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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Nomes próprios e impróprios


A questão da grafia e adoção dos nomes próprios estrangeiros é um capítulo curioso da nossa ideologia nacionalista. Já a questão da identidade cultural é por certo o capítulo crucial desta ideologia. Refleti um pouco sobre essas questões que sumariamente assinalo na abertura deste artigo porque me ocorreu lembrar os nomes extravagantes de muitos dos alunos que tive em anos mais recentes. É curioso observar como tendemos cada vez mais a adotar nomes estrangeiros. Mais que isso, mais estrangeiros que os modelos adotados, dobramos consoantes inexistentes nos nomes que nos servem de inspiração. Assim, há agora brasileiros batizados como Petter ou Rychaddson. Como professor, na hora da chamada por pouco não mordi a língua várias vezes para pronunciar ou tentar pronunciar corretamente os nomes extravagantes de alunos brasileiros que todavia têm nomes mais que estrangeiros, mais extravagantes que os estrangeiros.
O fenômeno parece acentuar-se (adianto que não procedi a nenhum levantamento empírico, como é de hábito no ofício dos sociólogos) nas classes mais pobres. Quero dizer, quanto mais descemos na composição econômico-social dos alunos, mais encontramos a adoção de nomes estrangeiros saturados de consoantes dobradas e outras extravagâncias gráficas inexistentes nos modelos estrangeiros adotados. Sendo mais preciso, é nos cursos de secretariado e serviço social, pedagogia e turismo que se observa a maior frequência do fenômeno que aqui considero. Neles passei a esbarrar em singularidades como Walleska, Weruska, Nattaly, Wylliam... Lamento agora não haver anotado todos para melhor aproveitá-los neste artigo.
Ora, pensei com minha rota gramática dos nomes próprios brasileiros, aí tem coisa, isto é, isso é sintoma de sentidos submersos no solo da grafia, ou na pele da escrita. Por que tanto agora nos entregamos a esses caprichos que certamente infernizam o trabalho dos funcionários de cartório e os professores, obrigados a morder a língua pronunciando essas consoantes esdrúxulas? O fenômeno, ou pelo menos sua exacerbação, é novo, talvez sintoma do processo de globalização que estreitou as fronteiras entre as nações e os nomes. É porém raro encontrar nomes brasileiros entre os americanos e ingleses, franceses e alemães, embora com certeza tenha aumentado assustadoramente a presença de imigrantes legais e ilegais nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha. Esta relação desigual sugere a reiteração, neste registro, da nossa dependência cultural, fenômeno típico em países de forte tradição colonial. Noutras palavras, a inflação de nomes estrangeiros na nossa cultura seria apenas mais uma evidência da nossa macaqueação do estranja, como dizia Mário de Andrade com suas expressões peculiares.
Aliás, lembro Mário de Andrade bem a propósito, já que foi provavelmente o maior apóstolo da nacionalização da nossa cultura. Seu pragmatismo militante, tantas vezes confessado e justificado, levou-o a adotar processo inverso ao que acima anotei quando escreveu sua pioneira Pequena História da Música. Visando afirmar os valores nacionais postulados pelo modernismo, nesta obra ele decidiu grafar os nomes de grandes músicos europeus aportuguesando-os. Assim, escreve João Sebastião Bach, Cláudio Debussy, Ricardo Straus etc. Ninguém embarcou na sua canoa furada, que de resto vazou água na própria obra que cito, pois ele foi de uma inconsistência flagrante: ora aportuguesa os nomes, ora preserva a grafia original.
Há pouco escrevia para uma amiga lembrando mais uma vez uma frase primorosa de Tom Jobim que não me canso de citar: “O Brasil não é para principiantes”. Cito-a além da desmedida, reconheço, porque nossa realidade desconcertante está sempre me dando razões de a lembrar e novamente constatar sua precisão. Falamos por ombros e cotovelos o quanto nos orgulhamos da nossa identidade. Os brasileiros mais bairristas, é o caso dos pernambucanos, redobram a dose acrescentando ao nacionalismo provinciano, com perdão do truísmo, as glórias da nossa pernambucanidade, o orgulho de ser pernambucano e nordestino. Convém de resto lembrar que o “orgulho de ser nordestino” é produto publicitário pago e apropriado pela rede Bompreço, que por sua vez vendeu o mote publicitário sem tirar nem pôr ao capital globalizado. Portanto, para bom entendedor meia publicidade já denuncia o comércio inteiro.
Mas lembrava nosso orgulho confesso da nossa identidade cultural que espalhamos aos quatro ventos. Ora, antes de constituir uma evidência de efetiva identidade consolidada, o fato é antes sintoma da persistência de nossa mentalidade colonizada, do servilismo com que, a partir da própria adoção dos nomes próprios, macaqueamos as culturas que são objeto da nossa inveja e ressentimento. Povos ou países cuja identidade está de fato assimilada, integrada às camadas profundas das expressões inconscientes da nacionalidade e da cultura, prescindem desse tipo de comportamento que entre nós se manifesta em tudo através de mecanismos induzidos pelo Estado e toda a rede de instituições cuja função é produzir e sedimentar padrões de comportamento e valor cultural.
Também nossos modos de morar transpiram sintoma de colonialismo mental. Eu por exemplo, o recifense mais colonizado do Brasil, moro num condomínio cujo nome é Castelo de Luxemburgo. O Recife pulula de condomínios identificados não apenas como castelos, mas como castelos que traem nossas fantasias de nobreza de matriz francesa, inglesa, italiana, espanhola... Já pensei em sair pelas ruas do bairro onde moro anotando os nomes tão peculiares e sintomáticos dos condomínios habitados pela classe média. Os intelectuais que odeiam a classe media, também sintomaticamente pertencentes a ela, costumam denunciar do alto dos tribunais nacionalistas e bairristas a mentalidade colonizada da classe media, notadamente a classe média intelectualizada. O galo canta e logo confundem o poleiro. Não é só a classe média que é colonizada. Os porteiros e zeladores do condomínio onde moro falam okei e se chamam Jameson ou Wallace. Quanto a mim, colonizado incurável, já pensei em procurar o cartório do registro civil mais próximo para trocar de nome. Gostaria de me chamar Príncipe William Windsor.
Recife, 20 de novembro de 2013.

sábado, 1 de junho de 2013

Liberdade e Identidade II


Meus sentimentos de estrangeiro tendem a acentuar-se durante o carnaval. Sendo uma das mais profundas e extensivas expressões da cultura brasileira, portanto um dos seus momentos de suprema integração social, não é de estranhar que estados subjetivos dessa natureza se agravem imprimindo transparência à linha fronteiriça entre o eu e o outro coletivo, entre minha brasilidade gauche, sempre distanciada e dissonante, e o espírito gregário e ruidoso do povo brasileiro.
Isso se repete, em tom às vezes ainda mais exacerbado, durante a Copa do Mundo. Este, aliás, será um ano – junho e julho, mais exatamente – que me submeterá a mais uma dessas provas de brasilidade a contrapelo, de celebração futebolística contrafeita, já que sempre vivida com reserva, quando não com franca resistência à integração dissoluta no corpo da massa infranqueável ao exercício da individualidade e da alteridade.

Meu estranhamento desdobra-se ainda nas festas de fim de ano, além dos festejos do meio do ano, como é o caso das festas juninas que já tive a esperança de ver superadas pela dinâmica urbana do país. A mídia e a indústria da publicidade, entretanto, operaram recentemente no sentido de ativá-las integrando-as ao circuito do consumo e deslocando-as dos arraiais e da geografia rural para o shopping center; para o cerne, portanto, do espaço onde se desenvolve a cultura urbana. Fenômenos dessa natureza sugerem a complexidade da dinâmica sociocultural do capitalismo em países do tipo do Brasil.

Será necessariamente negativo ou indesejável o estado de estranhamento dentro do meu próprio país? Minha amiga Vivian Schelling, culturalmente dividida numa linha de intersecção simbólica que compreende Alemanha, Espanha, Inglaterra e Brasil, muitas vezes se queixou nas nossas conversas londrinas da sua personalidade culturalmente dividida. Talvez por isso tanto se voltasse para o seu curto passado brasileiro, vivido entre o Rio e São Paulo, tingindo-o com cores idealizadoras. Será assim indesejável ou negativo esse processo de interna divisão cultural? Se todos tendessem a comportar-se como Vivian, diria que o mundo contemporâneo, pelo menos o ocidental, estaria saturado da infelicidade gerada pela divisão cultural das personalidades. Dado isso como um fato, seria igualmente compreensível a representação regressiva e idealizadora do passado pré-moderno. Foscamente dividido por essas fronteiras que demarcam a linha da modernidade e a da pré-modernidade, o Brasil se prestaria a acomodar na sua geografia cultural o olhar nostálgico do pós-modernista contrafeito.

Recuando entretanto para a modesta e palpável dimensão da minha subjetividade, não me vejo como um infeliz ou carente de identidade socialmente integrada. Sem pretender subestimar o fardo que é viver regido por valores que não alcançam o estatuto de valor dominante na minha cultura de origem, sempre discriminei esse peso negativo do positivo. Tanto quanto aquele, este se constitui na expressão da minha personalidade como consequência muitas vezes consciente e até previsível dos conflitos implícita ou explicitamente travados no cerne da minha subjetividade que compreende valores coletivos, alguns imperativos, mas também valores individualmente selecionados.

É nessa linha de tensão em que se relacionam o eu-Fernando e o outro-coletivo que se define a minha subjetividade. Antes de concebê-la como mera expressão individual e reflexa da sociedade, aprendi que é possível investir-me do poder e da liberdade de traçar uma linha de diferença e individualidade diante dos mecanismos sociais tendentes a produzir o conformismo e a indiferenciação. Dependo evidentemente da sociedade em que vivo para me constituir enquanto entidade autônoma e individualizada sem que entretanto isso de modo algum pressuponha o consentimento ou dócil aderência aos valores dominantes.

Se um homem não é capaz de demarcar sua diferença contra o outro coletivo, não pode legitimamente falar de si próprio como um ser livre. É por isso que um dos problemas mais inquietantes da cultura contemporânea, regida pelas agências geradoras dos valores difundidos em alta e sistemática escala pela mídia, é a ilusão da autonomia e da liberdade individual. Digo ilusão porque a noção de liberdade vendida pela mídia é objetivamente uma forma de conformismo e escravização aos ditames do mercado. Seja você mesmo: beba coca-cola. Esta frase, mote publicitário do produto que anuncia, sintetiza à perfeição o que intento traduzir neste parágrafo.

Essa cultura da mídia, fundada no princípio da permissividade, da completa dessacralização dos valores coletivos, exerce a forma mais insidiosa de dominação, já que é abstrata e assim nunca se materializa num indivíduo ou instância concreta. Costumo ainda hoje lembrar um episódio que tipifica este fenômeno. Quando ensinava sociologia no curso de arquitetura da UFPE costumava selecionar alguns filmes para debatê-los com os alunos. Vimos, certa vez, Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society). Um dos alunos, aliás dos mais inteligentes da turma, observou que a diferença essencial entre a escola tradicional retratada no filme e a contemporânea consistia no fato de que naquela os alunos não eram livres, enquanto o eram nesta.
Ora, o que o episódio ilustra é a crença espontânea na liberdade. Dissolvendo o princípio necessário da autoridade no seio da permissividade mercadológica, a mídia despersonaliza a liberdade dissociando-a de qualquer forma concreta de autoridade. Lembrei ao meu aluno que uma das características positivas da sociedade tradicional residia no fato de a autoridade se encarnar na figura concreta do pai, da mãe, do professor, etc. Na medida em que era visível e concreta, era por conseguinte mais fácil identificá-la e opor-lhe resistência, sobretudo nas circunstâncias em que deixava de ser autoridade para converter-se em dominação autoritária.
O próprio processo de conquista da identidade individual, um fato imperativo na vida de qualquer pessoa formada nos quadros da cultura ocidental, me parece que resultava menos problemático no âmbito de uma cultura em que a autoridade estava concretamente materializada na ação de alguns agentes sociais básicos. Na medida porém em que a autoridade tende a se tornar abstrata dissolvendo-se na ideologia da permissividade, que nunca se pronuncia no imperativo nem é veiculada por agentes identificáveis com a autoridade indesejada e hostilizável, a sensação de desorientação e impotência, sobretudo do jovem, tende a acentuar-se. Falando de modo interrogativamente concreto: contra quem conquistarei minha liberdade? A quem opor minha resistência e meu desejo de afirmação individual, minha sede de liberdade, em suma? Como reivindicar minha liberdade numa cultura onde pai e mãe não apenas estão esvaziados de autoridade, mas se tornaram presas dóceis, meros financiadores da liberdade mercadológica?

A própria psicologia corrente, a julgar pelo que que dela aparece na mídia, pouco difere do discurso publicitário. Um conceito psicológico como auto-estima em nada difere do emprego que lhe empresta o discurso publicitário. Falam de auto-estima como se fosse um processo de constituição da subjetividade totalmente dependente de fontes externas ao sujeito. Trocando em miúdos, minha auto-estima é produzida e validada apenas pelo outro, pelo mercado, pelas correntes onipotentes da opinião. Em suma, estamos falando de psicologia da integração passiva do sujeito ao ambiente, a integração compreendida como escravização inconsciente a fatores externos ao sujeito. Isso me faz lembrar um dos contos mais extraordinários de Machado de Assis: O Espelho. Machado soube traduzir literariamente mais que qualquer outro dos nossos escritores literários as forças de subordinação do indivíduo ao meio social. Jacobina, narrador e protagonista do conto mencionado, parece provar que nossa liberdade individual, o cerne mesmo da nossa identidade social, radica na nossa dócil internalização dos valores do meio em que nos formamos. Alferes da Guarda Nacional, ele de tal modo se confunde e dissolve na farda que usa que se desintegra a partir do momento em que o outro que lhe confere existência identificando seu ser social com a farda se ausenta. O conto é engenhosamente elaborado do ponto de vista psicológico, do ponto de vista da constituição do sujeito, mas pode desse ponto de vista ser desmentido por uma questão bem simples: se Jacobina simboliza o protótipo da constituição do sujeito, da subjetividade que seria apenas o espelho do meio que a molda, como explicar a existência do próprio Machado de Assis, para não falar da sua obra que ardilosa e impiedosamente põe em questão toda a ordem social dominante no seu tempo?

Ser livre hoje talvez signifique a recusa de ir ao shopping center comportando-se como o avesso da máquina dócil imantada à engrenagem do guichê e do cartão de crédito. Ser livre hoje talvez signifique dizer não ao carnaval, ou antes brincá-lo sem subordinar-se aos invisíveis mecanismos de pressão que nos reduzem a um número estatístico ou a uma cota negociada no mercado de ações, ou ainda a um flash sonhado na telinha da rede Globo.
Ser livre talvez signifique ser ninguém ou nada no caldeirão antropofágico do capitalismo de consumo, variante tropical, Pernambuco, Brasil.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cultura, identidade e globalização


Cultura Brasileira, Identidade Cultural e Globalização

Chego ao texto conclusivo da série de textos relativos à cultura brasileira e no entanto pouco considerei a situação presente da cultura brasileira e sua relação muito complexa com a questão da identidade cultural e a da globalização. Como penso que seria uma omissão no mínimo criticável, tentarei adiante considerar alguns aspectos dessas relações complexas sem nenhuma pretensão de resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Como o leitor decerto notará, os textos precedentes concentram-se no estudo das origens e da formação da cultura brasileira. Dado que elaborei o plano do conjunto de artigos relativos à cultura brasileira conferindo prioridade a conceitos básicos e à forma como alguns dos grandes representantes da tradição do pensamento social brasileiro os abordaram, suponho haver coerência no conjunto dos textos postados. Além disso, caberia também adiantar que este é um artigo de composição livre, inspirado nas minhas observações e nas muitas leituras que fiz sem anotações ou a intenção de escrever sobre o assunto.

Além do que já expus sobre a cultura brasileira, importaria acrescentar que o conceito é muito discutível, assim como os dois outros que dão título a este texto. As pessoas tendem a falar de cultura brasileira, mesmo pessoas muito educadas e até especialistas, como se o conceito indicasse uma realidade uniforme ou pelo menos coerente. Na verdade, isso está bem longe da verdade. Toda cultura, sobretudo as culturas do nosso tipo, estão expostas a variações no tempo e no espaço, além de se diferenciarem internamente. Há pouco propus a duas turmas minhas da Universidade Federal de Pernambuco que descrevessem uma viagem importante na vida de cada membro das turmas relacionando o local visitado (cidade, vila ou país) com características culturais de Recife. Para minha surpresa, os alunos me forneceram nas descrições feitas um rico material etnográfico, isto é, relativo à descrição de costumes e valores culturais observados nas viagens que fizeram. A maioria das descrições era relativa a cidades do interior de Pernambuco. Um dos aspectos mais interessantes dos trabalhos consistia precisamente na constatação da grande variedade de costumes, hábitos de vida e valores culturais relativos à religião, culinária, vestuário, educação, formas de entretenimento, cenas de rua etc.

Mencionei o exemplo acima para sugerir o quanto a cultura recifense, e mais amplamente pernambucana, contém de diversidade. Essa diversidade depende de muitos fatores, entre eles os de classe, espaço, tempo, modos de tradição... Tudo isso importa para sugerir o quanto é difícil fixar conceitos como os que dão título a este texto. No entanto, falamos e ouvimos correntemente falarem de cultura brasileira, cultura pernambucana, cultura nordestina, como se fossem realidades facilmente apreensíveis e consensualmente aceitas. Isso não é verdade nem tenho a pretensão de apresentar a verdade sobre esses assuntos. Por isso afirmei já no parágrafo inicial que meu objetivo não é resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Meu objetivo principal é propor claramente muitas dessas questões e assim induzir o leitor a refletir sobre elas, considerar respostas possíveis, procurar estudar e compreender melhor o que não tem respostas definitivas e absolutas.

Na década de 1970, como consequência da instituição dos programas de pós-graduação em diversas universidades brasileiras, surgiram várias obras nas quais os autores se propunham apresentar análises ideológicas da realidade social brasileira e de muitas das obras que aqui tenho estudado ou mencionado. O livro que provavelmente alcançou mais repercussão dentro dessa corrente foi o do historiador Carlos Guilherme Mota: Ideologia da Cultura Brasileira. Um dos principais objetivos do autor é exatamente questionar o conceito de cultura brasileira. Embora seja pouco preciso na abordagem deste assunto, e de modo algum forneça ao leitor uma resposta satisfatória, seu objetivo principal é desmontar esse conceito que no seu entendimento não passa de uma construção ideológica. Tentando exprimir isso de forma mais clara, ele procura demonstrar que o conceito de cultura brasileira é uma representação criada por certos intelectuais ligados às classes dominantes cujos interesses moldam a realidade deformada do conceito.
Criticando antes de tudo Gilberto Freyre, em quem identifica antes de tudo o grande ideólogo das oligarquias tradicionais e decadentes do Nordeste, Mota é incapaz de reconhecer ou admitir que uma obra como Casa-Grande & Senzala, por exemplo, está muito além da expressão de interesses de classe e poder, muito além de ser uma mera projeção ideológica dos interesses parciais da classe social à qual Gilberto Freyre pertence, assim como outros explicadores do Brasil estudados no livro.

A relação entre realidade social e ideologia é muito complexa. Além de não ser a questão mais importante deste artigo, não tenho também uma teoria definitiva sobre ela, nem sei de ninguém que tenha proposto uma teoria universalmente aceita. Minha intenção ao mencionar o livro de Carlos Guilherme Mota foi apenas assinalar uma corrente de estudos existente nessa área, além de novamente explicitar a complexidade dos assuntos que estou considerando. Noutras palavras, meu alvo é a cultura brasileira. Falo de cultura brasileira como algo que efetivamos existe, mas me parece impossível determinar exatamente o que seja esse objeto. Por isso observei noutros artigos aqui postados sobre cultura minha convicção de que o conceito de cultura brasileira, assim como o de identidade cultural, é uma construção ideal, um conceito que compreende aspectos seletivos da realidade dependentes da perspectiva do autor que considera o problema.
Mencionei acima a grande diversidade da cultura pernambucana que constatei ao ler os trabalhos de duas turmas da Universidade Federal de Pernambuco. Observei como essa surpreendente diversidade se opõe à noção corrente do conceito de cultura pernambucana, que representa este objeto, a cultura pernambucana, como se fosse algo uniforme e coerente, algo facilmente apreensível pela observação e também pelo conceito. É certo que agora se fala muito em diversidade cultural, a começar pela própria secretaria de governo que se chama, aliás, Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. A mídia, mais do que essa secretaria e a propaganda oficial, encarregou-se de difundir essa noção que virou portanto moda ou lugar comum. Agora todo mundo fala em diversidade cultural, em carnaval multicultural e expressões afins. Isso parece sugerir que somos todos muito conscientes e tolerantes com relação à grande diversidade da nossa cultura. No entanto, não encontramos nenhuma tolerância nos que defendem ardentemente uma concepção regionalista da cultura.

Já registrei noutros textos aqui postados o exemplo de Ariano Suassuna, talvez o melhor que se possa considerar. Afinal, além de ser um grande escritor e intelectual de imenso prestígio, ele é o mais radical defensor dos valores regionais da cultura, o grande ideólogo e porta-voz da cultura nordestina. Mais exatamente, ele defende um tipo de regionalismo conservador, preso a raízes ibéricas da nossa cultura conservadas em áreas do sertão muito pobres e por isso mantidas à margem da cultura típica do mundo moderno. É difícil encontrar nas atitudes públicas e pronunciamentos de Ariano Suassuna o espírito de tolerância e diversidade corrente nos lugares comuns da propaganda oficial, nos clipes publicitários, no discurso da mídia. Ele se pronuncia nitidamente contra tudo que é expressão da cultura de massas, tudo que é expressão da cultura contemporânea produzida e veiculada pela tecnologia, pelo capitalismo de consumo, pelas forças da globalização econômica e cultural. Indico sumariamente este exemplo apenas com a intenção de sugerir a complexidade das questões concernentes a este artigo: o conceito de cultura, o de identidade cultural, o de globalização.

Se passamos à consideração do outro conceito – o de identidade cultural, já estudado no artigo referente ao modernismo, ao regionalismo e à identidade cultural – esbarramos no mesmo tipo de dificuldade. Falamos correntemente de identidade na mídia e na propaganda oficial como se estivéssemos falando de um conceito claro, uniforme e de fácil compreensão. Se no entanto começamos a analisar alguns fatos relacionados ao conceito, logo nos deparamos com grandes dificuldades. Se nossa cultura é evidentemente marcada por sua grande diversidade de valores e práticas, como determinar uma identidade uniforme, ou pelo menos objetivamente apreensível? Diante de dificuldades dessa ordem, volto a afirmar minha convicção de que esses conceitos são construções ideais, isto é, não correspondem a nenhuma realidade objetiva, a nenhuma coisa que possamos precisamente determinar no âmbito da realidade observada.

É claro que podemos indicar com segurança alguns traços gerais da nossa cultura – da pernambucana ou mais amplamente da brasileira – que são compartilhados por todos ou pelo menos pela maioria. É o caso, por exemplo, da língua. Este é um traço cultural fundamental que todos compartilhamos, isto é, todos falamos a língua portuguesa. Mas mesmo esta é extremamente diferenciada nas suas formas de expressão que se manifestam no uso que dela fazemos. Quero dizer, a língua que identifica todos os brasileiros varia de acordo com a classe social, a região, padrões de educação etc. Logo, até esse valor compartilhado por todos os brasileiros está sujeito a variações do tipo que acabo de indicar. Se considerarmos o caso da religião, as variações e até mesmo as divergências e conflitos de crença e valor são ainda maiores. Bastaria pensarmos numa questão polêmica como a do aborto para observarmos a grande variedade de pontos de vista de diferentes tipos de brasileiros. Poderia acrescentar muitos outros exemplos, uma infinidade deles, para sugerir o quanto é complexa essa noção de identidade cultural, o quanto ela supõe tanto valores afins e compartilhados quanto valores conflitantes e inconciliáveis. O que podemos em suma observar é que felizmente prevalece na organização da sociedade uma situação de consenso sem a qual a sociedade não se sustentaria, isto é, nossos modos correntes de convívio e interação não se sustentariam.

Restaria por fim tecer algumas considerações gerais sobre a globalização. Para começar, a própria periodização do conceito é muito discutível. Há estudiosos que datam o processo de globalização a partir dos grandes descobrimentos, em particular do descobrimento da América. Este fato histórico representou, entre outras coisas, a expansão do capitalismo europeu para as Américas, assim como para outras partes do mundo. No que nos interessa, transportou para o mundo onde vivemos o capitalismo, a religião, a ciência e a técnica então desenvolvidas pelos portugueses. Mais do que isso, trouxeram os conquistadores da América e do Brasil todo um complexo de expressões culturais de procedência europeia que se chocaram mas também se mesclaram com valores culturais nativos produzindo a partir daí uma cultura nova. Advirto o leitor para o fato de que já considerei essa questão nas suas linhas gerais no artigo relativo à cultura brasileira e suas matrizes. Outros estudiosos, no entanto, datam o processo de globalização a partir do século 18, tendo como marcos o Iluminismo, a Revolução Industrial, originária da Inglaterra, e a Revolução Francesa. De fato, são marcos históricos fundamentais para a fundação do mundo moderno, em particular do que hoje correntemente designamos como globalização. Não vou explorar essa questão, até porque não tenho a competência do historiador e do estudioso da história econômica e social para melhor esclarecer os problemas que ela envolve. O que objetivo ressaltar é apenas a complexidade do conceito de globalização, que já se manifesta na sua periodização.

O fato talvez mais destacável, quando consideramos o problema da globalização, consiste na sua realidade objetiva. Quero dizer, noutras palavras, que ela é um fato. Em graus variáveis, a globalização está presente em todo o mundo. Está presente no Recife, assim como em Pesqueira, Londrina, Ouro Preto, nas praias distantes dos grandes centros urbanos, nas cidades e vilas remotas dos sertões e agrestes, na China, no continente africano... Está presente nos polos mais avançados do capitalismo paulista, assim como na floresta amazônica. O que varia é o grau de manifestação dessas forças globalizadoras. A ciência e a técnica, ou a chamada civilização técnica, e a revolução comunicacional que liga em tempo real o mundo inteiro são provavelmente as expressões mais fortes disso que designamos como globalização. Este, sabemos, é um fato histórico sem precedente. Como tal, ele mudou de forma profunda a realidade social e nossas formas de relacionamento. A simples existência de um curso de letras à distância, como este que me associa a alunos que nunca encontrei nem provavelmente encontrarei, constitui mais uma evidência do que acabo de afirmar.

Durante milênios os seres humanos se comunicaram diretamente, tendo a proximidade física ou espacial como fundamento da interação social. Depois das invenções tecnológicas que hoje viabilizam os contatos à distância, ou as relações virtuais, houve uma transformação radical nos nossos modos de relação humana. É provável que hoje a maioria de nós, habitantes do mundo urbano familiarizados com a televisão e a internet, mantenha contatos antes de tudo virtuais. Essa nova realidade provocou mudanças culturais e produziu novas formas de interação social que não posso infelizmente considerar de forma mais detida numa explanação geral desse desconcertante mundo novo. Além do alcance confessadamente modesto deste artigo, não disponho de conhecimentos para explorar a fundo as questões culturais implicadas nesse processo que chamamos de globalização. Por isso quase que me limitei a assinalar sua realidade objetiva, além de ressaltar sua complexidade, isto é, a própria complexidade do conceito. Reiterando o que afirmei no início, e agora concluindo, meu propósito principal foi acentuar a complexidade dos conceitos relativos a este texto. Foi ainda explicitar problemas, torná-los mais evidentes com a intenção de induzir o leitor a refletir melhor sobre a complexidade aqui indicada. Portanto, este texto é antes um texto relativo à explicitação de problemas e reflexões do que um texto de respostas e soluções fáceis.

Recife, junho de 2011.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Liberdade e identidade



Meus sentimentos de estrangeiro tendem a acentuar-se durante o carnaval. Sendo uma das mais profundas e extensivas expressões da cultura brasileira, portanto um dos seus momentos de suprema integração social, não é de estranhar que estados subjetivos dessa natureza se agravem imprimindo transparência à linha fronteiriça entre o eu e o outro coletivo, entre minha brasilidade gauche, sempre distanciada e dissonante, e o espírito gregário e ruidoso do povo brasileiro.

Isso se repete, em tom às vezes ainda mais exacerbado, durante a Copa do Mundo. Este, aliás, será um ano – junho e julho, mais exatamente – que me submeterá a mais uma dessas provas de brasilidade a contrapelo, de celebração futebolística contrafeita, já que sempre vivida com reserva, quando não com franca resistência à integração dissoluta no corpo da massa infranqueável ao exercício da individualidade e da alteridade.

Meu estranhamento desdobra-se ainda nas festas de fim de ano, além dos festejos do meio do ano, como é o caso das festas juninas que já tive a esperança de ver superadas pela dinâmica urbana do país. A mídia e a indústria da publicidade, entretanto, operaram recentemente no sentido de ativá-las integrando-as ao circuito do consumo e deslocando-as dos arraiais e da geografia rural para os shopping centers; para o cerne, portanto, do espaço onde se desenvolve a cultura urbana. Fenômenos dessa natureza sugerem a complexidade da dinâmica sociocultural do capitalismo em países do tipo do Brasil.

Será necessariamente negativo ou indesejável o estado de estranhamento dentro do meu próprio país? Minha amiga Vivian Schelling, culturalmente dividida numa linha de intersecção simbólica que compreende Alemanha, Espanha, Inglaterra e Brasil, muitas vezes se queixou nas nossas conversas londrinas da sua personalidade culturalmente dividida. Talvez por isso tanto se voltasse para o seu curto passado brasileiro, vivido entre o Rio e São Paulo, tingindo-o com cores idealizadoras.

Será assim indesejável ou negativo esse processo de interna divisão cultural? Se todos tendessem a comportar-se como Vivian, diria que o mundo contemporâneo, pelo menos o ocidental, estaria saturado da infelicidade gerada pela divisão cultural das personalidades. Dado isso como um fato, seria igualmente compreensível a representação regressiva e idealizadora do passado pré-moderno. Foscamente dividido por essas fronteiras que demarcam a linha da modernidade e a da pré-modernidade, o Brasil se prestaria a acomodar na sua geografia cultural o olhar nostálgico do pós-modernista contrafeito.

Recuando entretanto para a modesta e palpável dimensão da minha subjetividade, não me vejo como um infeliz ou carente de identidade socialmente integrada. Sem pretender subestimar o fardo que é viver regido por valores que não alcançam o estatuto de valor dominante na minha cultura de origem, sempre discriminei esse peso negativo do positivo. Tanto quanto aquele, este se constitui na expressão da minha personalidade como consequência muitas vezes consciente e até previsível dos conflitos implícita ou explicitamente travados no cerne da minha subjetividade que compreende valores coletivos, alguns imperativos, mas também valores individualmente selecionados.

É nessa linha de tensão em que se relacionam o eu-Fernando e o outro-coletivo que se define a minha subjetividade. Antes de concebê-la como mera expressão individual e reflexa da sociedade, aprendi que é possível investir-me do poder e da liberdade de traçar uma linha de diferença e individualidade diante dos mecanismos sociais tendentes a produzir o conformismo e a indiferenciação. Dependo evidentemente da sociedade em que vivo para me constituir enquanto entidade autônoma e individualizada sem que entretanto isso de modo algum pressuponha o consentimento ou dócil aderência aos valores dominantes.

Se um homem não é capaz de demarcar sua diferença contra o outro coletivo, não pode legitimamente falar de si próprio como um ser livre. É por isso que um dos problemas mais inquietantes da cultura contemporânea, regida pelas agências geradoras dos valores difundidos em alta e sistemática escala pela mídia, é a ilusão da autonomia e da liberdade individual. Digo ilusão porque a noção de liberdade vendida pela mídia é objetivamente uma forma de conformismo e escravização aos ditames do mercado. Seja você mesmo: beba coca-cola. Esta frase, mote publicitário do produto que anuncia, sintetiza à perfeição o que intento traduzir neste parágrafo.

Essa cultura da mídia, fundada no princípio da permissividade, da completa dessacralização dos valores coletivos, exerce a forma mais insidiosa de dominação, já que é abstrata e assim nunca se materializa num indivíduo ou instância concreta. Costumo ainda hoje lembrar um episódio que tipifica este fenômeno. Quando ensinava sociologia no curso de arquitetura da UFPE costumava selecionar alguns filmes para debatê-los com os alunos. Vimos, certa vez, Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society). Um dos alunos, aliás dos mais inteligentes da turma, observou que a diferença essencial entre a escola tradicional retratada no filme e a contemporânea consistia no fato de que naquela os alunos não eram livres, enquanto o eram nesta.

Ora, o que o episódio ilustra é a crença espontânea na liberdade. Dissolvendo o princípio necessário da autoridade no seio da permissividade mercadológica, a mídia despersonaliza a liberdade dissociando-a de qualquer forma concreta de autoridade. Lembrei ao meu aluno que uma das características positivas da sociedade tradicional residia no fato de a autoridade se encarnar na figura concreta do pai, da mãe, do professor, etc. Na medida em que era visível e concreta, era por conseguinte mais fácil identificá-la e opor-lhe resistência, sobretudo nas circunstâncias em que deixava de ser autoridade para converter-se em dominação autoritária.

O próprio processo de conquista da identidade individual, um fato imperativo na vida de qualquer pessoa formada nos quadros da cultura ocidental, me parece que resultava menos problemático no âmbito de uma cultura em que a autoridade estava concretamente materializada na ação de alguns agentes sociais básicos. Na medida porém em que a autoridade tende a se tornar abstrata dissolvendo-se na ideologia da permissividade, que nunca se pronuncia no imperativo nem é veiculada por agentes identificáveis com a autoridade indesejada e hostilizável, a sensação de desorientação e impotência, sobretudo do jovem, tende a acentuar-se. Falando de modo interrogativamente concreto: contra quem conquistarei minha liberdade? A quem opor minha resistência e meu desejo de afirmação individual, minha sede de liberdade, em suma? Como reivindicar minha liberdade numa cultura onde pai e mãe não apenas estão esvaziados de autoridade, mas se tornaram presas dóceis, meros financiadores da liberdade mercadológica?

Ser livre hoje talvez signifique a recusa de ir ao shopping center comportando-se como o avesso da máquina dócil imantada à engrenagem do guichê e do cartão de crédito. Ser livre hoje talvez signifique dizer não ao carnaval, ou antes brincá-lo sem subordinar-se aos invisíveis mecanismos de pressão que nos reduzem a um número estatístico ou a uma cota negociada no mercado de ações, ou ainda a um flash sonhado na telinha da rede Globo.Ser livre talvez signifique ser ninguém ou nada no caldeirão antropofágico do capitalismo de consumo, variante tropical, Pernambuco, Brasil.

Diário - Recife, 22 de Fevereiro de 1998.

sábado, 2 de julho de 2011

Macunaíma


Mário de Andrade publicou Macunaíma em 1928, ano fundamental na história do modernismo. Além desta obra, consagrada como a obra-prima do líder do movimento, destacam-se no mesmo ano Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e a antropofagia, vertente radical e anárquica do modernismo. A antropofagia está ainda associada à Revista de Antropofagia e ao Manifesto Antropófago, de autoria de Oswald de Andrade, que foi sem dúvida o modernista mais combativo e radical durante esse período de grandes inquietações e mudanças na cultura brasileira.

Mário de Andrade descobriu Macunaíma lendo o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, estudioso das culturas indígenas da Amazônia. Na época em que o leu, Mário já andava mergulhado na busca da cultura brasileira e da nossa identidade cultural. Ao se deparar com o herói mitológico Macunaíma, logo foi tomado pela intuição de que ele condensava características marcantes do brasileiro. O livro foi escrito de um jato, durante uma semana de redação febril em dezembro de 1926. Em seguida, conforme seu método de composição, Mário reescreveu e cortou muita coisa. Além disso, aprofundou suas pesquisas e estudos relativos à cultura brasileira, muito enriquecidos pelas duas viagens que fez ao Norte e Nordeste do Brasil. Essas viagens,que designou como viagens etnográficas, estão documentadas em várias de suas obras e arquivos mais tarde explorados por alguns dos seus discípulos, notadamente Oneyda Alvarenga. O livro que melhor documenta as viagens é O Turista Aprendiz.

Embora escrita inicialmente em 1926, como observei acima, Macunaíma somente foi publicada em 1928. Lida ainda hoje como símbolo do brasileiro, a obra é bem mais complexa e portanto encerra muitos outros significados. O próprio Mário contribuiu para validar essa leitura estreitamente nacionalista. Ao mesmo tempo, como era típico de sua personalidade múltipla e contraditória, cuidou também de desmentir essa leitura nacionalista ao ressaltar que o livro simbolizava também o latino-americano, não apenas o brasileiro. Indo além, afirmou depois que Macunaíma era um símbolo do homem moderno. Seguindo essa orientação crítica, Gilda de Mello e Souza concede prioridade a uma leitura universalista (leia-se antes de tudo europeia) num ensaio que é provavelmente a melhor interpretação do livro: O tupi e o alaúde.

Macunaíma nasce no fundo da mata virgem (isto é, numa tribo amazônica) com características físicas que já denotam o tema da miscigenação tão caro aos nossos nacionalistas. Ele é índio e ao mesmo tempo negro retinto. Mais tarde torna-se branco graças a um dos muitos expedientes de magia que impregnam o livro. Utilizando fontes da mitologia indígena, além de uma enormidade de documentos que traduzem a riqueza e variedade do nosso folclore e da nossa cultura popular, Mário de Andrade se vale da magia como um dos princípios de composição da trama. Por isso a narrativa foge aos padrões convencionais da lógica, já que é repleta de deslocamentos tanto geográficos como temporais. Mário valeu-se muito desse recurso no livro para realizar um dos ideais da sua concepção da cultura brasileira. O recurso ao qual me refiro é o da desregionalização da narrativa. Noutras palavras, funde intencionalmente traços culturais das diferentes regiões brasileiras com o propósito de integração numa unidade nacional.

A leitura nacionalista, reforçada em argumento do próprio Mário, chama nossa atenção para o subtítulo do livro: o herói sem nenhum caráter. Como o próprio Mário explicou, o termo caráter não deve ser lido no seu sentido restritamente moral, que é o mais corrente. Macunaíma não tem caráter, segundo Mário, porque é privado de características culturais e psicológicas definidas ou constantes. É por isso que a ação do livro tanto ressalta suas contradições ou ausência de lógica e coerência psicológica. Exemplificando, Macunaíma é valente e covarde, mentiroso e sincero, preguiçoso, mas movido por uma vitalidade fascinante, um desejo irrefreável de vida e prazer. O que importa antes de tudo reter, no caso, é a intenção com que Mário sintetiza nesses traços da personagem o que lhe parecia simbólico da nossa carência de uma identidade cultural consistente e estável.

A preguiça constitui outro traço saliente da obra. Macunaíma está sempre repisando esta frase: “ai, que preguiça”, como um refrão que atravessa toda a narrativa. Esse traço relativo à preguiça foi muito repetido através da nossa história como característico do brasileiro. Para ser mais preciso, leia-se o brasileiro escravo, o negro que compreensivelmente fugia ao trabalho forçado sempre que possível. É compreensível que numa economia baseada no trabalho escravo o trabalhador use de todos os meios e subterfúgios para escapar de um trabalho, ou pelo menos aliviá-lo, que é vivido como castigo e punição. O próprio Mário, aliás, desmente esse mito. Embora tenha ironicamente celebrado a preguiça (o primeiro artigo que publicou tinha como título: “A divina preguiça”), trabalhou a vida inteira com um sentido de disciplina, método e tenacidade admiráveis.

Pontuando os extremos da nossa formação sociocultural, Macunaíma vai do fundo da mata virgem para a cidade de São Paulo, centro do capitalismo brasileiro já fervilhante de imigrantes, fábricas, aceleração do crescimento urbano e muitas outras características da nossa cultura moderna. O livro de Mário é extraordinário nos efeitos estéticos e ideológicos que extrai desse antagonismo observável entre o primitivo arrancado do fundo da cultura indígena para o polo mais avançado do capitalismo brasileiro. O espanto e estranhamento do primitivo lançado no bojo da civilização técnica constitui um dos momentos altos do livro.

Outro traço marcante da obra é a sensualidade. A intenção de Mário, ao descrever em páginas de forte e apaixonante erotismo a sensualidade do herói Macunaíma, foi ressaltar a sensualidade marcante da nossa cultura. Ela se espelha na parte inicial da narrativa, quando Macunaíma vive com sua tribo na floresta amazônica. A parte culminante desse tema está contida no capítulo consagrado ao amor de Macunaíma e Ci, Mãe do Mato, índia guerreira com quem Macunaíma luta e, ajudado pelos irmãos, Jiguê e Maanape, domina e possui. Ela se apaixona por ele, ele por ela, e então Ci se torna o grande amor de Macunaíma, “o amor primeiro que não tem companheiro”. Ela dá de presente ao amado a pedra mágica muiraquitã, além de um filho. O filho morre, ela também. Não bastasse tanto, o herói inconsolável perde a pedra mágica, que acabou nas mãos do Gigante Piaimã, seu antagonista. Macunaíma acabou indo para São Paulo, acompanhado pelos irmãos, ao descobrir que o Gigante se apropriara da pedra mágica e vivia em São Paulo.

Deixando o enredo de lado, chamaria a atenção do leitor para a linguagem de Macunaíma, que deu margem a muita polêmica. A crítica negativa atacou com energia o artificialismo do estilo adotado por Mário na composição da obra. Dentro desse grupo destacam-se Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, diria todo o grupo de ficcionistas que representam a literatura hegemônica na década de 1930. Mesmo leitores favoráveis à obra – como é o caso de Manuel Bandeira, grande amigo de Mário e seu principal correspondente - criticaram os experimentalismos de linguagem e estilo adotados pelo autor, que de modo algum correspondem a uma suposta fala ou língua brasileira, causa que Mário abraçou com paixão e espírito militante, como era do seu feitio. Essa característica da obra pode de fato desencorajar o leitor mais convencional ou preguiçoso.

Como toda obra de caráter experimental, típica daquele momento do modernismo brasileiro, assim como dos movimentos de vanguarda que pipocaram na literatura do início do século 20, Macunaíma exige bastante do leitor. Exige tanto devido a seus traços de linguagem e estilo, como já acentuei, quanto à própria matéria recriada ficcionalmente por Mário de Andrade. Refiro-me mais claramente às fontes utilizadas pelo autor. Já mencionei a obra de Koch-Grünberg, na qual Mário descobriu Macunaíma e imensa documentação relativa às culturas tribais da Amazônia. A esta fonte somam-se muitas outras eruditamente anotadas e comentadas por M. Cavalcanti Proença num livro essencial para quem queira penetrar as entrelinhas da obra, sua impressionante riqueza de elementos culturais expressos em mitos, lendas, ditos populares, frases feitas, regionalismos e farta documentação etnográfica. O livro de M. Cavalcanti Proença é Roteiro de Macunaíma. Além disso, Mário também aproveitou muito da obra dos cronistas e historiadores coloniais do Brasil. Como pouco infelizmente conhecemos desse legado cultural, não é de surpreender o estranhamento que um livro como Macunaíma causa de imediato ao leitor, mesmo o leitor culto treinado na leitura da narrativa literária convencional.

O fato de ser ao mesmo tempo uma obra-prima indiscutível e um romance experimental (na verdade, Mário optou por classificar sua narrativa como rapsódia, não romance), provocou o surgimento de uma bibliografia crítica considerável. O leitor pode consultar essa bibliografia na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi. Também a edição crítica de Macunaíma, coordenada por Telê Porto Ancora Lopez, contém rica documentação crítica. Mencionaria ainda a adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, estrelando Grande Otelo e Paulo José interpretando respectivamente o Macunaíma negro e o Macunaíma branco.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O Povo Brasileiro



Darcy Ribeiro é um dos últimos grandes intérpretes da cultura Brasileira. Depois de sua morte, em 1997, restou apenas Roberto da Matta, curiosamente omitido da mais recente coletânea de textos consagrada aos intérpretes do Brasil. Refiro-me à obra Um enigma chamado Brasil, organizada por André Botelho e Lillia Schwarcz. A omissão de da Matta é ainda mais estranha se consideramos que nela figuram nomes bem menos conhecidos e influentes, além de outros pouco característicos dessa tradição que tenho contemplado numa série de artigos sobre a cultura brasileira.

A obra de Darcy Ribeiro é marcada de ponta a ponta pelo espírito de participação apaixonada. Intelectual declaradamente militante, Darcy escreveu sempre movido pelo desejo de ação. Sua luta em defesa do povo brasileiro, notadamente as camadas mais impiedosamente oprimidas, imprimiu à sua biografia tons de grandes feitos românticos, uma vontade de mudança revolucionária que lhe custou exílio político e muita instabilidade, incerteza e derrota. Sendo no entanto um otimista incorrigível, manteve-se fiel à sua convicção de que desse Brasil tão surpreendente, de tão complicada organização e explicação teórica, brotaria uma nova Roma, como dizia, lavada em sangue negro e índio. Esses rompantes nacionalistas em meio a uma obra de análise de natureza científica levam o autor a extremos confinantes com uma visão cultural ufanista. Isso é patente no tom com que louva nossa miscigenação e sensualidade.

Darcy Ribeiro foi militante do Partido Comunista nos anos 1940. Nessa mesma década especializou-se em etnologia na Escola Livre de Sociologia e Política, de São Paulo, onde foi colega de Florestan Fernandes, que se tornou o grande nome da escola de sociologia paulista. Inspirado pelas lições de Herbert Baldus, um dos professores estrangeiros contratados pela Escola Livre de Sociologia e Política, dedicou-se apaixonadamente ao estudo das culturas indígenas e viveu durante cerca de dez anos entre os índios. Isso explica o lugar de relevo que nossa matriz indígena ocupa na sua obra e em particular em O Povo Brasileiro.

Darcy Ribeiro também se destacou por sua luta tenaz em defesa da educação. Discípulo e amigo fiel de Anísio Teixeira, um dos líderes do Movimento da Escola Nova, lutou até o fim pela institucionalização da escola pública de qualidade segundo o modelo das melhores políticas de educação pública. Além de ser um dos criadores da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Norte Fluminense, atuou de forma combativa na esfera universitária e política em vários países latino-americanos durante seus anos de exílio político. O exílio lhe foi imposto pelos militares devido ao papel chave que desempenhou no governo deposto de João Goulart – era Ministro da Casa Civil – além de sua tentativa de organizar uma resistência armada ao golpe militar de 1964. Os militares permitiram que retornasse ao Brasil antes da anistia política por estar sofrendo de um câncer no pulmão que, esperava-se, logo o mataria. O fato, porém, é que o tenaz e incorrigível otimista sobreviveu até 1997. Estava internado na UTI quando fugiu para refugiar-se na casa que tinha à beira de uma praia. Lá conseguiu dar forma definitiva a seu livro O Povo Brasileiro, obsessão da sua vida. O livro foi publicado em 1995.

Esta obra, que perseguiu a imaginação criadora de Darcy Ribeiro durante mais de 30 anos, como ele mesmo frisa no prefácio, é uma ambiciosa tentativa de aplicar à formação sociocultural do Brasil a teoria geral que ele elaborou durante muito tempo. Dela resultaram obras como O Processo Civilizatório, sua teoria mais abrangente, As Américas e a Civilização, restrita à antropologia das Américas, Os Brasileiros: teoria do Brasil, e por fim O Povo Brasileiro. Retrocedendo às nossas origens, como de resto procederam todos os explicadores do Brasil, Darcy Ribeiro parte das três matrizes formadoras da nossa cultura que, através de complexos processos de encontro, conflito e caldeamento compuseram as linhas fundamentais da nossa formação. Darcy Ribeiro louva o caráter híbrido da nossa cultura – não raro em tom que beira o ufanismo, como acima sublinhei -, sua sensualidade e alegria de viver, pontos nos quais muito se aproxima de Gilberto Freyre, mas também ressalta com igual intensidade os processos de conflito e espoliação que marcam o conjunto da nossa formação social.

Começando pela cultura indígena, o autor deixa evidentes os vínculos profundos que o prendem a essa matriz da nossa formação. Ela foi decisiva, entre outras coisas, por ser portadora de uma rica experiência antropológica de enraizamento no trópico, na imensidão das matas e florestas, onde os indígenas desenvolveram formas de cultura ajustadas ao ambiente. O colonizador português soube aliás astutamente assimilar no convívio com o indígena os meios técnicos e culturais necessários para adaptar-se como europeu às condições impostas pelo ambiente novo. Além de domesticar muitas plantas selvagens que transformou em meios fundamentais de nutrição, como o milho e a mandioca, o índio desenvolveu no trópico uma cultura própria e autônoma. Somente a visão etnocêntrica do colonizador poderia negar a esses grupos humanos uma riqueza de vida espiritual que é profundamente diferente da europeia, ou civilizada em geral, mas igualmente significativa do ponto de vista antropológico.

O contato das culturas indígenas com o colonizador europeu resultou desastroso para sua sobrevivência. Além de lhes impor formas brutais de deculturação, termo que copio do livro de Darcy Ribeiro, de repressão ou supressão da sua cultura, como foi patente no caso da catequização imposta pelos jesuítas, essas culturas foram submetidas a um verdadeiro etnocídio provocado por doenças trazidas pelo europeu, estranhas ao meio tropical, que dizimaram muitas tribos. Havia naturalmente um conflito insolúvel entre essas culturas, bem próximas da natureza e regidas por valores culturais incompatíveis com os do colonizador, e o projeto mercantil do português, que buscava no trópico apenas a riqueza fácil, as pedras preciosas, a natureza traduzível em lucro e acumulação. Foi também por essa razão que o português tentou sem sucesso escravizar o índio. Este importava para aquele, antes de tudo, como fonte de exploração econômica. Diante da impossibilidade de ajustá-lo à máquina de produção mercantil, o colonizador adotou por fim a política de escravização do negro.

O fim do parágrafo acima explica de modo sumário como a terceira matriz da nossa formação cultural junta-se às duas primeiras. Darcy Ribeiro descreve em dois longos parágrafos notáveis (ver pp. 119-120), de intensidade descritiva comovente e chocante, o percurso de vida do escravo africano desde o momento em que era aprisionado e vendido ou trocado no seu continente até o seu fim como trabalhador escravizado no trópico. Segundo o autor, o tempo de vida médio de um escravo submetido ao trabalho pesado – portanto distinto do escravo doméstico preferencialmente estudado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala – ia de sete a dez anos. Trabalhando o ano inteiro, sem pausa sequer aos domingos, dia em que era liberado para cultivar a rocinha de onde extrairia seu sustento. Melhor que pobremente parafrasear os parágrafos citados é citar o segundo, que vai da página 119 à 120:
“Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos – maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela como um graveto oleoso”.
Parafraseando Brás Cubas, de Machado de Assis, foi sobre esse solo tenebroso que a elite brasileira se formou, assim como foi sob ele, ou calcado pelas botas da escravidão, que se moldou e torturou não apenas um povo, o brasileiro, mas uma rede de instituições, técnicas de governo e dominação, de regime de trabalho espoliador, de práticas de vida e relação social que infelizmente não desapareceram de todo da nossa realidade presente.

De onde afinal vem esse povo tão sofridamente descrito no livro de Darcy Ribeiro, de onde procede sua identidade? O autor propõe uma teoria baseada na condição de “ninguendade”, com perdão do neologismo esquisito, do fruto da miscigenação processada inicialmente entre o colonizador português e a índia, mais tarde entre aquele e a escrava negra. Darcy afirma que os filhos brotados desses acasalamentos, origem da miscigenação generalizada que passou a caracterizar a etnia brasileira, eram ninguém, já que nem eram brancos, nem índios nem negros. Eram produto de uma mistura rejeitada por qualquer das etnias individuais das quais eram formados. Foi portanto dessa condição de zé ninguém, de “ninguendade” que se forjou a nossa identidade cultural, o brasileiro que já não era individualmente nenhuma das etnias formadoras, mas produto da sua miscigenação, isto é, um ser étnico novo.

Tanto quanto Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro ressalta o fato de que o Brasil se formou economicamente como um apêndice da Europa, como colônia produtora de bens primários subordinada à demanda do mercado europeu. Esse dado primário está na raiz da violência exercida pela classe dominante ao longo da nossa história. Está também inscrito na condição de proletariado externo vivida pelo povo brasileiro. Darcy Ribeiro usa repetidas vezes expressões cruas, mas infelizmente verdadeiras, para denunciar os processos brutais que ao longo da nossa formação histórica oprimiram nosso povo. Quando usa expressões como moinhos de gastar gente, ou gente usada como carvão, denuncia a opressão imposta pela classe dominante ao povo, particularmente o povo escravizado, o povo castigado por um regime de trabalho incompatível com o ideário humanista e cristão nunca de fato estendido à maioria da população.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural


Já observei de passagem, noutros textos aqui postados relativos ao modernismo e ao regionalismo, a importância que a questão da identidade cultural ocupa nas obras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, assim como na de praticamente todos filiados a esses dois movimentos. Apesar do tempo que nos separa da irrupção desses movimentos na cultura brasileira, a questão da identidade se mantém ainda muito viva entre nós. Um fato que bem ilustra a evidência desse fenômeno é a instituição de uma secretaria de governo exclusivamente dedicada à administração política da questão, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. De imediato, isso parece contradizer a crença de que somos dotados de uma cultura forte e integrada. Afinal, se somos assim, por que precisaríamos de uma secretaria empenhada em defender e promover nossa identidade cultural?

Até onde sei, essa secretaria é uma instituição singularmente brasileira. Ela parece denotar que somos ainda um povo inseguro acerca da sua identidade cultural. Outra evidência dessa insegurança é demonstrável na frequência com que esse assunto vem a público, não raro em tom polêmico. Um dos que mais enfática e polemicamente se pronunciam sobre ele é o escritor Ariano Suassuna, que tem sempre se conduzido na esfera pública como um defensor intransigente da nossa identidade e do que no seu entender seria a autêntica cultura brasileira, baseada nas tradições enraizadas no catolicismo ibérico conservado pela história do sertanejo nordestino. Com seu dom de criar frases polêmicas, ele há pouco afirmou numa entrevista que não troca seu oxente pelo okei de ninguém.

Mas voltemos no tempo para melhor caracterizar o problema da identidade cultural brasileira. Desde o século XIX as ciências sociais aqui produzidas imprimiram relevo ao problema da identidade cultural. Também a literatura, conviria acrescentar. Basta que se pense na ênfase que nossos românticos conferiram à questão, em particular Gonçalves Dias e José de Alencar. Como antes observei (ver os textos Modernismo e Cultura, Modernismo e Regionalismo), os modernistas e regionalistas retomam a questão nas décadas de 1920 e 1930. Mas ela esteve sempre presente nos estudos e nas reflexões de nossos principais escritores. Menciono alguns com a intenção de sugerir a persistência do problema da identidade cultural no desenvolvimento da nossa cultura: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim. É curioso observar que nosso escritor mais universal e importante, Machado de Assis, passou ao largo das obsessões e polêmicas e teorias relativas ao nacionalismo e à identidade cultural.
Completando neste parágrafo a síntese do percurso histórico acima esboçado, a questão da nossa identidade cultural prolonga-se muito além das décadas de 1920 e 1930, que assinalam o auge dos movimentos modernista e regionalista. Ela é retomada durante os anos 1950, marcados pela euforia do nacionalismo desenvolvimentista orquestrado pelo governo Juscelino Kubitschek e adentra pelos anos 1960. Mesmo depois do golpe militar de 1964 e da associação flagrante do regime militar com o capitalismo estrangeiro, que promoveu a modernização autoritária atrelada à globalização econômica e cultural acelerada a partir da década de 1970, a angústia da identidade esteve no centro da ideologia nacional popular característica dos movimentos políticos e culturais, perdeu força durante as décadas de 1970 e 1980 e hoje aparenta estar diluída no clima da globalização dominante no país.

A identidade cultural é no geral considerada como um equivalente da identidade nacional. Não é à toa, por exemplo, que os dois termos percorrem o conjunto da tradição acima indicada, em particular a história do modernismo e do regionalismo, que tão obsessivamente se prenderam a uma e à outra. Macunaíma, de Mário de Andrade, é uma tentativa de responder ao problema que tanto o angustiava acerca da identidade coletiva, que na sua imaginação se confundia com sua própria identidade. Um verso famoso contido num dos seus poemas de Paulicéia Desvairada, “Sou um tupi tangendo um alaúde”, traduz sua identidade dividida entre a herança indígena e a europeia.
Também Gilberto Freyre declarou que a motivação decisiva para que ele escrevesse Casa-Grande & Senzala foi a necessidade de descobrir quem ele era como indivíduo e como brasileiro, isto é, a identidade individual era indissociável da nacional. Noutras palavras, descobrir a cultura brasileira e sua identidade, ambição maior desta obra fundamental, era também descobrir a própria identidade do autor.

O modernismo e o regionalismo, através da obra dos seus representantes maiores, desempenharam papel decisivo no sentido de melhor situar o brasileiro dentro da sua própria cultura, no sentido de integrar sua identidade à cultura plural e real do país. Antes deles, nossas elites ilusoriamente se representavam como se fossem europeias, antes de tudo francesas. Era nesse sentido que Sérgio Buarque de Holanda afirmava que somos desterrados em nossa própria terra. O brasileiro da elite via a si próprio como herdeiro da cultura europeia e assim lutava para suprimir de sua identidade seus traços indeléveis de procedência indígena e africana.

As políticas de imigração adotadas por São Paulo a partir de fins do século XIX, a teoria do branqueamento da população brasileira e a política de reforma urbana do Rio de Janeiro, inspirada no modelo do barão de Haussemann para a reforma de Paris, são evidências desse desejo de ser europeu nos trópicos. O livro de Jeffrey Needell, Belle Époque Tropical, documenta e analisa muito bem essa pretensão da elite brasileira, sua fantasia de ser europeia. Como viver essa ilusão sem reprimir ou marginalizar os fortes elementos diferenciadores da nossa cultura, precisamente aqueles que nos distinguem da Europa e resultam do nosso processo de miscigenação racial e cultural envolvendo o indígena, o português e o africano? Como indiquei noutro texto já acima citado (Modernismo e Cultura), a passagem do poeta suíço-francês Blaise Cendrars pelos círculos modernistas brasileiros ilustra muito bem essa questão.

Foi nesse sentido que os modernistas e regionalistas concorreram de forma decisiva para alterar de forma efetiva a representação da nossa identidade cultural ou a representação da cultura brasileira. Assim como Mário de Andrade converte nas páginas de Macunaíma valores culturais depreciados pela nossa elite em valores positivos, antes de tudo nossa miscigenação racial e cultural, Gilberto Freyre procede de forma semelhante ao compor num grande e poderoso ensaio o processo da nossa formação cultural. Através da apreciação positiva da nossa cultura mestiça, que desde suas origens integrou valores conflituosos ou antagônicos provenientes das diversas matrizes culturais que forjaram a cultura brasileira, ele pintou um quadro da cultura brasileira e do nosso povo tão admirável e compreensivo que levou o brasileiro a reconhecer no quadro sua própria imagem. Assim fazendo, Gilberto Freyre contribuiu de forma decisiva para reconciliar o brasileiro com sua própria cultura, com sua própria identidade.

Notem que até aqui não me arrisquei a propor um conceito de identidade cultural. O motivo dessa omissão é claro: não acredito que exista uma identidade cultural objetivamente dada, uma identidade que possamos reconhecer no universo objetivo das relações culturais. Penso que a identidade é uma construção ideal, um recorte seletivo feito pelos teóricos da identidade a partir da representação ideológica que propõem sobre o que seja a identidade cultural de um povo. Mário de Andrade afirma em certos contextos de sua obra (ver o Ensaio sobre a música brasileira) que ela já existe como realidade inconsciente expressa na criação popular – na música popular, por exemplo. Nesse sentido, o papel que caberia a um intelectual como ele seria organizar essa identidade inconsciente, dar-lhe forma estética e ideológica através da criação intelectual cuja função maior seria integrar a cultura popular à cultura da elite. Noutros contextos, porém, ele se contradiz. Isso ocorreu quando se empenhou numa verdadeira cruzada proselitista destinada a promover a valorização e o reconhecimento da cultura e da identidade brasileira. Isso é evidente na passagem que abaixo transcrevo de uma carta que escreveu para Carlos Drummond de Andrade em novembro de 1924:
“Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime.” (A lição do amigo, p. 5).
A citação acima contradiz claramente o que Mário afirma no Ensaio sobre a música brasileira e noutros pontos da sua obra. Se o Brasil tem já uma identidade detectável na inconsciência cultural do povo, nas formas espontâneas e tradicionais da sua cultura, por que então ele afirma para Drummond que o Brasil não tem ainda uma alma e por isso precisamos lutar para dar uma alma ao Brasil e por fim integrá-lo no concerto das grandes nações do mundo, como ele também afirmou? Do mesmo modo, se temos hoje uma cultura e uma identidade consolidadas que nos inspiram confiança e orgulho, por que então precisamos instituir uma secretaria da identidade cultural, um órgão governamental para trabalhar pela afirmação da nossa identidade e da nossa cultura?

O fato acima parece antes de tudo traduzir a persistência da nossa angústia de identidade. O historiador Evaldo Cabral de Melo observou com razão que esse problema da identidade, da necessidade de afirmação de uma cultura nacional, é um problema típico de países de passado colonial, como é o caso do Brasil, incapazes de realizar integralmente seu ingresso na modernidade. Seria também o caso de países como a Rússia, que ficaram na periferia da modernidade. Como Gilberto Freyre ressaltou, são fortes as afinidades culturais entre a Rússia do século XIX e o Brasil da época em que ele escreveu seus livros fundamentais sobre a nossa história cultural.

A observação de Evaldo Cabral de Melo parece-me abrir uma trilha fecunda para melhor compreendermos a persistência da questão relativa à identidade cultural do Brasil. No meu entender, ela não foi nem poderia ser resolvida pelos nossos teóricos da identidade, não importando a grandeza da obra que produziram visando interpretar e resolver nossos impasses culturais. De Sílvio Romero a Darcy Ribeiro, passando pelos modernistas, regionalistas, desenvolvimentistas, nacional-populares e nacionalistas em geral, dispomos de uma grande e admirável tradição de estudos e interpretações correntemente alinhada sob o rótulo do pensamento social brasileiro. Muitos desses estudos importam, além dos seus valores teórico-interpretativos, como indicação de medidas de ação prática para a modificação da nossa realidade sociocultural. Mas o nó da questão, segundo entendo, radica na necessidade da transformação estrutural da nossa sociedade. Quero dizer, enquanto mantivermos grande parte dos brasileiros, como é fato, à margem das conquistas da modernidade, será ilusório acreditar numa identidade que não esteja sempre sonhando ser o outro, sobretudo o outro simbolizado na cultura norte-americana. Trocando em miúdos a questão do ingresso do conjunto da população brasileira no horizonte da modernidade, que no Brasil é ainda muito parcial ou restrita, somente ingressaremos de fato na modernidade no dia em que o brasileiro em geral tiver acesso efetivo à democracia social e cultural. Isso quer dizer acesso à habitação, educação, saúde, justiça, segurança social e transporte público. Em suma, qualidade de vida substantiva, que não é bem comprável nas vitrines de shopping center, como nos enganam os publicitários cuja função principal é vender ao preço de qualquer mentira.

Visando acrescentar alguns indicadores objetivos para uma melhor compreensão da identidade cultural, concluiria acrescentando que o núcleo duro da identidade cultural, valho-me de expressão escrita por Teixeira Coelho no seu Dicionário crítico de política cultural, é composto pelos traços culturais mais fortes e constantes na história do nosso povo. Eles se manifestam nas tradições orais presentes na língua, nas tradições religiosas, nos mitos e narrativas populares, nas tradições artísticas. As tradições religiosas compreendem as formas de crenças, mitos e ritos coletivos. Caberia ainda acrescentar a essas manifestações sagradas as formas da cultura profana: carnaval, tradições folclóricas, os esportes, sobretudo o futebol, as festas e as manifestações artísticas.

É preciso, no entanto, também considerar que a cultura geral do Brasil compreende uma grande diversidade de expressões ligadas às diferentes regiões, classes sociais e múltiplos grupos formadores do conjunto da nossa nacionalidade. A isso seria ainda preciso acrescentar, na realidade do mundo globalizado em que vivemos, valores e comportamentos culturais compartilhados por múltiplas nacionalidades culturais. Esse fato cada vez mais poderoso no mundo em que vivemos – o fato relativo à cultura globalizada – complica a existência da identidade cultural baseada na noção de núcleo duro. Enquanto o núcleo duro pode ser compreendido como o conjunto de valores e práticas culturais comum à maioria do povo brasileiro, a dimensão relativa à cultura globalizada, típica da sociedade contemporânea, segmenta ou fraciona as características culturais de acordo com a variação dos grupos baseados nas diferenças de região, classe e vinculação à cultura globalizada que concorre visivelmente para mudar os padrões de identidade nacional.

Referências bibliográficas:
Lourenço Dantas Mota (org.). Introdução ao Brasil – Um banquete no trópico. Volumes I e II. São Paulo: Editora Senac, 1999 e 2001.
Mariza Veloso e Angélica Madeira. Leituras Brasileiras. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Paz e Terra,1999.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Valores Lusos na Cultura Brasileira


A Continuidade de Valores Portugueses na Cultura Literária Brasileira

O propósito deste texto é traçar as linhas gerais de uma série de exposições relativas à continuidade de valores culturais lusos, e amplamente ibéricos, na cultura literária brasileira. Embora o título acima proposto especifique a literatura como horizonte e limite dos argumentos a seguir esboçados, importaria desde já acentuar que a ela, a literatura, se incorpora a cultura compreendida na sua dimensão socioantropológica. Se tal propósito, aparentemente ambicioso, amplia acaso em demasia as proporções do que intento livremente expor, é no entanto indispensável para que se logre compreender satisfatoriamente os valores aqui discutidos e a real natureza dos dois movimentos culturais dominantes na primeira metade do século xx no Brasil: o Modernismo de extração paulista e o Regionalismo de Recife. Demarcados estes limites gerais, a eles acrescentarei, como apreciação conclusiva da nossa exploração panorâmica, uma atualização da matéria fundamental estendendo-a, noutras palavras, ao cenário sociocultural contemporâneo.

Começando pela relação observável entre o Modernismo e nossa herança portuguesa, talvez o estudioso apressado tendesse a anular de pronto qualquer associação relevante entre os dois termos propostos. Afinal, prevalece ainda hoje nos quadros da historiografia do Modernismo uma leitura orientada para a caracterização do movimento pautada pelo critério da renovação estética, pelo ânimo da mudança e atualização artística e cultural. Como bem sugere a síntese proposta por Oswald de Andrade, o fim visado pelos modernistas era acertar os ponteiros do relógio do Brasil com os da vanguarda européia. Dito de outro modo, a ambição dos modernistas era superar o peso da nossa herança portuguesa suprimindo o descompasso entre a modernidade européia e as condições de atraso sociocultural dominantes nos trópicos brasileiros.

Se pensamos no Modernismo da primeira hora, tocado pela euforia dos impulsos renovadores, tal caracterização é sem dúvida sustentável. As evidências disponíveis são fartas e solicitam um registro genérico passível de apoiar o argumento em questão. A consciência teórica do movimento, associada antes de tudo à obra e atuação intelectual de Mário de Andrade, enfatiza os fatores de renovação e ruptura. O periódico Klaxon, criado logo depois da Semana de Arte Moderna, ressoa de ponta a ponta a euforia vanguardista dos modernistas. Os temas que frequentam e pontuam nosso processo cultural – herança lusa, nacionalismo e identidade cultural, por exemplo – cedem o passo ao cinema como expressão da modernidade e da renovação expressiva das artes, à temática urbana marcada por traços típicos da vida moderna: o culto da civilização técnica, da velocidade, da indústria, da cultura do imigrante, da internacionalização das artes. É significativo que neste momento, assim como no decorrer da década de vinte, a questão da autonomia linguística seja a única matéria de debate e rejeição explícita da nossa herança literária portuguesa.


Supondo porém que o estudioso proceda a um exame mais detido do processo, modulando acentos e pontos de continuidade e mudança, logo fica claro que o desdobramento da dinâmica modernista é bem mais complexo. Se é verdade que seu momento inaugural obedece aos traços acima indicados, pouco mais tarde, em 1924, ocorre a inflexão nacionalista que desloca o movimento do cosmopolitismo inicial para a cena brasileira. Os sintomas dominantes de tal inflexão radicam na busca sistemática dos temas e particularidades da cultura brasileira, na teorização e pesquisa da identidade nacional, na retomada da tradição, do mundo provinciano e rural do Brasil. Retendo ainda o exemplo dos periódicos representativos, bastaria assinalar o sentido nacionalista da linha que vai de Klaxon a Terra Roxa e outras terras passando por Estética.
Mário de Andrade, a personalidade paradigmática de todo esse processo, empenha-se numa ação sistemática e continuada de pregação nacionalista da qual resultarão seus estudos sobre o barroco mineiro e a música brasileira, o folclore e a defesa de uma linguagem literária especificamente brasileira. Daí resultam obras de criação artística cuja expressão suprema é Macunaíma, publicado em 1928. Sob seu influxo, poetas como Drummond vão harmonizar renovação estilística com temas da província impregnados dos valores da tradição.

Saltando para a década seguinte, observamos que o conjunto da produção literária reitera e amadurece as tendências e expressões de nacionalismo cultural emergentes na década anterior. O nacionalismo, compreendido na moldura onde se desenham seus motivos correlatos: a reinvenção da tradição brasileira e a busca da identidade cultural, torna-se hegemônico em todos os sentidos e modos de expressão do país. João Luiz Lafetá sintetiza o conjunto desse processo muito bem quando afirma que na década de trinta o projeto ideológico do Modernismo se sobrepõe ao projeto estético prevalecente nos anos vinte.

É nesta década, sobretudo a partir de 1933, ano da publicação de Casa-Grande & Senzala, que o ideário e as realizações do Regionalismo de Recife alcançam amplitude nacional. Mais do que isso, definem a medida da hegemonia de um discurso literário nacional na medida em que escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos estabilizam e difundem uma forma de narrativa que se impõe aos próprios modernistas empenhados em fundar um modo renovado de narrativa ficcional no Brasil. Ora, o que a narrativa nordestina realiza, noutros termos, é a retomada dos temas da região e da tradição, para usar os termos que dão título a um livro polêmico de Gilberto Freyre publicado bem no início dos anos quarenta. Ao reunir em volume os ensaios que compõem esta obra, seu objetivo, francamente polêmico, foi não apenas proceder à apologia do nacionalismo ancorado na especificidade regional brasileira, mas também reivindicar para o Regionalismo de Recife o papel pioneiro de agente formulador e estabilizador da moderna cultura nacional do país.

À diferença do Modernismo, cujo processo de desenvolvimento foi acima grosseiramente esboçado, o Regionalismo se distingue pela coerência e espírito de continuidade que o vinculam aos valores de extração portuguesa. Desde quando Gilberto Freyre retorna ao Recife em 1923, depois de cinco anos dedicados a estudos realizados nos Estados Unidos, as expressões de regionalismo que logo se empenha em produzir e orientar obedecem a uma confessa e entusiasmada filiação lusa e genericamente ibérica. Embora isso explique a oposição que o divide das linhas de atuação estabelecidas pelo Modernismo, sua ação e influência ficam restritas ao âmbito regional, sobretudo recifense. A partir do momento em que publica sua obra-prima, e consequentemente se projeta como intelectual renovador em escala nacional, Gilberto Freyre se torna, com inteira justiça, um intelectual cuja interpretação do nosso passado nos reconcilia com uma condição cultural – lusa, antes de tudo – que por muito tempo pesou na consciência das elites nacionais como fator de constrangimento, quando não de vergonha dissimulada por certa expressão de bovarismo cultural assinalada pela representação ilusória de uma identidade européia.

Talvez mais que qualquer outro intelectual individualmente considerado, Gilberto Freyre concorreu para que o brasileiro, constrangido pelas suas condições de atraso social e miscigenação invariavelmente castigada por diagnósticos e prognósticos racistas, se reacomodasse na carne do seu corpo mestiço e revisasse seu passado português não somente como uma expressão bem-sucedida de acomodação do europeu somado a outros grupos culturais, mas até com o orgulho de quem se identifica com um ethos contemporizador de conflitos. Usando uma expressão muito do gosto do próprio Gilberto Freyre, o colonizador português distingue-se por sua capacidade de equilibrar antagonismos.

Na medida em que projeta tal identidade intelectual, sendo encarado e antes de tudo encarando a si próprio como o grande explicador do Brasil, Gilberto Freyre não reluta em ler e revisar certos fatos da nossa história cultural movido antes pelo desejo de reivindicar méritos próprios e discutíveis pioneirismos do que pela fidelidade aos fatos objetivamente aferíveis. Dois exemplos, em particular, merecem registro nesta exposição, já que ainda muitos dos seus seguidores mais passionais ou desatentos ratificam sua versão indiferentes à história cultural documentada. O primeiro refere-se à acusação infundada com que sempre pretendeu desmentir o caráter pioneiramente nacionalista do Modernismo ao qualificá-lo como europeizante, votado ao desprezo da tradição e das nossas características mais definidamente brasileiras. Como antes procurei ressaltar, tal acusação é sustentável na medida em que se atém à fase inicial do Modernismo. O próprio Gilberto Freyre valida meu ponto de vista quando já no fim da vida incorre em flagrante contradição ao referir-se ao assunto numa passagem do prefácio assinado para a última edição de Order and Progress:
“The beginning of a systematic search for Brazilianness (Brasileiridade) is recent, dating from the modernist movement, which originated in São Paulo in 1922 and spread to Rio two years later, and from the regionalist and traditionalist (and, in its own way, modernist) movement in Recife (1924) which gave us the first modern teaching of sociology and social research (1927) and launched the First Congress of the Study of Afro-Brazilian subjects (1934).” (Order and Progress, p. xxv).

O segundo exemplo concerne à verdadeira data de publicação do Manifesto Regionalista. Segundo Gilberto Freyre, o manifesto de sua autoria, que ele logrou estabelecer como o documento fundante do Regionalismo de Recife e, por extensão, de todo o processo de renovação nacionalista da cultura brasileira, foi lançado em 1926, durante a realização do Congresso Regionalista de Recife por ele organizado e liderado. Joaquim Inojosa, à época seu principal adversário intelectual em Recife, há anos provou com documentação irrefutável que o texto do manifesto correntemente conhecido somente foi publicado em 1952, data da sua publicação efetiva em opúsculo prefaciado pelo próprio Gilberto Freyre.

Evidentemente, estas correções em nada afetam a magnitude da obra realizada por Gilberto Freyre. Precisam entretanto ser explicitadas, e até reiteradas, por servirem, entre outras coisas, como advertência para o estudioso que por vezes acata sem qualquer exame crítico inéditos do autor publicados por ele próprio muitos anos depois da suposta redação original. O caso de Mário de Andrade, por outro lado, é de natureza totalmente oposta, pois seus inéditos de publicação tardia, no geral póstumos, foram publicados por pesquisadores que os submeteram a critérios rigorosos de apreciação textual.

Procurei acima sugerir, ainda que de forma pouco ordenada, que o nacionalismo cultural, associado à tradição lusa, permeia o conjunto do processo histórico no qual se inscrevem os dois movimentos fundamentais da primeira metade do século vinte no Brasil. Sua presença é de fato mais abrangente. Como certa feita observou Antonio Candido em uma passagem muito citada de um ensaio de síntese sobre o desenvolvimento geral da vida espiritual brasileira, nossa história tem sido marcada pela dialética do cosmopolitismo vs. nacionalismo. A atmosfera de globalização cultural agora extraordinariamente acelerada repõe esta antinomia no cerne da nossa realidade sociocultural. Ao mesmo tempo em que o país mais e mais se vincula aos circuitos de produção globalizados, assiste-se à retomada de um discurso fundado nos valores da particularidade irredutível a qualquer horizonte de natureza universalista.

A dissolução dos antagonismos ideológicos provocada pelo desabamento do socialismo totalitário em 1989 teve reflexos inevitáveis na cena cultural brasileira. Este fato, associado à recente celebração do centenário do nascimento de Gilberto Freyre, concorreu significativamente para que sua obra fosse positivamente reavaliada. Dar a Freyre o que é de Freyre é questão de justiça histórica e intelectual que os leitores e admiradores da sua obra devem saudar com entusiasmo. Do mesmo modo, importa reter da tradição firmada pelo Modernismo paulista o seu legado positivo. Em ambos os casos, o legado é indissociável de valores nacionalistas que atuaram no sentido de renovar e enriquecer nossa história cultural concorrendo, de outro lado, para a modernização social do país.

Feitas porém estas ressalvas, as questões e dilemas fundamentais clamam ainda por mudança e resolução. Dados os limites visíveis desta exposição, que são noutras palavras os meus próprios, fica à margem da argumentação aqui esboçada qualquer análise de fundo especificamente político e econômico que de resto escapa à minha competência. O que intento ensaiar nas linhas finais desta exposição é a proposição de um debate passível de em modesta medida esclarecer algo das relações complexas entre o nacionalismo cultural, a teorização sociológica da cultura e os vínculos que ambos retêm com as condições de manutenção do atraso social brasileiro. Noutras palavras, de que modo a tradição cultural acima esboçada concorre para alterar ou manter as condições de dominação e desigualdade observáveis no conjunto da sociedade brasileira? Até que ponto o ideário nacionalista brasileiro, tão múltiplo e contraditório na recorrência de suas manifestações, constitui um obstáculo para a realização de um projeto substantivo de modernização social ou exerce uma função social e culturalmente positiva?

Tentando especificar um pouco estas questões formuladas de modo demasiado abstrato, proporia que se debatesse duas das alternativas culturais propostas como meios de resolução dos nossos impasses mais dramáticos. Refiro-me à polaridade iberismo vs. americanismo. Ela tem permeado com intensidade variável o conjunto dos estudos e interpretações da cultura brasileira desde o século xix. No primeiro pólo situam-se os que reivindicam a especificidade de valores e práticas culturais originários da colonização ibérica nos trópicos e inconciliáveis com valores e práticas entendidos como especificamente europeus, sobretudo quando derivados da tradição anglo-saxônica. No segundo, em contrapartida, alinham-se os adeptos de uma incontornável integração brasileira à corrente central do Ocidente, com ênfase sobre a América de formação inglesa.
Esta polaridade desenha-se, noutras palavras, em torno de conceitos genéricos e polêmicos tais como modernidade, modernismo, modernização e derivados correntes. Os que se identificam com a permanência de valores ibéricos, ou restritamente lusos, resistem em maior ou menor grau à adoção ou aprofundamento dos nossos vínculos com o Ocidente reclamando para o Brasil uma identidade oposta aos valores do individualismo liberal; contrapondo o ludismo, a magia, a expressão emotiva e vínculos de base comunitária ao utilitarismo, à ciência e à tecnologia, às relações abstratas da gesellschaft. Emprego este termo de longeva presença na história da teoria sociológica porque, contraposto a seu avesso gemeinschaft, cristaliza as oposições e antagonismos básicos compreendidos nos dois tipos de cultura aqui considerados. Difundidos pela obra homônima de Ferdinand Tönnies, publicada em 1887, expressam idealmente, no sentido derivado dos tipos ideais propostos por Max Weber, dois modos fundamentais de organização sociocultural.

Acentuando que o português realiza nos trópicos brasileiros uma experiência de colonização inspirada pelos valores da gemeinschaft, já que a cultura hegemônica que estabiliza é regida por valores comunitários enraizados na família patriarcal e na religião católica, livremente mescladas aos valores dos grupos dominados, sobretudo o escravo africano, os iberistas caracterizam sempre como postiços ou artificiais os contatos de assimilação de valores baseados no contrato social abstrato, na impessoalidade competitiva do mercado, em suma, na gesellschaft.

Há poucos anos Richard Morse, Simon Schwartzman e José Guilherme Merquior empenharam-se numa atualização inevitavelmente polêmica do confronto iberismo vs. americanismo.O debate foi provocado pela publicação de um livro de Morse, O Espelho de Próspero, no qual ele retoma a polaridade fazendo a apologia da tradição ibérica e repelindo com veemência as características fundamentais do americanismo, ou da tradição ocidental. Talvez sintomaticamente, o livro não encontrou editor no mercado americano, sendo então publicado no México e em seguida no Brasil. José Murilo de Carvalho, um crítico mais sereno, discute a obra de Morse acentuando os aspectos considerados por Schwartzman, Merquior e Lúcia Lippi Oliveira – esta, mais limitada, contenta-se em descrever as linhas gerais do debate isentando-se de avançar juízos mais pessoais ou categóricos. Como bem observa Murilo de Carvalho,

“O desapontamento com a sociedade individualista, racional e desencantada dos Estados Unidos talvez tenha sido a motivação principal da busca empreendida por Morse de uma alternativa que ele acredita ter encontrado ao sul do Rio Grande. Aí, na América ibérica, ele julga existir uma civilização distinta, portadora de valores, ou de um foco cultural, que por serem pré-modernos não seriam menos desejáveis. Pelo contrário, por ter esta civilização escapado da reforma protestante e da revolução científica, teria preservado elementos de comunitarismo, de organicidade, de encantamento, que podem constituir alternativas ao impasse do mundo anglo-saxônico.”

Murilo de Carvalho prossegue seu comentário destacando o fato de que os críticos de Morse atacam-no seja por compor uma imagem demasiado pessimista de Próspero, seja por propor uma descrição demasiado otimista da civilização ibérica. Seu crítico mais áspero, Simon Schwartzman, toma o conjunto da sua argumentação como grave equívoco de interpretação cultural, acrescentando ser obra de conseqüências politicamente danosas para a realidade latinoamericana. Citando ainda Murilo de Carvalho,
“A valorização do comunitário, do mitológico, do afetivo, do não redutível à racionalidade ocidental, seria para esse crítico uma receita para aventuras messiânicas, para populismos autoritários.”

José Guilherme Merquior, por outro lado, encara com sérias restrições a apologia ibérica de Richard Morse. Sendo um crítico de linhagem radicalmente racionalista, portanto vinculado à tradição crítica do Iluminismo, Merquior não concebe nenhuma solução para os impasses da América Latina à margem da modernidade ocidental. Corrigindo a versão canibalista com que Morse refuta o modelo civilizacional simbolizado na figura de Próspero, Merquior repõe a versão canibalista de inspiração oswaldiana, isto é, uma estratégia de interação com o colonizador assinalada pelo espírito de absorção crítica e adaptação dos valores ocidentais. Assim procedendo, o Brasil poderia realizar-se culturalmente como uma forma específica de modulação do Ocidente, não como sua negação irracionalista baseada numa compreensão equivocada de particularidade cultural irredutível.

Concluo este roteiro um tanto errático, em parte explicável pela complexidade e abrangência da matéria aqui tratada, citando mais uma vez Murilo de Carvalho:
“(...) O caráter mais humano que Morse atribui à cultura ibérica, o maior solidarismo, seriam compatíveis com o grau de miséria social que afeta as populações do continente? Inversamente, o unidimensionalismo do homem ocidental, para usar uma expressão da Escola de Frankfurt, cara a Morse, não teria também sido responsável pela geração da vasta riqueza que trouxe para os modernos países ocidentais níveis nunca vistos de progresso e bem-estar? Não correria Morse, ao enfatizar os traços não ocidentais, ou não modernos da cultura latino-americana, o risco de aproximar-se de Gilberto Freyre em detrimento de Sérgio Buarque de Holanda, contra suas próprias declarações de simpatia pelo último?” (Pontos e Bordados, pp.402-4).

Berkeley, 21 de outubro de 2002.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco



Para Antonella.

Gilberto Freyre inicia um dos seus ensaios assinalando relações de afinidade histórico-cultural entre paulistas e pernambucanos (Ver “Modernidade e modernismo nas artes”, in Vida, forma e cor). O tema, frequente em muitas das suas páginas, é no ensaio retomado com o aparente propósito de acentuar pontos de convergência entre os dois estados. O foco é histórico-cultural, sempre deslizando para a fixação de um ethos descrito com base em fontes históricas livremente utilizadas pelo autor na composição das suas obras mais significativas. Transitando das generalidades históricas para a fase da nossa cultura moderna na qual se inscreve a sua obra, passa Gilberto Freyre a considerar especificamente o papel desempenhado pelo modernismo de São Paulo na constituição dessa cultura. Embora reconheça seu caráter renovador, critica-o por se mostrar no conjunto incapaz de converter o movimento, modernismo, num modo substantivo de ser, isto é, ser moderno. Esta a fraqueza fundamental do movimento paulista. Nas palavras do próprio Gilberto,
“...(o modernismo) envelheceu depressa pelo fato de se ter contraído e sistematizado numa quase seita de adoração do que fora apenas um momento ou um instante – instante libertador, revolucionário, violentamente antiacadêmico – na vida do brasileiro criado com muita gramática ou com excessivo respeito pelas academias”.
O foco desta crítica se estreita especificando-se na figura de Mário de Andrade. Diferentemente de Oswald de Andrade, com quem é negativamente contrastado na distinção proposta por Gilberto entre moderno e modernista, Mário teria sido incapaz de transcender o momento puramente contestador dos códigos estéticos estabelecidos incorrendo assim em mimetismos vanguardistas indicativos de subserviência mental à cultura europeia. Em suma, a insuficiência de Mário de Andrade traduziria a própria insuficiência fundamental do movimento que liderou: um modernista incapaz de se fazer moderno.

É por demais sabida a resistência de Gilberto Freyre ao modernismo de São Paulo. Tal resistência é compreensível, talvez inevitável, se se considera a posição secundária atribuída ao regionalismo originário de Recife que nele encontrou a figura do líder e animador inconteste. Dada a hegemonia cultural exercida pelo eixo Rio-São Paulo, as forças culturais mais renovadoras desenvolvidas nas décadas de vinte e trinta foram no geral associadas à corrente triunfante do modernismo paulista. A própria crítica de corte modernista, assim como sua historiografia correspondente, tende a incorporar ao modernismo o impacto e a dimensão mais renovadora de obras como Casa-Grande & Senzala e o movimento de renovação da narrativa regionalista do Nordeste.
Consciente da importância da sua obra, ampliada em ação pessoal e continuada de liderança junto a numerosos artistas e intelectuais, Gilberto Freyre viu-se muitas vezes compelido a reivindicar em prefácios, artigos e ensaios um papel de absoluta autonomia para o movimento que comandou a partir de Recife. Ao fazê-lo, porém, incorreu por vezes em formulações polêmicas merecedoras de apreciação mais isenta do leitor e crítico da sua obra. Um dos propósitos deste artigo é, por conseguinte, fixar dentro de uma linha de necessária isenção crítica a imagem do modernismo fundada antes na apreciação das suas características culturais historicamente aferíveis do que em juízos polêmicos resultantes de lutas por hegemonia no campo cultural.

Outro motivo que por certo decisivamente concorreu para pontuar a resistência e hostilidade de Gilberto Freyre contra o modernismo paulista deriva da polêmica travada com Joaquim Inojosa. Entusiasta do movimento paulista, Inojosa logo se tornou no ambiente de Recife um propagandista do novo ideário. Sua ação militante coincide com o momento em que Gilberto retorna a Recife e gradualmente desenvolve nos limites da província um movimento de revalorização das tradições regionais. Esse movimento, como é sabido, se define melhor com a publicação do Livro do Nordeste e a realização do Congresso Regionalista e atinge sua expressão mais alta e definitiva em 1933, quando da publicação de Casa-Grande & Senzala. Ora, se já no início do processo ele compreensivelmente se distancia do movimento representado em Recife por um mero epígono, um propagandista incapaz de realizar obra de qualidade própria, a afirmação objetiva da sua importância, nacionalmente consolidada com a publicação de Casa-Grande & Senzala decerto contribuiu para legitimar suas justas reivindicações de autonomia perante o modernismo paulista. Ao fazê-lo, porém, Gilberto Freyre por vezes cedeu à tentação, sempre inspirada por circunstâncias de natureza polêmica, de confundir o modernismo e a obra de Mário de Andrade com a dos epígonos, sobretudo regionais. A isso seria necessário acrescentar fatores tais como a rivalidade regional estabelecida entre São Paulo e o Nordeste, agravada pela expansão socioeconômica daquele em contraste com a longa e lenta decadência deste, a crise de poder detonada pela Revolução de 30 e a institucionalização do modernismo nos anos que se seguem a 1930.

Num documento de publicação tardia, Mário de Andrade esclarece as circunstâncias que definitivamente o afastaram de Gilberto Freyre antes mesmo de qualquer aproximação efetiva. O que abaixo descrevo, importa frisar nesse terreno minado por apreciações parciais, é o seu ponto de vista. Em carta endereçada a Guilherme de Figueiredo poucos meses antes de morrer, Mário refere-se a Gilberto como alguém distante. Por um momento, em meados dos anos vinte, foi informado a respeito deste através de amigos comuns residentes no Rio de Janeiro: Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto. Se estes de um lado já demonstravam admiração por Gilberto, de outro assinalavam seu espírito malicioso, sempre inclinado a troçar mesmo dos amigos mais íntimos. Mário atribui a isso o fato de nada haver feito no sentido de então encontrar Gilberto.

Mas eis que Prudente de Moraes, neto, co-editor de Estética, o periódico modernista sucessor de Klaxon, publica no no. 3 desta revista uma resenha sobre A Arte Moderna, de Joaquim Inojosa. Nesta obra, lançada no Recife em 1924, intenta o autor divulgar, em linguagem polêmica, o ideário modernista para o público de Recife. Embora distinguindo-o com comentários elogiosos - Inojosa era afinal o propagador do modernismo em Recife, onde também representava Estética por indicação expressa de Mário de Andrade e dos editores do periódico – observa o resenhista o quanto a derivação do modernismo na província andava em descompasso com o centro dinâmico do movimento:
“Mas Pernambuco, sem excetuar o sr. Inojosa, ainda está na primeira fase do modernismo. Fase de revolta, de violência destruidora, de desorientação, em que se cultiva o absurdo pelo absurdo, a esquisitice pela esquisitice, as máquinas, modas, invenções, toda essa parte exterior da vida contemporânea pela aparência de atualidade do aproveitamento delas como motivo artístico. Seria inútil negar que todos tivemos esse período, que o futurismo italiano não conseguiu ultrapassar. (...) Depois, uma compreensão melhor do modernismo nos ensina a estabelecer algumas diferenças; cada um vai encontrando seu caminho e a gente perde a preocupação com os últimos inventos e últimas modas”.
Dado que a citação foi demasiado longa, refaço com palavras minhas outros pontos da resenha necessários à precisa caracterização do problema aqui discutido. Acrescenta Prudente de Moraes, neto, que a desorientação e a confusão de valores são defeitos evidentes na plaqueta assinada por Joaquim Inojosa. Como agravante, conhece imperfeitamente a história do modernismo. Seu relato da Semana de Arte Moderna, sempre de acordo com o resenhista, “só tem de exato a vaia”.

Pode-se aí nitidamente perceber como os modernistas mais consequentes tinham já revisto os excessos de contestação e até inconsequências que tingiram as lutas e tomadas de posição iniciais. E note-se que a resenha é assinada por um então militante do modernismo, editor, com Sérgio Buarque de Holanda, de um dos mais importantes periódicos do modernismo. Outra nota relevante prende-se ao fato de que ambos nesse momento se distanciam da suposta liderança intelectual de Graça Aranha ao mesmo tempo em que, movidos por razões de afinidade intelectual e ideológica, aproximam-se independentemente tanto de Mário de Andrade quanto de Gilberto Freyre.
Voltando à carta de Mário de Andrade, escreve ele a Prudente criticando-o por tratar Inojosa com tanta severidade na sua resenha. Dado que Mário era já o líder do movimento, atenua suas restrições a Inojosa cioso talvez de não melindrar o epígono combativo de Recife. Por artes do destino, ou mero acaso, Gilberto Freyre visita Prudente no momento em que este lia a carta enviada por Mário de Andrade. Como Gilberto era já inimigo de Inojosa, ao tomar conhecimento da carta de Mário decide-se a rejeitar este para sempre. A decisão de Gilberto perdura até 1928, quando Mário, viajando pelo Nordeste, é recebido por ele em Recife. Não o fez porém sem muita resistência, afinal vencida pela mediação de um grande amigo de ambos: Manuel Bandeira, também coincidentemente visitando sua cidade natal. A julgar pela curta anotação feita por Mário no seu diário de viagem, o encontro foi se não frio, com certeza apenas cordial e sem prolongamentos:

“... Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilhoso, com vista da cidade...” (Mário de Andrade, O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 347. Para confronto do meu texto com a carta de Mário de Andrade a Guilherme de Figueiredo, ver Mário de Andrade, A Lição do Guru. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, pp. 136-7).

Embora não me ocorra reivindicar em qualquer sentido prioridade para o tratamento crítico que procuro conceder à matéria polêmica deste artigo, talvez me exponha ao puxão de orelha do leitor mais esclarecido. Assim, cuidando prevenir-me de apreciações infundadas, frisaria ter ciência de alguns precedentes ilustres na nossa historiografia crítica. Refiro-me restritamente a José Aderaldo Castello, cujo livro sobre José Lins do Rego e suas conexões com o regionalismo e o modernismo traduz um espírito de elevada disposição de compreender ambos os movimentos de forma integradora, e sobretudo Sérgio Buarque de Holanda, que aprecia com juízo certeiro as divergências polêmicas entre os dois movimentos numa série de artigos reunidos em volume de publicação recente (Ver Sérgio Buarque de Holanda, O Espírito e a Letra, vol. II, org., introdução e notas de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 331-345).

Aderaldo Castello foi o primeiro a desenvolver uma análise sistemática sobre o modernismo paulista e o regionalismo recifense num estudo de fôlego dedicado à obra de José Lins do Rego (Ver José Aderaldo Castello, José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo). Embora reconheça e documente a influência exercida pelo modernismo paulista no Nordeste, particularmente no Recife através do contato estabelecido por Joaquim Inojosa com o grupo paulista, Aderaldo Castello associa-se a Gilberto Freyre e Lins do Rego na defesa da autonomia do movimento regionalista. Observa ele corretamente que desde o começo – isto é, desde 1923, quando Gilberto Freyre regressa ao Recife e se aproxima de Lins do Rego – Gilberto distingue-se pelo papel decisivo que exerce na constituição de uma tendência independente dentro do processo nacional de renovação da cultura. Sem deixar de acentuar a oposição inicialmente verificável entre o movimento paulista e o pernambucano, a orientação crítica de Aderaldo Castello é pautada pela acentuação de traços convergentes entre ambos. Coerente com esse princípio, intenta unificar os aspectos mais positivos dos dois movimentos caracterizando-os como um movimento neo-romântico.

Frisava acima que a resistência de Gilberto ao modernismo é amplamente conhecida. Reiteraria, ademais, que se expressou muitas vezes em tom polêmico. Uma das suas manifestações mais remotas está contida na introdução que escreveu para Região e Tradição. Embora o livro tenha sido publicado em 1941, a introdução data de 1940. Nela, ecoando a depreciação polêmica do modernismo detonada por seu amigo e discípulo confesso José Lins do Rego no prefácio que consta deste mesmo livro, Gilberto Freyre caracteriza o modernismo como um movimento francamente hostil a qualquer forma de tradicionalismo e regionalismo. Polemizando num contexto em que intentava afirmar a autonomia e pioneirismo do regionalismo recifense, Gilberto identificou no modernismo já triunfante nos quadros da cultura brasileira o opositor que carecia de ser contestado. Assim, nas páginas polêmicas de Região e Tradição configura-se uma atitude e uma avaliação depreciativa que serão repostas em outros textos. A reiteração de uma crítica redutora, inspirada pelo espírito polêmico já aqui assinalado, tem infelizmente concorrido para que leitores mais apaixonados, quando não simplesmente ignorantes do nosso processo cultural objetivo, tendam a caracterizar o modernismo paulista como um movimento de inspiração estreitamente européia, como avesso à tradição, à cultura de extração regional e até antinacionalista. O equívoco é grave e com certeza não resiste à confrontação objetiva com os fatos culturais incorporados à linha da nossa tradição cultural.

Um outro motivo que justifica a tentativa de esclarecimento dos equívocos e mal-entendidos que cercam as relações entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife radica no fato de que a tarefa mais alta da crítica e do leitor esclarecido consiste em precisar de maneira isenta a significação efetiva de ambos os movimentos e, mais restritamente, dos seus dois grandes líderes: Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Insistir em opor um ao outro - sempre na intenção de louvar este em detrimento daquele; ou exaltar o segundo às expensas do obscurecimento do primeiro - é atitude que me parece incompatível com o exercício da crítica autêntica, que como tal carece de fundar-se em critérios e argumentos de natureza estética e intelectual, não em apreciações particularistas, sejam elas dirigidas por valores estreitamente regionais, ideológicos ou apenas pessoais.

Cabe, portanto, proceder ao exame dos argumentos fundamentais invocados na polêmica. Acusar o modernismo paulista de ser hostil à tradição é confundir o movimento tal como se configurou nas suas manifestações iniciais com a dinâmica de um processo que consistiu, em síntese, na conversão do modernismo internacionalista em modernismo nacionalista. É verdade que, à volta da Semana de Arte Moderna, era nítida a influência do ideário vanguardista procedente antes de tudo da França. Nesse momento, a grande aspiração dos modernistas era acertar o passo – ou o relógio, evocando aqui a metáfora empregada por Oswald de Andrade – do Brasil com o das vanguardas europeias.

Klaxon, órgão oficial do modernismo da primeira hora, exprime nas suas páginas, no gosto por vezes abusivo e inconsequente da experimentação formal, esse desejo de atualização das artes brasileiras. Mas esse quadro, de corte sem dúvida internacionalista, portanto avesso à corrente da tradição e do regionalismo, logo se modifica. O ano marco é sem dúvida 1924, embora algo da produção poética e da correspondência literária imediatamente anterior já indique o ponto de inflexão nacionalista em l923. Algumas evidências: poemas como Carnaval Carioca, de 1923, e O Poeta Come Amendoim, de 1924, ambos de Mário de Andrade, renovam a nossa poesia do ponto de vista temático e formal. No que se refere à correspondência de Mário, de imensa e já reconhecida importância documental para a história cultural brasileira, pode-se mencionar, entre outras, uma carta endereçada a Drummond em novembro de 1924. Nela é inequívoco o espírito de nacionalismo militante já plenamente adotado pelo líder do modernismo paulista. Criticando a formação francesa de Drummond, que o induzia a olhar o Brasil com um misto de indiferença e desprezo, assim argumenta Mário:
“Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada... à francesa. (...) devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. (...) Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França e a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei” (A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, pp. 5-6).
Como ler a citação acima sem automaticamente lembrar o célebre prefácio escrito por Gilberto Freyre para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala? Nele Gilberto declara um espírito de missão similar àquele traduzido na profissão de fé nacionalista de Mário de Andrade. Comparando seu fervor nacionalista ao dos russos e românticos do século XIX, Gilberto declara sua convicção de que tudo parecia depender dele e dos seus companheiros de geração (Casa-Grande & Senzala. 25a ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, p. lvii).

O móvel que norteia a produção de Casa-Grande & Senzala é a necessidade vivida por Gilberto de se compreender, de definir sua identidade individual através da apreensão da própria identidade cultural do Brasil. Esse espírito de missão orientado para a transformação da nacionalidade é comum a ambos, ele e Mário de Andrade. Acrescentaria ser ele comum a todos que se empenharam na realização do nacionalismo literário, em sentido específico e, mais amplamente, no sentido do nacionalismo cultural. Deixando de parte rivalidades regionais e variações estético-ideológicas no fundo acomodáveis no leito promíscuo do nacionalismo cultural, como não reconhecer em Gilberto Freyre e Mário de Andrade os agentes seminais desse movimento que tantas contribuições trouxe para o enriquecimento da nossa cultura moderna?

Se o nacionalismo cultural de Gilberto Freyre se desenvolve fundamentalmente a partir da sua volta a Recife para alcançar sua expressão suprema cerca de 10 anos mais tarde, quando ultima e publica Casa-Grande & Senzala, o de Mário de Andrade evolui do internacionalismo de 1922 e aporta em Macunaíma, em 1928, depois de um processo de adensamento e decantação que compreende a temática de fundo nacionalista na poesia, os escritos críticos sobre música, artes plásticas e cultura popular e suas viagens etnográficas através do Norte e Nordeste do Brasil. O fato de acentuar neste artigo os pontos de convergência entre ambos, pontos tantas vezes obscurecidos por eles próprios e em seguida por seus discípulos mais entusiastas até o limite mesmo do ano em que se celebra o centenário de nascimento do primeiro, não supõe todavia sequer a sugestão de que a convergência se dissolva em equivalência. Embora ambos realizem uma obra de expressão nacionalista inspirada pelo ambição, em larga medida bem sucedida, de revalorizar a cultura brasileira na linha de tensão entre a tradição e a modernidade, entre o particular nacional, e também regional, e o universal de corte antes de tudo europeu, é fato que divergem na ênfase e mesmo no fundamento do horizonte que recortam no conjunto da obra produzida. Enquanto Gilberto de um lado se baseia na região para formular sua concepção de cultura nacional, Mário intenta chegar a uma síntese nacional de cultura fundindo livremente elementos das várias regiões culturais brasileiras. Esse traço marcante da sua concepção de cultura nacional é evidente na própria composição de Macunaíma. Integrando-o à forma e ao andamento da narrativa, Mário descreve os deslocamentos alucinantes do herói através do país, a fusão de regionalismos linguísticos, o choque fecundo entre as raízes primitivistas da nossa tradição e a modernidade expressa em ícones e códigos da nossa sociedade urbano-industrial.

Sei que comparo acima grosseiramente obras de estatuto epistemológico distinto. Se é verdade que Casa-Grande & Senzala destoa e mesmo colide com a obra de sociologia convencional, é também verdade que sua liberdade compositiva não autoriza confundi-la com uma obra literária, embora alguns críticos maldosos ou intelectualmente estreitos assim a tenham qualificado supondo com isso desmerecê-la. Obra ambígua no método e na andadura compositiva, é obra de ciência social e ao mesmo tempo literária no estilo, na ordenação expressiva do material e na lógica da argumentação na qual se fundem história social e autobiografia, documento histórico reinventado na forma de memória literária. Macunaíma, de outro lado, pode também ser compreendida como obra ambígua no sentido de que, sendo primariamente uma narrativa ficcional, supõe ou dissimula no tecido da composição uma massa heterogênea de documentos histórico-sociais criteriosamente acumulados pelo seu autor.
Se se reflete sobre a gênese destas duas obras, também aí sobressaem convergências significativas. Gilberto Freyre mais de uma vez declarou que na raiz da sua obra-prima pulsava a necessidade de esclarecer e definir sua identidade de brasileiro através da captação da nossa identidade coletiva constituída sobre fundamentos histórico-culturais. Mário de Andrade, de outra parte, persegue de modo obsessivo, na pesquisa intelectual infatigável tanto quanto na obra efetivamente realizada, sua identidade de brasileiro na identidade coletiva da nacionalidade.

Encerro esse paralelo genérico, e sabidamente insatisfatório, citando Antonio Candido. Inscreve ele no pórtico de “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” uma tese que permeia o conjunto deste agudo ensaio de síntese de quase meio século da cultura brasileira. Sumariamente aqui traduzida, consiste tal tese no movimento dialético entre localismo e cosmopolitismo pontuando o desenvolvimento da vida espiritual brasileira em geral, assim como, em particular, a sua literatura (Literatura e Sociedade. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp. 109-111). Quando o primeiro pólo, localismo, dá o tom ao relacionamento dialético configurado na tese, as características nacionalistas comandam a cena cultural; no caso inverso, a aderência mimética e conformista aos padrões europeus assinala os momentos de exacerbação cosmopolita. Há entretanto momentos em que os dois pólos alcançam um ponto de equilíbrio harmonizando assim as influências europeias com valores propriamente brasileiros. Citando o próprio autor,
“Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como formas da expressão)”.
Frisa então que o melhor das nossas realizações intelectuais e artísticas tem sido uma combinação afortunada – como se pode observar na obra de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, assim como nas de Gilberto Freyre e Mário de Andrade – desse equilíbrio ideal verificável entre o pólo do particular e o do universal. Se consideramos o conjunto da produção intelectual brasileira do século vinte, não restritamente a produção literária, penso que Mário de Andrade e Gilberto Freyre constituem a mais acabada expressão desse equilíbrio ideal entre o particular e o universal, entre a linha da tradição e a da modernidade.
Nota: Este artigo foi publicado em dois periódicos: Cadernos de Estudos Sociais, vol. 16, no. 2, Recife, julho/dez. 2000 e Quadrant, nos. 19-20, Montpellier, 2002-2003.