sábado, 28 de julho de 2012

A Vida Mesquinha


Alguém disse, com razão, que a vida é curta demais para ser mesquinha. Suponho que todos concordariam com isso. No entanto, a maioria das pessoas tende para a mesquinharia e assim vivendo concorre, claro, para tornar a vida geral mais mesquinha. Vivemos pouco e mal. Friso que o advérbio não remete à medida quantitativa corrente na nossa mentalidade estatística, mas sim à medida da qualidade, também já corrompida pela força onipresente e corruptora do mercado.

Longe de mim a presunção de definir plenamente o que seria a vida mesquinha, menos ainda ditar regras sobre o seu avesso, a vida generosa, a vida vivida com a plenitude que conferisse sentido à vida curta. Aliás, como dizê-la curta sem antes precisar um sentido de medida? Entendo que o autor da frase – suspeito tenha sido Shakespeare, embora lembre agora que um amigo costumava atribuí-la a Disraeli – usa o termo curta no sentido temporal, mas sobretudo qualitativo, fixando assim uma relação simetricamente oposta entre o ser curta e o ser mesquinha. Já que é temporalmente curta, deduzo, cuidemos de vivê-la com espírito avesso à mesquinharia do avarento, do ressentido, de todos que vivem envenenados por sentimentos, intenções e atos que apequenam a vida.

Até onde percebo, a maioria das pessoas tende a associar automaticamente a vida mesquinha à avareza. Sem dúvida, há um vínculo semântico forte entre o ser mesquinho e o avarento. Mas penso ser enganosa a identificação redutora entre os termos. Conheço muitas pessoas generosas no trato com as coisas materiais que, não obstante, são pessoas mesquinhas. São ressentidas, invejosas, incapazes de atos morais generosos. Além disso, usam a generosidade material não raro com fins espúrios: a ostentação, o comércio pequeno dos interesses e relações, o exercício inconfessado de poder sobre o outro. Quantos políticos corruptos não são generosos com o dinheiro que roubam? Quantos pais tirânicos ou indiferentes às práticas básicas da paternidade e do amor não enchem seus filhos de excessos materiais? Quanto não vemos de consumo conspícuo nas famílias infelizes e hostis? O generoso avarento é inconcebível, mas não o perdulário mesquinho, aquele que reduz as relações humanas ao fácil comércio e ao desperdício dos bens materiais tão corrente na sociedade de consumo.

Penso que somente a inconsciência com que vivemos, a inconsciência do que somos, pode justificar a justaposição banal do discurso romântico com o comércio mesquinho das relações humanas. Vivemos docilmente subjugados às pressões onipresentes do mercado e todavia continuamos falando de amor como relação de gratuidade, avesso dos cruéis interesses mercantis, com a mais completa inconsciência do mundo. O exemplo emblemático poderia ser esta frase: amar é dar presente, refrão socializador de toda criança.

A colonização mercadológica das relações íntimas, das relações afetivas em geral, é também patente no reboliço com que a mídia e toda a rede complexa do mercado orquestram o consumo delirante em datas fabricadas para vender o amor e sentimentos correlatos: dia das mães, dia dos pais, dia da criança, dia dos namorados e não sei mais quantos. Ah, também já inventaram o dia dos amigos. Enfim, nada escapa à força voraz do consumo. Tudo é mercadoria, ou pelo menos veste o corpo sedutor do mercado. Consumir, vender e vender-se tornaram-se tão onipresentes que se converteram numa espécie de segunda natureza humana, a que recobre a propriamente natural. Como entretanto acima observei, nada disso afeta a inconsciência com que continuamos reiterando um discurso amoroso completamente corroído pelo mercado.

O contexto acima explica por que alguém pode sem contradição ser mesquinho e perdulário, cobrir filhos e parceiro, conjugal ou não, de presentes e todavia ser mesquinho ao extremo da incapacidade amorosa. Esses fenômenos de dissociação estão presentes numa infinidade de situações humanas. Também na literatura, claro, que talvez nos traduza melhor que qualquer outro discurso. Bastaria considerar dois curtos contos de Rubem Fonseca. Refiro-me a “Passeio noturno (Parte I)” e “Passeio noturno (Parte II)”, incluídos no livro Feliz ano novo. Talvez precise ressaltar, para quem conhece os contos citados, que o exemplo dos contos de Rubem Fonseca vai a um extremo confundível com o mal imotivado. Ademais, como toda obra literária de qualidade, encerra múltiplos significados, entre os quais o que ressalto em benefício do meu argumento não é com certeza o mais importante.

Descendo a expressões mais pedestres da vida mesquinha, ocorre-me lembrar a matéria das nossas conversas correntes, também de muito do que se fala no convívio entre amigos íntimos, entre pessoas ligadas por vínculos afetivos profundos. Custa-me ainda compreender nossa fixação nos aspectos mesquinhos da vida. Por isso não me conformo com a conversa dominante no nosso convívio corrente. Falamos invariavelmente do que a vida encerra de pior, quando não simplesmente brutal. Falamos da violência em suas infindáveis e chocantes formas de manifestação. Falamos do outro mordidos pelo veneno da fofoca, da hostilidade e do ressentimento confessos ou latentes. Falamos de amor e sexo como experiências banais reduzidas a suas materializações mais mesquinhas, traduzível na moeda universal do mercado.

Não bastasse tanto, amesquinhamos ainda mais a vida domesticados pelo sentido de duração fabricado pela publicidade farmacêutica. Segundo esta, o que importa perseguir é o ideal da vida longa e saudável. Novamente, não importa aqui a vida que vivemos, mas sua duração. O que nos prescrevem - da proscrição do cigarro à infinita obsessão preventiva confinante com a paranoia e a hipocondria – é a utopia da sociedade terapêutica que lembra a assepsia totalitária de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Ora, o mero bom senso, que portanto prescinde das lições pretensiosas ditadas pelos especialistas de todo tipo, basta para que a gente se dê conta desta verdade elementar: não se vive sem risco; não se vive uma vida digna de ser vivida, se possível bem e prazerosamente vivida, sem uma margem necessária de exposição ao risco. Melhor dizendo, isenta dos danos que fatalmente causamos ao outro e a nós próprios quando nos aventuramos a amar, perseguir nossos desejos, sonhos, ideais e nossas melhores ambições. Somente um covarde paralisado pelo medo à vida pode seguir ao pé da letra as prescrições de vida saudável hoje impostas pela sociedade terapêutica em que passamos a viver.

Essas considerações acima me fazem lembrar uma anedota envolvendo dos farristas incorrigíveis: Vinícius de Moraes e Antônio Maria. Segundo lembro, voltavam bêbados, para variar, de mais uma noitada. Era já manhã clara na praia de Ipanema. De repente, vislumbraram um corpo correndo, um corpo fiel ao ideal da vida saudável correndo areia e praia afora à primeira luz do dia. A simples visão daquele corpo atlético e disciplinado era o avesso do que faziam com o próprio corpo, a negação do que viviam como relação entre a vida intensamente vivida, a vida votada ao prazer, e o corpo. Por isso ali mesmo, estarrecidos diante daquele sacrilégio, prometeram solenemente nunca ceder àquela tentação intolerável.

Friso que o relato da anedota não supõe adesão ao modo de vida de pessoas como Vinícius e Antônio Maria, cujos excessos, familiares a quem sabe da vida de personalidades tão célebres, são o oposto simétrico dos excessos que caracterizam a sociedade terapêutica alvo da minha crítica. Quando circunstancialmente vivi durante alguns anos excessos semelhantes aos que constituíam marca distintiva desses artistas, errei através de bares, festas, badalações infindáveis, droga e sexo movente e sem aderência não bem por escolha, menos ainda ideal de vida, mas por força de circunstâncias pouco subordinadas à minha consciência e vontade.

Retomando o plano das relações íntimas, do cotidiano que compartilho com os amigos, quando ainda os vejo e converso, perdi a memória de quando compartilhei momentos de pura epifania. Não exagero ao escrever este termo que entrou no meu vocabulário através de minha leitura da obra de James Joyce. Aludo a um estado de revelação espiritual, de sensação momentânea e inefável no convívio com o outro. O móvel desse estado de epifania pode emergir subitamente de um momento de intensa intimidade amorosa, sexual, ou simplesmente de uma conversa singular, dessas apenas concebíveis na companhia de alguém a quem nos prendem elos profundos de afinidade, de compreensão não raro isenta de palavras.

Por que esses momentos de epifania há muito não se renovam na minha vida? Por que no próprio convívio íntimo, na companhia dos que mais amo e me dão prazer, fecharam-se as vias iluminadas por esses estados supremos de convívio e intimidade humana? Não encontro resposta satisfatória para minha interrogação. Sei porém que ela remete à prevalência da vida mesquinha no horizonte espiritualmente árido que habitamos.

Recife, 26 de julho de 2012.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Por um triz


Por Liz
ou por um triz
não me matei.
Liz passará
sei tudo passa
e eu passarei.
Mas ora e agora
a dor é tanta
tão turva é a hora
e Liz não passa
não vai embora.

E já nem sei
se é isso amor
anúncio de
ou certo gosto
de me iludir.
Liz, perto de
Liz, certo de
de que o quê?
E eu tanto quero
tanto eu queria
te Liz querer.
Amor é isso
um certo modo
de noutro achar-me
pra me perder.

Liz nada diz
e por um triz
vivo a viver.
Mas eu queria
e só queria
por um momento
por um só dia
por Liz morrer.
Pois que morrer
é um outro modo
sutil embora
de em Liz viver.

Liz nada diz
sorrindo passa
ri, acha graça
e até desdiz
o que seu corpo
teima em dizer.


Liz de Paris
Liz de Genebra
ou Igarapeba.
Liz doutro mundo
doutro invisível
que eu viajante
de rasos mares
não viajei.

Liz que me chama
me ensina um passo
toma o meu braço
pra uma dança.
Liz que não cansa
que dança e dança
que vive tonta
para dançar.
Liz que me ensina
astrologia.
Liz, que és de Peixes
Liz, não me deixes
tão vago assim.

Liz, por um triz
é que vivemos
cá deste lado.
E por um triz
porque a vida
ou porque Liz
não quis, não diz
por tudo isso
que é tão pouco
que é por um triz
por tudo isso
tão-só por isso
não fui feliz.

Recife, 28 outubro 1983.

domingo, 22 de julho de 2012

Visão do Farol


Ver mais que ver é ver-imaginar
A vida além da linha da aparência
O som, sopro da brisa sobre o mar
Amor além do sonho e da demência.

Ver mais que ver é ver e fabular
Teu corpo sobre a cama e a transparência
Saber puro sentir, reinventar
O olhar além da luz e da ciência.

É ver além do visto, contemplar
As formas sem textura, a dormência
Do ser que em si suspenso, livre ar
No infinito figura sua essência.

Recife, 14 de setembro de 2002.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Estrela Cadente


Para Sabrina, pela intuição e a ideia.

Vi uma estrela cadente
Cair no fundo do mar
E então me entreguei demente
Ao mar sem saber nadar.

O amor se apossa da gente
Como essa força do mar
Que atrai a estrela cadente
Carente de se afogar.

Por que o amor não perdura
Como outro modo de estrela
Que até na treva mais dura
Brilha pra que eu possa vê-la

Traçar com a linha mais pura
A duração do amor
Que no alto céu transfigura
O gozo e também a dor?

Quem dera acolher o amor
Que é sempre estrela cadente.
Mas nele vive a semente
Que a cada perda renovo
E em cada estrela cadente
O amor renasce de novo.

Fernando da Mota Lima
Recife, 27 de junho 2012.

domingo, 15 de julho de 2012

Estação Tolstoi


O primeiro parágrafo de Anna Karenina, de Tolstoi, é justificadamente um dos mais atraentes e inesquecíveis da literatura universal. Mal o percorre, o leitor é prontamente seduzido por aquelas palavras impregnadas de ressonâncias imaginativas e assim atravessa o livro volumoso tomado pelo desejo de desvendar a história singular de cada família infeliz. As felizes decerto não lhe passam pela cabeça, já que são todas iguais, segundo a apreciação do autor. Ou será que há leitores seduzidos pela história de Anna Karenina supondo desvendar a história de uma heroína pertencente a uma família feliz? Cada família infeliz é infeliz de modo próprio ou singular.

O problema que de imediato me ocorre é refutar a ilusão contida na ideia de família feliz. Tolstoi, como sua heroína, não nasceu nem viveu numa família feliz. Nem como filho, cujos pais morreram quando era muito pequeno, nem como pai e ancião às portas da morte, como o comprova o filme de Michael Hoffman baseado no romance homônimo A última estação (The last station), de Jay Parini. Além de não conhecer o que muitos acreditam ser uma família feliz, Tolstoi foi um homem complexo e atormentado, sempre dividido nos seus desejos, ações, e convicções mais profundas. Depois de viver como sua esposa durante 48 anos, sua mulher Sofya confessou ignorar que tipo de homem ele era.

Comecei este artigo evocando o parágrafo de abertura de Anna Karenina porque o filme de Michael Hoffman me fez evocá-lo num sentido tragicamente irônico. O filme induziu-me ainda a uma outra associação que reforça a tragédia irônica patente no fim da vida do grande escritor e líder religioso, figura revestida de uma aura profética disseminada não apenas na Rússia autocrática saturada de misticismo, mas em grande parte do mundo. A outra associação que me ocorreu remete a Shakespeare e King Lear, tão grosseiramente incompreendidos por Tolstoi num ensaio intitulado “Sobre Shakespeare e o teatro”. Como não perceber essas duas ironias trágicas que singularizam o último ano de vida de Tolstoi condensado no filme de Hoffman? Difícil imaginar família mais infeliz que a dele, assim como é quase inevitável a identificação entre o ancião doente e atormentado fugindo da própria casa e família e o rei traído e desamparado pelas filhas a quem insensatamente transferiu seu poder.
Como observei, a ação do filme concentra-se no último ano de vida de Tolstoi (Christopher Plummer). Investido da liberdade imaginativa característica da literatura de ficção, mesmo quando inspirada em personagens e eventos históricos, Jay Parini nos revela o último ano da vida de Tolstoi, sua turbulenta relação com sua mulher Sofya (Helen Mirren), a implacável rivalidade entre esta e Chertkov (Paul Giamatti), líder do movimento religioso baseado nos escritos de Tolstoi, centrado na perspectiva de Valentim Bulgakov (James McAvoy). Bulgakov foi enviado por Chertkov para Yasnaya Polyana depois que o secretário de Tolstoi foi preso. Sua função expressa era não só substituir o secretário precedente, mas também espionar a ação de Sofya em benefício de Chertkov e do movimento religioso que este coordenava.

A rivalidade entre Sofya e Chertkov precipita o fim trágico de Tolstoi, disputado sem tréguas por interesses e paixões intransigentes. O inferno doméstico em que Tolstoi e Sofya viveram durante anos foi desencadeado quando o escritor adotou uma forma anárquica de cristianismo que acabou resultando na sua excomunhão da Igreja Ortodoxa, além de convertê-lo em inimigo da autocracia russa. Talvez o espectador que pouco conheça Tolstoi e o movimento religioso que liderou - em termos de organização e ação prática encabeçado por Chertkov, punido com dez anos de exílio – se surpreenda ao ler nas cenas iniciais do filme que Tolstoi era então o escritor mais celebrado do mundo. A informação seria mais precisa se esclarecesse que a celebridade decorria antes do papel religioso do que literário exercido pelo autor de Guerra e paz. Hoje o que antes de tudo sobrevive é o escritor literário, mais uma razão para a compreensível surpresa do meu hipotético espectador. O tolstoísmo que se difundiu pelo mundo durante o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, influenciando poderosamente personagens históricos excepcionais como Gandhi e Wittgenstein, é hoje uma pálida memória em meio à babel das seitas e movimentos religiosos concorrentes no mercado da fé.

O jovem e casto Bulgakov, dócil seguidor do tolstoísmo, tanto que de início nada questiona nos seus líderes nem nas ações e pregações correntes na comunidade em que passa a viver, sofre de um sintoma revelador da sua tibieza. Espirrar é sua reação compulsiva sempre que se defronta com uma situação que lhe provoca embaraço, relutância ou temor. Lembrei-me de que Mario Vargas Llosa usa artifício literário semelhante para caracterizar psicologicamente a cegueira ideológica do protagonista de A guerra do fim do mundo, inspirado em Euclides da Cunha. Por isso cheguei a supor que o livro de Vargas Llosa seria a fonte desse detalhe caracterizador de Bulgakov. Somente mais tarde descobri, ouvindo comentários do próprio diretor do filme, que a fonte inspiradora fora um conto delicioso e pouco conhecido de Tchekhov: “The Sneeze” (“O Espirro”). O alcance crítico da alusão é maior do que aparenta, pois me parece esclarecer o tom tchekhoviano (com perdão do neologismo), ou tragicômico que pontua muitas das melhores cenas do filme.

Mais do que o centro da propriedade rural do nobre Leon Tolstoi, Yasnaya Polyana tornou-se um lugar mítico, santuário para onde acorriam peregrinos e místicos tocados pela fé nos ensinamentos religiosos de Tolstoi. O cristianismo anárquico concebido por Tolstoi representa Jesus não como um deus, mas como um ser humano investido de virtudes humanas excepcionais. É baseado nesse princípio que Tolstoi define sua versão do evangelho e procura pautar sua ação no mundo. Inspira-se ainda nas tradições místicas do mujique, o camponês russo, fonte mítica inspiradora do populismo russo contraposto à corrente dos ocidentalistas, que divisavam nos valores modernos dos países europeus mais avançados a solução para o atraso social e político da Rússia.

Tolstoi pregou e tentou praticar, sempre emaranhando-se em contradições penosas agravantes do seu caráter atormentado, um tipo de socialismo do qual decorria sua convicção de que a propriedade era um roubo, inclusive a intelectual. Essa questão está na raiz da rivalidade entre Sofya e Chertkov. Enquanto este não mediu esforços e maquinações para fazer com que Tolstoi afinal assinasse um documento convertendo sua obra em propriedade pública (Tolstoi não escrevia para os editores, como afirma numa cena do filme, mas para o povo), aquela lutou tenazmente para preservar todas as propriedades do marido em benefício de si própria e da família. Chertkov venceu provisoriamente, como é evidente no filme, ao convencer Tolstoi a transformar sua obra em propriedade pública. Mais tarde, porém, já depois da morte do escritor, a lei do regime autocrático por ele combatido devolveu à viúva a propriedade causadora de muitos dos conflitos e tormentos compreendidos pela trama do filme.

Tolstoi afirma que o amor é o valor universal que liga todas as religiões. Se ele tem acaso razão, a verdade que prega, como todo órfão do absoluto, tem validade puramente abstrata ou teórica. Infelizmente, a história da religião desmente de ponta a ponta a verdade que prega, que antes dele Jesus Cristo e outros homens excepcionais também pregaram, não raro ao preço da liberdade e da vida. Saltando do absoluto religioso para o político, ou ideológico em geral, o que realisticamente se impõe é a impossibilidade do absoluto no reino contingente e falível da realidade humana. O que infelizmente vemos e sofremos acompanhando na tela as vidas dos seres que se amam, mas sobretudo se combatem e se castigam no microcosmo de Yasnaya Polyana, é a prevalência do mal. Eis mais uma ironia trágica pontuando o fim de Tolstoi, esse homem tão atormentado e perseguido pela miragem do absoluto.

Isaiah Berlin, um dos estudiosos que mais profundamente perscrutaram esse homem genial e indecifrável, escreveu um dos mais citados ensaios contemporâneos movido pela ambição de o explicar. Refiro-me a “O porco-espinho e a raposa” (“The hedgehog and the Fox”). Berlin propõe a tipologia que confere título a seu ensaio com o propósito de explicar o conflito insolúvel que atormentou a vida de Tolstoi. Como toda tipologia, esta não escapa ao risco da simplificação grosseira, sobretudo quando manejada por intérpretes canhestros ou dogmáticos. Não é o caso de Isaiah Berlin, talvez o mais refinado e perceptivo filósofo político e ensaísta da moderna tradição liberal. Seguindo a distinção que propõe ao esboçar sua tipologia, a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe apenas uma, mas ela é sumamente importante. Fixada esta baliza distintiva, o ensaísta enumera alguns dos grandes nomes da cultura identificando-os ora com a raposa (Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Puchkin, Joyce...), ora com o porco-espinho (Platão, Dante, Pascal, Dostoievski, Nietzsche...).

O grande infortúnio de Tolstoi, segundo a admirável argumentação que Isaiah Berlin desdobra ao longo do seu ensaio, foi acreditar que era um porco-espinho, quando era por natureza uma raposa. Nos seus escritos religiosos ou proféticos, quem se impõe é o porco-espinho, não raro enrijecido num moralismo que o impeliu a incorrer em erros e injustiças desconcertantes num homem dotado de gênio. Bastaria pensar na apreciação crítica absurda que faz de Shakespeare contida no ensaio acima citado. Sua pregação moralista e dogmática estende-se à apreciação da arte em geral, sem poupar sequer sua própria obra. Também sua percepção do mundo moderno, sua aversão à ciência e à tecnologia, é de uma estreiteza espantosa. Seu moralismo sexual beira a hipocrisia mais chã enredando-se em extremos de contradição e culpa. Portanto, o que me parece mais importar em Tolstoi, e é isso que lhe assegura a imortalidade incontestável, é a obra literária na qual se espelha sua autêntica natureza: a natureza da raposa que sabe muitas coisas, embora nenhuma seja exclusiva ou absoluta.
Recife, 10 de julho de 2012.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O peso da liberdade


Segundo a voz corrente, ser livre é fazer o que quiser. É uma concepção infantil da liberdade, mas como espantar-se diante do fato de ter largo curso, de ser a voz corrente? Afinal, a cultura hedonista que hoje rege nossa realidade baseia-se na infantilização das pessoas. Dizendo o mesmo de um outro modo, a cultura publicitária, presente até no nosso sono, para não dizer nos nossos sonhos acordados, repisa esse refrão para tudo vender. Repetindo o refrão, ser livre é fazer o que quiser, é realizar nosso desejo. Ora, essa concepção infantil da liberdade não resiste ao teste de realidade mais elementar, à prova mais corriqueira da realidade.

A liberdade é um bem precioso, mas é também um peso. Por que um peso, interroga perplexo o leitor infantilizado pela fumaça publicitária que permeia nossas vidas. Ora, porque ser livre é ser livre para escolher. Nossa vida, na medida em que é livre, supõe sempre o exercício de escolhas. Estamos sempre fazendo escolhas. E é precisamente dessa circunstância entranhada no ser e no exercício da liberdade que decorre seu peso sobre nossas vidas.

Vamos a alguns exemplos práticos. Somos livres para amar. Num mundo de tantas possibilidades, tantas tentações e encontros, a liberdade de amar é bem maior do que a observável em outros tempos e culturas regidas por códigos mais repressivos. Hoje um jovem de classe média urbana, por exemplo, é livre para transar com a namorada, em muitos casos dormir com ela na casa dos pais graças ao consentimento destes. É uma forma de liberdade desejável e fácil, já que consentida. Quando eu era jovem, precisei sair de casa, lutar arduamente para ter um lugar meu onde pudesse dormir com minha namorada, ou com quem mais desejasse. Ninguém me deu essa liberdade. Precisei conquistá-la e portanto sei o quanto me custou. Hoje o jovem de classe média para cima não apenas leva a namorada para a casa dos pais, mas também com frequência a engravida e os pais financiam também essa liberdade. Como estranhar que esse tipo de jovem, cuja liberdade é financiada pelos pais, diga irrefletidamente que ser livre é fazer o que quiser e quando quiser?

A digressão acima desviou-me do curso de meu argumento. Meu propósito, ao acentuar o peso da liberdade, era ir ao cerne do que compreendo como liberdade. O exemplo que dei é secundário, já que deriva do que agora deixarei claro. Ser livre é ser livre para escolher e escolher envolve sempre a exclusão de tudo que fica à margem da minha escolha. Quando escolho amar uma mulher, excluo automaticamente todas as demais possíveis. Quando escolho ficar em casa sexta-feira à noite lendo um livro ou escrevendo, excluo todas as possibilidades de vida que estão fora do meu apartamento. Quando escolho minha solidão, para nela realizar possibilidades impensáveis em qualquer forma de convívio, escolho-a porque ela importa para mim mais do que qualquer companhia disponível.

A condição fundamental para que me realize no exercício da minha liberdade de escolher consiste na adequação entre meu desejo e o objeto que escolho. Quantas pessoas escolhem em conformidade com esse princípio? Receio que bem poucas. Ademais, ainda que na minha escolha obedeça a este princípio, o objeto que escolho, se é humano, pode contrariar ou mesmo contradizer minha liberdade. Para que minha escolha me faça bem, idealmente me torne feliz, é preciso que eu queira verdadeiramente o que escolho, tão verdadeira e profundamente que a exclusão de tudo mais não me cause frustração ou arrependimento, suspensão relutante entre o que escolho e o que em consequência deixei de escolher.

Como conciliar a realidade efetiva da liberdade com a noção infantil acima indicada? De acordo com esta, faço o que quero como se isso significasse fazer tudo o que quero. Ora, ninguém faz tudo o que quer. Mesmo no estado idealmente mais livre, somos livres porque fazemos escolhas. É aí que muitas vezes sofremos entre o desejo e a possibilidade, entre a realidade da escolha e a realidade das possibilidades em princípio infinitas. É impossível escolher tudo que queremos e aquilo que mais queremos. A liberdade ideal, portanto, consiste na escolha daquilo que mais importa para a realização da nossa vida. Convém ainda acrescentar que não há nenhuma linha reta, nenhuma relação de necessidade entre minha escolha e meu desejo de felicidade. Não raro, o que mais desejo e escolho logo se converte em fonte de desastre e sofrimento. A liberdade não se dá, a liberdade se conquista, reza um lugar comum, no caso verdadeiro. Mas a liberdade que se conquista não é garantia de nada, muito menos de felicidade.

O fato é que a liberdade, como já frisei, é um bem precioso, mas também um peso. É por tanto pesar que a ela frequentemente renunciamos, não raro em nome dela. É por isso que nos deixamos docilmente governar por líderes baratos, reles políticos que apenas ambicionam o poder, o pior do poder. Curvamo-nos não apenas a esse tipo de governo, mas também ao governo do tirano cujo poder se sustenta apenas na nossa servidão voluntária, como há muito demonstrou Étienne de La Boétie.

“Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Esta citação, longe de ser um lugar comum, como a que acima introduzi, é de Madame Roland, que a pronunciou no auge do terror desencadeado pela revolução cujo ideal era esta santíssima trindade: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Madame Roland perdeu literalmente a cabeça, cortada pela guilhotina que suprimiu muitas outras cabeças gloriosas. Matamos pela liberdade, assim como também matamos em nome dela. Por ser tão imperiosa, dela frequentemente nos valemos para mascarar muitos dos nossos piores crimes. E quantas vezes, tendo-a a nosso alcance, não a rebaixamos à sarjeta das paixões humanas? Será que somos verdadeiramente capazes de realizar a liberdade nesse mundo humano tão imperfeito? Se o leitor acredita nesse mito, o da liberdade universal ou absoluta, convém começar a afiar a lâmina da guilhotina. Ou o fio da navalha, no caso de ser barbeiro.
Recife, 15 de junho de 2012.

domingo, 8 de julho de 2012

Pai e Filho


Fazia anos que se balançava quietamente na cadeira de balanço. Os vizinhos vinham ocasionalmente à varanda e logo deparavam aquele velho silencioso e solitário balançando-se na cadeira diante da televisão: para lá, para cá. Assim, sem variação significativa, assim ele se balançava quietamente, assim balançava na cadeira sua velhice sem acontecimentos. O velhinho silencioso tornou-se assim parte inconsciente da paisagem apreensível através da cadeia de varandas acotoveladas nos condomínios onde se empilhavam seres incomunicáveis, náufragos resignados dentro de suas ilhas.
Embora fitasse a televisão, pouco se dava conta do fluxo de imagens que se desdobrava infinitamente diante dos seus olhos apertados, as retinas já fatigadas de ver um mundo que pouco o atraía e menos ainda compreendia. Era de um outro tempo, de um tempo que agora lhe parecia muito distante, embora a memória o assombrasse com imagens, gente, paisagens cada vez mais nítidas. Sentia-se como se o presente palpável, restrito à sala deserta e ao fluxo de imagens e sons da televisão, fosse cada vez mais remoto. Este recuava, não obstante ruidoso e presente, enquanto o outro, o passado acumulado na memória, era cada vez mais presente.
Lembrou-se do filho, o único que lhe restou sem que de fato o tivesse, pois que foi embora, como tudo que importava na sua vida. Em muitos sentidos, o filho tornou-se seu avesso, seu outro tão refeito pela experiência e negações deliberadas que se foi dele desgarrando, gradualmente apagando do seu caráter as marcas mais profundas que sobre ele imprimira. A semelhança física entre um e outro era notável, também muitas disposições temperamentais que o filho, não sabia por que, foi modulando, transfigurando, forjando na matéria herdada um outro modo de homem cada vez mais distanciado do pai.
O filho tornou-se assim muito do que não era, também muito do que gostaria de ser, do que talvez tivesse sido, fosse outro o mundo em que cresceu, outros os acasos, circunstâncias, oportunidades... Era homem do Brasil rural, de um Brasil onde poucos tinham acesso àquilo que seu filho tenazmente conquistou: estudos refinados, viagens e contatos renovadores com a alta cultura letrada de procedência europeia. Seu sonho era ver o filho doutor. Doutor, no seu entender e aspiração, era doutor em direito. O filho, talvez cedendo ao peso opressivo da herança de sangue e desejo, chegou mesmo a esboçar a realização do sonho nutrido pelo pai. Ingressou no curso de direito, mas logo desistiu. Daí errou através de confusos corredores acadêmicos, errou ainda mais na vida, e afinal encontrou algo de si, do que lá nele mais fundo ele era, e se fez intelectual impregnando-se de literatura, filosofia, outros saberes impermeáveis à compreensão pedestre do pai.
Lembrou-se do filho com um desejo tão urgente, tão carente de povoar a sala vazia, o balanço invariável da cadeira de balanço, que por pouco o viu diante de si, ocupando o espaço vazio entre a sala e a varanda com sua altura descomunal. O filho era alto, bem mais alto que ele, e agora lhe parecia imenso diante da sua velhice encolhida dentro do corpo solitário, dentro do apartamento vazio. Sentiu uma dor sem nome, uma solidão irreparável. Como seria bom tê-lo ali a seu lado, ouvi-lo novamente lendo passagens da Bíblia que o reconfortavam. Sabia que o filho também se distanciara de Deus. Mas gostava de ler a Bíblia para o pai já cansado, sem ânimo mental ou disciplina de leitura para abismar-se nos evangelhos, na palavra de Deus por conta e risco próprios.
Quantas noites o filho não se inclinou bondosamente sobre ele derramando no desamparo da sua velhice a palavra de Deus que para ele, o filho, não existia? O volume restara silencioso e empoeirado sobre a prateleira da sala. Um livro sem leitor, pensava, era como uma casa sem dono. Por vezes, evocando a palavra divina vertida pela fala do filho, que lia com inflexões e pausas apaziguadoras, quase mergulhava num cochilo quieto, um limbo entre a vigília e o sono. A voz do filho, comunicando-lhe o verbo divino, era música para sua velhice, era o refúgio dentro do qual se reconciliava com o mundo. Tudo que verdadeiramente lhe sobrava era o filho. Mas um dia ele também foi embora. Restou-lhe apenas a televisão ligada, tantas vezes sem som, tantas vezes mero fluxo de imagens cegas, pois ele em nada se reconhece. Se algo dá sentido a seu presente solitário, a seu presente vazio, é o mundo da memória ritmando os movimentos do corpo fatigado sobre a cadeira de balanço.
Major Gomes. Ele sorriu quietamente enquanto uma lágrima escorria silenciosa pela face enrugada. O filho inventou um dia, já não lembrava quando nem por que, de chamá-lo Major Gomes. Major Gomes isso, major Gomes aquilo e assim por tudo e por nada o filho habituou-se a chamá-lo major Gomes. Era um modo carinhoso e íntimo de tratamento, embora paradoxalmente evocasse uma patente militar, valores e práticas de vida absolutamente estranhos a ambos, que eram homens avessos à hierarquia e à violência associadas à profissão militar. Daí a estranheza do apelativo íntimo e carinhoso. Por que major Gomes? Parafusava a memória até que por fim se resignava ao puro eco da voz do filho vindo de longe, mas tão nítido, tão carregado de gradações afetuosas, risonhas, tão o sopro infantil das brincadeiras que entre si tramavam alheios ao hiato entre o pai e o filho, entre a patente militar e a expressão de amor compartilhada por dois homens bondosos e delicados.
Estoico. O que queria dizer? Balançou a cabeça desanimado, o pensamento confuso entre a ignorância do sentido suposto na palavra e a memória nítida vibrando aqueles sons que se somavam para perfazerem a palavra inequívoca: estoico. Sim, era isso o que ele dizia. Um dia interrompeu o filho mergulhado nas suas leituras habituais. Acercou-se timidamente, pois era tímido até para perturbar o recolhimento do próprio filho, e lhe perguntou o que lia. Na verdade, a pergunta era irrelevante, apenas um pretexto para chamar a atenção do filho; um pedido, quase uma súplica abafada. Como se dissesse: meu filho, converse comigo, pois estou doente de velhice e solidão e agora tenho medo dessas sombras vindas do passado.
O filho se volta para ele: Major Gomes. Sorriem como iguais, como eu espelhado no outro, mas um outro que é o mesmo, tão profundas eram as semelhanças enraizadas sob a superfície que os dividia: a idade, a cultura, modos irredutíveis de experiência e perspectiva dentro do mundo que os aproximava e dividia. Major Gomes, repete o filho e novamente sua presença consoladora avoluma-se na memória do velho. O que você está lendo? Lia um livro de filosofia e naquele preciso momento lutava para compreender a noção filosófica do tempo adotada pelos estoicos. Estoico... os sons voltam a vibrar na memória e ele sorri tristemente ignorante. Mas o que importa na memória que agora o reanima não é a ignorância do que seja estoico, do que seja o tempo para o estoico; o que importa é a presença do filho povoando a sala vazia, injetando ânimo ao movimento rangente da cadeira de balanço.
Recife, 3 de abril 2012.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Máximas e Mínimas V


A justiça é um descuido da lei.

Todo militante precisa de um belo ideal para justificar a supressão do seu objeto de ódio.

Política solidária: uma mão suja a outra.

Viver é apenas a ilusão de ser.

A morte é apenas o nada no avesso do outro nada: a vida.

Vivo; logo, morro.

Ser é doer.

Nado na correnteza, mas também no rio. As águas fluem, mas são ainda o rio.

Vivo no gerúndio sabendo no entanto que algo persiste. Que tempo verbal traduziria essa verdade movente do ser? Soussendo? Souidorei?

Se o Brasil é o país da esperança, então somos o que não somos. Somos o que nunca seremos.

Para o enfermo da esperança, esta é a penúltima que morre.

Quanta gente confunde passividade com bondade. A bondade é uma virtude ativa.

Fruto da conjunção fortuita entre o óvulo e o espermatozoide, a vida é uma doença que herdamos. A morte é sua cura.

O caminho mais curto para afastar-se dos amigos é ir morar perto deles.

Como explicar um país que piora até quando melhora?


Ser simples como a poesia
Que rima luz e verdade
Despida ao meio-dia.

Podemos identificar dois tipos nas relações humanas: o egoísta e o altruísta. Como se mesclam, são portanto tipos impuros, nunca exclusivos. O segundo preza dar, o primeiro vive de receber. Mas estão sempre em luta, sempre se desavindo, pois quem dá quer por egoísmo também receber, enquanto quem recebe quer apenas receber, já que o egoísmo é a força humana mais poderosa.

O amor é de ordinário uma ilusão necessária. Nossa imaginação o inventa para injetar ânimo e sentido em relações enganosas e passageiras. Mas não duvido de que existe. Sei porque amei e fui amado.

O sorriso da razão
Iluminando Voltaire
Derrama em meu coração
O senso que ninguém quer.

O amor veio uma vez
Outra, depois muitas mais.
Mas tudo resumo em três
Que o resto morra em paz.

Está em paz com a vida quem se sabe investido do poder de escolher sua própria morte.

I am in peace with my life because I have eventually the power of choosing my death.

Amar os filhos é apenas uma variante altruísta de egoísmo.

Evito jantar com pessoas que facilmente envenenariam meu prato. Não o fariam por qualquer razão pessoal, apenas por serem de natureza maldosa e destrutiva. Já que algumas são inevitáveis, evito a comida que me oferecem e temo o mero fato de existirem.

domingo, 1 de julho de 2012

Passagem


Não pinto o ser, pinto a passagem.
Montaigne

A eternidade do mar
E a fluidez da maré
Existem pra te ensinar
Que a vida humana é fugaz
E o acaso sopra onde quer.

O amor que hoje é teu tudo
Será teu nada amanhã.
Por isso queria ser
Como no mar a maré
Que vem e logo recua
Se eleva e já se dissolve.
E a maresia na rua
Some no sopro do vento.

Tudo é engano, passagem
No ventre da natureza
E até o mar é miragem
Sumindo na correnteza.

Ser como o vento: passagem
Perpétua em seu movimento.
Tudo que vive é viagem
Que se dissipa no vento.

Fernando da Mota Lima. -
Recife, 16 de junho de 2012.