sábado, 1 de junho de 2013

Liberdade e Identidade II


Meus sentimentos de estrangeiro tendem a acentuar-se durante o carnaval. Sendo uma das mais profundas e extensivas expressões da cultura brasileira, portanto um dos seus momentos de suprema integração social, não é de estranhar que estados subjetivos dessa natureza se agravem imprimindo transparência à linha fronteiriça entre o eu e o outro coletivo, entre minha brasilidade gauche, sempre distanciada e dissonante, e o espírito gregário e ruidoso do povo brasileiro.
Isso se repete, em tom às vezes ainda mais exacerbado, durante a Copa do Mundo. Este, aliás, será um ano – junho e julho, mais exatamente – que me submeterá a mais uma dessas provas de brasilidade a contrapelo, de celebração futebolística contrafeita, já que sempre vivida com reserva, quando não com franca resistência à integração dissoluta no corpo da massa infranqueável ao exercício da individualidade e da alteridade.

Meu estranhamento desdobra-se ainda nas festas de fim de ano, além dos festejos do meio do ano, como é o caso das festas juninas que já tive a esperança de ver superadas pela dinâmica urbana do país. A mídia e a indústria da publicidade, entretanto, operaram recentemente no sentido de ativá-las integrando-as ao circuito do consumo e deslocando-as dos arraiais e da geografia rural para o shopping center; para o cerne, portanto, do espaço onde se desenvolve a cultura urbana. Fenômenos dessa natureza sugerem a complexidade da dinâmica sociocultural do capitalismo em países do tipo do Brasil.

Será necessariamente negativo ou indesejável o estado de estranhamento dentro do meu próprio país? Minha amiga Vivian Schelling, culturalmente dividida numa linha de intersecção simbólica que compreende Alemanha, Espanha, Inglaterra e Brasil, muitas vezes se queixou nas nossas conversas londrinas da sua personalidade culturalmente dividida. Talvez por isso tanto se voltasse para o seu curto passado brasileiro, vivido entre o Rio e São Paulo, tingindo-o com cores idealizadoras. Será assim indesejável ou negativo esse processo de interna divisão cultural? Se todos tendessem a comportar-se como Vivian, diria que o mundo contemporâneo, pelo menos o ocidental, estaria saturado da infelicidade gerada pela divisão cultural das personalidades. Dado isso como um fato, seria igualmente compreensível a representação regressiva e idealizadora do passado pré-moderno. Foscamente dividido por essas fronteiras que demarcam a linha da modernidade e a da pré-modernidade, o Brasil se prestaria a acomodar na sua geografia cultural o olhar nostálgico do pós-modernista contrafeito.

Recuando entretanto para a modesta e palpável dimensão da minha subjetividade, não me vejo como um infeliz ou carente de identidade socialmente integrada. Sem pretender subestimar o fardo que é viver regido por valores que não alcançam o estatuto de valor dominante na minha cultura de origem, sempre discriminei esse peso negativo do positivo. Tanto quanto aquele, este se constitui na expressão da minha personalidade como consequência muitas vezes consciente e até previsível dos conflitos implícita ou explicitamente travados no cerne da minha subjetividade que compreende valores coletivos, alguns imperativos, mas também valores individualmente selecionados.

É nessa linha de tensão em que se relacionam o eu-Fernando e o outro-coletivo que se define a minha subjetividade. Antes de concebê-la como mera expressão individual e reflexa da sociedade, aprendi que é possível investir-me do poder e da liberdade de traçar uma linha de diferença e individualidade diante dos mecanismos sociais tendentes a produzir o conformismo e a indiferenciação. Dependo evidentemente da sociedade em que vivo para me constituir enquanto entidade autônoma e individualizada sem que entretanto isso de modo algum pressuponha o consentimento ou dócil aderência aos valores dominantes.

Se um homem não é capaz de demarcar sua diferença contra o outro coletivo, não pode legitimamente falar de si próprio como um ser livre. É por isso que um dos problemas mais inquietantes da cultura contemporânea, regida pelas agências geradoras dos valores difundidos em alta e sistemática escala pela mídia, é a ilusão da autonomia e da liberdade individual. Digo ilusão porque a noção de liberdade vendida pela mídia é objetivamente uma forma de conformismo e escravização aos ditames do mercado. Seja você mesmo: beba coca-cola. Esta frase, mote publicitário do produto que anuncia, sintetiza à perfeição o que intento traduzir neste parágrafo.

Essa cultura da mídia, fundada no princípio da permissividade, da completa dessacralização dos valores coletivos, exerce a forma mais insidiosa de dominação, já que é abstrata e assim nunca se materializa num indivíduo ou instância concreta. Costumo ainda hoje lembrar um episódio que tipifica este fenômeno. Quando ensinava sociologia no curso de arquitetura da UFPE costumava selecionar alguns filmes para debatê-los com os alunos. Vimos, certa vez, Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society). Um dos alunos, aliás dos mais inteligentes da turma, observou que a diferença essencial entre a escola tradicional retratada no filme e a contemporânea consistia no fato de que naquela os alunos não eram livres, enquanto o eram nesta.
Ora, o que o episódio ilustra é a crença espontânea na liberdade. Dissolvendo o princípio necessário da autoridade no seio da permissividade mercadológica, a mídia despersonaliza a liberdade dissociando-a de qualquer forma concreta de autoridade. Lembrei ao meu aluno que uma das características positivas da sociedade tradicional residia no fato de a autoridade se encarnar na figura concreta do pai, da mãe, do professor, etc. Na medida em que era visível e concreta, era por conseguinte mais fácil identificá-la e opor-lhe resistência, sobretudo nas circunstâncias em que deixava de ser autoridade para converter-se em dominação autoritária.
O próprio processo de conquista da identidade individual, um fato imperativo na vida de qualquer pessoa formada nos quadros da cultura ocidental, me parece que resultava menos problemático no âmbito de uma cultura em que a autoridade estava concretamente materializada na ação de alguns agentes sociais básicos. Na medida porém em que a autoridade tende a se tornar abstrata dissolvendo-se na ideologia da permissividade, que nunca se pronuncia no imperativo nem é veiculada por agentes identificáveis com a autoridade indesejada e hostilizável, a sensação de desorientação e impotência, sobretudo do jovem, tende a acentuar-se. Falando de modo interrogativamente concreto: contra quem conquistarei minha liberdade? A quem opor minha resistência e meu desejo de afirmação individual, minha sede de liberdade, em suma? Como reivindicar minha liberdade numa cultura onde pai e mãe não apenas estão esvaziados de autoridade, mas se tornaram presas dóceis, meros financiadores da liberdade mercadológica?

A própria psicologia corrente, a julgar pelo que que dela aparece na mídia, pouco difere do discurso publicitário. Um conceito psicológico como auto-estima em nada difere do emprego que lhe empresta o discurso publicitário. Falam de auto-estima como se fosse um processo de constituição da subjetividade totalmente dependente de fontes externas ao sujeito. Trocando em miúdos, minha auto-estima é produzida e validada apenas pelo outro, pelo mercado, pelas correntes onipotentes da opinião. Em suma, estamos falando de psicologia da integração passiva do sujeito ao ambiente, a integração compreendida como escravização inconsciente a fatores externos ao sujeito. Isso me faz lembrar um dos contos mais extraordinários de Machado de Assis: O Espelho. Machado soube traduzir literariamente mais que qualquer outro dos nossos escritores literários as forças de subordinação do indivíduo ao meio social. Jacobina, narrador e protagonista do conto mencionado, parece provar que nossa liberdade individual, o cerne mesmo da nossa identidade social, radica na nossa dócil internalização dos valores do meio em que nos formamos. Alferes da Guarda Nacional, ele de tal modo se confunde e dissolve na farda que usa que se desintegra a partir do momento em que o outro que lhe confere existência identificando seu ser social com a farda se ausenta. O conto é engenhosamente elaborado do ponto de vista psicológico, do ponto de vista da constituição do sujeito, mas pode desse ponto de vista ser desmentido por uma questão bem simples: se Jacobina simboliza o protótipo da constituição do sujeito, da subjetividade que seria apenas o espelho do meio que a molda, como explicar a existência do próprio Machado de Assis, para não falar da sua obra que ardilosa e impiedosamente põe em questão toda a ordem social dominante no seu tempo?

Ser livre hoje talvez signifique a recusa de ir ao shopping center comportando-se como o avesso da máquina dócil imantada à engrenagem do guichê e do cartão de crédito. Ser livre hoje talvez signifique dizer não ao carnaval, ou antes brincá-lo sem subordinar-se aos invisíveis mecanismos de pressão que nos reduzem a um número estatístico ou a uma cota negociada no mercado de ações, ou ainda a um flash sonhado na telinha da rede Globo.
Ser livre talvez signifique ser ninguém ou nada no caldeirão antropofágico do capitalismo de consumo, variante tropical, Pernambuco, Brasil.

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