segunda-feira, 11 de março de 2013
A Boa Idade nos Trópicos
Severo Machado
Tenho setenta anos. Sou reumático, cardíaco e viúvo. Antes de aposentar-me, acalentei durante anos o sonho de envelhecer à beira mar, estoica e solitariamente esperando a morte numa praia tranquila do litoral pernambucano. A solidão da viuvez muito me doeu. Afinal, tive Carminha a meu lado, minha amada Maria do Carmo, durante grande parte da minha vida. Ficou-me de consolo a filha, Soledade, que aliás seguiu minha profissão. Fui dentista no centro do Recife durante 35 anos. Cuidei de muita gente, até de gente difícil como Sérgio Majo, Natalino, Paulo Farias, Severo Machado, Pedro Gadelha e Valêncio Costa. Se conquistei a amizade e o respeito destes, seres crivados de idiossincrasias e atávico temor à minha cadeira e instrumentos, o fato diz algo em favor do meu apreço por seres humanos, algo de minha singular bonomia. Ao cabo, todos se foram, inclusive Soledade, cujo nome foi venturosamente traído pelo destino, pois encontrou um amor em São Paulo, para lá transferiu o consultório e nunca mais voltou.
Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Por temperamento e consciência do meu jeito pouco pernambucano de ser, evitei sempre os ambientes ruidosos da cidade, as tradições festeiras que tanto importunam meus hábitos reservados. Além disso, cresci numa família de classe média modesta, mas regida por padrões de comportamento pouco comuns. Meu pai, homem discreto e amável, nunca foi de falar alto, gesticular por tudo e por nada, como é tão típico do pernambucano. Quando voltava do trabalho, acomodava-se na sua cadeira de balanço sem nunca incomodar vizinho. Apesar dos seus modos pacatos e discretos, era um homem acolhedor, afiado no humor com que comentava fatos e circunstâncias, além de me entreter com sua convivência imaginosa. Embora de pouco estudo, preso a um mundo de horizontes bem estreitos, era dotado de uma civilidade e senso de respeito que não vejo como explicar a partir das condições ambientes em que se formou. Acho que herdei muito desses traços que pingo aqui à deriva da memória.
Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Leitor voraz de literatura, apesar da inteligência e sensibilidade convencionais, sonhei ler e em alguns casos reler na solidão da velhice as grandes obras zelosamente enfileiradas na minha velha estante revestida de vidros foscos e empoeirados. Lá repousam Cervantes, Sterne, Thomas Hardy, Dickens, Balzac, Machado de Assis e uns poucos mais. Mal fechei o consultório, bati a poeira desta cidade que aprendi a detestar e fui esconder-me no meu cantinho de praia comprado em Porto de Galinhas. Fui dos primeiros a explorá-la, dos primeiros a render-lhe afeição que direi ecológica ou naturalista, pois amei-a desde o primeiro verão em que nela me instalei ouvindo nas noites de lua o violão de Baden Powell e a música suprema de Tom Jobim. Porto de Galinhas era o paraíso ecológico onde sonhei repousar minha velhice desiludida e esperar a Indesejada das Gentes com alguns laivos filosóficos de serenidade e aceitação compassiva do meu fim.
Bastou-me uma semana de aposentadoria na praia para que os turistas e veranistas predadores convertessem minha velhice num inferno. Meu sonho de viver uma velhice recolhida e sossegada, pontuada por caminhadas na beira mar ao entardecer e outros hábitos que me propiciam serenidade, tudo isso foi prontamente suprimido pelas mudanças que a indústria do turismo, crescendo a toque de festa, impôs a Porto de Galinhas. Mergulhado em funda depressão, vendi minha casinha. Sem saída, retornei a Recife onde reocupei o velho apartamento que considerara vender logo que me aclimatasse ao litoral onde fixei encontro ilusório com a Indesejada das Gentes. Vivo agora na área que os corretores de imóveis e publicitários chamam de cartão postal de Recife. Se é isso cartão postal, bem imagino o que seja o cotidiano dos carteiros.
Às sete da manhã os vendedores de gás de cozinha arrancam-me da cama. Rolam lentamente rua afora trovejando no alto-falante as virtudes e o preço irrisório do produto que me abala o sono e a paz doméstica. Depois o ruído incessante da construção civil, o bate-bate sem trégua das reformas de imóveis, o vendedor de cd pirata, as buzinas e alarmes eletrônicos dos automóveis guinchando dia e noite. Minha rua, meu bairro, a cidade inteira tornaram-se um corredor por onde rola todo tipo de mercadoria assaltando os ouvidos da população indefesa e no geral indiferente.
Não bastasse tanto, muitos dos meus vizinhos inconscientemente concorrem para infernizar o meu dia. Como a solidão imposta por uma cultura hiperindividualista é demasiado dolorosa, sobretudo para os separados e idosos, muita gente passou a projetar nos cachorros sentimentos e carências antes satisfeitos ou orientados para o semelhante. Já que este é cada vez mais indiferente, e lhe respondemos com a mesma moeda, restam os cães como companhia e consolo para a aridez e futilidade de nossas vidas. O problema é que esses diabos, os cães, latem onde e quando querem. Se não civilizamos nossos filhos, o que dizer dos cães adotados como nosso último refúgio de companhia e fidelidade?
Como observador indefeso e silencioso, impotente para moldar a cidade a meu jeito e feição, assisto desolado a um processo de aceleração urbana que vai desfigurando ainda mais uma cidade que nunca passou de um acampamento urbano. Sei que essa apreciação severa, mas verdadeira, irritaria qualquer leitor de Recife, cuja percepção de sua cidade é deformada pelo excesso de bairrismo. Aprendi na minha leitura errática de alguns antropólogos que etnocentrismo (o fenômeno que venho de nomear como bairrismo) é uma disposição universal e espontânea do ser humano. Penso que seja verdade, mas meus conterrâneos aparentem ir além dos excessos correntes quando celebram traços culturais e tradições que jamais proporia como modelo para qualquer cidade compreendida no sentido preciso do termo.
O fato é que Recife está nas mãos de um punhado de empreiteiras e políticos corruptos cuja única ambição é enriquecer a qualquer preço. Cidade sem plano de expansão e controle dos meios de recomposição do espaço urbano, marcha para ser uma São Paulo subdesenvolvida. Melhor dizendo, vai ser a São Paulo do Nordeste contendo apenas o que esta tem de pior. Mal escorado na fraqueza dos meus setenta anos, olho à minha volta, até onde mais longe a vista alcance, e não vejo um parque, uma praça, um espaço público acolhedor, ou simplesmente usável, onde possa viver algumas horas da minha rotina de aposentado. Diante de condições ambientes tão hostis, decretei eu próprio meu estado de prisão domiciliar.
Há pouco um publicitário imaginoso inventou um novo tipo de serviço vendido e prestado sobre rodas sustendo auto-falantes potentes. Quem perdeu ou teve um gato ou cachorro roubado, paga agora a esse meritório serviço para infernizar ainda mais meus ouvidos saturados desse cotidiano de bordel, com perdão das orgias que em nada importunam ou infelicitam os vizinhos. O inferno, dizia o outro, que de resto era francês, são os outros. Se o francês dizia coisas desse tipo, e graças a elas ficou famoso, citado até por gente que nunca o leu, o que diria um velhinho reumático e cardíaco prisioneiro da idade num bairro sem lei?
Hoje, quando descansava do almoço, fui acordado pelos alto-falantes. Falavam em favor de uma pobre senhora cuja gata siamesa foi roubada. Pela manhã outro agente filantrópico, ou zoológico, trovejou o desaparecimento ou roubo de um louro falante. Ontem foi a vez de um cachorro amado pela família que o procura de coração cortado. Todos esses infelizes, privados de tão inconsoláveis amores, prometem gratificação substanciosa, além de fornecerem número de telefone para ligação gratuita. Comovido com tanto amor por gatos e cachorros e louros, indo de contrapeso tanto desprezo pela minha paz doméstica, enfim encontrei um meio de bondosamente ajudar esses infelizes. Liguei para os órfãos do louro disfarçando a voz e dedurei a órfã da gata siamesa. Procedi ao mesmo tipo de troca com outros infelizes, num caso ou noutro enfiando perversamente o endereço e o telefone de algum desafeto. Ignoro que conforto levei à vida e corações de gente tão amável, mas sei que os alto-falantes continuam trovejando pelas ruas.
A perspectiva de uma viagem de uma semana sugeriu-me outra ideia humanitária. Liguei para a agência de publicidade. Alô, gostaria que você gravasse um anúncio e o transmitisse aqui no meu bairro de domingo a domingo. Quero que vá ao ar logo cedo, às sete da manhã e à tarde, logo depois do almoço. Pode ditar o anúncio, meu querido. Paga-se regiamente a quem encontrar um burro velho e reumático puxado por três patas mancas. Só três? Só. Será fácil localizá-lo, se evidentemente andar pelas ruas. Paguei a conta e logo viajei.
Voltei ainda secretamente me deleitando com o ruído que causara no ar do bairro durante minha ausência. Para minha surpresa, alguém gravou uma mensagem na secretária-eletrônica: Alô, dotô. Encontrei seu burro. Morto, mas encontrei. Tem três patas mancas e um par de remos. Estão quebrados, mas é fácil ver que eram usados por um burro remático. Tudo é possível no Brasil, suspirei desenganado. Tive tanto trabalho para me ver livre do chantagista que desisti de vingar-me dos vizinhos valendo-me do princípio cristão com que todos os dias me confortam a vida: o bem com o bem se paga.
Um dia comprarei um fuzil e serei notícia na mídia universal. Conquistarei enfim meus quinze minutos de celebridade fuzilando um carro de propaganda, envenenando uma gata siamesa ou enforcando um cãozinho veludoso. Ou ainda afogando um velho burro remador. O inferno serei eu.
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Como Severo Machado ficou tão perverso, sugiro que ele deveria avisar Soledade, o genro e os netos que esse personagem que só vê o lado negativo da vida iria passar uma temporada com eles em São Paulo. Imagine a reação familiar.
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