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segunda-feira, 11 de março de 2013

A Boa Idade nos Trópicos


Severo Machado
Tenho setenta anos. Sou reumático, cardíaco e viúvo. Antes de aposentar-me, acalentei durante anos o sonho de envelhecer à beira mar, estoica e solitariamente esperando a morte numa praia tranquila do litoral pernambucano. A solidão da viuvez muito me doeu. Afinal, tive Carminha a meu lado, minha amada Maria do Carmo, durante grande parte da minha vida. Ficou-me de consolo a filha, Soledade, que aliás seguiu minha profissão. Fui dentista no centro do Recife durante 35 anos. Cuidei de muita gente, até de gente difícil como Sérgio Majo, Natalino, Paulo Farias, Severo Machado, Pedro Gadelha e Valêncio Costa. Se conquistei a amizade e o respeito destes, seres crivados de idiossincrasias e atávico temor à minha cadeira e instrumentos, o fato diz algo em favor do meu apreço por seres humanos, algo de minha singular bonomia. Ao cabo, todos se foram, inclusive Soledade, cujo nome foi venturosamente traído pelo destino, pois encontrou um amor em São Paulo, para lá transferiu o consultório e nunca mais voltou.

Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Por temperamento e consciência do meu jeito pouco pernambucano de ser, evitei sempre os ambientes ruidosos da cidade, as tradições festeiras que tanto importunam meus hábitos reservados. Além disso, cresci numa família de classe média modesta, mas regida por padrões de comportamento pouco comuns. Meu pai, homem discreto e amável, nunca foi de falar alto, gesticular por tudo e por nada, como é tão típico do pernambucano. Quando voltava do trabalho, acomodava-se na sua cadeira de balanço sem nunca incomodar vizinho. Apesar dos seus modos pacatos e discretos, era um homem acolhedor, afiado no humor com que comentava fatos e circunstâncias, além de me entreter com sua convivência imaginosa. Embora de pouco estudo, preso a um mundo de horizontes bem estreitos, era dotado de uma civilidade e senso de respeito que não vejo como explicar a partir das condições ambientes em que se formou. Acho que herdei muito desses traços que pingo aqui à deriva da memória.

Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Leitor voraz de literatura, apesar da inteligência e sensibilidade convencionais, sonhei ler e em alguns casos reler na solidão da velhice as grandes obras zelosamente enfileiradas na minha velha estante revestida de vidros foscos e empoeirados. Lá repousam Cervantes, Sterne, Thomas Hardy, Dickens, Balzac, Machado de Assis e uns poucos mais. Mal fechei o consultório, bati a poeira desta cidade que aprendi a detestar e fui esconder-me no meu cantinho de praia comprado em Porto de Galinhas. Fui dos primeiros a explorá-la, dos primeiros a render-lhe afeição que direi ecológica ou naturalista, pois amei-a desde o primeiro verão em que nela me instalei ouvindo nas noites de lua o violão de Baden Powell e a música suprema de Tom Jobim. Porto de Galinhas era o paraíso ecológico onde sonhei repousar minha velhice desiludida e esperar a Indesejada das Gentes com alguns laivos filosóficos de serenidade e aceitação compassiva do meu fim.

Bastou-me uma semana de aposentadoria na praia para que os turistas e veranistas predadores convertessem minha velhice num inferno. Meu sonho de viver uma velhice recolhida e sossegada, pontuada por caminhadas na beira mar ao entardecer e outros hábitos que me propiciam serenidade, tudo isso foi prontamente suprimido pelas mudanças que a indústria do turismo, crescendo a toque de festa, impôs a Porto de Galinhas. Mergulhado em funda depressão, vendi minha casinha. Sem saída, retornei a Recife onde reocupei o velho apartamento que considerara vender logo que me aclimatasse ao litoral onde fixei encontro ilusório com a Indesejada das Gentes. Vivo agora na área que os corretores de imóveis e publicitários chamam de cartão postal de Recife. Se é isso cartão postal, bem imagino o que seja o cotidiano dos carteiros.

Às sete da manhã os vendedores de gás de cozinha arrancam-me da cama. Rolam lentamente rua afora trovejando no alto-falante as virtudes e o preço irrisório do produto que me abala o sono e a paz doméstica. Depois o ruído incessante da construção civil, o bate-bate sem trégua das reformas de imóveis, o vendedor de cd pirata, as buzinas e alarmes eletrônicos dos automóveis guinchando dia e noite. Minha rua, meu bairro, a cidade inteira tornaram-se um corredor por onde rola todo tipo de mercadoria assaltando os ouvidos da população indefesa e no geral indiferente.

Não bastasse tanto, muitos dos meus vizinhos inconscientemente concorrem para infernizar o meu dia. Como a solidão imposta por uma cultura hiperindividualista é demasiado dolorosa, sobretudo para os separados e idosos, muita gente passou a projetar nos cachorros sentimentos e carências antes satisfeitos ou orientados para o semelhante. Já que este é cada vez mais indiferente, e lhe respondemos com a mesma moeda, restam os cães como companhia e consolo para a aridez e futilidade de nossas vidas. O problema é que esses diabos, os cães, latem onde e quando querem. Se não civilizamos nossos filhos, o que dizer dos cães adotados como nosso último refúgio de companhia e fidelidade?

Como observador indefeso e silencioso, impotente para moldar a cidade a meu jeito e feição, assisto desolado a um processo de aceleração urbana que vai desfigurando ainda mais uma cidade que nunca passou de um acampamento urbano. Sei que essa apreciação severa, mas verdadeira, irritaria qualquer leitor de Recife, cuja percepção de sua cidade é deformada pelo excesso de bairrismo. Aprendi na minha leitura errática de alguns antropólogos que etnocentrismo (o fenômeno que venho de nomear como bairrismo) é uma disposição universal e espontânea do ser humano. Penso que seja verdade, mas meus conterrâneos aparentem ir além dos excessos correntes quando celebram traços culturais e tradições que jamais proporia como modelo para qualquer cidade compreendida no sentido preciso do termo.

O fato é que Recife está nas mãos de um punhado de empreiteiras e políticos corruptos cuja única ambição é enriquecer a qualquer preço. Cidade sem plano de expansão e controle dos meios de recomposição do espaço urbano, marcha para ser uma São Paulo subdesenvolvida. Melhor dizendo, vai ser a São Paulo do Nordeste contendo apenas o que esta tem de pior. Mal escorado na fraqueza dos meus setenta anos, olho à minha volta, até onde mais longe a vista alcance, e não vejo um parque, uma praça, um espaço público acolhedor, ou simplesmente usável, onde possa viver algumas horas da minha rotina de aposentado. Diante de condições ambientes tão hostis, decretei eu próprio meu estado de prisão domiciliar.

Há pouco um publicitário imaginoso inventou um novo tipo de serviço vendido e prestado sobre rodas sustendo auto-falantes potentes. Quem perdeu ou teve um gato ou cachorro roubado, paga agora a esse meritório serviço para infernizar ainda mais meus ouvidos saturados desse cotidiano de bordel, com perdão das orgias que em nada importunam ou infelicitam os vizinhos. O inferno, dizia o outro, que de resto era francês, são os outros. Se o francês dizia coisas desse tipo, e graças a elas ficou famoso, citado até por gente que nunca o leu, o que diria um velhinho reumático e cardíaco prisioneiro da idade num bairro sem lei?

Hoje, quando descansava do almoço, fui acordado pelos alto-falantes. Falavam em favor de uma pobre senhora cuja gata siamesa foi roubada. Pela manhã outro agente filantrópico, ou zoológico, trovejou o desaparecimento ou roubo de um louro falante. Ontem foi a vez de um cachorro amado pela família que o procura de coração cortado. Todos esses infelizes, privados de tão inconsoláveis amores, prometem gratificação substanciosa, além de fornecerem número de telefone para ligação gratuita. Comovido com tanto amor por gatos e cachorros e louros, indo de contrapeso tanto desprezo pela minha paz doméstica, enfim encontrei um meio de bondosamente ajudar esses infelizes. Liguei para os órfãos do louro disfarçando a voz e dedurei a órfã da gata siamesa. Procedi ao mesmo tipo de troca com outros infelizes, num caso ou noutro enfiando perversamente o endereço e o telefone de algum desafeto. Ignoro que conforto levei à vida e corações de gente tão amável, mas sei que os alto-falantes continuam trovejando pelas ruas.

A perspectiva de uma viagem de uma semana sugeriu-me outra ideia humanitária. Liguei para a agência de publicidade. Alô, gostaria que você gravasse um anúncio e o transmitisse aqui no meu bairro de domingo a domingo. Quero que vá ao ar logo cedo, às sete da manhã e à tarde, logo depois do almoço. Pode ditar o anúncio, meu querido. Paga-se regiamente a quem encontrar um burro velho e reumático puxado por três patas mancas. Só três? Só. Será fácil localizá-lo, se evidentemente andar pelas ruas. Paguei a conta e logo viajei.

Voltei ainda secretamente me deleitando com o ruído que causara no ar do bairro durante minha ausência. Para minha surpresa, alguém gravou uma mensagem na secretária-eletrônica: Alô, dotô. Encontrei seu burro. Morto, mas encontrei. Tem três patas mancas e um par de remos. Estão quebrados, mas é fácil ver que eram usados por um burro remático. Tudo é possível no Brasil, suspirei desenganado. Tive tanto trabalho para me ver livre do chantagista que desisti de vingar-me dos vizinhos valendo-me do princípio cristão com que todos os dias me confortam a vida: o bem com o bem se paga.
Um dia comprarei um fuzil e serei notícia na mídia universal. Conquistarei enfim meus quinze minutos de celebridade fuzilando um carro de propaganda, envenenando uma gata siamesa ou enforcando um cãozinho veludoso. Ou ainda afogando um velho burro remador. O inferno serei eu.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amor e queijo suíço


Severo Machado

Os dois ou três leitores que acaso leram minhas crônicas talvez identifiquem contradições grosseiras nesta que aqui vai. Aliás, não sei se a designe como crônica ou conto. Faz anos que discuto com amigos chegados à literatura a distinção entre uma e outro sem que cheguemos a um acordo. Por isso, visando encurtar a intriga, passei a repisar este juízo de Mário de Andrade: conto é o que o autor diz que é conto. Sendo assim, democraticamente estendo o critério libertino ao próprio leitor: conto ou crônica é o que o leitor diz que é conto ou crônica. Sei que uma solução arbitrária como esta irrita os acadêmicos, que de resto ficam sem ter o que fazer. O que seria do ganha-pão deles sem essas bizantinices?

Prometo não ir longe na consideração das contradições grosseiras que o leitor pode identificar entre esta crônica e outras postadas no blog de Fernando da Mota Lima, que me tolera apenas por falta de melhor companhia. A recíproca é verdadeira e assim vou em frente. Fico na consideração de uma única contradição. O leitor notará que desta vez o tema da crônica não são minhas aventuras eróticas costumeiras. O blogueiro que me acolhe diz que sou cínico e cruel. Ora, precisamos afinal ser alguma coisa na vida, é o que respondo e ele engole rindo. Apesar das evidências em contrário, sou como todo mundo. Quero dizer, também visito amigos, até inimigos suportáveis, e muitos são casados, uns raros bem casados. Isso prova que, apesar dos meus inimigos, sobretudo dos amigos, nunca pratiquei o celibato militante e promíscuo. Pratico apenas o celibato promíscuo. E com tanta honestidade que repito Misael, o misógino, sem língua entre as pernas: troco de mulher como troco de roupa. Portanto, não tenho culpa se as enganadas lavam roupa suja na lavanderia errada.

Como bom brasileiro, passo ao assunto da crônica reiterando um dos bordões da nossa inconsciência nacional: não tenho preconceito. Sou mulherengo, cínico, misógino, racista, autoritário, faço o que não digo e desfaço o que não faço, mas juro de pés juntos: não tenho preconceito. Chega de autoelogio. Passemos à crônica.

Confesso que nunca entendi o amor tenaz e inabalável que Natália nutre por Leôncio e Marcela por Cristóvão. Mais que isso, que incapacidade de explicá-lo, tinha ressentimento desse amor. Como sou humano com um travo de mesquinharia na minha humanidade, ficava ressentido por não ser afortunado como eles. Eis que um dia, às vésperas do Natal, em pleno clima de festa e consumo natalino, estávamos reunidos num jantar animado na época em que Marcela e Cristóvão moravam numa casa da Rua Real da Torre cuja varanda ouviu muita gargalhada de amizade e prazer.

Alguém falou em queijo suíço, que em tempos de hiperinflação era um luxo, e então brinquei dizendo algo do tipo: sempre desconfiei de que havia um vínculo secreto entre Cristóvão e a Suíça. Foi aí que surpreendi um brilho estranho, diria sutilmente monetário, nos olhos sempre puros e delicados de Marcela. Perturbada por meu olhar, que por uns vagos segundos ficou cego diante daquele brilho intenso e fugaz, Marcela prontamente disse: “Você é um fantasioso. Imagine Cristóvão com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

De repente, tudo miraculosamente se esclareceu e assim sosseguei meu ressentimento diante desse amor que tanto invejava, ao ponto de me inspirar insone ressentimento. Só os infelizes no amor, aqueles que convertem essa infelicidade em solidão ressentida, somente eles podem avaliar a dor que nos causa a felicidade alheia, ainda que seja a dos amigos. Para mim, tudo ficou explicado e desde então dormi em paz diante desse amor tão belo e constante que tem atravessado nossa longa vida. A partir de então, suportava à vontade seus estados de felicidade espontânea em contraste com minha solidão contraída. Bastava-me dizer para meus botões, embora não costume usá-los: Isso não passa de felicidade conjugal com depósito bancário na Suíça.

Sucedeu que ontem almocei com Leôncio e Natália. Não foi tudo perfeito (nada afinal é perfeito, como dizemos invocando chuva no aguaceiro) porque Leôncio teve a infeliz ideia de convidar Lúcio Siqueira. Além de péssima companhia, Lúcio me obrigou a lhe dar carona, o que significa dizer que tive de suportá-lo sóbrio na ida e bêbado na volta. Como não dou uma pela outra – isto é, a sobriedade pela embriaguês, no caso dele – tive vontade de largá-lo no alto do viaduto Joana Bezerra.

Mas volto ao fio da meada. O almoço não foi perfeito porque havia Lúcio e porque faltava queijo suíço. Não sei por que, a meio daquela reunião divertida, avivada pelos vinhos e pratos deliciosos que Natália nos servia, tive de repente uma insofreável saudade de queijo suíço. Deixei então que me escapasse essa impropriedade: Só não está perfeito porque falta queijo suíço. E até emendei: estamos por acaso em tempos de hiperinflação?

Ao me voltar para Natália, por um instante paralisada, notei no seu olhar o mesmo brilho estranho, a mesma profundidade insondável que muitos anos antes lera no olhar de Marcela. Como que por um milagre somente concebível em divã de psicanalista (não de um qualquer, mas o de Freud), ouvi Natália repetir as mesmas palavras que anos antes ouvira dos lábios de Marcela: “Você é um fantasioso. Imagine Leôncio com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

Por pouco não saltei de desafogo e vingança. Foi como se me tirassem das costas e do coração travado um grande peso, um peso de ressentimento que não se pesa em balança de bodega. Então estava tudo explicado: esse amor que tanto invejo, que tanto me separou desses dois afortunados, Leôncio e Cristóvão, esse amor não passa de uma tenaz ilusão de viúva pobre. Elas pensam que ambos têm fortunas fechadas a sete chaves num inviolável banco suíço. Como se ambos, coitados, fossem irmãos eleitos de Maluf. Ainda bem que ambos são imortais, elas também, pois do contrário não herdariam nem queijo suíço. Razão tinha certo amigo meu que costumava dizer: amor é coisa de louco. Sendo de mulher, é loucura tresloucada.
Recife, 9 de dezembro de 2012.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Natalino e as meninas



O Amor nos Trópicos – Natalino e as Meninas
Severo Machado
Tudo começou com Lolita. Não a original, a de Nabokov, mas a de Kubrick. O mundo inteiro se recompôs como num sopro de iluminação e atordoamento. Amei quase sempre mulheres da minha idade, algumas até mais velhas. O que me tocava e inspirava no convívio de meninas era a imaginação contagiante que irradiavam. Nada além disso. Mas então veio a descoberta de Lolita, a obsessão comovente e patética de Humbert Humbert. E a verdade do amor que desde então passou a reger minha vida é fruto talvez de uma pura transfiguração do acaso. Ou talvez não, talvez ela em mim latejasse distante e impronunciável. Talvez já me possuísse naquele dia em que seduzi minha prima, que tinha apenas nove anos. Talvez pulsasse insensível na adoração cega com que cultuava Marilyn Monroe.
Luís Carnome, meu amigo e confidente, achava isso um absurdo. Como associar minha pedofilia ao culto de Marilyn? Marilyn é um mito gerado pela imaginação adulta, ponderava, típica da paixão por mulheres adultas. Mais que amigo e confidente, Luís era meu guru em matéria de cinema. Tudo sabendo de cinema, cultuando o cinema como passei a cultuar o corpo das meninas depois da revelação vinda de Lolita, Luís era quase sempre minha última palavra sobre a realidade paralela de Hollywood. Por isso fiquei abalado. Teria ele razão? Observe, Luís, que a raiz do erotismo de Marilyn é infantil, assim como o culto que lhe emprestamos é de natureza pedófila. A sedução poderosa e intemporal que ela exerce deriva do fato de traduzir no corpo e na linguagem uma expressão desconcertante de menina sensual, dengosa e... não sei, juro que não sei exprimir o essencial. A sedução de Lolita, ou de Marilyn é inefável, indizível como tudo que cativa e domina para além da compreensão racional.
Mas é a vida com sua força cega e irreprimível quem comanda o roteiro insensato da história humana que jogamos e sempre perdemos. Foi num domingo de sol, dentro de um antigo casarão de Salvador, que a vi pela primeira vez. Quero dizer: não ela, mas ela guiando as duas filhas presas a cada uma das mãos. A intuição brusca e fugaz cegou-me no meio da sala: estou perdido. Depois dela, com ou sem ela, nunca mais serei eu em mim como até agora me sei e me vivi e me enganei na suposição de me saber. O pior foi mais tarde descobrir que a perdição maior viria não dela, mas das duas filhas. Mal passou um mês e já nossas vidas eram tempos ajuntados e confundidos. A pedofilia, essa flor de obsessão que me consome, novamente latejava nos desvãos do corpo, vibrando quase inaudível nos subterrâneos da latência onde a carne respira sua condenação inconsciente. Eu então nada sabia da paixão que para sempre atou minha vida aos destinos de Ana Lúcia e Ana Sofia. Meu amor pela mãe, Ana Sílvia, era tão completo e absorvente que me cegava para tudo pulsando à órbita dos fatos palpáveis. Os que dizem que o amor é cego ignoram a real cegueira da razão.
Vivíamos brincando. Eu e as meninas brincávamos com a delícia e inconsciência dos inventores e habitantes primevos do paraíso. A consciência, esse graveto errante vagando nos campos sem fronteira da irracionalidade, somente a pouco e pouco se foi constelando num atormentado horizonte de desejos. Pingou aqui uma gota vibrante, mais além um noturno bater de portas, e foi avançando para o casulo onde as meninas dormiam respirando um sono de completo abandono. Nas noites de calor, a própria Ana Sílvia dizia: vá dormir com as meninas, meu amor. No quarto delas, com ar condicionado, não entram muriçocas. Eu odiava muriçocas e ainda hoje não suporto a picada de uma. Passei a dormir num colchão estendido sobre o assoalho entre as camas de Ana Lúcia e Ana Sofia. Ficava de joelhos ao pé da cama, um tempo sem memória contemplando cariciosamente a beleza daqueles corpos belos, inconscientes dessa selva em que nos consumimos, tão ainda pequenos, mas fadados à medida e gasto da nossa condição adulta. Algum tempo depois, tremendo de medo e prazer, passei da contemplação cariciosa ao toque deslizando suave por todo o corpo das minhas pequenas deusas. Um dia Ana Lúcia acordou enroscando-se feito uma gata, toda arrepiada pelo toque de minha mão: Vai embora, Natalino. Me deixa sozinha no quarto. A voz saiu-lhe grave e envolvente, como voz de mulher. E me fui atordoado e entrei no quarto de Ana Sílvia onde a possuí violentamente.
A curiosidade sexual das meninas se foi manifestando cada vez mais livremente. Queriam tomar banho comigo, dormir comigo, trepidar nas noites de rede suspensa na varanda. Sublimando penosamente meus desejos, domei-os numa clave de expressão lírica mesclando contos de fadas recriados no balanço rangente da rede, canções infantis e um despropósito de poemas tocados pela beleza e a infância de Ana Lúcia e Ana Sofia. E tudo isso em mim surdia e me sobressaltava num calor de excessos comunicados ao corpo de Ana Sílvia. Quanto mais amava e desejava as filhas, mais intensa e passionalmente possuía a mãe. Nosso gozo, um dentro do outro desavindo, era tão extremo e inefável que um dia desabei suado sobre o assoalho úmido e comecei a chorar num completo abandono de mim. A dor do prazer era tanta, tanto o desamparo da carne iluminada, que eu apenas gemia entre lágrimas: você quer me matar, você quer me deixar louco. Ela me tomava nos braços entre lágrimas de comoção e lá ficávamos largados de pura felicidade. Nenhum homem gozou como gozei em Ana Sílvia.
Em certa tarde eu lia na rede da varanda quando Ana Sofia entrou completamente nua, recostou o corpo na parede e ficou de costas para mim simulando contemplar o mar de Salvador. A beleza daquele corpo de menina, paralisado como uma oferenda ao alcance da minha mão, ainda hoje me atravessa a memória fisgada de luz e dor. Quase sem voz, pois o tuc tuc do coração me subia pela garganta, disse apenas: meu amor, entre e se vista.
Ana Lúcia, mais carinhosa e expansiva, era um tormento ainda maior. Vivia rolando nos meus braços. Muitas vezes, voltando da praia pendurada no meu ombro, corria para trás das portas para logo em seguida surpreender-me em algum recanto do apartamento. Quando menos esperava, puxava-me o calção e ria deliciada diante do meu corpo nu. Se eu entrava no banheiro, punha-se a forçar a porta querendo porque queria entrar para tomar banho comigo. Meu tormento era longo, continuado e delicioso. Nunca ninguém viveu inferno assim celestial como o que provei. Em meio a tudo, fui cada vez mais temendo perder as forças que me garantiam energia sublimadora. A paixão de possuí-las eu a continha procrastinando o gozo sonhado para um ponto indefinível do futuro, para o dia em que rebentassem na plenitude da maturação biológica.
Que fantasias tecem as linhas e cores das tatuagens impressas no corpo feminino? Um dia, possuindo Ana Sílvia, disse-lhe da minha fantasia de nela gravar um sinal do meu amor e posse. Pouco mais tarde surpreendeu-me exibindo na altura do ventre uma flor tatuada contendo as letras L e N, isto é, Luiz Natalino. Comovido, beijei-lhe o ventre e a tatuagem repetidas vezes. Logo isso bastou para que eu desandasse a desejar minhas iniciais impressas na carne de Ana Lúcia e Ana Sofia. Tanto fiz que convenci Ana Sílvia, que não precisou gastar verbo e artimanha para persuadi-las a transportar minhas iniciais no corpo. No pé direito de uma e no esquerdo da outra foram afinal gravadas as letras L e N. Correu-me por dentro um inconfessado poder de senhor de um reino, de um castelo inviolável ou um latifúndio amazonense.
Ana Sílvia deu para falar de uma vida solidamente comum. Quero dizer, uma vida casada, com papéis passados e assinados em cartório. Se nos amávamos tanto, se eu era tão feliz na companhia das meninas, por que não vivermos como uma família? Precisava recompor sua vida com as filhas em bases mais estáveis. Compreendia seus sentimentos e aspirações. Também eu queria o que ela, retesada no seu orgulho de mulher independente, confessava um tanto constrangida. Mas o medo e o desejo de possuir as meninas num futuro incerto, porém irreprimível, findou por anular qualquer possibilidade de amor casado e continuado.
Além de bela e sensual, Ana Sílvia vivia num mundo de homens. A natureza da profissão que exercia propiciava-lhe rotineiramente a oportunidade de viajar sozinha, frequentar congressos e encontros científicos, privar da intimidade de acadêmicos sedentos de aventura e até de amor refeito sobre a terra devastada das relações traídas e rompidas. O amor incerto, a insegurança sem solução previsível, tudo isso e outros imponderáveis cavaram a separação e o desenlace doloroso que findou por transportá-la para São Paulo. Soube mais tarde que casou com o homem com quem me traiu durante meses. Sabia da traição e de imediato tudo fiz para remendar nossos cacos e salvar nosso amor. Atormentada por um conflito enraizado numa formação religiosa inflexível, refugiou-se na vivência esquizofrênica de duas realidades intoleráveis: a traição efetiva contra o imperativo da fidelidade puritana. Ana Sílvia fora educada num colégio de freiras, além de criada por uma avó cujo mundo tradicional e fechado lhe impôs prisões morais inexistentes na realidade dos costumes que pipocaram a partir da década de 1960.
Muitos anos passaram enquanto errei por aí e pelo mundo. A compulsão por meninas acelerou-se a meio das minhas lutas vencidas para esquecer Ana Sílvia, Ana Lúcia e Ana Sofia. Talvez Ana Sofia me amasse ainda mais que a irmã, mas sua natureza retorcida, de expressão emocional atormentada, turvava-lhe a dor da minha perda. Era nisso igualzinha à mãe, instável como clima inglês. A imagem deriva de lá, da própria Inglaterra que, abaixo delas, amo acima de tudo mais. Ana Lúcia, porém, me perdia e pedia à distância com o mesmo desembaraço amoroso do Éden que compartilhamos em Salvador. Por isso escrevia-me cartas de dor e amor intensos na sua letra ainda à cata de uma forma madura, no traço tateante de menina. Suas cartas, tão simples e nuas, são as declarações de amor mais agudo e pungente que jamais recebi de uma mulher. Depois de as ler e chorar ferido no meu completo desamparo, eu mergulhava na solidão e no frio cortante das ruas inglesas. Andava horas a fio, sem direção ou propósito, salvo o de me castigar na minha dor sentindo o frio roer-me os ossos desertos, punir-me a carne surdamente gemendo a dor do amor irreparável.
Voltei por fim a Salvador onde nem mesmo a beleza dócil e despudorada das meninas me alivia a condição de completo desenraizamento, o desterro de judeu errante. Odeio o odor vindo das ruas, das águas sujas escorrendo pelas ladeiras ou empoçadas nas sarjetas. Odeio esse cotidiano trepidante e ruidoso, a incivilidade crônica do baiano, pior que a do brasileiro típico. Não tenho família, odeio a simples ideia de família, e nada me prende a nada. A beleza dócil e despudorada das meninas é ainda eco ou prolongamento do falo patriarcal, do escravismo que nos feriu a alma e o corpo com vincos indeléveis. A beleza dócil e despudorada excita o macho e até se deleita dobrada por sua animalidade predatória. Tornei-me uma máquina fria, movida a ódio e fantasia destrutiva. O ódio represado é tanto, de tão penosa respiração, que às vezes preciso errar dentro da noite deserta. Chego enfim à praia e brado embriagado contra as ondas invocando um deus punitivo: que venha outro dilúvio, a second coming, e tudo reduza a pedra e pó. Que sobrevivam apenas minhas deusas inconsoláveis castigadas pela condenação de me chorar para o resto dos tempos.
Durante seu exílio, tudo aqui ficou pior. Você porém ficou ainda pior que tudo. Palavras de Luís Carnome, a quem o acaso me junta num bar na noite da Barra. Mais ainda que meu guru em matéria de cinema, Luís é um sociólogo rico, um dos raros que souberam usar os instrumentos dessa profissão sórdida para enriquecer. Por isso costumo chamá-lo de Midas de Natal, terra de onde veio. Tudo que a sua sociologia toca transforma-se em pesquisa de opinião, estudo de mercado, assessoria, leite sugado das tetas violentadas do Estado. Em suma, dinheiro e poder. É humilhante o contraste entre seu poder e sucesso e meu fracasso de hedonista estoico, se é possível abusar assim de um oximoro.
Sabe do grito de guerra que adotei? Vamos às profissionais. Estou farto de mulheres complicadas infernizando-me a vida com um trem de ex-maridos, filhos delinquentes e suas opressões intoleráveis e miúdas. Faz meses que transo apenas com profissionais. São limpas, gostosas e caras. Mas posso pagar e quero, aliás, pagar algumas para você. Luís falava quase sem pausa, tomado daquela ansiedade que por aqui confundimos com alegria. Sua vida moral dissolvia-se ante meus olhos inclementes, mas como não invejar um homem que cai entre risos voltados contra si próprio? Prefiro as meninas de classe média prostituídas não por necessidade, mas por prazer e antes de tudo por escravização ao deus do consumo soberanamente regendo a vida dessas baratas tontas esvoaçando no shopping center.
Não te conto a última, Natalino. Estava em São Paulo, às voltas com um desses congressos insuportáveis de acadêmicos e políticos, quando me bateu um desejo intenso de transar com uma puta de classe média. Liguei para um corretor, eufemismo criado para designar cafetão de classe, pois existe classe até na rede dos bordéis. Perguntou-me se não gostaria de transar com duas irmãs. Topei no ato. Você não imagina a beleza delas, Natalino. Mas talvez não lhe interessassem. Tinham 18 e 20 anos. Velhas demais para mim, cortei enquanto ele caía na gargalhada. Vivi uma noite de rei. As meninas eram completas, insaciáveis e faziam de tudo com um prazer e um abandono de tudo como nunca gozei em nenhuma puta ou mulher. Já exaustos e suados, deslizei sobre seus corpos para beijar-lhes os pés. Você sabe que sou tão pedófilo quanto você, disparou o trocadilho novamente entre gargalhadas. Sabe da maravilha que descobri? Tinham duas tatuagens gravadas: uma no pé direito, outra no esquerdo. Numa a letra L, noutra a N. Mais tarde pensei casualmente: poderiam ser as iniciais de Luiz Natalino, emendou outra gargalhada. Se você tivesse tido tal sorte, encontraria afinal um motivo para invejá-lo, arrematou afrouxando nova gargalhada. Estava já tão bêbado que mal notou meu estado de miséria às bordas do desespero. Voltei para casa chutando pedra, tomado por uma dor absolutamente indizível. Foi então que me veio a ideia do incêndio. Parei num posto e comprei um bujão de gasolina. Dentro de alguns minutos tudo isso será cinzas. E ninguém saberá, sequer desconfiará que elas me consumiram e me pisaram e por fim a isso me reduziram: essa cinza fugaz dissipada na brisa noturna de Salvador.



sexta-feira, 8 de abril de 2011

Alcoolfobia


Alcoolfobia
Severo Machado

Odeio Nietzsche que odiava bebida alcoólica. Nietzsche odiava o álcool com a mesma intensidade com que odiava o cristianismo. Com uma diferença, porém: este era sintoma de sua ambivalência, já que foi poderosamente influenciado por ele. O álcool ele o odiava de forma coerente, pois nunca se meteu com esse tipo de má companhia. Se há uma má companhia que longamente frequentei, além das mulheres que tenho o dom de tornar piores do que são, é a má companhia do álcool. Há muito sei que ele é incompatível com meu organismo. Quando com ele me meto em bares, festas e outros ambientes pouco recomendáveis, no dia seguinte pago a conta com multas e juros extorsivos. O álcool sempre me deixa de ressaca, não importando sua qualidade. Pior: detona minha rinite alérgica, me castiga o corpo e me abate com o peso da sonolência e da dor de cabeça.

Por que então com ele me meto, se comprovadamente me faz mal infalível e previsível? Antes de tudo, ele tem o poder mágico de tornar as pessoas interessantes, como apropriadamente observou certo alcoólatra inglês. Como não as suporto a cru e sóbrio, preciso beber para torná-las o que não são ou tornar-me eu o que elas gostariam de ser ou que eu fosse. Além disso, ele é o mais eficaz corretivo da timidez que conheço. Sei que falam de mim, sei que zombam de mim quando baixo a guarda e confesso esta fraqueza: sou tímido incorrigível. Não me acreditam simplesmente porque dou em cima das mulheres antes que cruzem as pernas, também porque sou grosseiro e não raro brutal. Como há muito desisti do divã de Lúcio Astrolábio, que me extorquiu uma montanha de salários sem me fornecer o mais vago sinal de cura, preciso ocasionalmente fazer das minhas crônicas um divã sem guichê.

E assim vou eu bebendo. Houve um tempo em que bebia mais que o razoável ignorando todo tipo de sinal vermelho. Fazia mal antes a mim do que ao próximo, mas era a via mais curta para a cama das mulheres que cruzava na noite, no bar, na festa e até no bordel, pois sou do tempo em que o bordel era uma instituição espacialmente estabelecida para salvaguardar a estabilidade e permanência da família. Depois que todo mundo passou a fazer em todo o mundo o que antes era privativo do bordel e do quarto da empregada, a família não se desagregou, mas sofreu mutações tão radicais que algumas passaram a confundir-se com um bordel.

Melhor voltar ao copo já quase vazio. O que preciso é esvaziá-lo de vez. Quero dizer, preciso aprender a odiá-lo com a mesma intensidade coerente de Nietzsche. Aliás, é difícil imaginar filósofo mais incoerente do que ele. Quando estou sozinho comigo, pouco me custa esvaziar o copo ou simplesmente prescindir de enchê-lo. Não que eu me considere boa companhia para mim próprio. O que de mim me salva e comigo me reconcilia é a poderosa força narcísica que nos governa. Sendo assim, racionalizo o que sou de pior, abraço minhas mais baixas baixezas e acabo sempre vendo no espelho o melhor ser humano que conheço.

O problema é conviver, embora Drummond tenha escrito que viver é conviver. Aí vai outra incoerência típica desse povo que pensa, que pensa mais do que vive, como é o caso dos intelectuais. Drummond gostava tanto de conviver que se refugiou na poesia, sua via de fuga do suicídio, ou pelo menos da incapacidade crônica de tolerar as formas rotineiras de convívio. Como não sou poeta e de resto odeio a poesia, salvo quando empregada para levar mulher para a cama, reconheço minha necessidade do outro sem sacrificar a coerência em benefício de um verso ou frase citável. O problema é que em mim a necessidade se traduz em via de colisão, em timidez mascarada nas vestes da grosseria e da brutalidade sem cálculo. Recorrendo ao menor dos males, prefiro quase sempre encher o copo e logo esvaziá-lo. Quem estiver por perto que se cuide.

E assim vou eu bebendo e me sofrendo. No dia seguinte estou inutilizado. Dói-me a cabeça, dói-me o corpo lasso, dói-me a dor que arrebenta em espirros, secreção irritante, a incapacidade de governar minha vida rotineira. E tudo por causa do álcool do qual dependo para tornar o outro interessante e me dar coragem para dar em cima das mulheres. A ressaca me engrossa o sangue contra o álcool fazendo-me jurar juras que logo desacredito diante da primeira garrafa que me aparece. Afrouxo meu ódio contra Nietzsche como se essa artimanha imprimisse eficácia a meu ódio contra o álcool fazendo-me assim negá-lo para sempre. Mas logo sobrevém outra bebedeira logo seguida de outra ressaca acachapante e novas juras de ódio e suspensão da dependência.

De algum tempo para cá, somei ao ódio crescente ao álcool uns bambos exercícios da vontade sempre vulnerável ao prazer, ao mínimo esforço, ao caminho mais curto entre o desejo e seu objeto, entre o bêbado e a garrafa. O diabo é que a tentação salta sobre mim em cada canto da casa, em cada esquina de rua, em cada TV ligada. Como no Brasil há TV ligada até nos sanitários, igrejas e bibliotecas, como escapar dos publicitários implacáveis na sanha de me corromper, de me tornar um alcoólatra? Pior é que não me vendem a cerveja suadinha escorrendo volúpia e prazer. Vendem-me a gostosa suadinha que a imaginação libidinosa confunde com a lata ou garrafa.
Sei que dirão que a culpa é minha, a culpa é de todo alcoólatra que não tem caráter nem energia para resistir à tentação. Afinal, como sempre dizem depois da orgia, “beba com moderação”. Fazem da hipocrisia mercadológica o mesmo que um puritano faria num bordel. Como beber com moderação quando tudo me convida, quando tudo me provoca a beber imoderadamente? Pensando bem, vou parar de odiar Nietzsche para concentrar meu ódio nos publicitários e na maldade do semelhante, causa real das minhas bebedeiras incuráveis.
Olinda, Bar do Batata, 2 de abril 2011.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Tatuagem na Nuca


Tatuagem na Nuca
Severo Machado

Odeio tatuagem. Odeio essa gente que se mutila com tatuagem, piercing e outras formas mecânicas de mutilação. Se querem ser mutiladas - vou falar apenas do corpo feminino, pois é o que me interessa – que usem meios humanos de mutilação. Quero dizer, entreguem-se a um Marquês de Sade, ou a qualquer desses machos que gostam de maltratar mulher na cama.

Zoca Porrada, policial típico do Brasil, gosta é de mutilar bandido nas celas da delegacia. Diz ele que não gosta. Apenas cumpre seu dever, que é zelar pela segurança de gente como eu. Zoca nunca ouviu falar de gente como Freud e faz muito bem. Como todo ser humano típico saudável na inconsciência da vida que vive isenta de um ponto de interrogação, Zoca simplesmente age e vive. Pensar, diria ele se pensasse, é algo que deixa a serviço de intelectuais parasitas e acadêmicos delicados.

Perdi de vista a tatuagem. Entrei na delegacia, ouvi os gritos do bandido sendo castigado por Zoca e eis que perdi de vista a tatuagem. Felizmente, voltando à rua, vi uma gostosa desfilando uma tatuagem horripilante que escorria pelos braços e se alongava até às costas. Somente a nudez sabe onde acabava. Andava como se fosse o centro do mundo. Talvez por isso mutile o corpo de forma tão boçal. É o único meio que encontra para chamar a atenção dos desatentos. Como disse, odeio tatuagem.
Antonio Senile, lírico incorrigível, sonha uma amante com uma tatuagem microscópica e luminosa bem no centro do olho. Uma tatuagem que fosse um raio de sol irradiando luz no centro do olho que ele beijaria como um devoto no altar da beleza. Como observei, Senile é um lírico incorrigível. O diabo é que é meu amigo, meu único amigo. E de um amigo, sobretudo se é único, a gente tolera coisas que nunca imaginou tolerar. Também Luciano Oliveira é meu amigo. Mas este é um trator esmagando o roseiral do jardim lírico de Senile. Lirismo e tatuagem? Somente na imaginação de Senile. O que a tatuagem me inspira é ódio.

Mas eis que um dia ela entrou na piscina onde faço hidroterapia.Dizem minhas más línguas (são muitas, pois tenho o dom de inspirar inimizade e ódio) que vou à hidro para curar reumatismo. Envelhecem-me e envilecem-me mais que o calendário e as forças ativas do meu corpo. Que fazer? Ela entrou na piscina e de imediato senti que entrara, embora estivesse de costas para ela. Senti que era ela e que não era uma mulher qualquer porque uma vibração súbita correu-me o corpo da raiz do cabelo à ponta do pé. Deus dorme e o demônio anda à solta, é o primeiro e excitante pensamento que me ocorre quando sinto o choque dessa vibração. Traduzindo na linguagem do comércio miúdo: aí tem coisa... Completando as reticências: aí vem mulher morena, rabuda e gostosa. Sei que o leitor vai torcer a cara, se antes não deletar meu blog. Ou delatar. Se for um pouco paciente, resmungará: cronista sem imaginação. Repete sempre esse mote. Mas o mal, acreditem, não está no cronista, ou na sua falta de imaginação. O mal (bem, para mim) está na minha monomania, na minha fixação erótica em mulher morena, rabuda e gostosa. Pronto, voltei a me repetir.

Postou-se a meu lado na piscina e logo começou a agitar a água instruída pela fisioterapeuta sobre a sequência dos exercícios. Por que logo a meu lado, se a piscina é tão grande? Só pode ser maquinação do diabo, que me atormenta sempre que uma mulher dessas cruza meu caminho. Como sou tímido, aprendi a ser ousado, isto é, vou entrando sem bater à porta ou pedir licença. Seu nome? Bruna. Nome de puta. Quero dizer: na minha imaginação perversa. Basta-me ouvir o sopro desse nome e logo vejo a Bruna do site Garota Nacional. Ligava para o celular dela e logo marcava um encontro no motel. E agora tenho outra Bruna a meu lado, agitando a água da piscina enquanto seu corpo agita minha imaginação atormentada pela força da carne. Depois de cinco minutos já sabia que era agente de turismo e, repisando o previsível, adorava viajar. Parecia uma Geisy Arruda morena com todas as peças nos devidos lugares.

De repente outro choque: prendeu os cabelos numa touca plástica e então vi a tatuagem. Minha reação imediata foi de aversão e ódio. Mas logo emendei o soneto, como diria Antonio Senile. A tatuagem era uma maçã tão meticulosamente desenhada, tão bem cravada na nuca de linhas perfeitas que logo senti um outro choque, mas agora de natureza completamente oposta: descobri que adorava aquela tatuagem. Então disse algo que somente um tímido irreparável ousaria dizer: posso morder sua maçã? Não pode porque é do meu marido. E daí? Não sou nem um pouquinho possessivo. Ela riu o riso de consentimento das mulheres que tratam seu corpo como uma propriedade comunal. Taí um caso em que sou comunista até a última maçã.

Saímos da piscina para uma pizzaria dessas que mais parecem um refeitório de reformatório. Ideia dela, frequentadora desses ambientes que jamais recomendaria a meu pior inimigo. Pensando na tatuagem e na maçã de Bruna, reconheci que faria qualquer coisa para mordê-la, até jantar numa pizzaria daquele tipo. Enquanto ela devorava avidamente o prato da casa, limitei-me a mastigar um nada, pois minha fome era morder a maçã da sua nuca. Parou de mastigar apenas para dizer que o marido era muito ciumento. Por que todas as mulheres que gostam de trair tanto insistem em dizer que seus maridos são ciumentos? E daí, meu amor? Eu não sou. Ganhei outro riso manchado de pizza com molho de tomate nos lábios carnudos.

Até o leitor sem nenhuma imaginação, como Antonio Senile, pode bem adivinhar qual foi nossa próxima e última parada. Como jamais confundo invasão de privacidade com evasão de privacidade, deixo que o leitor imagine o que aconteceu no motel. O que acrescento, já vestindo as calças, é que continuo odiando tatuagem. Acrescento a tempo que também odeio maçã. Mas por uma mulher como Bruna eu faria qualquer sacrifício. Será que é mesmo casada?
Recife, 6 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Nudez do Escritor Tímido


O Amor nos Trópicos – A nudez do escritor tímido.
Severo Machado

Você nunca foi entrevistado antes. Por que agora?
Nunca fui convidado. Mais importante: recebo agora um convite para conceder uma entrevista paga.
Nenhum outro motivo?
Bem, talvez eu pudesse fazer minha a explicação de Inocência White depois de posar nua para uma revista consumida por mecânicos de automóveis: tirei a roupa apenas para humilhar minha timidez.
Cite um parágrafo que você jamais assinaria.
Faz mais de um século que o futuro pertence ao Brasil. Dado o papel crucial que desempenhou durante o processo de colonização, Pernambuco é o fundamento da nação, matriz da nossa identidade cultural. Por isso podemos com orgulho proclamar que Pernambuco fala para o mundo. Entre maravilhado e obediente, o mundo segue o roteiro traçado pela régua e o compasso pernambucanos.
Quem é o autor destas palavras?
Já esqueci, mas são muitos os que se orgulhariam de assumir a autoria desses disparates provincianos.
Por que você odeia tanto o Brasil e particularmente Pernambuco?
Meu ódio, se assim você prefere designar minha atitude de crítica intelectual ao Brasil, é fruto de um amor traído. Não leia aí nenhum paradoxo simplório baseado na natureza ambivalente dos sentimentos. O fato é que me fiz gente cultivando um amor ativo e crítico pelo Brasil. Por isso tentei, dentro de meus modestos limites, concorrer em algum grau para ver realizadas as mudanças coletivas passíveis de nos elevarem à dimensão de um país autenticamente moderno e democrático. Mas o Brasil deu nisso que você vê. De tanto apostar e perder, acabei reduzido ao estado de absoluta descrença em que me encontro. Em suma, acredito que o Brasil é incivilizável. Um amigo otimista costuma consolar-me, ou consolar-se, prevendo que daqui a cem anos seremos uma nação, não esse bordel cujo nome, aliás, teve como fonte uma mercadoria muito cobiçada. Sei que sou imortal, mas infelizmente minha paciência é finita.
Embora no geral situados no ambiente de Recife, seus personagens e a ação dos seus contos poderiam ser deslocados para qualquer outro lugar. Concorda?
É uma observação precisa. De fato, não me passa pela cabeça acrescentar aos personagens e às situações que vivem qualquer traço de natureza regionalista, qualquer particularismo passível de anular a especificidade histórica implícita na minha ficção.
Como você caracterizaria essa especificidade histórica?
Diria que grosseiramente meus personagens e os conflitos que vivem são fruto das transformações que em graus variáveis afetaram o conjunto das sociedades ocidentais. Somos periféricos, mas ocidentais. Personagens como Luiz Natalino, Sérgio Majo e Inocência White, por exemplo, seriam inconcebíveis dissociados das mudanças ao mesmo tempo liberadoras e devastadoras gestadas sobretudo a partir dos anos 1960. Nossas fixações regionalistas, feitas de idealizações retrógradas e fantasias de identidade cultural, passam inteiramente ao largo dessa realidade. Minha ficção nada tem a ver com o canavial do coronel ou com o batuque folclórico da escravaria de ioiô.
Não há aí um laivo de elitismo, a traição do seu desprezo pelo povo?
Não desprezo o povo, mas a mentalidade predadora e parasitária das elites brasileiras.
Se não há traição ao povo, não haveria traição à sua experiência de pernambucano na literatura que você escreve?
Não sei bem o que você quer dizer quando se refere à minha experiência de pernambucano. Passei parte da minha adolescência murado num buraco ainda mais fundo do que o buraco que é o nosso mundo rural. Sabe no entanto que autores li emprestados da estante do meu tio? Alexandre Dumas, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Robert Louis Stevenson, Thomas Hardy, Oscar Wilde, Balzac, Flaubert... Música? The Beatles, Rita Pavone, Roberto Carlos, Nat King Cole... Cinema? O de Hollywood, os filmes italianos, os seriados... O que isso tem a ver com nossa suposta identidade pernambucana? Se na minha juventude era assim, o que dizer hoje?
Você escreveu um conto intitulado Estupro Social. Você justifica o estupro apoiado em razões sociológicas? Estupraria uma mulher?
Como entendo que meu conto não é a demonstração de uma tese sociológica, acho que cabe ao leitor refletir sobre a primeira parte da sua pergunta interpretando livremente o conto. Quanto à segunda parte da questão, diria que não estupraria, mas confesso que já estuprei uma mulher quando eu tinha quinze anos. Era uma negra bonita emudecida pela opressão. Usei-a à força sem sequer saber então o que era estupro. Estava apenas repisando uma prática corrente no mundo rural nordestino e nas famílias de classe média do Recife. É claro que a inconsciência do crime não inocenta o criminoso. Sexo livre entre namorados adolescentes é uma outra invenção recente. No tempo da minha adolescência a gente se iniciava nos quartos das empregadas domésticas ou nos puteiros imundos.
Você não é impiedoso diante da miséria suportada pelo povo brasileiro?
You must be cruel in order to be kind.
E a política?
Já que desistimos de cuidar dela, hoje ela cuida de nós sem maiores embaraços. O resultado está aí à vista. Inútil comprar um kit de sobrevivência mínima cujos itens podem ir do analista ao exterminador ou justiçador a serviço da vítima desamparada pelo Estado. Reiterando uma obviedade que o medo não vê, se o mal com o mal se paga, o resultado não é soma zero, mas a multiplicação incalculável do mal.
E a literatura no mundo atual?
É irrelevante. Figura ainda nas chamadas revistas de cultura porque reduzida a turismo cultural. Ou manual de auto-ajuda. Ou variante de fofoca nas colunas sociais.
Por que então você insiste em escrever? Vaidade?
Não há vaidade que sobreviva à recepção de dez leitores descontentes. Escrevo porque a experiência de recriação literária da realidade concorre para que me compreenda melhor a mim e ao mundo em que vivo.
Uma frase que você gravaria no pára-brisa do seu carro ou no seu túmulo.
É de Alan Bennett, um dramaturgo inglês: I´ll tell you something. Heaven is going to be hell.
Você concordaria que a frase acima condensa todo o pessimismo da sua literatura?
Não. Por quê? Ora, porque minha literatura não é pessimista. O que escrevo é apenas uma reinvenção – ora realista, ora satírica ou ainda satírico-realista – da realidade que vivo e observo. Se você lê pessimismo no que escrevo, ele é um ingrediente substancial da realidade, não uma projeção negativa da minha percepção do mundo. É porém verdade que nossa expressão imaginária da realidade radica na concepção que temos da literatura. Se um escritor a concebe como mera via de fuga da realidade, uma variante da cocaína consentida que embrutece a sensibilidade e a percepção das pessoas, é provável que ele produza uma obra adequada ao consumo dos órfãos da evasão. Entendo que a literatura é uma via singular e privilegiada de conhecimento do mundo. Somo a essa função cognoscitiva uma outra que Freud identifica como manifestação do princípio de prazer. A forma estética corresponde a esta segunda função.
Apesar da discordância, insisto em dizer que a sua literatura é negativa. Por que a escuridão compreendida como metáfora não freqüenta sua obra? Quero dizer, a escuridão traduzindo sua representação sombria e opressiva do mundo, o sofrimento ou alienação a que parecem condenados seus personagens.
Porque, insisto do meu lado, minha literatura não é pessimista. Aprecio a escuridão literalmente compreendida. Afeiçoei-me a ela desde a infância. Talvez porque cresci em noites envoltas numa escuridão completa, apenas rompida em alguns pontos pela luz das velas e dos candeeiros. Não esqueça de que no Nordeste o progresso material é recente e restrito. Some a este fato uma renitente doença dos olhos que me forçava a viver encerrado num quarto escuro, mesmo à luz do dia, com um grosso tecido preto protegendo-me a visão. Talvez essas circunstâncias tenham concorrido para agravar minha timidez. Assim, associo à escuridão sentidos simbólicos bem distintos e até opostos aos sentidos correntes nas representações metafóricas da realidade. Para mim a escuridão traduz reserva, recolhimento, concentração do vivido e experimentado. Trepar no escuro, por exemplo, é algo que anima e libera minha imaginação e meus sentidos. No escuro você tem a liberdade de descobrir e mesmo reinventar o corpo da mulher. Essa coisa de trepar dentro de uma torrente de luzes, como fazem tantos casais freqüentadores de motéis, é compulsão de amantes exibicionistas. A luz do amor, mais que a da mera e vulgar trepada, irradia da escuridão, não dessa vitrine narcisista que define a banalidade do nosso tempo. Aliás, irradia mas também naufraga. Por isso, é no escuro que sofro e curo o amor perdido.
Você não é acaso narcisista?
Claro que sou. Mas pareço discreto e humilde se me comparo com a minha faxineira ou com o porteiro do meu condomínio.
Como traçar a fronteira entre a biografia e a ficção na sua obra?
Você indaga sobre esferas intercomunicantes, mas autônomas. É um despropósito, para não dizer rematada tolice, confundir o autor com a sua obra, ou seus personagens. Um tolo ou maledicente confundiu-me com meu personagem Luiz Natalino. Daí passou a acusar-me da prática da pedofilia. Voltando à natureza intercomunicante mas autônoma da realidade e da ficção, não negaria que o personagem contém muito de mim. Daí a presumir que sou pedófilo vai a distância imensurável entre a obra e a fantasia que o autor nela projeta. Bastaria dizer que o próprio nome do personagem, Luiz Natalino, é já um artifício literário indiciador do papel da pedofilia na tradição literária ocidental.
Que medos oprimiam sua infância, se você sequer temia a escuridão?
Meu grande medo era cogitar um mundo sem meu pai regendo-lhe o centro. O único mundo cogitável obedecia ao comando do meu pai movendo-lhe as forças com sua potência protetora. Tive aos nove anos um pesadelo no qual via meu pai morto de maneira brutal. Acordei chorando, completamente desamparado. Precisei de horas, dentro da escuridão vazia, para reatar o mundo a uma fonte de sentido passível de devolver-me o sono.
Você acredita em Deus?
Não. Também não acredito mais no meu pai.
Em que acredita então?
Na dúvida.
É possível tolerar nossa vida individual regida pela dúvida?
Penso que sim. A aprendizagem é longa e tormentosa, mas alguns se libertam da rede de crenças ilusórias que escoram nosso medo e o vazio flutuando à borda do abismo. Não esqueça de que as mais terríveis atrocidades produzidas pela história humana são fruto de alguma crença, alguma convicção cega e poderosa, algum sistema de fé. A crença, transformadora ou reativa, convertida em energia de ação social, tem sido a grande geradora de devastação da humanidade e do mundo natural. O mal que causei a este mundo derivou quase sempre do impulso vindo de alguma fé consciente ou obscura. Seríamos mais livres e menos destrutivos se aprendêssemos o dom da dúvida liberadora.
E sua mãe?
Foi uma ausência quase absoluta. Quero dizer: ausência física. Simbolicamente, ela vive e viverá em mim até o fim de tudo. Talvez seja isso uma condenação, mas o fato é que nunca nos libertamos daqueles que amamos. Pai e mãe, sabemos, são os modelos primários dessa aventura amorosa, quase sempre desastrosa.
Você gosta de bater?
Você gosta de apanhar?
Você gosta de mulher?
Nua ou vestida?
Você se identifica com o seu nome?
Não. Na verdade, detesto chamar-me Severo Machado. Preferiria ser Machado de Assis, Henry James, Joseph Conrad. Mas que fazer, se a crítica tem sempre a vista curta?
Há quem diga que você é uma pessoa cruel.
Sou tão inofensivo como uma flor silvestre. Lembra a última fala de Norman Bates em Psicose, já possuído pelo espírito atormentador da mãe? Pois digo o mesmo de mim: sou incapaz de fazer mal a uma mosca.
Como gostaria de concluir a entrevista?
À maneira de Brás Cubas: Não tive filhos. Não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria.
Assim encerramos a entrevista e assim perdi de vista o repórter cujo nome esqueci. Soube que uma semana mais tarde a entrevista foi publicada. Ou melhor, mutilada, tantos foram os esquartejamentos a que a submeteu o editor. Devo-lhe o crédito de render-me alguma atenção ao comunicar-me, via e-mail, a operação destrutiva imposta à entrevista. Alegou a inocência dos que matam porque recebem ordem para matar. Estava apenas pondo em prática normas editoriais adotadas em benefício do leitor. Mais uma razão, pensei, para evitar a leitura de revistas de cultura. Tive a tentação de conferir minha fala com o texto. Logo porém mudei de idéia assombrado pela possibilidade de tropeçar num monstro que não me saiu das entranhas. Seria um tormento que tive a prudência de neutralizar. Achei assim oportuno tomar a entrevista como lida e aprovada. Afinal, o que mais importava era o pagamento da entrevista cumprido, ressalto por dever de justiça, segundo as normas do mercado. Um dia, suspirei contando as cédulas magras, universalizaremos no Brasil as práticas do capitalismo de mercado. Será enfim o progresso que prossegue tremulando em vão na divisa da nossa amada bandeira nacional.
Dias mais tarde cruzei no Parque da Jaqueira com um jornalista amigo. Falou-me da entrevista, concordou com tudo que desmentiria na primeira curva do parque, bastando que se visse livre da minha presença indesejável. Ia já a caminho de fazê-lo quando alguma lembrança o deteve. Voltou-se para mim e falou quase que aos gritos: Ah, esqueci de lhe dizer que seu entrevistador suicidou-se anteontem. Aliás, seu amigo Perfídio Ventura anda espalhando que o suicídio foi de fato um homicídio. Cândido como o personagem de Voltaire, cedi à tentação da curiosidade: a quem atribui a autoria do homicídio? À sua entrevista.
Ri vexado e retomei meu passo. Embora quisesse esquecê-lo, Perfídio Ventura e sua verve maledicente vibravam-me nos ouvidos. O canalha anda por aí acusando-me de assassinar um jovem que no fundo estimei, embora deva acentuar que a entrevista foi uma lição de incompreensão comovente, ou de desacordos comprimidos no ritual de hipocrisia caracterizador das formas de relação política, no caso a literária. Sigo batendo perna pelo Parque da Jaqueira, tão importunado pela maledicência de Perfídio Ventura que me abstraio das mulheres gostosas movendo-se na vitrine da pista onde andam, correm e sobretudo fofocam. O canalha anda espalhando que matei o repórter com a minha entrevista. Quem me dera esse poder...

sexta-feira, 19 de março de 2010

Misael, o Misógino


O Amor nos Trópicos – Misael, o Misógino.
Severo Machado

Misael trocava de mulher como troco de camisa. Quero dizer: tenho 82, transpiro abundantemente e detesto camisa suada.
Misael veio lá de baixo, do pé da escada. Lá embaixo, no piso da madeira roída pelo cupim, mulher era matéria escassa, mais rara que beleza em barraco de favela. Misael fez de tudo, mas foi lenta e tenazmente subindo os degraus de madeira roída pela miséria: foi porteiro, balconista, vendedor de livro, bebida, auxiliar de escritório, gigolô, bancário... Cursou escola pública aos trancos e barrancos, mas aprendeu que a educação era instrumento eficaz de ascensão social. Por isso afiou as virtudes da razão na lâmina fria do saber prático. Nada de literatura, humanidades, ficção de desocupado, de gente cheia de minhoca na cabeça. O negócio é matemática, ciências, o saber que muda a realidade e eleva saldo bancário. Pulando de galho em galho, às vezes escorregando, outras raras caindo, Misael chegou à Faculdade de Direito do Recife. Na primeira oportunidade, tornou-se fiscal da receita através de concurso. Nesse tempo já trocava de camisa com alguma freqüência, embora nem transpirasse tanto nem detestasse camisa suada.

Misael subiu como foguete em noite junina. Noite junina do Nordeste, onde a cultura urbana retém a camada renitente dos costumes da roça e a ordenação errática do asfalto semelha um acampamento de retirantes. Cinco anos depois de vida de fiscal da receita, ei-lo vaidosamente posto no alto de uma cobertura suspensa em um condomínio de luxo. Lá embaixo o mar de Boa Viagem quebra na areia iluminada pela luz noturna. Agora Misael troca de camisa todos os dias e aprendeu a detestar camisa suada. As mulheres cheiram mal, resmunga depois de largá-las suadas e descontentes na cama. O salário é bom e seguro, mas não compra tudo.

Misael entra na sala e liga a tv. O economista – professor universitário e Ph.D pela Harvard University, USA – entrevista o assessor para assuntos de administração pública – professor universitário e Ph.D pela Oxford University, England:
Você acha que a instituição de fiscais de fiscais seria uma solução para as práticas corruptas freqüentes na Secretaria da Fazenda?
Poderia ser uma boa idéia. Sabemos porém que os fiscais de fiscais também são humanos. Logo, haveria o risco de eles cederem à mesma tentação que impele os fiscais ao uso corrupto das suas atribuições públicas.
Misael deu uma gargalhada e desligou a televisão. Melhor ir caçar mulher. Mulher é como camisa: uso uma vez e jogo na máquina de lavar. Há quem faça pior, disse ele a uma chorosa com a tocante intenção de a consolar.

Misael era bruto com as mulheres. No convívio dos amigos, porém, era um doce de pessoa. Gargalhava por um nada, servia generosamente os amigos, grudava-se a eles nos bares ruidosos onde assistiam a jogos de futebol. Ia com freqüência acompanhado por mulheres, sempre bonitas. Mas não lhes dava a mínima importância. Parecia entender que a função delas era tão-só adornar o ambiente e fornecer evidência de sua posse. Misael exibia mulheres como os caçadores de feras exibiam na sala de visitas a pele dos leões abatidos num safári. E os amigos o invejavam: Misael é muito macho. Gostar de mulher é aí.

Tarde de domingo na cobertura de Misael. O tédio, quase uma fria lâmina depressiva, pesava-lhe horrivelmente no coração. Odeio as tardes de domingo. Meus amigos estão felizes, reunidos em família, se empanturrando em mesas fartas de comida e alegria doméstica. Liguei para Gilberto Rocha e logo ouvi a família ruidosa e feliz lá no fundo da linha. Liguei em seguida para Álvaro Carvalho e é sempre a mesma coisa. Todos eles se fecham em família, comem e bebem e tagarelam até o cair da noite. Todo mundo feliz, todo mundo cercado pela família e eu aqui penando solitário dentro desta cobertura imensa e vazia. Que fazer, ele se pergunta e se repete roendo as unhas do tédio. Corre ao telefone e liga para Vadinho, o corretor de puta:
E aí, cara?
Tenho uma mina pra você, Misael. Arquivo novo, gostosa de doer. Chama-se Inocência White.
Cacete, cara, como é que uma puta tem um nome desses?
É filé, Misael. De classe média, fez até universidade. Mas é doidinha de pedra, cara. Faz pouco que saiu das mãos de Zoca Porrada. Conhece?
Quem não conhece Zoca, Vadinho?
Pois é, cara. Ele esbarrou na mina por aí, se desmanchando na droga, batendo prego nas calçadas da Rua da Moeda. Até ficou com ela uns tempos em casa. Mas se ela é doida de pedra, ele é barra pesada. Você conhece o tipo. Inocência vivia levando pancada, mas acho que gostava, pois não pegava a estrada de volta pra casa. Vive repisando aquela idiotice: sem medo de ser feliz. Diz que aprendeu essa besteira de um vidente que antes foi psicólogo e hoje é um publicitário quase tão rico quanto Washington Olivetto. Um dia Zoca encheu os bofes e deu-lhe um chute na bunda. Foi quando ela veio parar aqui. É puro filé, Misael. Vai encarar?
Que mais eu posso fazer num domingo desses, Vadinho? Manda a mina, cara. Mas comigo você já sabe: puta eu uso uma vez e nem mando para a máquina de lavar. Puta eu jogo fora. A gargalhada de um abafando a gargalhada do outro.

Misael casou. Antes disso deu para beber pesado. Enchia a cara todas as tardes de domingo porque já não suportava a solidão e o tédio fechando-se sobre as paredes desertas da cobertura. Casou com a filha de Honesto Jardim, criminalista. Honesto era mais rico que os próprios bandidos ricos a quem protegia das malhas frouxas da justiça brasileira. Ganhou tanto dinheiro zelando pela fortuna suja dos seus clientes que Misael se sentiu pobre e humilhado quando pela primeira vez entrou na sua cobertura. Diva, a filha de Honesto Jardim, era uma mulher dengosa e bonita. Também falava alto e pelos cotovelos, mas ninguém lhe dava ouvidos. O pai pagava-lhe todos os caprichos sob a condição implícita de que sempre lhe rendesse vassalagem irrestrita. Era uma prisão tão doce, e cara, que nunca passou pela cabeça de Diva uma palavra de protesto ou gesto de desagrado. Seu último capricho foi apaixonar-se por Misael. Honesto fez uns cálculos mudos, resignou-se a ganhos modestos e suspirou consentindo: poderia ser pior.

Misael mediu ganhos e conseqüências, mediu sobretudo o custo doloroso dos domingos de tédio e solidão, e não pensou duas vezes. Não previra, entretanto, o quanto lhe custaria a presença diária de Diva na mesma cama, as noites amordaçadas pela mesma camisa, a mesma malha suada, a consciência de que a camisa atirada à máquina de lavar pela manhã voltava à sua cama na noite do mesmo dia. Aumentou a dosagem do whiskey e assim a embriaguês entrou-lhe no sangue e na rotina.

Diva, vou sair com Gilberto Rocha e Álvaro Carvalho. A gente vai ver o jogo do Náutico e depois bater um papo no Colarinho.
Toda mulher é suja, Alvinho. Até a minha.
Ia já pelas tantas, a mesa do Colarinho tombando sobre as ondas do alto mar, quando disparava esse tipo de comentário nos ouvidos de Álvaro e Gilberto. Eles riam deliciados e replicavam com ditos equivalentes. Tudo aquilo: a presença ruidosa dos amigos, os jogos de futebol, a idolatria por Romário e Kuki, o whiskey derramado sobre as mesas do Colarinho, tudo aquilo Misael descobriu que era o seu gozo real, seu prazer de viver. O mero e vago pensamento de que precisaria voltar para casa, deitar na cama ao lado de Diva, vestir a mesma camisa já rota e suada, isso o atormentava sem reparação. Por isso bebia.
E por aí foi nadando em álcool e dinheiro. A fortuna de Honesto Jardim crescia sem pausa e com ela, por afinidade ou contaminação, também crescia a fortuna de Misael e Diva. De tanto vestir a mesma roupa e aspirar o mesmo suor noturno na mesma camisa gasta e suada, erraram a medida de alguma dose e o acaso deu-lhes uma filha. Misael roeu a corda, lamuriou-se à borda dos ouvidos cúmplices de Álvaro e Gilberto: Por que não nasceu homem, porra? Mulher é coisa suja, mesmo quando é filha. Os amigos riam e por fim o confortavam, senão com palavras, por certo com as garrafas de whiskey enxugadas na mesa do Colarinho.

Álvaro e Gilberto adoravam atiçar a misoginia de Misael:
Misa, diga aí cinco coisas amáveis contra a mulher.
1 – Mulher não tem senso de humor. Nem de amor, pois ama com completa insensatez.
2- Quem pode confiar na sensatez / de um bicho que menstrua todo mês?
3 – A mulher acredita em amor eterno. Provando que não tem juízo, quando ama quer logo casar iludida com a tolice de que o casamento sacramenta a eternidade do amor.
4 – A mulher é incapaz de renunciar a suas ilusões amorosas, salvo no caso em que a ilusão de um amor maior ocupa o espaço do amor gasto ou insatisfeito.
5 – Mulher é um bicho muito complicado.
6 – A mulher é uma terra incógnita.
Chega, Misa. Pedi apenas cinco. Você não deixa pedra sobre pedra.
Que é que eu posso fazer, Alvinho? Esse deserto é fértil. Se eu abrir a torneira, vai haver um dilúvio no Colarinho.
E riam, riam de se dobrar sobre a mesa.

Passaram os anos e outros acasos que lhe trouxeram mais dois filhos. Quero dizer: mais duas filhas. Ele se desesperava na intimidade dos amigos, roía o pó do destino inclemente e desabafava ainda e sempre: por que não um homem, porra? Mulher é suja. Mais alguns anos e estarão menstruando como a mãe. O pior é que são camisa que gruda no corpo, bens de propriedade definitiva. Onde uma máquina de lavar que me liberte dessas camisas sujas grudadas a meu corpo? Os ouvintes e confidentes complacentes já não eram Álvaro e Gilberto, nem o cenário era a mesa do Colarinho. Misael olhou em torno e se sentiu confortado pelo atmosfera cúmplice dos presentes reunidos numa sala dos Alcoólatras Anônimos.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Somos Todos Suspeitos



Somos Todos Suspeitos
Severo Machado

Gosto de mulher morena, rabuda e safada. Meu amigo Antonio Senile fica chocado quando lhe digo isso. Senile é autor de uma frase decisiva para que me tornasse seu amigo. Disse que os amigos verdadeiros compartilham um segredo: o privilégio da intimidade. Nesta, na intimidade desatada das convenções hipócritas de toda ordem social, somos como somos. Pelo menos na medida em que o podemos ser. Segredo ou dom, depois disso aprendi a identificar e definir um amigo. Aliás, tenho apenas um: Antonio Senile. O amigo é aquele com quem comungamos o privilégio da intimidade. Senile, que pode ser uma flor de pessoa, me confessa horrores que jamais ousaria confessar no confessionário. Digamos melhor: no divã da analista, pois Senile, como eu, é ateu.

Senile é um lírico da carne. Tem um forte por mulher, como eu. Por que forte? Porque a carne não é fraca, e sim forte. Esta eu roubei de Luciano Oliveira, outro amigo de Senile. Aliás, dizem que ele a roubou de Boris Pasternak e este de quem? Nada de novo sob o sol, já observava sabiamente o autor do Eclesiastes. Logo, somos todos ladrões.

Negativo como uma noite escura assaltada por trovoadas, Senile é no entanto afortunado o suficiente para dizer com convicção que tem dois amigos: Luciano Oliveira e eu. Tenho apenas Senile, que é já demais. A maioria das pessoas não tem ninguém, embora tantos tolamente se iludam confundindo amizade com bloco de carnaval, corporação de corruptos, site de relacionamento. Senile é um lírico da carne. Daí chocar-se quando digo que gosto de mulher morena, rabuda e safada. Senile escreve ainda soneto de amor para as mulheres que quer levar para a cama. Soneto com decassílabo rimado e chave de ouro. A um amigo perdoamos tudo, até isso.

Ligou quando eu estava de saída para o trabalho. Doente, como previ. Senile é mais hipocondríaco que eu. A doença nele é sintoma narcisista. Assim retém a atenção dos amigos, antes de tudo de si próprio. Foi o diagnóstico da analista para quem transfere renda isenta de imposto há doze anos. Jamais cairia nessa. Além de não acreditar em psicanálise, a analista é morena, rabuda e tem jeito de safada. Minha transferência logo seria assédio sexual. Curto circuito na teoria da fala. Senile é lírico. Por isso continua falando no divã, transferindo pulsões, desejos e sobretudo renda para a analista morena, rabuda e safada. Quando o assunto é sexo, ser e parecer se confundem na minha imaginação. Logo, se ela parece safada, é safada.

Senile queria um favor. É nisso que dá ter amigo. Pediu-me para recolher em seu nome, numa loja de produtos promocionais, uma sacola de notebook. A que usava, comprada na tal loja, rompeu a costura depois de dois meses de uso. Porcaria. Senile foi à loja, reclamou do produto e exigiu a troca devida. Foi surpreendemente bem atendido, pois sequer levou a nota de compra. Como o produto estava em falta, a atendente prometeu entregar-lhe uma sacola nova tão logo chegasse nova remessa. Cumpriu a promessa, dias mais tarde, ligando para Senile, que combinou proceder à troca na semana seguinte. Mas adoeceu no entretempo e recolheu-se ao divã. O doméstico, não o que desejaria, o da sua analista.

“Procure Sueli. Ela lhe entregará a sacola nova”. Esse nome mágico, prenhe de odor e carne, logo produziu um milagre na minha imaginação, tanto que esqueci a chateação do favor para o amigo e me apressei em atendê-lo. A mera enunciação deste nome Sueli abre-me nas janelas da imaginação um sopro de bordel e nudez. Logo vislumbro um corpo moreno, rabudo e safado deslizando dentro da penumbra de uma buate enevoada por fumaça de cigarro e odor de suor e perfume barato. Eu seria um divã cheio para a analista de Senile.

Cheguei suado e ofegante. Ao longo do trajeto, dirigindo ansioso, figurava o corpo de Sueli como o da mulher bandida de Double Indemnity, que algum tradutor idiota converteu em Pacto de Sangue. Quem identifica na trama do filme de Billy Wilder um pacto de sangue nada sabe do sexo e de outras forças sombrias da natureza humana. Sueli não era exatamente o que figurei na minha imaginação doentia, mas era morena, rabuda e safada. Não era uma mulher, era um filme noir. Quando vejo uma mulher como Sueli, logo me torno um bandido de filme noir. O leitor dirá que isso é um efeito literário previsível e barato. Que posso fazer? Dou-lhe o endereço da loja para que confira com os próprios olhos. Antes de tudo, com a minha imaginação. Se tiver a imaginação de Senile, talvez rabisque um soneto qualquer, com decassílabos rimados e chave de ouro. Sueli não merece nem quer isso.

Recusou-se a entregar-me a sacola de Senile. Balbuciou desculpas, alegou que Senile fora atendido por outra pessoa, que não a autorizara a entregar encomenda nenhuma. Mas recusava a sacola enquanto prometia outra coisa. Desde quando entrei, percebeu meu olhar despindo-a da cabeça aos pés, tanto que se sentou encabulada e cruzou as pernas, gesto que alargou o campo iluminado das coxas apertadas na saia justa.
Perguntei se não gostaria de jantar comigo num restaurante do Shopping Boa Viagem. Odeio shopping. Odeio sobretudo o Shopping Boa Viagem, mas por uma mulher como Sueli um homem fraco como eu (quero dizer, forte) faz qualquer sacrifício. Ela topou, mas não confiou entregar-me a sacola de Senile. Na cama do motel, depois de um jantar regado a vinho tinto e muita fantasia emporcalhada, pois tenho um fraco (i.e, um forte) por fantasias sujas quando estou com mulher, pior ainda quando penso em mulher, ela me confessou candidamente: “Te dei meu corpo, safado, mas não te dei a sacola do professor. Por quê? Ora, porque fui treinada assim pela dona da loja. Ela me ensinou desde meu primeiro dia de trabalho: Não confie em nenhum cliente, Sueli. No Brasil, até prova em contrário, todos são suspeitos”.

domingo, 7 de março de 2010

Sem Medo de Ser Feliz


O Amor nos Trópicos - Sem medo de ser feliz.
Severo Machado

Certo filósofo observou que uma das atitudes humanas mais insensatas consiste na ilusão da felicidade. Deitando fel no prato dos otimistas, concluía que não estamos neste vale de inadimplentes para ser felizes. Inocência White, a heroína deste conto, ouviu porém outra voz ou eco. Traída pelo ouvido, antes que traída pela vida, não sabia se a frase viera do Céu ou de algum publicitário. Sabia apenas que dizia: sem medo de ser feliz. Se veio do Céu, veio acrescida do número da conta bancária de Deus, na qual o crente deve fielmente depositar sua contribuição para a bem-aventurança dos pastores e ministros religiosos deste mundo.

Mas o assunto da nossa heroína, não confundir com outra coisa, é a busca da felicidade através do amor. Como a grande malandragem da indústria publicitária é induzir nos tolos a fome e a vontade de comer, Inocência passou a ouvir e a sonhar em tudo a frase sedutora. Sem medo de ser feliz, ela mordeu a corda de Luiz Natalino, o pedófilo. Mal caíra na vida, ou nos doze anos, e logo ele entrou e se foi encostando e instalando nos vazios largados pelo pai biológico que ela mal conheceu na infância. Seguindo-a com sinuosidades de pai amoroso, ambos libertos do interdito do incesto, Natalino foi entrando sem bater, mas também sem forçar. Enquanto com a mão sábia soprava promessas irrealizáveis, com a boba media a temperatura exaltada entre as coxas de Inocência. Adeus virgindade e outras campinas, adeus concha ferida da adolescência. Luiz logo sumiu, pois a carne muda e as meninas são tantas para tão curta vida.

No rastro dele logo veio Sérgio Majo, astro da televisão cuja função era atrair a garotada para os castelos de fumaça do consumo e da futilidade precoce. Sérgio nasceu em Serra Talhada, mas logo trocou o sobrenome de batismo, Pereira, pelo espanhol Majo, que melhor atende à persona que projetou na mídia. E ela foi e cedeu e se perdeu como perdia o ônibus de subúrbio nas manhãs de ressaca. Tantas ele fez, Sérgio Majo, antes e depois de Inocência White, que um dia o escândalo estourou. Sendo astro da mídia, Sérgio era notícia de alta cotação no mercado do consumo. Mas a mão limpa da impunidade, privilégio de classe no Brasil cordial, lavou a mão suja do escândalo e Majo voltou a desfrutar da fama garantida pela telinha mágica e das gatinhas que dão tudo sem medo de serem felizes.

De Sérgio Majo para Sílvio Inocêncio, o publicitário, a passada foi mais curta do que a brecha entre duas camas conjugadas. Mal deu por si, ainda esfregando os olhos vindos de uma noitada na Rua da Moeda, Inocência se viu nua e devassada na cama de Sílvio. Com o mesmo furor com que, quando de pileque, caçava uma mulher para a cama, Inocêncio a repelia ao acordar de ressaca e vê-la abandonada a seu lado. Com Inocência, porém, ele jogou o jogo da caça e da repulsa durante várias semanas. Foi o bastante para que ela cegamente concluísse: ele me ama e portanto posso com ele juntar meu destemor ao desejo de ser feliz. Mal teve tempo de contar as semanas, que ele esquecia, e ei-la novamente sem muleta.

A vida passa, a vida passa, e a cama alheia é uma roleta. Inocência seguiu jogando à deriva pelas noites de Recife. O jogo de ocasião e sem aderência humana que não fosse o mero gozo fugaz da carne, esse jogo ela jogou num transe de desmemória e vazio. Tanto o jogou e perdeu que um dia, voltando um olhar assustado para dentro de si, viu apenas um descampado, duas árvores ressequidas, sombras voláteis que a possuíam sem lhe marcarem a epiderme com um nome, um gesto de reconhecimento, um eco de palavra repartida no desafogo do ranger de camas.

Vou chamar você de Censinha, disse Tãozinho do Pandeiro enquanto alisava Inocência em meio aos lençóis revirados. Ai, pára de me chamar assim. Odeio meu nome, odeio essa coisa de brasileiro falando inho pra um lado, inha pra outro. A única coisa que amo no meu nome é o sobrenome: White. De onde vem, perguntou Tãozinho. Ah, suspirou ela, vem do meu pai Joe White, um americano de Nova Orleans. Como conheceu tua mãe? Foi num carnaval de Olinda. Depois, quando eu cresci, minha mãe falou que ele prometeu voltar antes de partir. Até hoje eu espero. Mas sei que um dia meu pai virá e então partirei com ele para os Estados Unidos. Vou ser feliz em Miami ou Nova York. Juro que nunca mais volto. Nunca mais esse povo atrasado, essa merda de terceiro mundo. Tãozinho: baixa a crista, vagabunda. Que merda tu pensa que é, porra? Inocência saiu na pancada, dando nó corrido na roupa rasgada, e foi parar no Hospital da Restauração.

E as águas se foram rolando sujas sob as pontes sem que Inocência cedesse um milímetro na ilusão cega de ser feliz. Foi por aí tropeçando, errando entre o bar e a cama, feliz como um clipe publicitário. Os homens vinham e passavam e as promessas de amor, cada vez mais frouxas, se dissolviam na neutralidade da carne votada ao gozo sem conseqüências. O poço foi gradualmente se abrindo, Inocência afundando como uma lata vazia presa a uma corda roída pela ação do tempo e do manuseio indiferente. Estava um dia lá no fundo, catando água para embriagar-se, quando uma mão firme puxou-a para o alto e lhe abriu a porta da casa de subúrbio. E assim foi ficando e gostando de ficar. A mão firme era parte de um corpo áspero onde ressoava uma voz dura e alta como um bater de martelo. E tudo isso, essa estranha promessa de felicidade e aconchego doméstico se condensava na identidade de um nome arrepiante: Zoca Porrada.

Ai, como ele me bate. Mas sei que bate por amor. Acho que é o modo dele, o único que aprendeu pra dizer que me ama. Também acho que é um jeito que ele precisou aprender dentro do duro exercício da profissão. Todo dia meu Zoca se arrisca nas ruas sujas e estreitas, na lama dos subúrbios, nos morros onde a droga e o crime rolam a toda hora. Zoca é forte e precisa ser forte pra segurar a barra da vida cega para essa chama azul da felicidade que somente eu vejo e somente a mim me queima. Por isso respiro felicidade em tudo e ela me embriaga nas noites sujas em que Zoca chega dando pontapé na porta e me quebra com a mesma brutalidade com que arrebenta pratos e o resto de louça usada da cozinha. Depois, cansado de lutar contra a vida e de me maltratar por amor, ele cai pesadamente na cama e ronca feito um porco pacificado. Então me deito a seu lado e, apesar do corpo e da alma feridas, eu fecho os olhos em estado de serena beatitude.
Lá no fundo da escuridão em que mergulho e me recolho vejo um paraíso de luzes brilhando, homens e mulheres lindos, de uma beleza assim grande me tirando o sono, e todos vivem no gozo e na felicidade para sempre. Sei bem do que estou falando, sei bem do lugar e das pessoas maravilhosas que habitam a escuridão iluminada dos meus olhos fechados ao lado de Zoca e seu ronco, de Zoca e seu cheiro de cebola crua. Esse mundo de sonho, que entanto é pura realidade, é a ilha da revista Caras, é o paraíso dos meus deuses que venero e invejo quando me sento na cadeira da cabeleireira do bairro. Um dia eu chego lá. Sem medo de ser feliz.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Microbiografia de Severo Machado


Já que doravante postarei neste blog alguns contos de Severo Machado, convém traçar-lhe com pincel grosso uma microbiografia que talvez concorra para torná-lo mais assimilável ao gosto ou pelo menos compreensão do leitor ocasional. É que Severo Machado, a simples menção do seu nome já me causa certo arrepio de rejeição, é demasiado negativo para os tempos publicitários em que vivemos. Costuma dizer que no Brasil é muito difícil ter caráter. Logo, decidiu pragmaticamente não ter nenhum. No entanto, ele em pessoa aparenta contradizer tudo o que escreve. Se nos contos é negativo, por vezes cruel, até brutal na visão e expressão da vida, convivido é um doce de pessoa, uma imagem afetuosa, alegre e até efusiva. Quando todavia digita um conto, Severo investe contra a realidade, contra os iludidos e fantasiosos, contra toda sorte de otimismo. Segundo ele, o otimista é apenas um pessimista mal informado. A definição é tão boa que duvido seja dele. Antropófago oswaldiano, Severo devora tudo que o fortalece. Logo, convém desconfiar da procedência de boutade tão engenhosa. Se parecer demasiado improvável ou imaginosa, sugiro que o leitor a coteje com a distinção proposta pela psicóloga Frieda Goldman Eisler entre o otimista e o pessimista: o primeiro foi amamentado por tempo prolongado, enquanto a amamentação do segundo foi prematuramente interrompida.

Severo é otimista enquanto ser de convívio, mas negativo enquanto escritor. Como explicar contradição tão desconcertante? Ele se explica culpando o Brasil, que vive como se fosse uma paixão inútil e insolúvel. Seu analista, Sugimundo Freuvo (favor pronunciar Froivo, pois é filho de um vienense que se perdeu no carnaval do Recife) inocenta o Brasil deslocando a causa da negatividade de Severo para sua biografia mais íntima, inconfessável e sobretudo inconsciente. Não fosse ela isso, inconsciente, como justificar os vinte anos de divã que Severo já pagou a seu analista? Para este, a raiz de tudo reside no romance familiar de Severo. Mal amado, para não dizer ignorado, pela mãe que o tratava como detento do presídio Anibal Bruno, Severo cedo aprendeu que o melhor lugar da casa era a rua. Não bastasse tanto, seu pai era doce e amoroso como se fosse sua mãe, enquanto a mãe era áspera e punitiva como os senhores de escravos nordestinos.

Infeliz como filho, Severo foi ainda mais infeliz no amor. Buscava nas mulheres a mãe que não teve. Encontrou apenas a namorada infiel ou a amada desalmada. Entre a família e o amor, ambos impossíveis, optou pelo curso de Direito (não confundir Direito com Justiça, com maiúsculas ou não) e acabou delegado de polícia num paraíso chamado Felicidade. Cansado de ganhar sem trabucar, trocou a delegacia pela literatura e logo descobriu que imaginar era melhor do que viver, que era mais fácil escrever contos do que reformar uma sociedade irreformável. Daí precisou de bem pouca imaginação para concluir que sua mãe, seu pai e todo seu retorcido romance familiar não passavam de produto de sua imaginação delirante. Por pouco não demitiu o Dr. Freuvo (que insiste na pronúncia alemã para que não o confundam com um frevo rasgado), a essa altura tão irreal quanto os fundamentos científicos da sua ciência.
Severo Machado era de esquerda quando todo mundo era de direita, ou pelo menos militante da maioria silenciosa. Agora Severo é de direita quando todo mundo não é nem uma coisa nem outra. Agora todo mundo é da maioria ruidosa. Não confundir ruído político, ou militância política, com ruído de festa, que é o que no presente se produz. No mato sem cachorro, que de caçador passou a caça privilegiada das mulheres, Severo refugiou-se no humanismo. Logo constatou que tudo que lhe restava era o humorismo, embora ninguém ache graça no que escreve. Consola-se afirmando que humor não é piada, isto é, Millôr não é chanchada.

E assim vai Severo pela vida. Castiga o Brasil através de personagens pavorosos, num extremo, ou carentes de compaixão, no outro extremo. O que intenta dizer em certas entrelinhas é que o Brasil é ingovernável e insolúvel. Embora afirme que o diz em certas entrelinhas, na verdade ele chega ocasionalmente ao extremo de dizê-lo nas próprias linhas dos seus contos. Já Dr. Freuvo pensa o contrário. Vai até mais longe, pois afirma que Severo tem cura. Basta continuar deitando no divã, desfiando sem pressa seu romance familiar. Um dia os conflitos se dissolvem, a luz da aurora pousa sobre o divã rangente de vendavais e terremotos familiares. Severo voltará para a vida e o Brasil com o ânimo e a visão de um brasileiro de sambódromo ou de Galo da Madrugada.

Severo espana a névoa da memória conturbada, salta num átimo dos labirintos da infância remota para a sala do analista e por pouco não estrangula Dr. Freuvo confundindo-o com a mãe que o abandonou. Mas civilização é repressão. Severo sabe disso, até porque, além de civilizado, é fiel leitor de Freud. Resta-nos agora conhecer aqui neste blog alguns dos seus contos, que hoje são reais. Já que costuma depreciar a inteligência do leitor, embora a dele esteja longe da imperfeição, Severo adverte o leitor desprevenido para as ressonâncias semânticas do trocadilho que vai dos contos aos reais. Não digo mais.

Nota – A foto que ilustra esta crônica é do carnaval de 2010. Severo define o carnaval como um estupro contra as normas da civilização. Sendo no entanto pernambucano, antes de tudo humano, Severo também cai na folia. Por conveniência, ou pura hipocrisia, ele se mascara para resguardar-se da opinião pública e da própria consciência. Como todo mundo, Severo paga sua cota de tributo à hipocrisia. Aliás, é tão hipócrita que ninguém tem como seguramente identificá-lo. Basta atentar para as máscaras sem rosto.
Fernando da Mota Lima
Recife, 12 de fevereiro de 2010.