quinta-feira, 12 de julho de 2012
O peso da liberdade
Segundo a voz corrente, ser livre é fazer o que quiser. É uma concepção infantil da liberdade, mas como espantar-se diante do fato de ter largo curso, de ser a voz corrente? Afinal, a cultura hedonista que hoje rege nossa realidade baseia-se na infantilização das pessoas. Dizendo o mesmo de um outro modo, a cultura publicitária, presente até no nosso sono, para não dizer nos nossos sonhos acordados, repisa esse refrão para tudo vender. Repetindo o refrão, ser livre é fazer o que quiser, é realizar nosso desejo. Ora, essa concepção infantil da liberdade não resiste ao teste de realidade mais elementar, à prova mais corriqueira da realidade.
A liberdade é um bem precioso, mas é também um peso. Por que um peso, interroga perplexo o leitor infantilizado pela fumaça publicitária que permeia nossas vidas. Ora, porque ser livre é ser livre para escolher. Nossa vida, na medida em que é livre, supõe sempre o exercício de escolhas. Estamos sempre fazendo escolhas. E é precisamente dessa circunstância entranhada no ser e no exercício da liberdade que decorre seu peso sobre nossas vidas.
Vamos a alguns exemplos práticos. Somos livres para amar. Num mundo de tantas possibilidades, tantas tentações e encontros, a liberdade de amar é bem maior do que a observável em outros tempos e culturas regidas por códigos mais repressivos. Hoje um jovem de classe média urbana, por exemplo, é livre para transar com a namorada, em muitos casos dormir com ela na casa dos pais graças ao consentimento destes. É uma forma de liberdade desejável e fácil, já que consentida. Quando eu era jovem, precisei sair de casa, lutar arduamente para ter um lugar meu onde pudesse dormir com minha namorada, ou com quem mais desejasse. Ninguém me deu essa liberdade. Precisei conquistá-la e portanto sei o quanto me custou. Hoje o jovem de classe média para cima não apenas leva a namorada para a casa dos pais, mas também com frequência a engravida e os pais financiam também essa liberdade. Como estranhar que esse tipo de jovem, cuja liberdade é financiada pelos pais, diga irrefletidamente que ser livre é fazer o que quiser e quando quiser?
A digressão acima desviou-me do curso de meu argumento. Meu propósito, ao acentuar o peso da liberdade, era ir ao cerne do que compreendo como liberdade. O exemplo que dei é secundário, já que deriva do que agora deixarei claro. Ser livre é ser livre para escolher e escolher envolve sempre a exclusão de tudo que fica à margem da minha escolha. Quando escolho amar uma mulher, excluo automaticamente todas as demais possíveis. Quando escolho ficar em casa sexta-feira à noite lendo um livro ou escrevendo, excluo todas as possibilidades de vida que estão fora do meu apartamento. Quando escolho minha solidão, para nela realizar possibilidades impensáveis em qualquer forma de convívio, escolho-a porque ela importa para mim mais do que qualquer companhia disponível.
A condição fundamental para que me realize no exercício da minha liberdade de escolher consiste na adequação entre meu desejo e o objeto que escolho. Quantas pessoas escolhem em conformidade com esse princípio? Receio que bem poucas. Ademais, ainda que na minha escolha obedeça a este princípio, o objeto que escolho, se é humano, pode contrariar ou mesmo contradizer minha liberdade. Para que minha escolha me faça bem, idealmente me torne feliz, é preciso que eu queira verdadeiramente o que escolho, tão verdadeira e profundamente que a exclusão de tudo mais não me cause frustração ou arrependimento, suspensão relutante entre o que escolho e o que em consequência deixei de escolher.
Como conciliar a realidade efetiva da liberdade com a noção infantil acima indicada? De acordo com esta, faço o que quero como se isso significasse fazer tudo o que quero. Ora, ninguém faz tudo o que quer. Mesmo no estado idealmente mais livre, somos livres porque fazemos escolhas. É aí que muitas vezes sofremos entre o desejo e a possibilidade, entre a realidade da escolha e a realidade das possibilidades em princípio infinitas. É impossível escolher tudo que queremos e aquilo que mais queremos. A liberdade ideal, portanto, consiste na escolha daquilo que mais importa para a realização da nossa vida. Convém ainda acrescentar que não há nenhuma linha reta, nenhuma relação de necessidade entre minha escolha e meu desejo de felicidade. Não raro, o que mais desejo e escolho logo se converte em fonte de desastre e sofrimento. A liberdade não se dá, a liberdade se conquista, reza um lugar comum, no caso verdadeiro. Mas a liberdade que se conquista não é garantia de nada, muito menos de felicidade.
O fato é que a liberdade, como já frisei, é um bem precioso, mas também um peso. É por tanto pesar que a ela frequentemente renunciamos, não raro em nome dela. É por isso que nos deixamos docilmente governar por líderes baratos, reles políticos que apenas ambicionam o poder, o pior do poder. Curvamo-nos não apenas a esse tipo de governo, mas também ao governo do tirano cujo poder se sustenta apenas na nossa servidão voluntária, como há muito demonstrou Étienne de La Boétie.
“Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Esta citação, longe de ser um lugar comum, como a que acima introduzi, é de Madame Roland, que a pronunciou no auge do terror desencadeado pela revolução cujo ideal era esta santíssima trindade: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Madame Roland perdeu literalmente a cabeça, cortada pela guilhotina que suprimiu muitas outras cabeças gloriosas. Matamos pela liberdade, assim como também matamos em nome dela. Por ser tão imperiosa, dela frequentemente nos valemos para mascarar muitos dos nossos piores crimes. E quantas vezes, tendo-a a nosso alcance, não a rebaixamos à sarjeta das paixões humanas? Será que somos verdadeiramente capazes de realizar a liberdade nesse mundo humano tão imperfeito? Se o leitor acredita nesse mito, o da liberdade universal ou absoluta, convém começar a afiar a lâmina da guilhotina. Ou o fio da navalha, no caso de ser barbeiro.
Recife, 15 de junho de 2012.
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