.” (Ver Gilda Mello e Souza. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, p. 92)
O nacionalismo de Mário de Andrade é, por conseguinte, universalista. Dizendo o mesmo de um outro modo, observou Anatol Rosenfeld ser supra-regional e cosmopolita. Segundo este crítico, Mário de Andrade buscava dentro da sua concepção de nacionalismo isento de etnocentrismos, assim como Herder, reconhecido como o pai do Nacionalismo Cultural, “...a autodefinição nacional no pluralismo positivo das culturas”.
Levando em consideração a amplitude dos estudos já consagrados às obras de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, é curioso que tão pouco ou quase nada se tenha feito no sentido de associá-los de modo mais franco à obra de Herder. Dado o papel fundador que este desempenha na história do nacionalismo cultural, caberia aqui esboçar as linhas profundas que o aproximam sobretudo de Mário de Andrade. Como salienta Hans Kohn, o nacionalismo moderno surge no século 18 diretamente associado à democracia e ao industrialismo. Seu advento representa o primeiro momento da história de alcance propriamente universal. ( Hans Kohn, Historia Del Nacionalismo). Quanto ao desenvolvimento particular do nacionalismo cultural, observa que este prevalece nos países carentes de soberania política e culturalmente dependentes. Isso torna historicamente compreensível o fato de a Alemanha da segunda metade do século 18, politicamente retalhada em inúmeros principados e culturalmente dependente da França, distinguir-se como matriz dessa fecunda tradição identificada como nacionalismo cultural. É portanto nesse contexto que se materializa a obra de Herder, herói intelectual de um dos maiores estudiosos das idéias no século 20, Isaiah Berlin.

Houve já quem identificasse Herder como o pai do nacionalismo cultural, tamanha é a sua importância na história das ideias atinentes à tradição romântica e ao papel do intelectual como agente dos processos de autonomia cultural nos países dependentes. Se é fato que concebia o Estado como uma nação com caráter nacional, entendia isso como um meio orientado para um fim universalista. A isso caberia acrescentar que, de acordo com Isaiah Berlin, o nacionalismo proposto por Herder é cultural, não político, isto é, tem como fundamento os grupos humanos naturais, baseados nos vínculos de sangue, vizinhança, valores empíricos, mas mutáveis, constituintes do que enfim podemos conceber como a cultura viva de um povo. Entendendo o nacionalismo nestes termos, opõe-se a toda forma de dominação exercida em nome de qualquer espírito de conquista política. Por isso coerentemente rejeita o ideal do conquistador, seja o antigo, como Alexandre Magno, seja o contemporâneo, como Frederico o Grande, ou os pósteros, incluídos os que invocaram os ideais do nacionalismo cultural para dominarem outros povos e culturas.

Importa reter criteriosamente esse traço do nacionalismo originário de Herder porque, dentro de suas múltiplas manifestações históricas, ele foi apropriado por correntes políticas de extrema-direita inspiradas pela dominação guerreira e a destruição de particularidades, nacionais ou étnicas, qualificadas como inferiores ou degeneradas. Em suma, como objeto de supressão, como alteridade justificadora de operações de guerra e conquista. O exemplo mais devastador desse tipo de nacionalismo é naturalmente o nazismo. Faço aqui esta breve menção, cuidando de ressaltar a distinção necessária observável entre ele e o nacionalismo cultural proposto por Herder, para que não se perca de vista o fato de que há muitos modos e formas de apropriação do nacionalismo.

Visando melhor traduzir a concepção de nacionalismo cultural de Herder, lembraria a metáfora naturalista que propõe. Afirma, em suma, que as culturas são como um jardim composto de muitas flores, cada uma dotada de características próprias e irredutíveis (cf. Isaiah Berlin, Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O ensaio que tomo como referência é Herder e o Iluminismo, pp. 379-446). É impressionante observar-se a equivalência que guarda com a metáfora musical proposta por Mário de Andrade ao reivindicar o nacionalismo cultural brasileiro como fundamento da nossa universalidade ainda irrealizada. Inspirado por essa mesma noção de nacionalismo cujo fim seria o universal, valeu-se Mário de Andrade de uma metáfora musical com o propósito de ressaltar que o Brasil somente se realizaria como cultura própria quando fosse capaz de contribuir com seu acorde singular, um acorde exclusivamente brasileiro, para o concerto das nações civilizadas:
“De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.” (A Lição do Amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 15).
Ao propor acima sua noção de nacionalismo, Mário de Andrade acentua nitidamente a compatibilidade que julga estar contida na relação entre o nacional e o universal. Seu correspondente – Drummond, no caso – como tantos estudiosos que consideram este problema, tende a identificar oposição ou contradição onde, segundo o entendimento de Mário de Andrade e de Herder, há perfeita congruência, já que uma coisa pressupõe a outra: o universal é irrealizável sem o nacional que para ele converge, assim como o nacional se converterá em exotismo, e no limite xenofobia, se não visar o universal como seu fim. Melhor devolver a palavra a Mário de Andrade que assim corrige Drummond:
“...você fala em ´apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites`. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente deixará de ser nacional.”
Tanto Herder quanto Mário de Andrade, confirmando sua concepção supra-regional e universalista do nacionalismo, tiveram fina sensibilidade para a apreensão e o entendimento crítico do singular. Sendo assim, não apenas estudaram e teorizaram apaixonadamente as culturas particulares de que faziam parte, mas toda expressão singular de cultura. Basta observar, por exemplo, o zelo e curiosidade empática com que Herder se debruça sobre culturas de todos os quadrantes, das africanas às indígenas, das terras desérticas às regiões frias, assim como das diferentes épocas, indo das mais antigas às contemporâneas. (Cf. Herder. Idées sur la philosophie de l´histoire de l´humanité. Ver em particular Livre VII, pp. 45-82).

No que se refere ao brasileiro, estendeu seu espírito de pesquisador por todo o Brasil, como o demonstram suas viagens etnográficas ao Norte e Nordeste, além dos seus estudos folclóricos, etnográficos, sócio-antropológicos e linguísticos. Mas o fato é que nunca se fechou etnocentricamente dentro das fronteiras nacionais. Pelo contrário, desde cedo, nutrido por autêntica e rara formação católica, religião fundada sobre o princípio da universalidade, aprendeu línguas e outras culturas cuidando sempre de iluminar sua compreensão do Brasil relacionando-o com o diferente, o estrangeiro, o outro através do qual reconhecemos nossa singularidade. Isaiah Berlin, a quem sigo na minha compreensão do caráter universalista do nacionalismo cultural professado por Herder e Mário de Andrade, observa que para Herder é graças ao advento do cristianismo que os horizontes da humanidade se alargam extraordinariamente. Sendo uma religião de cunho universal, estende-se doutrinariamente a todos os seres humanos superando assim todas as formas de lealdade e identidade fundadas em valores locais. Segundo Isaiah Berlin, a tese acima era francamente adotada pelo iluminismo cristão da Alemanha. Conforme acrescenta,
“...apesar de tudo o que se tem dito em contrário, Herder nunca abandonou esse ponto de vista. Sua crença central foi expressa perto do fim da vida com palavras semelhantes às de seus primeiros escritos: ´Gabar-se do seu país é a forma mais estúpida de bazófia... O que é uma nação? Um grande jardim silvestre cheio de plantas boas e ruins; vícios e loucuras se misturam com virtudes e méritos. Que Dom Quixote vai quebrar uma lança por essa Dulcinéia?` O patriotismo era uma coisa, o nacionalismo outra: uma ligação inocente com a família, a linguagem, a cidade, o país, suas tradições, não deve ser condenada. Mas ele prossegue dizendo que o nacionalismo agressivo é detestável em todas as suas manifestações e que as guerras não passam de crimes”.
Considerando ainda o ponto referente à singularidade das culturas, Herder argumenta baseado no próprio saber do seu tempo para realçar a singularidade observável no reino da natureza e também das culturas. Mas também ressalta, ao mesmo tempo, a realidade empírica da variedade infinita a esta acrescentando o fato igualmente observável da permanente mutabilidade. Ele acomoda a aparente contradição aí contida afirmando haver sobre a terra “... uma única e mesma espécie de homens”. Afirma adicionalmente que não se deve oprimir o dessemelhante, em cujo conceito identifica nominalmente o negro e o americano.

O sentido da mutabilidade permanente de tudo o que vive, na natureza quanto nas sociedades humanas, encontra correspondente na obra de Mário de Andrade na distinção que propõe entre tradição móvel e tradição imóvel. Objetivando esclarecer que sua identidade de líder do movimento modernista não supõe desprezo pela tradição, por todo o legado cultural brasileiro que passa expressamente a defender a partir de 1924 com espírito proselitista, como sua correspondência com Drummond e outros escritores limpidamente evidencia, assim distingue os dois tipos de tradição que propõe: “O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares”. ( Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, p. 254).

Passando a Gilberto Freyre, não sei de nenhum estudo que sequer insinue algum paralelo entre ele e Herder. O melhor estudo que sobre ele conheço, sobretudo por se tratar de investigação ampla e profunda no âmbito da gênese das ideias que fecundaram a composição de Casa-Grande & Senzala, não faz qualquer alusão a Herder (cf. Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos). O que podemos sem mais detido exame reconhecer é que também Gilberto Freyre revela aguda sensibilidade para captar e traduzir sociologicamente o sentido do singular assim como da infinita variedade das culturas.

Houve já quem observasse, penso em Darcy Ribeiro, que sua fina percepção do singular, dos entretons que tecem o multifacetado tecido da cultura, seria decorrente não do cristianismo universalista tal como assimilado por Herder e Mário de Andrade, mas de sua formação protestante dentro de um contexto tradicionalmente católico. Nele, entretanto, não diviso a mesma acentuação do sentido universal das culturas particulares que surpreendo na leitura das páginas de Herder e Mário de Andrade, menos ainda o entrelaçamento complexo do nacional e do universal. Como acima fica bem explícito, tanto Herder quanto Mário de Andrade visavam o universal como fim do nacional. Quanto a Gilberto Freyre, seu ponto de vista me parece haver sido sempre o do nacional ancorado nas fontes do regional. De qualquer modo, o pouco que expus justifica minha estranheza diante do fato de tão pouco ou quase nada existir na bibliografia de Mário de Andrade e Gilberto Freyre com relação a este ponto.

Concluo essas notas soltas acima designadas como um breve ensaio ressaltando os elos que identifico entre a cultura europeia e cultura universal. Seguindo de resto formulações correntes, por que identifico o universal, no âmbito da cultura erudita, com o europeu? Antes de tudo, porque preciso fatalizadamente me posicionar dentro dos horizontes de minha percepção da realidade. Noutras palavras, a realidade que percebo e intelectualmente apreendo está enraizada na tradição europeia. A ela devemos, preliminarmente, a língua que nos exprime e através da qual nos exprimimos. A ela devemos ainda os fundamentos da tradição dentro da qual elaboramos nossa formação científica e literária. Lembrando uma platitude todavia oportuna, não haveria sociologia no Brasil, e por conseguinte nossa formação, emprego e produção acadêmica, dissociada de toda uma tradição relativa a esse campo gestada na Europa e a partir dela difundida por grande parte do mundo.

Refutar esses vínculos que tomo como evidentes, e empiricamente aferíveis, em nome de algum suposto exclusivismo particularista – de região, nação ou identidade cultural – é deslizar irrecorrivelmente para o solo minado já aqui indicado. Assim procedendo, logo nos enredaremos nas contradições e paradoxos embutidos na falsa disjuntiva nacional versus universal. Outra poderosa razão para que eu identifique o universal com o europeu deriva do reconhecimento de que a proposição e defesa de valores universais são características marcantes da cultura européia.
Recife, 7 de setembro de 2009.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco



Para Antonella.

Gilberto Freyre inicia um dos seus ensaios assinalando relações de afinidade histórico-cultural entre paulistas e pernambucanos (Ver “Modernidade e modernismo nas artes”, in Vida, forma e cor). O tema, frequente em muitas das suas páginas, é no ensaio retomado com o aparente propósito de acentuar pontos de convergência entre os dois estados. O foco é histórico-cultural, sempre deslizando para a fixação de um ethos descrito com base em fontes históricas livremente utilizadas pelo autor na composição das suas obras mais significativas. Transitando das generalidades históricas para a fase da nossa cultura moderna na qual se inscreve a sua obra, passa Gilberto Freyre a considerar especificamente o papel desempenhado pelo modernismo de São Paulo na constituição dessa cultura. Embora reconheça seu caráter renovador, critica-o por se mostrar no conjunto incapaz de converter o movimento, modernismo, num modo substantivo de ser, isto é, ser moderno. Esta a fraqueza fundamental do movimento paulista. Nas palavras do próprio Gilberto,
“...(o modernismo) envelheceu depressa pelo fato de se ter contraído e sistematizado numa quase seita de adoração do que fora apenas um momento ou um instante – instante libertador, revolucionário, violentamente antiacadêmico – na vida do brasileiro criado com muita gramática ou com excessivo respeito pelas academias”.
O foco desta crítica se estreita especificando-se na figura de Mário de Andrade. Diferentemente de Oswald de Andrade, com quem é negativamente contrastado na distinção proposta por Gilberto entre moderno e modernista, Mário teria sido incapaz de transcender o momento puramente contestador dos códigos estéticos estabelecidos incorrendo assim em mimetismos vanguardistas indicativos de subserviência mental à cultura europeia. Em suma, a insuficiência de Mário de Andrade traduziria a própria insuficiência fundamental do movimento que liderou: um modernista incapaz de se fazer moderno.

É por demais sabida a resistência de Gilberto Freyre ao modernismo de São Paulo. Tal resistência é compreensível, talvez inevitável, se se considera a posição secundária atribuída ao regionalismo originário de Recife que nele encontrou a figura do líder e animador inconteste. Dada a hegemonia cultural exercida pelo eixo Rio-São Paulo, as forças culturais mais renovadoras desenvolvidas nas décadas de vinte e trinta foram no geral associadas à corrente triunfante do modernismo paulista. A própria crítica de corte modernista, assim como sua historiografia correspondente, tende a incorporar ao modernismo o impacto e a dimensão mais renovadora de obras como Casa-Grande & Senzala e o movimento de renovação da narrativa regionalista do Nordeste.
Consciente da importância da sua obra, ampliada em ação pessoal e continuada de liderança junto a numerosos artistas e intelectuais, Gilberto Freyre viu-se muitas vezes compelido a reivindicar em prefácios, artigos e ensaios um papel de absoluta autonomia para o movimento que comandou a partir de Recife. Ao fazê-lo, porém, incorreu por vezes em formulações polêmicas merecedoras de apreciação mais isenta do leitor e crítico da sua obra. Um dos propósitos deste artigo é, por conseguinte, fixar dentro de uma linha de necessária isenção crítica a imagem do modernismo fundada antes na apreciação das suas características culturais historicamente aferíveis do que em juízos polêmicos resultantes de lutas por hegemonia no campo cultural.

Outro motivo que por certo decisivamente concorreu para pontuar a resistência e hostilidade de Gilberto Freyre contra o modernismo paulista deriva da polêmica travada com Joaquim Inojosa. Entusiasta do movimento paulista, Inojosa logo se tornou no ambiente de Recife um propagandista do novo ideário. Sua ação militante coincide com o momento em que Gilberto retorna a Recife e gradualmente desenvolve nos limites da província um movimento de revalorização das tradições regionais. Esse movimento, como é sabido, se define melhor com a publicação do Livro do Nordeste e a realização do Congresso Regionalista e atinge sua expressão mais alta e definitiva em 1933, quando da publicação de Casa-Grande & Senzala. Ora, se já no início do processo ele compreensivelmente se distancia do movimento representado em Recife por um mero epígono, um propagandista incapaz de realizar obra de qualidade própria, a afirmação objetiva da sua importância, nacionalmente consolidada com a publicação de Casa-Grande & Senzala decerto contribuiu para legitimar suas justas reivindicações de autonomia perante o modernismo paulista. Ao fazê-lo, porém, Gilberto Freyre por vezes cedeu à tentação, sempre inspirada por circunstâncias de natureza polêmica, de confundir o modernismo e a obra de Mário de Andrade com a dos epígonos, sobretudo regionais. A isso seria necessário acrescentar fatores tais como a rivalidade regional estabelecida entre São Paulo e o Nordeste, agravada pela expansão socioeconômica daquele em contraste com a longa e lenta decadência deste, a crise de poder detonada pela Revolução de 30 e a institucionalização do modernismo nos anos que se seguem a 1930.

Num documento de publicação tardia, Mário de Andrade esclarece as circunstâncias que definitivamente o afastaram de Gilberto Freyre antes mesmo de qualquer aproximação efetiva. O que abaixo descrevo, importa frisar nesse terreno minado por apreciações parciais, é o seu ponto de vista. Em carta endereçada a Guilherme de Figueiredo poucos meses antes de morrer, Mário refere-se a Gilberto como alguém distante. Por um momento, em meados dos anos vinte, foi informado a respeito deste através de amigos comuns residentes no Rio de Janeiro: Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto. Se estes de um lado já demonstravam admiração por Gilberto, de outro assinalavam seu espírito malicioso, sempre inclinado a troçar mesmo dos amigos mais íntimos. Mário atribui a isso o fato de nada haver feito no sentido de então encontrar Gilberto.

Mas eis que Prudente de Moraes, neto, co-editor de Estética, o periódico modernista sucessor de Klaxon, publica no no. 3 desta revista uma resenha sobre A Arte Moderna, de Joaquim Inojosa. Nesta obra, lançada no Recife em 1924, intenta o autor divulgar, em linguagem polêmica, o ideário modernista para o público de Recife. Embora distinguindo-o com comentários elogiosos - Inojosa era afinal o propagador do modernismo em Recife, onde também representava Estética por indicação expressa de Mário de Andrade e dos editores do periódico – observa o resenhista o quanto a derivação do modernismo na província andava em descompasso com o centro dinâmico do movimento:
“Mas Pernambuco, sem excetuar o sr. Inojosa, ainda está na primeira fase do modernismo. Fase de revolta, de violência destruidora, de desorientação, em que se cultiva o absurdo pelo absurdo, a esquisitice pela esquisitice, as máquinas, modas, invenções, toda essa parte exterior da vida contemporânea pela aparência de atualidade do aproveitamento delas como motivo artístico. Seria inútil negar que todos tivemos esse período, que o futurismo italiano não conseguiu ultrapassar. (...) Depois, uma compreensão melhor do modernismo nos ensina a estabelecer algumas diferenças; cada um vai encontrando seu caminho e a gente perde a preocupação com os últimos inventos e últimas modas”.
Dado que a citação foi demasiado longa, refaço com palavras minhas outros pontos da resenha necessários à precisa caracterização do problema aqui discutido. Acrescenta Prudente de Moraes, neto, que a desorientação e a confusão de valores são defeitos evidentes na plaqueta assinada por Joaquim Inojosa. Como agravante, conhece imperfeitamente a história do modernismo. Seu relato da Semana de Arte Moderna, sempre de acordo com o resenhista, “só tem de exato a vaia”.

Pode-se aí nitidamente perceber como os modernistas mais consequentes tinham já revisto os excessos de contestação e até inconsequências que tingiram as lutas e tomadas de posição iniciais. E note-se que a resenha é assinada por um então militante do modernismo, editor, com Sérgio Buarque de Holanda, de um dos mais importantes periódicos do modernismo. Outra nota relevante prende-se ao fato de que ambos nesse momento se distanciam da suposta liderança intelectual de Graça Aranha ao mesmo tempo em que, movidos por razões de afinidade intelectual e ideológica, aproximam-se independentemente tanto de Mário de Andrade quanto de Gilberto Freyre.
Voltando à carta de Mário de Andrade, escreve ele a Prudente criticando-o por tratar Inojosa com tanta severidade na sua resenha. Dado que Mário era já o líder do movimento, atenua suas restrições a Inojosa cioso talvez de não melindrar o epígono combativo de Recife. Por artes do destino, ou mero acaso, Gilberto Freyre visita Prudente no momento em que este lia a carta enviada por Mário de Andrade. Como Gilberto era já inimigo de Inojosa, ao tomar conhecimento da carta de Mário decide-se a rejeitar este para sempre. A decisão de Gilberto perdura até 1928, quando Mário, viajando pelo Nordeste, é recebido por ele em Recife. Não o fez porém sem muita resistência, afinal vencida pela mediação de um grande amigo de ambos: Manuel Bandeira, também coincidentemente visitando sua cidade natal. A julgar pela curta anotação feita por Mário no seu diário de viagem, o encontro foi se não frio, com certeza apenas cordial e sem prolongamentos:

“... Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilhoso, com vista da cidade...” (Mário de Andrade, O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 347. Para confronto do meu texto com a carta de Mário de Andrade a Guilherme de Figueiredo, ver Mário de Andrade, A Lição do Guru. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, pp. 136-7).

Embora não me ocorra reivindicar em qualquer sentido prioridade para o tratamento crítico que procuro conceder à matéria polêmica deste artigo, talvez me exponha ao puxão de orelha do leitor mais esclarecido. Assim, cuidando prevenir-me de apreciações infundadas, frisaria ter ciência de alguns precedentes ilustres na nossa historiografia crítica. Refiro-me restritamente a José Aderaldo Castello, cujo livro sobre José Lins do Rego e suas conexões com o regionalismo e o modernismo traduz um espírito de elevada disposição de compreender ambos os movimentos de forma integradora, e sobretudo Sérgio Buarque de Holanda, que aprecia com juízo certeiro as divergências polêmicas entre os dois movimentos numa série de artigos reunidos em volume de publicação recente (Ver Sérgio Buarque de Holanda, O Espírito e a Letra, vol. II, org., introdução e notas de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 331-345).

Aderaldo Castello foi o primeiro a desenvolver uma análise sistemática sobre o modernismo paulista e o regionalismo recifense num estudo de fôlego dedicado à obra de José Lins do Rego (Ver José Aderaldo Castello, José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo). Embora reconheça e documente a influência exercida pelo modernismo paulista no Nordeste, particularmente no Recife através do contato estabelecido por Joaquim Inojosa com o grupo paulista, Aderaldo Castello associa-se a Gilberto Freyre e Lins do Rego na defesa da autonomia do movimento regionalista. Observa ele corretamente que desde o começo – isto é, desde 1923, quando Gilberto Freyre regressa ao Recife e se aproxima de Lins do Rego – Gilberto distingue-se pelo papel decisivo que exerce na constituição de uma tendência independente dentro do processo nacional de renovação da cultura. Sem deixar de acentuar a oposição inicialmente verificável entre o movimento paulista e o pernambucano, a orientação crítica de Aderaldo Castello é pautada pela acentuação de traços convergentes entre ambos. Coerente com esse princípio, intenta unificar os aspectos mais positivos dos dois movimentos caracterizando-os como um movimento neo-romântico.

Frisava acima que a resistência de Gilberto ao modernismo é amplamente conhecida. Reiteraria, ademais, que se expressou muitas vezes em tom polêmico. Uma das suas manifestações mais remotas está contida na introdução que escreveu para Região e Tradição. Embora o livro tenha sido publicado em 1941, a introdução data de 1940. Nela, ecoando a depreciação polêmica do modernismo detonada por seu amigo e discípulo confesso José Lins do Rego no prefácio que consta deste mesmo livro, Gilberto Freyre caracteriza o modernismo como um movimento francamente hostil a qualquer forma de tradicionalismo e regionalismo. Polemizando num contexto em que intentava afirmar a autonomia e pioneirismo do regionalismo recifense, Gilberto identificou no modernismo já triunfante nos quadros da cultura brasileira o opositor que carecia de ser contestado. Assim, nas páginas polêmicas de Região e Tradição configura-se uma atitude e uma avaliação depreciativa que serão repostas em outros textos. A reiteração de uma crítica redutora, inspirada pelo espírito polêmico já aqui assinalado, tem infelizmente concorrido para que leitores mais apaixonados, quando não simplesmente ignorantes do nosso processo cultural objetivo, tendam a caracterizar o modernismo paulista como um movimento de inspiração estreitamente européia, como avesso à tradição, à cultura de extração regional e até antinacionalista. O equívoco é grave e com certeza não resiste à confrontação objetiva com os fatos culturais incorporados à linha da nossa tradição cultural.

Um outro motivo que justifica a tentativa de esclarecimento dos equívocos e mal-entendidos que cercam as relações entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife radica no fato de que a tarefa mais alta da crítica e do leitor esclarecido consiste em precisar de maneira isenta a significação efetiva de ambos os movimentos e, mais restritamente, dos seus dois grandes líderes: Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Insistir em opor um ao outro - sempre na intenção de louvar este em detrimento daquele; ou exaltar o segundo às expensas do obscurecimento do primeiro - é atitude que me parece incompatível com o exercício da crítica autêntica, que como tal carece de fundar-se em critérios e argumentos de natureza estética e intelectual, não em apreciações particularistas, sejam elas dirigidas por valores estreitamente regionais, ideológicos ou apenas pessoais.

Cabe, portanto, proceder ao exame dos argumentos fundamentais invocados na polêmica. Acusar o modernismo paulista de ser hostil à tradição é confundir o movimento tal como se configurou nas suas manifestações iniciais com a dinâmica de um processo que consistiu, em síntese, na conversão do modernismo internacionalista em modernismo nacionalista. É verdade que, à volta da Semana de Arte Moderna, era nítida a influência do ideário vanguardista procedente antes de tudo da França. Nesse momento, a grande aspiração dos modernistas era acertar o passo – ou o relógio, evocando aqui a metáfora empregada por Oswald de Andrade – do Brasil com o das vanguardas europeias.

Klaxon, órgão oficial do modernismo da primeira hora, exprime nas suas páginas, no gosto por vezes abusivo e inconsequente da experimentação formal, esse desejo de atualização das artes brasileiras. Mas esse quadro, de corte sem dúvida internacionalista, portanto avesso à corrente da tradição e do regionalismo, logo se modifica. O ano marco é sem dúvida 1924, embora algo da produção poética e da correspondência literária imediatamente anterior já indique o ponto de inflexão nacionalista em l923. Algumas evidências: poemas como Carnaval Carioca, de 1923, e O Poeta Come Amendoim, de 1924, ambos de Mário de Andrade, renovam a nossa poesia do ponto de vista temático e formal. No que se refere à correspondência de Mário, de imensa e já reconhecida importância documental para a história cultural brasileira, pode-se mencionar, entre outras, uma carta endereçada a Drummond em novembro de 1924. Nela é inequívoco o espírito de nacionalismo militante já plenamente adotado pelo líder do modernismo paulista. Criticando a formação francesa de Drummond, que o induzia a olhar o Brasil com um misto de indiferença e desprezo, assim argumenta Mário:
“Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada... à francesa. (...) devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. (...) Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França e a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei” (A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, pp. 5-6).
Como ler a citação acima sem automaticamente lembrar o célebre prefácio escrito por Gilberto Freyre para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala? Nele Gilberto declara um espírito de missão similar àquele traduzido na profissão de fé nacionalista de Mário de Andrade. Comparando seu fervor nacionalista ao dos russos e românticos do século XIX, Gilberto declara sua convicção de que tudo parecia depender dele e dos seus companheiros de geração (Casa-Grande & Senzala. 25a ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, p. lvii).

O móvel que norteia a produção de Casa-Grande & Senzala é a necessidade vivida por Gilberto de se compreender, de definir sua identidade individual através da apreensão da própria identidade cultural do Brasil. Esse espírito de missão orientado para a transformação da nacionalidade é comum a ambos, ele e Mário de Andrade. Acrescentaria ser ele comum a todos que se empenharam na realização do nacionalismo literário, em sentido específico e, mais amplamente, no sentido do nacionalismo cultural. Deixando de parte rivalidades regionais e variações estético-ideológicas no fundo acomodáveis no leito promíscuo do nacionalismo cultural, como não reconhecer em Gilberto Freyre e Mário de Andrade os agentes seminais desse movimento que tantas contribuições trouxe para o enriquecimento da nossa cultura moderna?

Se o nacionalismo cultural de Gilberto Freyre se desenvolve fundamentalmente a partir da sua volta a Recife para alcançar sua expressão suprema cerca de 10 anos mais tarde, quando ultima e publica Casa-Grande & Senzala, o de Mário de Andrade evolui do internacionalismo de 1922 e aporta em Macunaíma, em 1928, depois de um processo de adensamento e decantação que compreende a temática de fundo nacionalista na poesia, os escritos críticos sobre música, artes plásticas e cultura popular e suas viagens etnográficas através do Norte e Nordeste do Brasil. O fato de acentuar neste artigo os pontos de convergência entre ambos, pontos tantas vezes obscurecidos por eles próprios e em seguida por seus discípulos mais entusiastas até o limite mesmo do ano em que se celebra o centenário de nascimento do primeiro, não supõe todavia sequer a sugestão de que a convergência se dissolva em equivalência. Embora ambos realizem uma obra de expressão nacionalista inspirada pelo ambição, em larga medida bem sucedida, de revalorizar a cultura brasileira na linha de tensão entre a tradição e a modernidade, entre o particular nacional, e também regional, e o universal de corte antes de tudo europeu, é fato que divergem na ênfase e mesmo no fundamento do horizonte que recortam no conjunto da obra produzida. Enquanto Gilberto de um lado se baseia na região para formular sua concepção de cultura nacional, Mário intenta chegar a uma síntese nacional de cultura fundindo livremente elementos das várias regiões culturais brasileiras. Esse traço marcante da sua concepção de cultura nacional é evidente na própria composição de Macunaíma. Integrando-o à forma e ao andamento da narrativa, Mário descreve os deslocamentos alucinantes do herói através do país, a fusão de regionalismos linguísticos, o choque fecundo entre as raízes primitivistas da nossa tradição e a modernidade expressa em ícones e códigos da nossa sociedade urbano-industrial.

Sei que comparo acima grosseiramente obras de estatuto epistemológico distinto. Se é verdade que Casa-Grande & Senzala destoa e mesmo colide com a obra de sociologia convencional, é também verdade que sua liberdade compositiva não autoriza confundi-la com uma obra literária, embora alguns críticos maldosos ou intelectualmente estreitos assim a tenham qualificado supondo com isso desmerecê-la. Obra ambígua no método e na andadura compositiva, é obra de ciência social e ao mesmo tempo literária no estilo, na ordenação expressiva do material e na lógica da argumentação na qual se fundem história social e autobiografia, documento histórico reinventado na forma de memória literária. Macunaíma, de outro lado, pode também ser compreendida como obra ambígua no sentido de que, sendo primariamente uma narrativa ficcional, supõe ou dissimula no tecido da composição uma massa heterogênea de documentos histórico-sociais criteriosamente acumulados pelo seu autor.
Se se reflete sobre a gênese destas duas obras, também aí sobressaem convergências significativas. Gilberto Freyre mais de uma vez declarou que na raiz da sua obra-prima pulsava a necessidade de esclarecer e definir sua identidade de brasileiro através da captação da nossa identidade coletiva constituída sobre fundamentos histórico-culturais. Mário de Andrade, de outra parte, persegue de modo obsessivo, na pesquisa intelectual infatigável tanto quanto na obra efetivamente realizada, sua identidade de brasileiro na identidade coletiva da nacionalidade.

Encerro esse paralelo genérico, e sabidamente insatisfatório, citando Antonio Candido. Inscreve ele no pórtico de “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” uma tese que permeia o conjunto deste agudo ensaio de síntese de quase meio século da cultura brasileira. Sumariamente aqui traduzida, consiste tal tese no movimento dialético entre localismo e cosmopolitismo pontuando o desenvolvimento da vida espiritual brasileira em geral, assim como, em particular, a sua literatura (Literatura e Sociedade. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp. 109-111). Quando o primeiro pólo, localismo, dá o tom ao relacionamento dialético configurado na tese, as características nacionalistas comandam a cena cultural; no caso inverso, a aderência mimética e conformista aos padrões europeus assinala os momentos de exacerbação cosmopolita. Há entretanto momentos em que os dois pólos alcançam um ponto de equilíbrio harmonizando assim as influências europeias com valores propriamente brasileiros. Citando o próprio autor,
“Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como formas da expressão)”.
Frisa então que o melhor das nossas realizações intelectuais e artísticas tem sido uma combinação afortunada – como se pode observar na obra de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, assim como nas de Gilberto Freyre e Mário de Andrade – desse equilíbrio ideal verificável entre o pólo do particular e o do universal. Se consideramos o conjunto da produção intelectual brasileira do século vinte, não restritamente a produção literária, penso que Mário de Andrade e Gilberto Freyre constituem a mais acabada expressão desse equilíbrio ideal entre o particular e o universal, entre a linha da tradição e a da modernidade.
Nota: Este artigo foi publicado em dois periódicos: Cadernos de Estudos Sociais, vol. 16, no. 2, Recife, julho/dez. 2000 e Quadrant, nos. 19-20, Montpellier, 2002-2003.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Pasárgada e o Espírito de Província




O leitor acaso atento à precária e desequilibrada produção cultural que flui à margem do eixo hegemônico Rio-São Paulo sem dúvida acolherá com entusiasmo o espírito polivalente que enforma a recém-lançada revista Pasárgada. Como foi já observado no editorial da revista, tem sido invariavelmente incerto o destino dos periódicos culturais no Brasil, sejam eles sustentados ou não por organismos oficiais. Este fato sugeriria aos mais pessimistas a necessidade de se encarar Pasárgada como raridade também no sentido quantitativo.

Mas o que aqui desejo enfatizar é a dimensão qualitativa da publicação. E tal dimensão poderia ser resumida no espírito polivalente acima indicado. Grosseiramente explicitado, esse espírito se traduz no modo como certos articulistas acentuam vínculos entre a cultura brasileira, a nordestina em particular, e o movimento intelectual europeu; entre a correção factual e a mais que discutível reivindicação de prioridades e excelências; entre a citação iluminadora, fundada no justo cotejo dos textos, e a referência pedante, ciosa de exibir provas de elevada ilustração; entre a celebração dos valores da província, tantos deles vazios, e a necessária revisão crítica tingida de irreverência e iconoclastia.

Apesar do que comportava de superficial, atitude da qual nunca se libertaram diluidores e propagandistas irrelevantes como Joaquim Inojosa, o espírito imediato do modernismo derivante da Semana de Arte Moderna foi eminentemente irreverente e iconoclasta. Esse espírito sobrevive, como sabemos, à evolução mais reflexiva e pesquisadora do movimento na investida primitivista dos antropófagos no fim da década de 1920. Não obstante sua curta vigência, ele foi e continua sendo objeto de grosseiras incompreensões. É grosseira incompreensão, por exemplo, identificá-lo como sendo o espírito predominante do modernismo paulista, como o fizeram José Lins do Rego e Gilberto Freyre no livro do último intitulado Região e Tradição.
Movidos pelo propósito de reacender velhas disputas bairristas, não resistem os celebrantes das excelências regionalistas à tentação de torcer e retorcer fatos da historiografia literária e cultural brasileiras movidos pelo vão, duplo senso, propósito de afirmar prioridades. É curioso como nisso se aproximam as atitudes dos vanguardistas em geral e dos provincianos idem. Movidos os primeiros pela busca obsessiva, mas sempre inalcançável, do marco zero e os segundos pelo ressentimento diante dos centros hegemônicos que justa ou injustamente os removem para o fundo da cena, persistem ambos nessa luta sem fim em torno de prioridades e excelências. Isso decerto explicaria, ainda que por alto, a recorrência de embates tantas vezes fúteis entre oswaldianos “marco zero” e mariandradinos “nacionalistas”, entre “vanguardistas” paulistas e “revolucionários-tradicionalistas” nordestinos a modos de casa-grande ou de senzala. Que assim sobrevivam eternamente desentendidos. Isso, confesso, é o que eu faria, se essa briga sem fim entre eles se esgotasse. Infelizmente, não é o caso. Como brigam na arena pública onde por definição se desenvolve a história cultural, parte do que torcem e retorcem, excluído o que se dissolve em anedotário e vaga contingência, corre o risco de converter-se em história.

Como não é minha intenção trocar em miúdos o que acima discutivelmente expus sem diretamente fundamentar minha apreciação num confronto direto com os textos que compõem o número inaugural de Pasárgada, decidi-me pela escolha de um artigo que me parece conter muitas das insuficiências que venho intentando criticar. Trata-se de “O Significado do Modernismo no Brasil”, de César Leal. Francamente inspirado pelo espírito de província que na figura intelectual de Gilberto Freyre concentrou suas melhores e piores características, o articulista, que dizem ser poeta e teórico respeitado no ambiente intelectual do Recife, reescreve a seu gosto e desgosto fatos e interpretações concernentes à história do modernismo. E nisso tanto se esmera que chega a produzir verdadeiros primores de leitura subjetivista, senão meramente grosseira desinformação.

Vamos portanto aos fatos. Dele e meus. Ou melhor, dele e da historiografia correntemente acessível ao estudioso movido por propósitos analíticos quanto possível isentos. Celebrando virtudes de Manuel Bandeira, como justa e injustamente o fazem outros articulistas, César Leal afirma que Manuel Bandeira orientou intelectualmente Mário de Andrade. Grande poeta, sim; grande estudioso da literatura também, mas não convém abusar do espírito de província. Sabe-se da grande amizade que os uniu desde o início dos anos vinte e do quanto mutuamente se respeitavam no plano da criação poética. Daí à afirmação de César Leal a passada é longa. Bastaria uma leitura atenta, descuidada de fúteis reivindicações provincianas, das cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para que se verificasse a inconsistência da afirmação. Se Mário não foi orientado por Bandeira nem mesmo em matéria de teoria e técnica poéticas, terreno no qual o último era inegavelmente notável, muito menos o foi em outros domínios de realização intelectual nos quais se distinguiu como artista e estudioso muitas vezes pioneiro.

Mas César Leal vai ainda mais longe ao afirmar que Mário e Oswald de Andrade eram portadores de verdadeira indigência intelectual. O juízo é de tal natureza subjetiva, para servir-me aqui de delicado eufemismo, que parece dispensar argumentação. Nem mesmo a Oswald de Andrade, que era reconhecidamente um improvisador, não obstante tantas vezes genial, movido mais pelo gosto das intuições desordenadas que pelo estudo consistente e metódico, nem mesmo a ele pode-se com justiça chamar de artista intelectualmente indigente.

Mais adiante, recorrendo ao velho artifício retórico do elogio contra o outro, César Leal declara que, comparado ao modernismo “o movimento concretista apresentou muito maior solidez”. O argumento é mais do que discutível, embora não me detenha aqui para discuti-lo. Por isso vou ao fim do mesmo parágrafo onde ele adiciona às virtudes dos concretistas o fato de não terem entrado em luta com os nordestinos e de elevarem João Cabral à categoria de “uma de suas divindades tutelares”. A expressão soa um tanto pomposa, mas talvez traduza algo do orfismo para o qual tenderam alguns oficiantes do “marco zero” da estética teológica. Se se pode deduzir um valor estético do fato de não se entrar em luta contra os nordestinos, César Leal deveria lembrar que Mário de Andrade, para ficar restrito ao exemplo que mais importa, nunca entrou em luta contra nossa nordestinidade, ou contra os nordestinos.
Limito-me à menção de dois exemplos. Embora tantas vezes injustamente considerado por José Lins do Rego, que neste campo polêmico conduziu-se sempre como um discípulo provincianamente deslumbrado de Gilberto Freyre, Mário criticou a obra do nordestino em tom de alto apreço e reconhecimento das suas melhores qualidades de romancista. Tanto isso é verdadeiro que chegou a afirmar, aí por volta de 1940, que Lins do Rego era o mais importante romancista brasileiro contemporâneo. Poucas vezes Mário de Andrade esteve tão errado. Talvez porque lhe faltasse um pouco mais de espírito de província.

Segundo exemplo: qualquer leitor corrente da nossa historiografia literária sabe do profundo amor que Mário de Andrade devotava à cultura nordestina. Isso é tão evidente, tanto matéria factual, que me parece desnecessário expor aqui provas do que afirmo.

Passemos a Blaise Cendrars. Acho duvidoso que Cendrars seja a fonte mais recomendável para uma apreciação crítica do modernismo, a não ser que o propósito do articulista seja o de depreciar o último. Se é este o caso, o Prof. César Leal não precisaria ir tão longe. Sem sair do ambiente intelectual do Recife, ele teria à mão apreciações assinadas por Gilberto Freyre e discípulos maiores e menores tão pouco isentas e tanto inspiradas por interesses estreitamente bairristas quanto os que informam o artigo de César Leal.

Sem pretender negar a influência de Blaise Cendrars sobre os modernistas, e vice-versa, que foi considerável, parece-me evidente que ele não é um observador significante do modernismo brasileiro, menos ainda da nossa realidade cultural mais ampla. Como César Leal se declara familiarizado com a grande poesia ocidental de Baudelaire, senão de Dante, a João Cabral, ele decerto não ignora que a experiência brasileira de Cendrars, limitada demais, não pode ser tomada como referência para uma apreciação consistente do modernismo.

Embora fosse um homem de vivência cosmopolita e fascinante vagabundo das estradas, Cendrars observou o Brasil, como o fizeram e ainda o fazem intelectuais europeus em geral, fixado no que este lhe sugeria de pitoresco e exótico. Sua ignorância da nossa cultura chegava ao ponto de sequer grafar corretamente nomes de intelectuais paulistas com os quais conviveu e aos quais dedicou um dos seus livros mais celebrados.

Como intento provar o que afirmo, e talvez impressionar o leitor que louva articulistas familiarizados com a grande tradição poética ocidental em cinco ou seis línguas de alta cultura, cito aqui uma edição bilíngue (francês-inglês) cuja tradução para o inglês se deve a Monique Chefdor: Complete Postcards from the Americas. O volume reúne Documentaires, Feiulles de Route e Sud-Américaines. O segundo, Feiulles de Route, foi dedicado aos amigos paulistas de Cendrars cujos nomes estão assim grafados: Mário Andrade, Serge Millet, Jasto de Almeida, Conto de Barros, Rubens de Mosaes, Luiz Aranhas, Graza Aranha, Guillermo de Almeida, Américo Faco. A dedicatória é extensiva a outros intelectuais, mas limito-me a reproduzir apenas os nomes erradamente grafados. Talvez convenha frisar para o leitor mais cético que reproduzo a própria dedicatória manuscrita de Cendrars cujo fac-simile a
obra acima citada estampa na página 116.
Outra prova da grosseira ignorância de Cendrars é fornecida pelo próprio César Leal quando assim o cita: “Mário de Andrade morreu em 1938, eu acho”. Se o propósito do articulista era desmerecer Mário de Andrade, provando com isso o quanto este era irrelevante para o poeta suíço-francês que hesitantemente o mata no ano de 1938, o que ele de fato prova é o quanto Cendrars estava pouco qualificado para ajuizar acerca do modernismo e seu desdobramento histórico.

A propósito de estudiosos e comentaristas estrangeiros da literatura brasileira, o artigo assinado por Mário Hélio, “Enganos e Omissões”, fornece exemplo ainda mais convincente do que tudo que venho observando acerca de Blaise Cendrars. Mencionando o historiador Harri Meier, a quem atribui a autoria de um resumo sobre a história da literatura brasileira incorporado à obra História das Literaturas Universais, o articulista denuncia erros grosseiros de informação cometidos pelo autor.
Gostaria apenas de sugerir que tipo de tratamento intelectuais e acadêmicos provenientes dos centros hegemônicos de cultura dariam a um estudioso brasileiro que incorresse em erros de natureza semelhante com relação às literaturas de que eles são parte. Aliás, nem precisariam disso tomar conhecimento. Antes que se dessem a tal trabalho, não faltariam intelectuais brasileiros ávidos por dar lições ao ignorante que a tais vexames se expusesse.

Não resisto à tentação de encerrar estas notas ligeiras sobre nosso deplorável estado de subserviência mental aludindo a uma prática de uso generalizado que a experiência fora do Brasil me permitiu mais amplamente observar. Qualquer brasileiro, não importa de que categoria intelectual, que fale um inglês ou francês razoável, a troco de tudo, ou de nada, espinafra o compatriota que nisso lhe seja inferior. O nome dessa prática corrente entre brasileiros é colonialismo mental. Observem, porém, que não é meu propósito extrair dos exemplos acima nenhuma justificação da ignorância baseado no princípio, que irrestritamente louvo, da independência mental.

Como o leitor pode deduzir, quando convém reivindicar valores e interesses de fundo nacionalista ou regionalista, ou ainda mesquinhamente local, acusamos como alienados os intelectuais que se inspiram em fontes norte-americanas ou europeias. Se é porém o caso de desmerecer um movimento brasileiro em favor de reivindicações provincianas ou grupais, toma-se como justificado recorrer a uma fonte europeia desprovida de efetiva familiaridade com nosso ambiente cultural.

César Leal conclui afirmando que a literatura brasileira pouco deve ao modernismo, embora tenha antes reconhecido que Carlos Drummond de Andrade, “o mais completo poeta da língua portuguesa no século”, é um produto espiritual do movimento que procurou do início ao fim desmerecer movido pelo espírito de província contra o qual venho argumentando. Na própria revista Pasárgada o leitor pode verificar que outro grande poeta, para muitos maior ainda que Drummond, confessou dever muitíssimo ao modernismo. Refiro-me, claro, a Manuel Bandeira. Embora os atos de modéstia por ele praticados, sobretudo o cansativo “sou poeta menor, perdoai”, fossem com frequência mero artifício retórico, aqui ele alcança uma medida de isenção e humildade diante do movimento estético coletivo que lastimavelmente não mereceu no artigo de César Leal tratamento semelhante. No mais, encarar a literatura brasileira como produto direto do intercâmbio internacional, como o faz o articulista, é desprezar o que foi precisamente uma das grandes conquistas do modernismo: o movimento de atualização intelectual e artística do Brasil. Noutras palavras, a causa assinalada por César Leal com o objetivo de depreciar o sentido de renovação e atualização do modernismo é nada mais que um efeito deste mesmo movimento.

Poderia também aqui alinhar provas em defesa da minha tese. É porém bem mais recomendável relembrar ao leitor a justamente celebrada conferência de Mário de Andrade, “O movimento modernista”. Embora apresentada no distante ano de 1942, prova factual de que Mário sobreviveu à ignorância hesitante com que Cendrars o matou em 1938, é ainda o mais importante documento de interpretação deste movimento que inspira ainda, setenta anos mais tarde, celebrações e ataques, preconceitos e reverências, que são de resto formas de preconceito. Pessoalmente, prefiro a atitude crítica na revista proposta, ou praticada, por Roberto Martins, Marcelo Coelho e Mário Hélio. Não obstante as atitudes que aqui declaradamente combato, servem ao menos para sugerir o quanto o legado do modernismo inscreveu-se na memória coletiva de um país tantas vezes justamente criticado por sua falta de memória coletiva. Não será isso uma prova de permanência e vitalidade do melhor espírito de um movimento que tantas vezes tropeçou no mito bandeirantista do “marco zero” nisso confundindo-se com o suposto antagonismo do “espírito de província”?
Colchester, Inglaterra, junho de 1992.
Nota: este artigo de corte polêmico foi publicado na revista Pasárgada, Ano II, nos. 2 e 3, setembro de 1993, pp. 4-6.