segunda-feira, 14 de março de 2011

Montaigne I




Além de criador de um gênero literário que muito me seduz, o ensaio, Montaigne praticou-o com um sentido de qualidade inigualável. Embora ensaístas admiráveis se tenham distinguido em inúmeras línguas e tradições intelectuais, sou dos que pensam que ninguém o excedeu no gênero. A variedade e profundidade temática que ensaiou também merecem registro num artigo de comentário geral. Tendo isso em mente, ficarei restrito a alguns aspectos e questões que mais me interessam e de imediato me ocorrem. Como escrevo isento de qualquer noção precisa de planejamento e anotações que me valham como baliza e matéria expositiva, ouso aqui repeti-lo à margem de qualquer intenção de falsa modéstia ao afirmar que tenho fôlego curto e andar moroso. Associando o ensaio ao exercício da viagem, acrescentaria viajar antes de tudo sem sair de casa. Se acaso saio, raramente vou além da esquina mais próxima. Eis portanto a medida manca do ensaio que me aventuro a praticar inspirado nas minhas vagas mas constantes leituras de Montaigne. Adianto ainda que o leio unicamente movido pelo prazer e com igual propósito o comento.

O que de ordinário escrevo me sai sem traçado prévio, sem ordenação metódica do assunto que intento erraticamente explorar. O advérbio de modo vai aqui bem pensado ou colocado. Foi muito tardiamente que me apercebi do quanto me confundia ao optar por uma profissão, a de docente universitário, que me obrigaria a escrever obras de cunho acadêmico. A verdade tardiamente descoberta, tão tardiamente que é agora irreversível, é que não pude consagrar-me ao tipo de formação que me qualificaria para isso. Aliás, talvez melhor me explicasse e justificasse se dissesse que me falta antes de tudo inclinação para ser um autor acadêmico, aquele tipo de trabalhador intelectual institucionalmente disciplinado para escrever teses de andamento penoso e laboriosa escavação. Os melhores – sempre raros, como em qualquer ocupação humana – alcançam realizar obra de valor e referência sobrepondo-se aos códigos reguladores de técnicas de trabalho e composição que frequentemente atormentam criadores de talento e sufocam alguns mais infensos às normas de produção acadêmica.

Dentre as regras de trabalho que a instituição me impôs e mais me anularam, mencionaria o que a troco de tudo e de nada designam como marco teórico. Longe de mim desqualificá-lo pura e simplesmente. Dado que não me passa pela cabeça esclarecer o que entendo seja, até por que muitos dos que o cobram e fiscalizam são os primeiros a invocar-lhe o santo nome em vão, friso apenas que o marco teórico com frequência exerce a função de inibir ou anular o estudante pouco treinado para assimilar essas práticas acadêmicas. Diria que no meu caso a inabilidade ou incompetência somou-se à resistência do aprendiz (de)formado à deriva das circunstâncias. Mais que a academia armada de rituais e práticas nos quais tanto aridamente tropecei, tolheu-me a própria vida tangida à deriva de acasos e obstáculos que seria impertinente aqui grosseiramente descrever, até porque tudo saberia longo e digressivo além de qualquer medida tolerável.

Os dois parágrafos precedentes podem até com proveito ser ignorados pelo leitor compreensivelmente impaciente com autores demasiado digressivos que a troco de tudo e de nada desandam a falar de si próprios. Afinal, o ensaio que aqui esboço é sobre Montaigne ou sobre mim? Ao enfiar de brusco esta questão, que juro nada conter de artifício retórico, fico à vontade para melhor justificar o andamento sem prumo aparente deste ensaio. Antes de tudo, o próprio gênero o justifica. Ele é nitidamente apreensível, antes de tudo, no próprio pai fundador. Montaigne é tão digressivo e caprichoso na forma como desdobra a matéria dos seus ensaios que não raro confunde ou desvia a atenção do leitor já em alguns títulos que escolhe para nomeá-los. Ai do leitor que procure outro assunto que não sejam a morte e o suicídio no ensaio cujo título é “A propósito de um costume da Ilha de Ceos” ou presuma cuidar apenas de Catão, o Jovem no curto ensaio assim identificado. Fazendo justiça à forma arbitrária do gênero que inventou, Montaigne avança tão à vontade quanto recua, dobra-se zelosamente sobre a realidade objetiva com a mesma destreza que revela ao recolher-se para dentro de si próprio, quando não sobrepõe uma coisa à outra. Por fim, visando praticar a norma de mais estrita franqueza com o leitor, alega escrever apenas sobre si próprio, assertiva que logo descobrimos ser tão enganosa quanto instrutiva. Logo, se os dois parágrafos acima denunciados parecem de fato impertinentes, e não nego que também o sejam, ambos encontram justificativa no gênero que Montaigne inventou. Resumindo, o que se pode incriminar-me é a qualidade do que produzo dentro do gênero, não a forma e o modelo que me inspiram.

A ambiguidade essencial do ensaio constitui um dos motivos que me autorizam considerar Montaigne tanto um filósofo quanto um autor literário. Embora se tenha detido no exame de questões essenciais à filosofia, parece-me improcedente qualquer pretensão de busca de uma filosofia sistemática na sua obra. Além do tratamento ensaístico que confessadamente adota ao examinar questões de fundo filosófico, suas fontes e autores de eleição não derivam de nenhum modelo de filosofia sistemática. Se há assim quem com razão o vincule ao estoicismo, quando não a uma ética de fundo estoico, outros com igual razão o associam ao ceticismo. Sabe-se ainda que suas fontes primaciais procedem da tradição clássica greco-latina, mas nada nelas fundamenta a determinação de uma filosofia unitariamente formulada. De resto, seria absurdo atribuir-lhe finalidades ausentes dos seus escritos.

Embora o prólogo da obra seja tão breve, quase lacônico, não me deterei na sua análise. Interessa-me apenas salientar seu tom de franqueza quase desabusada que de algum modo me acorda na memória o prefácio também breve de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas a franqueza que vai ao extremo de fazê-lo lastimar a impossibilidade de pintar a si próprio sem qualquer reserva ou concessão às convenções que freiam a expressão desatada da verdade mesmo no escritor mais livre, também encerra um vinco de autoironia e um suspeito verniz de modéstia ou fingida humildade. É isso o que deduzo ao lê-lo aludindo à sua “ingenuidade física e moral”, também quando alega ignorar o juízo da posteridade, isto é, o destino reservado à sua obra.

Para não sair por aí tão à deriva, tropeçando nas pedras guiado apenas por meu andar de bêbado, convém fixar alguns limites para este ensaio. Já antes aludi à extraordinária variedade dos ensaios de Montaigne. Resta-me agora selecionar alguns temas que elegi como matéria de minhas improvisadas reflexões. Como digito estas notas hospedado na casa de parentes em Salvador, não disponho de maiores fontes de referência, salvo o primeiro volume da tradução dos ensaios feita por Sérgio Milliet e o livreto Montaigne, de Peter Burke. Até o volume dos ensaios integrais em língua francesa atualizada pelo filólogo André Lanly, até este deixei-o na minha biblioteca em Recife.

Começando por um tema que a própria revolução dos costumes concorreu antes para fazê-lo obsessivamente discutido, analisado, dissecado e sobretudo vulgarizado no pior sentido do termo, acompanho um pouco Montaigne despindo nossa sexualidade de muito dos preconceitos, obsessões e disparates que a cercam. Montaigne tratou-a com franqueza e discernimento raros no seu tempo. Também no nosso, apesar de todas as aparências em contrário. Fascinado pela desconcertante diversidade das culturas que direta ou indiretamente reteve na rede de sua insaciável curiosidade, apreciou-a, nossa sexualidade e suas infinitas variações, isento dos preconceitos, da cegueira etnocêntrica característica do seu tempo, do nosso, de qualquer outro tempo.

Somente nossa presunção de vivermos numa época, a modernidade permissiva, liberta de preconceitos, pode iludir-nos ao ponto de afirmarmos, como é corrente, que vivemos numa cultura estranha ao etnocentrismo. Se de ordinário não o dizemos nestes termos, até porque etnocentrismo é um termo derivado da linguagem especializada, dizemo-lo em termos pessoais. Noutras palavras, estou cansado de ouvir pessoas afirmarem em tom frequentemente de autolouvor que não têm preconceito. O que de fato dizem, embora não o saibam ou não tenham disso nenhuma consciência, é que têm muito preconceito. Vão na verdade bem além disso, pois o sentido que transpira no subtexto é o do pior tipo de preconceito: o que nem sabe de sua existência, ou por outra não ousa sabê-la.

Montaigne observou nossa sexualidade com olhar arguto e serena ironia. Sendo assim, não foi por acaso ou dissimulada afetação que inscreveu na sua biblioteca, entre tantas máximas sábias, as palavras de Terêncio que cito livremente de memória: sou homem e portanto nada do que é humano me é estranho. São palavras impressionantes que condensam um sentido modelar de visão humanista. Mas quantos já não as repetiram ou presumem adotá-las como norma de vida armando-se de intolerância e grosseira incompreensão à visão do primeiro estrangeiro que inadvertidamente pisa nos calos da nossa medida etnocêntrica?

No ensaio XXI, “A força da imaginação”, Montaigne confessa o quanto era susceptível aos poderes dessa falsa demente, como diria Drummond. Evidenciando o quanto a imaginação tinha o poder de induzir-lhe estados de franca hipocondria, revela que “a vista das angústias alheias influi fisicamente em mim de maneira penosa, e não raro sofro de sentir que alguém sofre”. Assim como atua no sentido de assaltar o equilíbrio dos hipocondríacos, a imaginação exerce igualmente o poder benfazejo de curar pacientes adoecidos pelo seu feitiço ou curáveis por sua eficácia terapêutica. Montaigne relata a propósito anedotas exemplares, algumas francamente divertidas. Há quem tocado por suas forças misteriosas testemunhe milagres ou sirva como veículo de visões e alucinações que, a depender de cada caso, ora atormentam, ora maravilham.
A sugestão erótica, variante fecunda da nossa imaginação insubordinável aos ditames da razão tantas vezes desavinda de governo, rende páginas deliciosas saídas da pena de Montaigne. Aqui os poderes da imaginação se manifestam de forma igualmente ambivalente, já que tanto podem atear fogo aos mares quanto cobrir de trevas a luz do dia, tanto nos transportam às delícias e prazeres mais intraduzíveis quanto nos aprisionam nas mais horripilantes figurações do inferno. Nada ilustra melhor as maravilhas e tormentos dos poderes da imaginação, no caso literária, do que as façanhas delirantes de Dom Quixote ou os desvarios românticos de Madame Bovary, esse Quixote de saias.

Bem mais caprichosa e sedutora é a imaginação que se manifesta no curso anárquico da vida, não no da literatura. Daí voltar-me à mente a imagem da falsa demente invocada por Drummond. Dentre suas multifacetadas materializações, talvez nenhuma seja mais recorrente e ingovernável do que a erótica. Também aqui recorrem seus conteúdos e efeitos ambivalentes. Se de um lado ela nos descortina a fruição do amor e dos mais deleitáveis prazeres eróticos, de outro inverte o curso das águas e a rotação das horas cuja duração pode converter-se em estados de expectativa apreensiva, medo e até puro desespero. Montaigne ilustra todas essas nuances da banda torta da vida com relatos que variam do patético ao cômico, do insensato ao inacreditável. Citando alguns que de pronto me sobem à memória sem motivos de definida ordenação, lembro aqui algo do que nos revela dos efeitos que o fantasma da impotência sexual impôs a alguns figurantes do ensaio que comento. Há o caso do homem que, humilhado pela impotência no momento fatal da prova de virilidade, ficou tão transtornado que mutilou o próprio pênis. Inversamente, prende-nos o relato do recém-casado apreensivo que na noite de núpcias triunfou sobre o medo da impotência beneficiado por técnicas de sugestão induzidas por Montaigne.

Montaigne guia o leitor curioso através dessas peripécias pontuando ora os limites desconcertantes de nossa razão presunçosa e todavia vexatoriamente vulnerável, ora os embaraços de nossa natureza insensata exposta aos caprichos e poderes da imaginação que tão amiúde nos atraiçoa. Mas também se esmera em sabiamente dosar nossas medidas desencontradas vazando em tom de ironia e humor muito do que a outros inspiraria apenas medo, incompreensão e perplexidade. Diverte-me, por exemplo, a forma como a meio de relatos tão inusitados relativos à retorcida sexualidade humana ele alude ao pênis como esse órgão tão imprevisível e caprichoso, vulnerável ao arbítrio da imaginação que tanto o impele a trair-nos no momento em que mais carecemos que dê provas afoitas e potentes de si quanto nos vexa nas circunstâncias contrárias, aquelas nas quais precisamos que se comporte com discrição tão louvável que se faça ausente ou despercebido.

Esses episódios provindos de séculos remotos, os que nos separam do tempo em que Montaigne viveu, se renovam ou refazem moldados por circunstâncias distintas, fruto de outros tempos e costumes. Isso apenas comprova a constância de certos traços da nossa natureza. Mudam os costumes, os valores éticos e religiosos que demarcam a pauta de suas manifestações, mas continuamos de modos variáveis a inquietar-nos e padecermos de dramas e aflições substancialmente comuns àqueles que Montaigne nos relata ao examinar seus semelhantes e contemporâneos.

Somente os ingênuos ou inscientes, aqueles tolamente deslumbrados com as supostas maravilhas do presente, iludem-se supondo que o progresso humano, com e sem aspas, e as engenhosas descobertas e soluções de muitos dos problemas humanos bastam para nos libertarem de limites e perplexidades humanas que teimam em nos afligir. Se os tempos e os costumes sem dúvida mudam, nossa aderência de ordinário servil àquilo que nos ditam permanece substancialmente inalterada. Ponderar devidamente essa verdade guiados pelo propósito de libertar-nos da tirania que sobre nós exercem seria já uma evidência de sabedoria assimilada – um grão que seja, concedamos, mas já um grão nada desprezível na contracorrente de nossas vidas insensatas.
Salvador, Bahia, 8 a 10 de fevereiro de 2011.
Ler também
http://fmlima.blogspot.com/2011/02/montaigne-nosso-contemporaneo.html

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