quinta-feira, 17 de março de 2011

Nacional e Universal


Começo este breve ensaio enunciando a contradição relativa ao movimento dialético que permeia toda a nossa história cultural baseada na antinomia do nacional e do universal. Entendo que esta perspectiva teórica é fundamental para que adequadamente se coloquem os problemas atinentes à nossa formação cultural. Aplicável ao conjunto dessa formação, ela me interessa, em particular, na consideração dos dois movimentos culturais decisivos da nossa cultura no século vinte: o modernismo paulista e o regionalismo recifense. Retomo portanto essa contradição para novamente conferir alguma atenção a esses movimentos e a seus dois líderes incontestes: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Penso que Antonio Candido é o estudioso que melhor empregou esse esquema dialético na análise da nossa literatura compreendida em suas conexões essenciais com o contexto histórico-cultural. Seu emprego do método dialético consiste na função integradora, não excludente, dos polos contraditórios implicados no processo da análise. Nos termos que importam para este ensaio, os pólos compreendidos na relação entre o nacional e o universal não se relacionam de modo excludente, mas sim integrador. É por compreender a relação deste modo que represento o desdobramento histórico do modernismo e do regionalismo como forças que se negam continuamente ao mesmo tempo em que se alimentam manifestando-se de forma indissociável.

Não haveria modernismo paulista sem os fecundos empréstimos culturais provenientes dos movimentos da vanguarda européia. A própria inflexão nacionalista do movimento muito deve à contribuição de um europeu e vanguardista como Blaise Cendrars. Toda a teorização estética e cultural de Mário de Andrade, assim como de Gilberto Freyre, é em boa medida tributária do contato que estabeleceram com outras fontes de cultura e estudiosos que confessadamente os influenciaram. É por adotar este ponto de vista que discordo da tradição nacionalista ou regionalista ciosa de conceber nossa história cultural como autônoma, como explicável baseada apenas em fatores dissociados e até hostis a nossos vínculos com a cultura ocidental. O que pressuponho como atitude fundamental de análise das culturas é a interdependência necessária entre elas observável.
Ainda hoje, não obstante o acelerado processo de globalização cultural em que vivemos, há quem pretenda sustentável uma noção de nacionalismo dissociada do intercâmbio entre valores culturais. Há ainda quem critique a importação de ideias, ou a imitação cultural, como pura e simples subserviência de povo colonizado. Um dos mais lúcidos estudiosos da história das ideias no Brasil há muitos anos corretamente assinalou que
“A inteligência brasileira formou-se pelo mesmo processo que plasmou o povo brasileiro, isto é, graças às contribuições estrangeiras. Eduardo Prado diz que ´escrever a história do Brasil é escrever a história da imigração neste país`. Escrever a história de suas ideias é, também, descrever as aventuras das ideias estrangeiras no Brasil. Nesse lento processo de formação intelectual é natural que tenha havido e que haja imitação. Era compreensível que imitássemos os colonizadores. Estes, porém, ao exercerem a sua ação, sofreram também a influência das condições novas que o meio lhes oferecia e aí já se encontra uma primeira modificação do modelo original europeu. Certos autores, muito ciosos de originalidade, costumam denunciar a imitação como a fonte dos nossos defeitos e erros. É mister, porém, não esquecer que a imitação é um fenômeno social natural e universal”. (Cruz Costa. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6).
Acredito que o melhor da obra dos nossos escritores expressa a interação fecunda dos empréstimos culturais. Além disso, procuro demonstrar que o nacionalismo adotado por Mário de Andrade está longe de algumas interpretações redutoras tendentes a figurá-lo como um nacionalista avesso à cultura universal. O próprio herói Macunaíma, símbolo maior do nosso nacionalismo literário e cultural, foi descoberto graças aos vínculos profundos que Mário de Andrade estabeleceu com a cultura alemã. Lido por muitos como sendo pura e simplesmente o símbolo cultural do brasileiro, realização suprema do nosso Modernismo nacionalista, Macunaíma é todavia muito mais complexo. No estudo crítico que reputo o melhor e o mais agudo já produzido sobre este herói, argumenta Gilda de Mello e Souza precisamente no sentido de ressaltar o sentido universalista ou europeu da obra. Este sentido está de resto explícito no título do seu estudo, composto de um binômio, tupi e alaúde, empregado por Mário de Andrade num poema de Paulicéia Desvairada para traduzir sua identidade bifronte, isto é, nativa e européia. Como ela certeiramente observa,
“... o núcleo central de Macunaíma, não obstante os mascaramentos de toda a ordem que despistam ininterruptamente o leitor, permanece europeu, ou, mais exatamente, universal, e se liga ao tema eterno da busca do objeto mágico, de que a Demanda do Santo Graal representa no Ocidente a realização mais perfeita.” (Ver Gilda Mello e Souza. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, p. 92)
O nacionalismo de Mário de Andrade é, por conseguinte, universalista. Dizendo o mesmo de um outro modo, observou Anatol Rosenfeld ser supra-regional e cosmopolita. Segundo este crítico, Mário de Andrade buscava dentro da sua concepção de nacionalismo isento de etnocentrismos, assim como Herder, reconhecido como o pai do Nacionalismo Cultural, “...a autodefinição nacional no pluralismo positivo das culturas”.
Levando em consideração a amplitude dos estudos já consagrados às obras de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, é curioso que tão pouco ou quase nada se tenha feito no sentido de associá-los de modo mais franco à obra de Herder. Dado o papel fundador que este desempenha na história do nacionalismo cultural, caberia aqui esboçar as linhas profundas que o aproximam sobretudo de Mário de Andrade. Como salienta Hans Kohn, o nacionalismo moderno surge no século 18 diretamente associado à democracia e ao industrialismo. Seu advento representa o primeiro momento da história de alcance propriamente universal. ( Hans Kohn, Historia Del Nacionalismo). Quanto ao desenvolvimento particular do nacionalismo cultural, observa que este prevalece nos países carentes de soberania política e culturalmente dependentes. Isso torna historicamente compreensível o fato de a Alemanha da segunda metade do século 18, politicamente retalhada em inúmeros principados e culturalmente dependente da França, distinguir-se como matriz dessa fecunda tradição identificada como nacionalismo cultural. É portanto nesse contexto que se materializa a obra de Herder, herói intelectual de um dos maiores estudiosos das idéias no século 20, Isaiah Berlin.

Houve já quem identificasse Herder como o pai do nacionalismo cultural, tamanha é a sua importância na história das ideias atinentes à tradição romântica e ao papel do intelectual como agente dos processos de autonomia cultural nos países dependentes. Se é fato que concebia o Estado como uma nação com caráter nacional, entendia isso como um meio orientado para um fim universalista. A isso caberia acrescentar que, de acordo com Isaiah Berlin, o nacionalismo proposto por Herder é cultural, não político, isto é, tem como fundamento os grupos humanos naturais, baseados nos vínculos de sangue, vizinhança, valores empíricos, mas mutáveis, constituintes do que enfim podemos conceber como a cultura viva de um povo. Entendendo o nacionalismo nestes termos, opõe-se a toda forma de dominação exercida em nome de qualquer espírito de conquista política. Por isso coerentemente rejeita o ideal do conquistador, seja o antigo, como Alexandre Magno, seja o contemporâneo, como Frederico o Grande, ou os pósteros, incluídos os que invocaram os ideais do nacionalismo cultural para dominarem outros povos e culturas.

Importa reter criteriosamente esse traço do nacionalismo originário de Herder porque, dentro de suas múltiplas manifestações históricas, ele foi apropriado por correntes políticas de extrema-direita inspiradas pela dominação guerreira e a destruição de particularidades, nacionais ou étnicas, qualificadas como inferiores ou degeneradas. Em suma, como objeto de supressão, como alteridade justificadora de operações de guerra e conquista. O exemplo mais devastador desse tipo de nacionalismo é naturalmente o nazismo. Faço aqui esta breve menção, cuidando de ressaltar a distinção necessária observável entre ele e o nacionalismo cultural proposto por Herder, para que não se perca de vista o fato de que há muitos modos e formas de apropriação do nacionalismo.

Visando melhor traduzir a concepção de nacionalismo cultural de Herder, lembraria a metáfora naturalista que propõe. Afirma, em suma, que as culturas são como um jardim composto de muitas flores, cada uma dotada de características próprias e irredutíveis (cf. Isaiah Berlin, Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O ensaio que tomo como referência é Herder e o Iluminismo, pp. 379-446). É impressionante observar-se a equivalência que guarda com a metáfora musical proposta por Mário de Andrade ao reivindicar o nacionalismo cultural brasileiro como fundamento da nossa universalidade ainda irrealizada. Inspirado por essa mesma noção de nacionalismo cujo fim seria o universal, valeu-se Mário de Andrade de uma metáfora musical com o propósito de ressaltar que o Brasil somente se realizaria como cultura própria quando fosse capaz de contribuir com seu acorde singular, um acorde exclusivamente brasileiro, para o concerto das nações civilizadas:
“De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.” (A Lição do Amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 15).
Ao propor acima sua noção de nacionalismo, Mário de Andrade acentua nitidamente a compatibilidade que julga estar contida na relação entre o nacional e o universal. Seu correspondente – Drummond, no caso – como tantos estudiosos que consideram este problema, tende a identificar oposição ou contradição onde, segundo o entendimento de Mário de Andrade e de Herder, há perfeita congruência, já que uma coisa pressupõe a outra: o universal é irrealizável sem o nacional que para ele converge, assim como o nacional se converterá em exotismo, e no limite xenofobia, se não visar o universal como seu fim. Melhor devolver a palavra a Mário de Andrade que assim corrige Drummond:
“...você fala em ´apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites`. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente deixará de ser nacional.”
Tanto Herder quanto Mário de Andrade, confirmando sua concepção supra-regional e universalista do nacionalismo, tiveram fina sensibilidade para a apreensão e o entendimento crítico do singular. Sendo assim, não apenas estudaram e teorizaram apaixonadamente as culturas particulares de que faziam parte, mas toda expressão singular de cultura. Basta observar, por exemplo, o zelo e curiosidade empática com que Herder se debruça sobre culturas de todos os quadrantes, das africanas às indígenas, das terras desérticas às regiões frias, assim como das diferentes épocas, indo das mais antigas às contemporâneas. (Cf. Herder. Idées sur la philosophie de l´histoire de l´humanité. Ver em particular Livre VII, pp. 45-82).

No que se refere ao brasileiro, estendeu seu espírito de pesquisador por todo o Brasil, como o demonstram suas viagens etnográficas ao Norte e Nordeste, além dos seus estudos folclóricos, etnográficos, sócio-antropológicos e linguísticos. Mas o fato é que nunca se fechou etnocentricamente dentro das fronteiras nacionais. Pelo contrário, desde cedo, nutrido por autêntica e rara formação católica, religião fundada sobre o princípio da universalidade, aprendeu línguas e outras culturas cuidando sempre de iluminar sua compreensão do Brasil relacionando-o com o diferente, o estrangeiro, o outro através do qual reconhecemos nossa singularidade. Isaiah Berlin, a quem sigo na minha compreensão do caráter universalista do nacionalismo cultural professado por Herder e Mário de Andrade, observa que para Herder é graças ao advento do cristianismo que os horizontes da humanidade se alargam extraordinariamente. Sendo uma religião de cunho universal, estende-se doutrinariamente a todos os seres humanos superando assim todas as formas de lealdade e identidade fundadas em valores locais. Segundo Isaiah Berlin, a tese acima era francamente adotada pelo iluminismo cristão da Alemanha. Conforme acrescenta,
“...apesar de tudo o que se tem dito em contrário, Herder nunca abandonou esse ponto de vista. Sua crença central foi expressa perto do fim da vida com palavras semelhantes às de seus primeiros escritos: ´Gabar-se do seu país é a forma mais estúpida de bazófia... O que é uma nação? Um grande jardim silvestre cheio de plantas boas e ruins; vícios e loucuras se misturam com virtudes e méritos. Que Dom Quixote vai quebrar uma lança por essa Dulcinéia?` O patriotismo era uma coisa, o nacionalismo outra: uma ligação inocente com a família, a linguagem, a cidade, o país, suas tradições, não deve ser condenada. Mas ele prossegue dizendo que o nacionalismo agressivo é detestável em todas as suas manifestações e que as guerras não passam de crimes”.
Considerando ainda o ponto referente à singularidade das culturas, Herder argumenta baseado no próprio saber do seu tempo para realçar a singularidade observável no reino da natureza e também das culturas. Mas também ressalta, ao mesmo tempo, a realidade empírica da variedade infinita a esta acrescentando o fato igualmente observável da permanente mutabilidade. Ele acomoda a aparente contradição aí contida afirmando haver sobre a terra “... uma única e mesma espécie de homens”. Afirma adicionalmente que não se deve oprimir o dessemelhante, em cujo conceito identifica nominalmente o negro e o americano.

O sentido da mutabilidade permanente de tudo o que vive, na natureza quanto nas sociedades humanas, encontra correspondente na obra de Mário de Andrade na distinção que propõe entre tradição móvel e tradição imóvel. Objetivando esclarecer que sua identidade de líder do movimento modernista não supõe desprezo pela tradição, por todo o legado cultural brasileiro que passa expressamente a defender a partir de 1924 com espírito proselitista, como sua correspondência com Drummond e outros escritores limpidamente evidencia, assim distingue os dois tipos de tradição que propõe: “O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares”. ( Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, p. 254).

Passando a Gilberto Freyre, não sei de nenhum estudo que sequer insinue algum paralelo entre ele e Herder. O melhor estudo que sobre ele conheço, sobretudo por se tratar de investigação ampla e profunda no âmbito da gênese das ideias que fecundaram a composição de Casa-Grande & Senzala, não faz qualquer alusão a Herder (cf. Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos). O que podemos sem mais detido exame reconhecer é que também Gilberto Freyre revela aguda sensibilidade para captar e traduzir sociologicamente o sentido do singular assim como da infinita variedade das culturas.

Houve já quem observasse, penso em Darcy Ribeiro, que sua fina percepção do singular, dos entretons que tecem o multifacetado tecido da cultura, seria decorrente não do cristianismo universalista tal como assimilado por Herder e Mário de Andrade, mas de sua formação protestante dentro de um contexto tradicionalmente católico. Nele, entretanto, não diviso a mesma acentuação do sentido universal das culturas particulares que surpreendo na leitura das páginas de Herder e Mário de Andrade, menos ainda o entrelaçamento complexo do nacional e do universal. Como acima fica bem explícito, tanto Herder quanto Mário de Andrade visavam o universal como fim do nacional. Quanto a Gilberto Freyre, seu ponto de vista me parece haver sido sempre o do nacional ancorado nas fontes do regional. De qualquer modo, o pouco que expus justifica minha estranheza diante do fato de tão pouco ou quase nada existir na bibliografia de Mário de Andrade e Gilberto Freyre com relação a este ponto.

Concluo essas notas soltas acima designadas como um breve ensaio ressaltando os elos que identifico entre a cultura europeia e cultura universal. Seguindo de resto formulações correntes, por que identifico o universal, no âmbito da cultura erudita, com o europeu? Antes de tudo, porque preciso fatalizadamente me posicionar dentro dos horizontes de minha percepção da realidade. Noutras palavras, a realidade que percebo e intelectualmente apreendo está enraizada na tradição europeia. A ela devemos, preliminarmente, a língua que nos exprime e através da qual nos exprimimos. A ela devemos ainda os fundamentos da tradição dentro da qual elaboramos nossa formação científica e literária. Lembrando uma platitude todavia oportuna, não haveria sociologia no Brasil, e por conseguinte nossa formação, emprego e produção acadêmica, dissociada de toda uma tradição relativa a esse campo gestada na Europa e a partir dela difundida por grande parte do mundo.

Refutar esses vínculos que tomo como evidentes, e empiricamente aferíveis, em nome de algum suposto exclusivismo particularista – de região, nação ou identidade cultural – é deslizar irrecorrivelmente para o solo minado já aqui indicado. Assim procedendo, logo nos enredaremos nas contradições e paradoxos embutidos na falsa disjuntiva nacional versus universal. Outra poderosa razão para que eu identifique o universal com o europeu deriva do reconhecimento de que a proposição e defesa de valores universais são características marcantes da cultura européia.
Recife, 7 de setembro de 2009.

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