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domingo, 16 de julho de 2017

No Mural do Facebook XXXII


Esperança e apatia:

Esta é uma verdade óbvia: um país, sobretudo bem sucedido, é fruto da ação coletiva da maioria. No Brasil, entretanto, poucos se dão conta disso, poucos agem norteados por esta verdade. Aqui é o país da esperança. E a esperança, também é óbvio, é no geral passiva. Poucos dizem: tenho esperança num futuro melhor e por isso vou lutar para que se realize. A verdade é o oposto. Quando invocamos a esperança, é porque nos sentimos impotentes diante da realidade.
No Brasil, país da esperança, vivemos, desde Dom Sebastião, daí o famoso mito sebastianista, a espera da volta ou milagre do pai salvador, do herói redentor, do Estado provedor. Em face da natureza, dos desastres e do caos que produz, notadamente por força da nossa baderna social, invocamos a ação divina, ou a de algum santo. As chuvas juninas no Nordeste, sempre devastadoras, são obra e solução celestial.
Por isso não me canso de dizer: o Brasil é muito atrasado, um escravo da força da tradição. Quando a coisa sai dos eixos frouxos que sustentam nossa sociedade anômica (privada de ordem civilizacional efetiva), esticando a corda da insegurança e do desespero, então apelamos até para o ditador que, na nossa mentalidade de servos, é o restaurador da ordem e do progresso, um insulto que pregaram na bandeira nacional. Como alguém já disse aqui no Facebook, é deprimente ler o que escrevo. Concluindo, o problema é o meu psiquismo depressor ou deprimido, não o país incapaz de realizar um projeto de real modernidade.
(Publicado no Facebook, 1 de julho de 2017).

O mal é estrutural:
Quase sempre deixo claro que não critico os impasses políticos e econômicos brasileiros restrito à sua esfera. Nossos problemas fundamentais, que remontam à nossa origem e nunca foram efetivamente enfrentados, são de ordem estrutural. A injustiça e a violência, a desigualdade iníqua e nosso atraso crônico, são apenas sintomas de nossas irresoluções estruturais. Sem reformas profundas nas esferas essenciais da sociedade, nunca seremos uma nação verdadeira, nunca uma democracia moderna. Os males estão em tudo, inclusive na esfera das relações íntimas, a começar pela família.
Já me cansei de afirmar que, bem longe desses mitos consoladores que envaidecem nossa mentalidade nacionalista e provinciana, somos uma sociedade anômica, isto é, privada de normas que imprimam sentido à nossa existência social e individual. Com ou sem a podridão que vaza de todos os esgotos do poder político, quase nada no Brasil funciona, ou funciona segundo princípios básicos de respeito aos direitos humanos, à efetiva noção de cidadania, à interação de cidadãos de fato, não de letra vazia gravada na Constituição e nos códigos que são modelos de modernidade. Mas isso existe e sempre existiu no papel. E papel, dizia Graciliano Ramos, que sofreu a brutalidade real avessa à letra da lei, papel aceita tudo. O que não nos falta é lei para tudo, tudo bonitinho no papel. No mundo real, somos ainda um fazendão de bacharéis e doutores, de mandantes e subordinados.
É óbvio que a realidade é muito mais complexa. O fazendão tem tecnologia de ponta, medicina idem e muito do que de mais avançado proveio e prevalece nas nações modernas. Mas o que de fato importa é que essa modernidade periférica se realiza sem superar as forças retrógradas e contrárias a tudo que em princípio é símbolo dos avanços e aperfeiçoamentos da ordem social contemporânea. Aqui a arquitetura de ponta se eleva espremida entre mocambos e favelas; o carrão top, provido da tecnologia mais avançada, esbarra no carroção do catador de lixo, o luxo e o lixo são indissociáveis, atrelados numa imagem de horror surreal que dissolve todas as teorias explicativas. Nem somos atrasados nem modernos. Por isso Kafka e sua imaginação ambígua e profética estão praticamente ausentes de nossa literatura. Quem precisa de literatura kafkiana quando ela é nossa própria realidade?
(Publicado no Facebook, 6 de julho de 2017)

A sensação de morrer:
Já ouvi vários relatos relativos à visão ou sensação de morrer. Há quem tenha visto uma figuração do céu ou além; há quem tenha ressuscitado convertido a alguma fé e experiências ou visões semelhantes. A minha, de alcance bem menos místico ou extremo, foi de uma serenidade indescritível. Depois de escapar por milagre de uma violenta colisão, provocada por uma amada seduzida pelo extremo da vida e da droga, voltei a mim numa sala de hospital entre máquinas congeladas (era a minha sensação).
De repente, tive uma estranha sensação de morte. Achei que estava morrendo. Só que essa sensação não me causou nenhum medo ou pânico. Pelo contrário, foi a maior experiência de serenidade e paz que senti na minha vida. Daí, salvo do desastre e da morte, mais tarde deduzi que a morte em si nada tem de aterrorizante nem anunciador de qualquer transcendência religiosa. Isso não quer dizer que me libertei do medo da morte. Reflito sobre ela com frequência e isento de medo. A ela devo alguns dos melhores poemas e meditações que escrevi. Nada mais além disso. Epicuro dizia não haver motivo para temê-la, pois quando somos ela ainda não é e quando ela é, já não somos. A formulação metafísica é bela, mas duvido que nos reconcilie com o medo da morte. São raros os que morrem com a serena coragem de Sócrates, Montaigne, Epícuro e os grande estoicos.
(Publicado no Facebook, 15 de julho de 2017).

Um mundo enfermo:
Detesto medicalizar a sociedade, até por por reconhecer a distinção elementar entre indivíduo e sociedade. Mas não há dúvida de que estamos vivendo numa sociedade doente. Grande parte da nossa doença individual, dos sintomas patológicos que sofremos, deriva de um estado de anomia e aridez espiritual que tem raízes socioculturais. Poderia expor uma infinidade de evidências para que isso não pareça mero subjetivismo.
Antes de tudo, a história humana foi sempre mutável. Algumas das suas crises mais profundas foram fundamentais para a renovação da sociedade. Esta que vivemos, no entanto, é de uma aceleração e de uma profundidade sem precedente. No curto intervalo de uma geração ocorreram mudanças para as quais somos incapazes de nos adequar positivamente. Estamos doentes porque a sociedade está doente.
E o mais grave é constatar que não sabemos o que fazer da nossa desorientação, do nosso desgoverno, do nosso mergulho sem âncoras em direção a um país cujo abismo não tem fundo. Sei que tudo isso que escrevo é deprimente, mas é real. Estou vivendo isso todos os dias, dentro e fora de mim. Quem quiser ou precisar, que se engane. Desafio qualquer gênio ou deus a assinalar uma saída para o caos em que vivemos.
O povão, regido pela alienação do rebanho, não está nem aí. Quanto mais o abismo se abre, mais fazem festa, se drogam, desprezam a realidade. Quanto à " elite", que Evaldo Cabral de Mello, justamente chama de clientela, escava ainda mais o abismo. O mais grave é a indiferença humana que se agravou, fruto da tecnologia digital. As pessoas estão cada vez mais solitárias e desamparadas. Por isso amam gatos e cachorros. Privados biologicamente de liberdade, estes são mais dóceis e servis ao nosso egoísmo. É isso aí. Deprimente ou não, é assim que grosseiramente percebo o mundo em que vivemos.
(publicado no Facebook, 16 de julho de 2017)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

No mural do Facebook XXXI


Os males do Facebook:
Os poucos que me concedem atenção no Facebook por certo já notaram que deixei de falar de política, o assunto dominante na rede. Confesso que a maior parte do que vejo, há muito deixei de ler, não tem nenhum sentido para mim. Antes que me acusem de omissão, como já o fizeram, não acho que tagarelar compulsivamente sobre toda essa lama, essa bandidagem que afunda o Brasil, seja participar da política no sentido de orientá-la positivamente.
Os poucos que me leram, e no geral convergem com minha perspectiva política, assim como no modo de praticá-la na rede, sabem muito bem o que penso. Já postei aqui com nitidez o que penso de todo esse processo de degradação da política e do país. Tanto é verdade, que perdi vários "amigos" ou oponentes ideológicos. Também fui com frequência incompreendido por opinar isento de qualquer vinco de intolerância ou partidarismo.
Sempre concebi e usei o Facebook como uma tribuna de livre opinião, um exercício de reflexão pública. Em suma, queria doar meu grão de civilidade à barbárie na qual vivo sitiado. Por isso não acho que a linha dominante do que falam, denunciam e até caluniam concorra em nada para melhorar nossa interação e o estado inqualificável da nossa crise política cada vez mais degradada e degradante.
Isso tudo que há de negativo tornou-se apenas conversa de salão no pior sentido do termo, isto é, tagarelice dos que se associam para verter o que a realidade e eles próprios têm de pior. Aliás, muitos assim procedem por não saberem o que fazer de suas vidas, do seu tempo diluído em aridez e futilidade.
Ao escrever isso, e sobretudo declarar meu distanciamento ainda maior (continuarei lendo e ocasionalmente comentando apenas o que corresponde à escolha da minha liberdade ética e subjetiva), estou me tornando ainda mais isolado socialmente. Privado de viver uma vida normal, a rede virtual era (é) meu vínculo principal com as poucas pessoas que são parte da minha vida.
Mas que fazer? Quem escolhe sua liberdade possível, cada vez mais difícil, escolhe também o preço que ela implica. Enfim, amigos do Facebook, estou saindo ainda mais. De resto, poucos notarão esse fato e aceito que assim seja.
(Publicado no Facebook, 27 de maio de 2017).

O reinado da psicologização:
No início dos anos 1960 Philip Rieff escreveu sobre a emergência da cultura terapêutica, ou do homem psicológico. Sua antevisão é hoje incontestável. Hoje tudo parece ser explicável ou diagnosticável pela psicologia. A evidência orgânica da doença, comprovada por exames sofisticados, não isenta o paciente de ouvir este diagnóstico fatal: seu problema é de cabeça, ou emocional. Os médicos também incorrem nesse diagnóstico, sobretudo quando não sabem o que fazer com o paciente e seus males. Afinal, apesar da soberania profissional e cultural que passaram a exercer, sua suposta ciência é bem mais inexata do que presumem muitos dos seus críticos.
Tenho um amigo sofrendo de problemas orgânicos inquestionáveis. Como a doença alterou radicalmente sua vida, hábitos, formas de convívio etc, é evidente que há no seu quadro clínico fatores psíquicos cuja apreensão depende apenas de bom senso. Mas o problema é que médicos, amigos, no geral com a intenção de o ajudar, invocam reiteradamente os fatores psíquicos. Tanto o fizeram que ele concordou em tomar um antidepressivo. Se estava mal, ficou ainda pior.
Saltando para outros contextos, já me cansei de ouvir amigos falando apreensivos da depressão de filhos ainda crianças. Hoje mesmo um me disse que a filha, com apenas 11 anos de idade, está tomando medicação antidepressiva. O sofrimento da perda de alguém que amamos também passou a ser diagnosticado como depressão. Poderia multiplicar os exemplos ao infinito. Vários presos da Lava Jato foram diagnosticados como padecendo de depressão, alegação usada por seus advogados para que fossem libertados. Enfim, Philip Rieff anteviu esta banalidade: a psicologização da nossa cultura, da doença em geral, de estados emotivos que são simplesmente parte constitutiva da natureza humana. Quem perde um amor sofre, se entristece, pode até ficar deprimido. Mas agora a depressão tornou-se um conceito clínico que passou a recobrir e supostamente explicar todos esses sintomas. Como todo absoluto, acaba não tendo mais nenhuma operacionalidade. É como afirmar, como tantos já o fizeram, que tudo é político. Ora, como explicar a realidade na sua totalidade com um conceito de sentido absoluto? Uma coisa acaba anulando a outra.
(Publicado no Facebook, 07 de junho 2017).

O que é democracia?
A democracia não é apenas um regime regido por valores e práticas restritos às instituições políticas. Ela só existe verdadeiramente quando esses valores e práticas se tornam normas correntes balizando o conjunto das nossas relações sociais. É por isso que a Inglaterra, o país mais democrático que conheço, nunca teve uma Constituição formal. Ela é fruto de uma longa e complexa invenção coletiva.
É devido às razões acima grosseiramente esboçadas que insisto em dizer que não somos, nunca fomos uma democracia. Basta observar questões fundamentais como o exercício dos direitos humanos, a relação entre o Estado patrimonial e os direitos individuais, a relação essencial entre a realidade e o que prescrevem as leis do país. Estamos cansados de ler e ouvir os que falam do divórcio real entre o Brasil real e o Brasil legal. No papel somos, sim, uma democracia. Mas papel aceita tudo, como dizia Graciliano Ramos, que amargou de muitas formas o gosto da nossa democracia.
É também devido à definição grosseira de democracia aqui proposta que não me canso de citar os grandes intérpretes do Brasil, notadamente Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Se o faço, é porque tiveram fina percepção do país baseados nos princípios da história de longa duração, na relação entre as instituições sociais e a vida cotidiana. É nesta que melhor captamos nossa "democracia". Seremos uma democracia quando o povo for capaz de a inventar não apenas reformando radicalmente as instituições políticas, mas praticando-a nas práticas e valores cotidianos.
(Publicado no Facebook, 10 de junho de 2017).

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

No Mural do Facebook XXIV


O brasileiro e seus hábitos culturais:

Embora brasileiro já cansado de guerra e de tentar decifrar nossos códigos culturais, sou ainda e certamente morrerei como um aprendiz perplexo da minha própria cultura. Como ninguém consegue viver sem conferir sentido e expectativa às formas de convívio que estabelece com o semelhante, tento sempre traduzir certas atitudes básicas ou cotidianas, mas com frequencia me confundo ou sigo meu caminho solitário sem explicações convincentes. Espremo o assunto demasiado complexo num único item: a amizade.
Um dos mitos culturais do qual muito nos orgulhamos refere-se à facilidade com que fazemos amigos. Ora, essa facilidade já por si só diz muito do sentido da nossa amizade. Amizade é uma conquista rara e preciosa. No entanto, dela falamos como se fosse algo banal. Isso já me parece uma evidência do quanto somos volúveis e inconsequentes nas nossas relações afetivas. Há muitos anos, quando era idiota ao ponto de confundir amizade com coisas apenas semelhantes, disse a alguém que tinha quatro grandes amigos. Ele prontamente respondeu: então você tem muita sorte, pois não tenho nenhum. Achei isso estranho porque esse alguém é uma das pessoas mais queridas, sedutoras e engraçadas que conheço. Depois compreendi melhor sua resposta e, pior, a experiência dissolveu meus quatro amigos, reduzidos a um, que aliás morreu há alguns anos.
Como preciso concluir, antes que desistam de ler o que segue, somos demasiado gregários, demasiado presos aos vínculos de família, cujos valores contaminam nossas relações públicas, para construir amizades verdadeiras. Não nego que existam, claro, mas numa cultura tão familista e gregária como a nossa, tão afeita a resultados fáceis e imediatos, a amizade não é nada fácil como parece. Se parece tão comum num país onde estranhos se tratam calorosamente como "amigões" e "amigos do peito" é porque quase sempre a confundimos com outra coisa.
(Publicado no Facebook, 23 de agosto 2016).

Vítimas da democracia:

Sérgio Buarque de Holanda, que para a maioria dos brasileiros supostamente cultos é apenas o pai de Chico Buarque de Hollanda (tão mais importante que dobrou um l no sobrenome), disse que no Brasil a democracia não passava de um lamentável mal-entendido. Errou apenas no tempo verbal, isto é, a democracia continua sendo um mal-entendido. Acentuo apenas duas das múltiplas faces desse mal-entendido: o abuso da democracia e o culto da vitimização. Como a democracia nunca se entranhou de fato na nossa cultura, ela existe antes de tudo como institucionalização formal. Longe de mim depreciar a que temos. Antes ela do que nada ou a regressão a estados de exceção ou autoritarismo nu e cru.
Mas convenhamos: o que é mesmo que Dilma Rousseff, essa carpideira da história (ou da istória, como escrevia Millôr Fernandes), quer dizer quando clama contra o golpe de que é vítima em nome da democracia? Ela, seu criador e todos seus fieis sectários clamam contra um golpe político em curso perpetrado em nome da democracia. Martelam essa denúncia obsessiva ao mesmo tempo em que legitimam democraticamente todo o processo de impeachment, já que participam dele segundo todas as regras estabelecidas pela lei. Não desdobro a argumentação por saber que quem está do outro lado confunde, intencionalmente ou não, lógica argumentativa com fé dogmática.
Passando ao segundo ponto, a vitimização, não vou falar das vítimas da história recente, que são muitas. Abusando um pouco da imaginação histórica, já que hoje tantos abusam da imaginação histérica, fico pensando no que hoje seria o Brasil, se ele houvesse lutado nos campos de batalha como a Alemanha, Inglaterra, Rússia, Estados Unidos... Em suma, acho que estaríamos ainda carpindo nossas vítimas entre as ruínas literais da grande devastação. Como ninguém vive apenas de chorar, milhões estariam nas filas do INSS requisitando pensão de vítima da guerra. Fico por aqui porque vou pegar meu lugar na fila: vou requerer pensão por ser vítima da democracia. E ai do INSS se não acatar e remunerar substancialmente meus direitos. Afinal, sou também vítima da democracia, esse lamentável mal-entendido.
(Publicado no Facebook, 29 de agosto de 2016).


segunda-feira, 8 de agosto de 2016

No Mural do Facebook XXII


O Russo e o Brasileiro:

Alguém disse, acho que Bertrand Russell, que o russo confundia ideologia com vodka. Por isso, acrescento, acabou fazendo uma revolução absolutamente improvável. Inspiraram-se em Marx para converter um colossal porre de vodka ideológica numa revolução que constitui uma completa negação da fonte na qual se inspiraram. Isso prova que a história é uma invenção humana indomável por qualquer ideologia supostamente científica. Marx e Engels tinham a presunção de haver fundado o socialismo científico. Os russos confundiram sua teoria com vodka e assim transformaram o país mais brutal e autocrático da Europa, quintal do capitalismo, na pátria da revolução proletária. Em suma, Marx põe e a indeterminação histórica dispõe, fato que desmente toda a sua teoria da história.
Gilberto Freyre ressaltou semelhanças inegáveis entre a Rússia e o Brasil. Por que, então, nunca de longe tivemos uma variação da Revolução Russa? Ora, porque o brasileiro converteu sua cachaça numa cultura festeira, fez do carnaval uma fantasia de revolução tão enganadora e funcional que esvaziou, sem que o soubesse, qualquer tentativa de revolução efetiva. Aqui, nestes trópicos delirantes, toda ambição revolucionária acaba em opereta ou golpe, real ou imaginário. Além disso, o brasileiro inventou um catolicismo festeiro e sincrético. Mistura todas as diferenças, até as mais inconciliáveis, num balaio do qual sai samba, batuque e acomodação de todo tipo de contradição. No Brasil, ninguém é ou se reconhece de direita. Pelos menos até recentemente. Agora que os antagonismos enfim eclodiram, já há gente de direita que se reconhece como tal, embora a maioria continue jurando de pés juntos que é de esquerda. O revolucionário típico do Brasil é funcionário público, membro de uma casta privilegiada e só conhece o pobre no fogão da sua cozinha.
A Rússia produziu uma força social minoritária, mas poderosa, que nunca tivemos nem teremos: uma intelligentsia. Nâo é à toa que a palavra é de origem russa. Foi ela a real protagonista da Revolução Russa. Ela dirigiu todo o processo revolucionário com mão de ferro e venceu obstáculos inconcebíveis para o socialismo científico de Marx. Por isso acabou realizando todos os imprevisíveis históricos entre 1917 e 1945, digamos sugerindo um recorte histórico arbitrário. Lenin, Trotsky e Stalin, para falar da Trindade Sagrada, constituíram a cristalização de um processo de determinação singular da vontade revolucionária sedimentado desde a rebelião dos dezembristas (1825).
Concluindo, a vodka produziu uma legião de fanáticos que entre 1825 e 1917 realizou uma das mais espantosas revoluções da história. A cachaça do brasileiro produziu o carnaval, o samba, o sincretismo religioso, o futebol (os ingleses serviram apenas para inventar o que nunca aprenderam) e por fim, fechando seu ciclo de carnavalização da cultura, naturalizaram Deus como brasileiro. Deus é brasileiro: eis o milagre consumado.
(Postado no Facebook, 21 de julho 2016).

Millôr Fernandes:

Nestes tempos de tanto alinhamento ideológico e intolerância, de repente tive saudade de Millôr Fernandes. Lendo-o, eu me sentia em casa, reconhecia-me num país imaginário onde o indivíduo afirma sua liberdade pensando livre de qualquer tutela: igreja, partido, corporação ou torcida. Millôr foi, já escrevi, o intelectual mais livre do Brasil. Como tal, incomodava todo mundo. Não bastasse tanto, foi o melhor pensador brasileiro traduzindo seu ceticismo radical na forma de aforismos e desaforos, irreverência e prazer de castigar a estupidez humana com a lâmina afiada do humor e da inteligência intransigente. Num país de funcionário público, categoria na qual me incluo, foi o melhor modelo do self-made-man. Millôr é a evidência de que pensar com liberdade é um peso que poucos suportam carregar pela vida afora. Por isso não me espanta encontrar tanto libertário seguindo ou sendo seguido pela massa. A única massa que aprecio é massa de macarrão. Neste contexto, nada melhor, para saudá-lo, do que citar alguns dos seus aforismos. Vou omitir as aspas.
Liberdade Liberdade:
A liberdade é um produto da alucinação coletiva.
A nossa liberdade começa onde podemos impedir a do outro.
A liberdade começa quando a gente aprende que ela não existe.
Eu também não sou um homem livre. Mas nunca ninguém esteve tão perto.
Nossa liberdade começa onde começa a escravidão alheia.
Não tenho procurado outra coisa na vida senão ser livre. Livre das pressões terríveis dos conflitos humanos, livre para o exercício total da vida física e mental, livre das ideias feitas e mastigadas. Tenho, como Shaw, uma insopitável desconfiança de qualquer ideia que venha sendo usada há seis meses.
(Postado no Facebook, 17 de julho 2016).



quarta-feira, 25 de maio de 2016

No Mural do Facebook XVII


A democracia petista:
Até eu, que não me meto nesse ninho de cobras e de resto não tenho nenhuma importância política, até eu já senti os ares tolerantes e civilizados da democracia petista after the fall. Respondo com lógica e fatos a acusações maniqueístas que me fazem e o resultado é o previsível: nem sequer curtem, ignoram por completo meu argumento. Em suma, desprezam uma norma implícita em qualquer debate democrático. Curtir o que o outro me escreve, seja quem for, é a evidência mais elementar de reconhecimento da humanidade de quem fala com ou contra mim.
Esquecem, ou simplesmente ignoram, a definição de liberdade que endosso e é insuspeita, pois procede de Rosa Luxemburgo: Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.
Esse simples fato evidencia o que qualquer pessoa lúcida e isenta já está farta de saber: toda essa farsa de golpe contra a democracia, toda essa apologia dos sagrados princípios da democracia e das suas instituições, que o PT é o primeiro a agredir e desacreditar, é simplesmente guerra ideológica suja. Precisam corromper a língua portuguesa já tão maltratada porque não toleram a democracia real, porque são incapazes de subordinar a ideologia enquanto falsa consciência às provas imperativas da realidade.
(Postado no Facebook, 14 de maio de 2016).

Minc Money:
Eu nada espero e assim me poupo de desesperar. Fui e continuo favorável à queda do PT devido a fatos óbvios que não perderei tempo expondo e analisando. Fatos são de direita ou de esquerda? Fatos são fatos. Se dizem que são de direita ou de esquerda, aí já não falamos deles, mas de ideologia como falsa consciência. Quem me ensinou isso foi Marx, fato irrelevante para a esquerda que nada aprendeu com ele.
Eu nada espero e assim me poupo de desesperar. Por que me decepcionaria ao constatar que o governo Temer teme a poderosa guerra ideológica promovida pelos artistas brasileiros que amam o povo e a democracia, mas amam as tetas do Estado patrimonial acima de tudo? Há muito, ou desde sempre, há setores da cultura brasileira completamente desprezados por nossos governos. Nunca ouvi desses artistas consagrados ao bem do povo uma palavra de protesto. Agora, com o Estado patrimonial à beira do colapso, o desamparo da cultura é ainda mais evidente, fato que em nada altera o silêncio dos intelectuais e artistas.
Bastou, no entanto, suprimirem o Ministério da Cultura, que na verdade passaria a ser um braço subordinado ao Ministério da Educação, e logo a grita foi geral. Como salvar a cultura brasileira (isto é, os patrocínios lesa-cultura) sem a Lei Rouanet, cujos fins foram completamente corrompidos? Os protestos foram tantos, de Ipanema a Cannes, do sertão da Casa-Grande populista aos jardins paulistas, que Temer temeu por sua popularidade e afrouxou o nó. Voltam o Minc, a Lei Rouanet e o ganha-pão dos bravos artistas e intelectuais brasileiros que precisam de arrimo estatal para continuar lutando pelos pobres do Brasil. Outros ministérios voltarão, pois a troca de governo em nada altera a estrutura secular do nosso Estado patrimonial. O PT empurrou o Brasil para o buraco, mas o buraco real está ainda mais abaixo.
(Postado no Facebook, 21 de maio de 2016).

quarta-feira, 20 de abril de 2016

No Mural do Facebook XI


O Circo do Atraso:

A votação no congresso (com c minúsculo, por favor) comprova o que todo brasileiro consciente está cansado de saber. À parte o refrão que já não suporto (corrupção, golpe, defesa da democracia...) o discurso torto, grotesco e repetitivo desses congressistas é a cara do nosso atraso. Como dizia Caio Prado Jr., o Brasil é muito atrasado. É atrasado à esquerda e à direita, dentro e fora do congresso, no conjunto das nossas instituições, práticas e valores sociais.
Uma das evidências mais fortes do que acima escrevi consiste no apelo grotesco à família como instituição matriz pairando acima do que deveria ser a estrutura de uma República. Não é à toa que Lula retoma o refrão do pai dos pobres, Dilma a de mãe dos pobres. Trocaram o trabalhador, categoria de classe, pela figura do pobre, mito infalível do populismo latino-americano. À direita e à esquerda, se cabe ainda usar essas categorias rotas, o que fica exposto é um Brasil de família que anexa o Estado, absorve suas funções e deixa os cofres abertos para o saque e a privatização do bem público.
Assistindo a essa sessão circense, de resto previsível para quem vê o Brasil isento da fumaça ideológica que o desfigura, é desolador comprovar o quanto é poderosa a força da tradição neste país que ninguém sabe quando ingressará efetivamente na modernidade. Por isso, é necessário ler ainda Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os donos do poder, de Raimundo Faoro, que em registros distintos traçam a genealogia do nosso atraso social e mental. Quero Dilma, Lula e o PT desalojados do poder, mas seria um tolo se me iludisse supondo que isso muda muita coisa. O Brasil tem um mundo de coisas para mudar e elas não mudarão se nós brasileiros não mudarmos. Isso vai dos palácios do poder ao meio-fio das cidades. Em suma, enquanto as reformas profundas não forem gradualmente enfrentadas e postas em movimento, continuaremos sendo o país da esperança, dos órfãos do pai Estado.
(Postado no Facebook, 17 abril 2016).

Balanço do Brasil:
A essa altura, restando ainda 98 votantes no cugresso (sorry!) nacional, atrevo-me a confirmar a bola de cristal do desfecho óbvio. Houve golpe, sim. Mas as vítimas foram as pessoas inteligentes, honestas e sensatas deste país de chanchada. Vou processar o cugresso (sorry again!) por crime de indução ao alcoolismo. Não sei quem mais é vítima desse circo patético. Sei que eu sou. Há mais de um mês não tomava uma dose de uísque. Não por virtude, se é que há virtude na abstinência, mas por reação alérgica. Nietzsche serviu-me ao menos para isso: para me afastar do álcool, da família e do cristianismo. Quinze minutos de circo no cugresso (sorry etc) foram suficientes para me levar de volta à garrafa e à gramática. Essa gente assassina a língua portuguesa com uma inconsciência desconcertante.
Juntando os cacos do país, vislumbro no fundo do túnel a solução que aparentemente escapou a todos os mercadores de partidos políticos. Ora, o Brasil tem mais de trinta (são quantos mesmo?), mas nenhum publicitário teve a luminosa ideia de criar o partido mais óbvio, autêntico e majoritário do Brasil: o DFP (Deus, Família e Propriedade). Se há algo que sintetiza a catatonia mental e ideológica dos nossos congressistas, esse algo está condensado num deus de bordel, numa família parasita do Estado e na propriedade sem função social, a não ser salvaguardar a desigualdade brutal da sociedade brasileira.
(Postado no Facebook, 17 abril 2016).

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Capitalismo Estatal e Cinema


Talvez importe iniciar este artigo declarando alguns fatos que sugerem meu trânsito à margem da realidade cultural pernambucana e sua rede de relações associativas. Faz muitos anos que não freqüento salas de cinema, muito menos a exibição de filmes brasileiros. O cinema que continuo vendo e revendo por escolha, fruição estética e prazer procede do mercado de DVD e redes como o You Tube. Ensaio este preâmbulo porque, depois de muito relutar, decidi enfiar minha colher torta no bate-boca que tomou conta do mural do Facebook, onde ocasionalmente ainda navego. Leio bem poucos. Alguns, como Cristiano Ramos e Mano Ferreira, me dão uma vaga noção de um incidente deplorável, mas culturalmente sintomático, como tentarei esclarecer adiante, ocorrido durante uma sessão no Cinema do Museu. Isento-me de sumariamente relatá-lo por ser de amplo conhecimento público. Meu interesse é partir do incidente encarando-o, antes de tudo, como um sintoma do nosso capitalismo estatizado. Reduzindo a questão ao campo cultural, passo a algumas ponderações inspiradas pelo ideário liberal que embasa esta coluna cujo título é A Letra Plural, publicada pela revista eletrônica Café Colombo.

Há vários anos, quando o chamado renascimento do cinema pernambucano ainda engatinhava, ouvi de um de seus participantes a frase seguinte: ninguém faz um filme no Brasil sem ceder 30% do patrocínio estatal (o truísmo intencional vale como ênfase) aos intermediários. O cinema nasceu e se difundiu pelo mundo como a arte do século XX. Convém todavia lembrar que é um misto de arte e indústria, talvez mais esta do que aquela. Além de produto financiado e controlado economicamente por capitalistas poderosos e ousados, depende de uma infraestrutura complexa, também de um processo de criação coletiva que o torna, não obstante a teoria falaciosa dos críticos do Cahiers du Cinema, obra de autoria coletiva.

No Brasil o enredo é outro e isso diz muito sobre a natureza do nosso capitalismo e a nossa cultura tutelada pelo Estado patrimonial. Bastaria lembrar que Fernando Collor, no auge do seu delírio privatista, dissolveu o cinema brasileiro com uma simples canetada. Aboliu a estatal e com ela se foi o cinema. Alguns mais talentosos, como Arnaldo Jabor, migraram para o jornalismo. Anos mais tarde o cinema renasceu novamente graças à tutela do Estado. Isso explica, em parte, a proliferação de tantos filmes ruins e sobretudo filmes que dão prejuízo aos cofres públicos, mas lucro assegurado a seus realizadores, para não falar dos ladrões que amealharam financiamento do qual não resultou nenhum filme. Enfiando aqui outra anedota autêntica, um amigo, sobrinho de cineasta famoso, me disse que o tio vive do que ganha dos filmes que dirige. De cinco em cinco anos realiza um filme cujos custos incluem seus ganhos pessoais previstos. É o chamado capitalismo sem risco. Assim funciona boa parte da nossa produção cultural.

No capitalismo moderno, largamente independente do Estado, as pessoas competem em todas as esferas. As relações culturais, ou o mercado da cultura, não foge a esta regra. No Brasil, todavia, a competição se concentra dentro e nas relações com o Estado entre agentes pautados não pelas normas impessoais do mercado, mas por um complexo de interesses e negociações dependentes de duas vigas: o Estado patrimonial e a renitente cordialidade admiravelmente dissecada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Indo aos miúdos que me interessa salientar, como ser um agente e/ou crítico independente no contexto acima grosseiramente esboçado? Como ser um liberal conseqüente dentro de uma ordem capitalista na qual o Estado mete o bedelho em tudo e a própria cultura, aqui compreendida no seu sentido socioantropológico, quase sempre funciona como a luva que veste a mão do Estado arbitrário? É por essas e outras que me constrange ainda declarar minha adesão ao liberalismo.

Tentei explicar o sentido em que o adoto através de uma citação de Vargas Llosa. Para quem queira compreender melhor o argumento deste artigo, e outros implícitos, recomendo a leitura do meu artigo inaugural já mencionado. Simplificando, limito-me a dizer que defendo um Estado regulador das relações gerais do mercado e interventor apenas na esfera das políticas públicas (saúde, educação, segurança, transporte público...). Por isso me oponho ao Estado empreendedor na esfera econômica, o Estado detentor de monopólios. Além de ineficaz, ele é fonte inevitável de corrupção e abuso de poder. A Petrobrás ilustra isso muito bem e só os inocentes ou desonestos podem acreditar que a culpa é apenas do PT ou de qualquer outro partido implicado nessa roubalheira colossal. Enquanto forem propriedade do Estado, as estatais serão fonte de abuso de poder político gerando privilégios, corrupção, nepotismo, superfaturamento e outras pragas correntes no Brasil. Enquanto o Brasil não reformar pela base o seu Estado, crises como que a estamos sofrendo serão recorrentes.

Mas quem quer reformar o Estado brasileiro convertendo-o de fato num Estado moderno, isto é, republicano e democrático? Nem o povo quer, ele que é a vítima desse modelo espoliador. Afinal, formou-se há séculos sob a tutela do Estado-pai encarnado mais recentemente em Getúlio Vargas e Lula. Raimundo Faoro traçou-lhe a genealogia demonstrando como se perpetuou através da nossa história. Dou um exemplo do seu oposto, o Estado democrático-liberal moderno, que vale por mil argumentos. Estava vivendo na Inglaterra quando o Estado totalitário soviético desmoronou. Quando destruíram o muro entre a Alemanha Ocidental e a Oriental li, com olhos de brasileiro perplexo, esta manchete de primeira página do The Sunday Times: 30 mil soldados ingleses sumariamente demitidos. Explicando melhor, as forças armadas que guarneciam o lado ocidental da fronteira foram automaticamente demitidas pelo Estado inglês tão logo o muro foi demolido e elas se tornaram portanto inoperantes. Não preciso acrescentar mais nada. Sugiro apenas ao leitor que imagine um dos nossos 39 ministérios sendo abolido e demitindo 1000, digamos 100, parasitas do nosso funcionalismo público. Que mais dizer, além do que o leitor crítico pode deduzir do meu exemplo?

Encurtando o artigo com uma provocação, pois as articulações entre Estado patrimonial, cordialidade e cultura são complexas demais para minha inteligência fatigada e cética, sugiro apenas a abolição dos patrocínios estatais ao cinema que não obedeça a funções rigorosamente educativas e culturais isentas de finalidades mercantis. Pelo menos uma conseqüência seria facilmente previsível: cessariam esses bate-bocas de gênio de província e o Recife – também o Brasil, por extensão – seria removido das páginas do Guiness como a cidade, e o país, que tem a mais alta taxa de cineastas por m2 do mundo.

domingo, 25 de janeiro de 2015

No Mural do Facebook II


Brasilbrás
A inconsciência e a apatia política do brasileiro não é uma coisa qualquer. É um mal entranhado na nossa formação mais remota. Por isso governantes, seja de que partido forem, usam e abusam dos nossos direitos e bens. Mesmo a minoria politizada e opinativa denuncia no geral os efeitos, pois não percebe as causas profundas do nosso atraso e problemas que se arrastam através de séculos. O Estado brasileiro, por exemplo, não mudou essencialmente desde as origens do império colonial português. É o Estado patrimonial, privatizado por uma casta que governa em benefício próprio e dos seus parentes, apadrinhados, amigos e associados. Nossa chamada elite é apenas uma clientela, como bem observou Evaldo Cabral de Melo. O Estado concentra o poder usando seu poder de agente interventor na esfera econômica para pilhar impiedosa e sistematicamente a sociedade. Segundo Eduardo Giannetti, 60% da nossa renda salarial procede do Estado. Isso evidencia o quanto a esfera do capital privado é restrita. Todos os países de comprovada eficiência econômica no capitalismo moderno funcionam exatamente de modo contrário. No país das estatais, ai de quem ousar sequer sugerir a privatização de um monstrengo como a Petrobrás.
Não falta quem denuncie a corrupção, sobretudo agora, quando assistimos à investigação de mais uma colossal pilhagem que provavelmente vai dar em nada ou em muito pouco, já que todos os partidos de maior força estão implicados. Para bom entendedor: vão se associar para impedir o avanço efetivo das investigações na esfera política. Quem paga a conta? O contribuinte, é claro. A sociedade apática e inconsciente da pilhagem sistemática a que é submetida continua dormindo nas filas e macas depredadas pela corrupção e o parasitismo público. Temos uma das mais altas cargas tributárias do mundo, com o agravante de que o Estado bem pouco retribui em serviços e deveres constitucionais o que cobra da sociedade, e agora vem por aí mais arrocho. Vamos novamente pagar as contas astronômicas da corrupção entranhada nas estatais e em todo o aparato estatal. Mas nem os críticos mais veementes ousam falar em privatização. Falar nisso é incorrer numa heresia, é coisa de neoliberal entreguista. E assim continuamos pagando contas sem resgate cada vez mais extorsivas. O que nos consola é a complacência fatalista com que nos gozamos e gozamos de tudo, sobretudo o circo que não pode parar. O carnaval já começou de costas para a crise que se agrava enquanto a classe dirigente e sua clientela continuam saqueando a sociedade inconsciente e apática. Merecemos continuar sendo um país de segunda categoria como se isso fosse uma praga ou fatalidade. E quase todos se consolam cantando o país da esperança, como se esperança fosse realidade. Nossa miséria é tão grande que sequer nos consola esperar sentado. Tem fila até para a esperança.
Facebook, 20 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

Acho que minha amiga Deborah Echeverria pisou em falso ao endossar argumentos de certos relativistas e críticos do Ocidente. Refiro-me a quem diz que não é Charlie. Para começar, o endosso à frase, ou slogan, não significa adesão irrestrita ao humor da revista Charlie Hebdo. Significa, antes de tudo, defesa da liberdade de expressão. Portanto, rejeição à barbárie destrutiva, com perdão do truísmo que se justifica como forma enfática. Lembrando a definição da liberdade proposta por Rosa Luxemburgo: Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós. Afirmar que o islamismo rejeita as grandes conquistas da modernidade, fruto da tradição iluminista cujo foco mais dinâmico foi a França do Século XVIII, não é incorrer em crime de intolerância ao islamismo, muito menos justificação do imperialismo ocidental.
É claro que há intolerância de um e de outro lado. Mas todas as conquistas democráticas, toda a tradição de reconhecimento e respeito pelo outro é obra do Ocidente. Isso é tão verdadeiro que somente no Ocidente existe relativismo cultural. Nossas universidades estão cheias de radicais de cátedra usando os sofismas do relativismo para atacar o Ocidente e defender todas as culturas diferentes ou incompatíveis com a tradição de tolerância fundada no Ocidente depois de muitos séculos de luta. A diferença é simples: tentem imaginar um Foucault ou um militante de qualquer movimento em defesa das minorias no Oriente Médio
Facebook, 10 de janeiro 2015.

P. S. – O comentário acima, postado no mural do Facebook, provocou a incompreensão previsível. Os limites do espaço já de partida me obrigam a condensar e também simplificar meus argumentos. Não bastasse tanto, a natureza polêmica do tema concorre acima de tudo para gerar todo tipo de controvérsia e apreciação impertinente. Não sou de frente ampla nem de voz unida. Nunca militei em partido político ou professei qualquer fé religiosa. Ademais, deixei claro o sentido em que endossava a frase que correu o mundo como um símbolo de resistência à intolerância e ao terror: Je suis Charlie. Pois não faltou quem me interpelasse acerca dos limites da liberdade de expressão, do meu eurocentrismo e por fim me incluísse na corrente dos conservadores intolerantes. Apesar de tudo, insisto em me explicar fiel a um princípio de respeito à opinião alheia, à opinião do leitor, seja quem for, até que me dou conta de que esbarro em paredes surdas e me calo.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Questão de polícia?


A violência crescente no Brasil me fez recordar uma frase famosa atribuída a um presidente da República Velha: A questão social é uma questão de polícia. Vai sem aspas porque cito de memória. O autor da frase, Washington Luís, expressa assim, de forma chocantemente reveladora, a mentalidade profunda da nossa classe dirigente. Ela pensava assim nos idos da década de 1920 e continua pensando tal e qual: questão social no Brasil é questão de polícia. Quando o povo tratado como gado se organiza para reivindicar o direito de ingressar no espaço da cidadania efetiva, não esta de clipe publicitário e propaganda oficial que vemos todos os dias paga pelo dinheiro do contribuinte, a classe dirigente, fiel à sua tradição, solta a polícia nas ruas, favelas, onde houver povo lutando para ser politicamente reconhecido como povo.
Quanto maior a pressão na panela, maior a força de repressão policial. Noutros termos, o governo de hoje continua fiel ao espírito da frase de Washington Luís. O mais inquietante é que a pressão na panela é crescente. Depois de séculos usando o mesmo remédio para sufocar problemas que logicamente tendem a agravar-se, o risco de a pressão estourar a panela não é nada improvável. Não me refiro a nenhuma revolução social, alerto os extremistas à esquerda e à direita. Refiro-me a uma explosão de violência cujos sinais são cada vez mais manifestos. O noticiário banal, cada vez mais um caso de polícia, assim como o cotidiano violento dos formigueiros urbanos onde se concentram cerca de 80% da população brasileira, são indícios inegáveis de um país às bordas de uma guerra civil. Somos incapazes de perceber a gravidade dessas evidências por uma razão muito simples: nossa violência está entranhada na nossa formação e história. Seres humanos tendem a ser espontaneamente etnocêntricos, isto é, tendem a aceitar como padrão de normalidade a realidade que vivem. Se vivemos num clima de violência rotineira, como é fato, passamos a viver a violência, também a exercê-la, inconscientes dessa realidade, ou simplesmente vivendo-a e tolerando-a como padrão de normalidade.
Até Paulo Coelho, guru supremo da literatura de auto-ajuda globalizada, vaticinou há poucos dias, em entrevista difundida na internet, a violência que muitos temem sacudir a Copa do Mundo. Embora convidado oficial da Fifa, o escritor, que há muitos anos vive fora do Brasil, como tantos que podem dar-se a esse luxo, recusou o convite. Vem ao Brasil apenas quando necessário. Como o futebol da Copa do Mundo não lhe parece necessário, e nisso afinal concordo com ele, melhor guardar distância dessa festa planetária que, a julgar pela previsão do guru, vai ter mais violência do que futebol.
Já que entramos neste assunto, futebol, por que a violência se agrava nos estádios, chegando, como é agora o caso, a extremos de barbárie aberrante? Quem sou eu para explicar essas coisas, muito menos propor solução para elas. Se as autoridades e especialistas parecem impotentes para conter a maré montante, que dizer de mim? Digo apenas que o fenômeno me transporta de volta à frase de Washington Luís. Embora o problema seja de extrema gravidade, e crescentemente se agrave, a classe dirigente, fiel ao jeitinho brasileiro, continua empurrando o problema e a solução com a barriga. Dá-se um jeitinho aqui, outro acolá, e tudo continua como está. Quero dizer, piora. Agora essa evidência indesejável salta aos olhos. As medidas tomadas pelo governo são foguetório para inglês ver, como se dizia em remotos tempos coloniais.
Compreender o funcionamento social e cultural do Brasil é uma coisa tão complicada que até nos casos em que a questão é nitidamente de polícia o governo se comporta como se a questão fosse de campanha educativa, medidas paliativas, declaração pública de boas intenções (quase me escapa o desfecho das intenções com o lugar comum previsível) e exortação midiática contra a violência seguida de louvores à paz. Em suma, tudo continua como vinha. Quero dizer, continua pior. Muitos dos casos de violência corrente são típicos de uma cultura regida pelo excesso, que na sua aba negativa descamba para a anarquia social. Isso está entranhado na nossa história. Não vem de hoje, portanto, nem de circunstâncias excepcionais. Sérgio Buarque de Holanda põe o dedo agudo nessa ferida quando salienta nossa mentalidade de barão. Como nunca fomos capazes de constituir uma ordem verdadeiramente democrática, quem pode tende a se comportar como barão. Como há barão em demasia, por vezes a desordem se converte em anarquia social. É aí que a maioria, sem excluir muitos democratas e liberais empedernidos, convoca o primeiro tirano à mão, ou as forças armadas. Esse é outro filme que já vimos muitas vezes.
Apesar de todo o foguetório de quase 20 anos sob o governo daqueles que supostamente constituiriam a alternativa legal para a classe dirigente que governa questão social confundindo-a com questão policial, o Brasil melhorou topicamente, evidência irrecusável, mas nada fez para sequer encaminhar as soluções estruturais mais urgentes. Depois de tanto repor o atraso como condição do desenvolvimento restrito a objetivos economicistas, apenas variando em grau a modernização conservadora imposta a porrada pela ditadura militar, chegamos ao impasse presente: a desigualdade iníqua, expressão que já virou lugar comum, atrelada a todos os problemas crônicos que vemos e sofremos nas ruas e no noticiário do dia: formigueiros humanos empilhados em metrópoles e cidades que semelham acampamentos urbanos, imobilidade urbana crescente, violência idem. O resto do filme todo mundo está cansado de ver: educação, saúde, segurança, transporte etc. aos bandalhos.
Quem ainda lembra a imprevisível e desastrosa ascensão de Fernando Collor, um jovem bonito das Alagoas cuja história política era praticamente nula quando saltou do anonimato para a presidência da República? Quem ainda lembra os mecanismos da publicidade astuciosa com que foi de um extremo ao outro? Fernando Collor vendeu com sucesso a imagem do caçador de marajás (expressão anacrônica cujo sentido continua atualíssimo) revolvendo assim a impotência e a revolta recalcada de um povo tratado como gado em hospitais públicos, repartições públicas etc. 26 anos mais tarde, continuo vendo o mesmo filme na televisão e na mídia em geral. É o filme que mais conheço sobre o Brasil, pois comecei a vê-lo na minha infância. Por essas e outras, o Brasil me transmite ainda a sensação depressiva de uma descrença paralisante.
Parece que o povo – ou a ralé do andar de baixo, como reza a expressão pejorativa repisada por profissionais da mídia – está cansado de ser gado. Ou simplesmente já não suporta o stress (como dizemos nós, os privilegiados, e o próprio brasileiro do andar de baixo já repete) que é viver e trabalhar no ‘Brasil de todos”, diz o mote insultuoso do partido que veio de baixo para se tornar igualzinho aos que sempre estiveram em cima. Pipocando de stress, o povo se rebela desordenadamente e agora parte para o quebra-quebra: queima ônibus e vagões de trem, fecha ruas e rodovias queimando pneus e imobilizando contingentes de veículos e pessoas ao longo de quilômetros nas vias ferventes de tensão e conflito. Raramente cenas dessa natureza são provocadas por grupos politicamente organizados. Portanto, não se trata de mobilização política do povo. O fenômeno sugere antes o desatino de um povo no limite da exaustão decorrente de formas endêmicas de opressão social. O que fará a classe dirigente diante de pressões tão inquietantes e incontroláveis? Continuará seguindo a regra crua da frase procedente de Washington Luís?
Há muito tempo, entre 1896-97, milhares de sertanejos nordestinos escaldados pela miséria tentaram fundar uma cidade comunitária regida pelo messianismo de Antônio Conselheiro num fim de mundo do mapa da Bahia. A Guerra de Canudos, desencadeada pelo exército brasileiro contra os canudenses, foi sem exagero um acontecimento épico na história do Brasil. O desfecho ilustrou de forma brutal a frase que Washington Luís cunhou algumas décadas mais tarde. Os canudenses foram literalmente varridos do sertão depois de exterminados até o último combatente. Seus herdeiros, no mato sem cachorro, ou Fabianos sem Baleia, para evocar a obra de Graciliano Ramos, migraram para a cidade. Muitos, absorvidos pelos mecanismos produtivos do nosso capitalismo selvagem, construíram tudo isso que vemos e desfrutamos à nossa volta. Constroem durante o dia e à noite tentam repor a força de trabalho transportados de volta à periferia como gado em ônibus, trem e metrô. Outros, os mais desvalidos, moram provisoriamente nas obras que erguem tijolo sobre tijolo. Mas uma grande fração desse povo é inassimilável ao sistema produtivo. Por isso engrossa a corrente do que Marx chamava de lumpen proletariado. Hoje de manhã vi um deles (militante do Movimento dos sem Teto) ocupando um prédio no centro de São Paulo. Sua procedência, seu lugar social era inconfundível: o tradicional chapéu de couro do sertanejo nordestino banido da utopia sonhada por Antônio Conselheiro. A imagem na televisão piscava para quem sabe das origens. Parecia advertir: Canudos está em São Paulo e quer o que o beato Conselheiro e Padim Ciço prometeram aos desvalidos deste país. Qual será a resposta dos herdeiros de Washington Luís? Aguardem o próximo capítulo. O guru Paulo Coelho prefere sensatamente espiar à distância guarnecido pela civilização europeia. Mas nós estamos aqui, espremidos entre a questão social e a policial. Não haverá uma saída?
Recife, 07 de maio de 2014.

domingo, 25 de maio de 2014

Nos Murais da Internet IV


Paranóia Social
Antes que alguém me acuse de psicologizar questão social, alerto para o fato de que onde há fumaça, há fogo, lembrando o dito popular. Paranóia não é puro delírio ou alucinação patológica. A paranóia tem sempre um pé no contexto social, no espaço real onde o paranóico pisa. Acabo de dar uma volta de carro pelo bairro onde moro (Setúbal e algumas extensões). Não consegui nem comprar pão. Quase tudo fechado, até clínica de hidroterapia. Perto da praça de Boa Viagem vi um automóvel em chamas e gente fotografando a cena. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Há sem dúvida paranóia no ar, mas o fogo está queimando no solo onde ela pisa. Nenhum povo vive sem mitos, como nos ensinam os antropólogos. No entanto, triste de um país que vive de mitos, como é o caso do Brasil, a começar pelo mito do país da esperança. Aliás, este cabe como uma luva na nossa mão torta. Só se espera o que não se tem. É o caso dos brasileiros. Lembrem do contramito cantado por Chico Buarque: está provado, quem espera nunca alcança. Há só um remédio para a esperança: a vontade que gera ação transformadora. (15 de maio 2014).
Consumo versus civilização
Definindo civilização nos termos mais simples e neutros, o ser civilizado é aquele que respeita as normas de funcionamento da sociedade em que vive. Ninguém nasce civilizado. Internalizamos essas normas através de um longo e complexo processo de socialização que começa na família e passa para a escola, a religião e outras instituições socializadoras. No Brasil, nenhuma delas funciona efetivamente. A sociedade de consumo, na qual somos o que consumimos, ameaça ainda mais esses controles sociais. Os que têm vivem no shopping, templo desse novo mundo. Os que não têm sitiam o shopping e extensões da rede de consumo empilhados em favelas. Esses mundos antagônicos definem a paisagem potencialmente violenta da cidade brasileira. Quando a polícia cruza os braços, os que têm fecham as portas para proteger-se do saque desencadeado pelos que não têm e são de ordinário contidos apenas pelo medo da polícia e dos automatismos cotidianos da vida social. Os que têm fecham as portas e os que não têm começam a arrombar as que podem. Foi o que vimos e tememos nos dois dias de greve da polícia. (16 de maio 2014).
Volta à normalidade
No dia seguinte ao fim da greve dos policiais e bombeiros, repeti a volta de carro da véspera pelas redondezas. Que prazer respirar novamente esse ar de normalidade recifense! Na Av. Boa Viagem os motoristas, em pleno trânsito confuso, conversam ao celular, furam sinal vermelho, estacionam onde é proibido. A transgressão habitual. Na curva da Rua Baltazar Passos, por pouco não atropelei um ciclista pedalando na contra-mão. Ciclista no Recife acha que bicicleta (ou Bike, como colonizadamente dizemos) não é veículo. Diante da escola, o engarrafamento previsível provocado por pais que formam fila dupla e até tripla. É assim que nossas crianças são socializadas. Do parque Dona Lindu nem falo, pois num país civilizado seria caso de polícia. Por fim, almoçando no restaurante, ouço o dono e a cliente bela e elegante, almoçando com um casal de filhos pequenos, comentando os incidentes e saques da véspera:
Ela – Uma vergonha. Fecharam o mercadinho porque foi assaltado por dois bandidos. A polícia chegou a tempo e atirou neles. Matou um.
Dono do restaurante – que bom!
Em suma, que alívio voltar à normalidade. Espero que a gente continue sempre assim. Um povo que vive desse jeito não precisa de repressão policial. (18 maio 2014).

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Nos Murais da Internet III


A ditadura e seu legado
Caro Carlos Orsi: Muito bom o seu artigo sobre a ditadura e seu legado. As distinções que você faz, tendo como eixo o valor suprimido da democracia, esclarecem de forma sumária, como seria inevitável dentro dos limites do artigo, algumas confusões frequentes nos debates sobre o assunto. Acrescentaria apenas que a ditadura foi mais do que militar-civil. Ela foi também amplamente apoiada pelo povo, sobretudo pela via da passividade ou indiferença. Acho que a explicação deste fato, no geral silenciado até pelos críticos mais lúcidos e isentos, deriva do autoritarismo constitutivo da nossa formação social. Vivi boa parte dos “anos de chumbo” trabalhando numa fábrica e convivendo intensamente com operários, gente da classe média baixa e habitantes da zona açucareira de Pernambuco, linha de ponta da revolução que não houve nem poderia haver, salvo nas avaliações fantasiosas da esquerda e da direita paranóica, que usou isso como instrumento para justificar o golpe. Vivi com o outro pé na universidade estudando direito. Afora os gatos pingados que opunham alguma resistência à ditadura, antes de tudo no plano da consciência, o apoio à ditadura era massivo. Cansei de ouvir elogios rasgados a Médici e aos militares. Seria engano supor que essa mentalidade autoritária mudou muito. A democracia que você ressalta, e inteiramente aprovo, é de fato muito restrita, pois o Brasil mantém fora dela a maioria que somente poderia exercê-la se nossa noção de democracia se estendesse efetivamente para o plano social. Noutras palavras, precisamos ainda da democracia que nunca tivemos: a social, a que removeria a maioria do povo do estado de tirania social e econômica a que continua submetido. Não preciso acrescentar que somente ele, o povo, pode conquistá-la. (Blog Amálgama,27 de março 2014)

Estatismo brasileiro
Acho que só existe uma solução para o problema das estatais bem desenhado no editorial desta semana: privatizá-las. Privatizá-las, acrescento, impondo ao capital privado regulações efetivas impostas pelo Estado. Propor isso, no entanto, seria propor uma revolução que não interessa a ninguém, nem ao povo espoliado pelo modelo estatizante que sempre prevaleceu na nossa economia. Esse modelo, sabem os economistas e historiadores bem melhor que eu, remonta a Getúlio Vargas e nunca foi substancialmente alterado. Hegemônico na esfera econômica e política, sustenta-se sobretudo na mentalidade geral, que encara qualquer proposta de modernização segundo modelos como o anglo-saxônico como neoliberalismo – noutros tempos foi entreguismo. O modelo estatizante inabalável no Brasil serve antes de tudo como instrumento poderoso de espoliação do povo. (Revista Será?, 28 março 2014).

Petrobrás e estatais
Existe solução para as estatais que se servem da sociedade (do dinheiro do contribuinte, melhor dizendo), quando deveria ser o contrário. Existe solução, mas é difícil e de resto ninguém quer sequer pensá-la. A solução seria privatizar as estatais. Mas antes seria preciso submeter o Estado brasileiro a uma reforma profunda, que seria na verdade uma revolução: converter suas estruturas patrimoniais em instituições democráticas modernas características de uma autêntica social-democracia. No Brasil tal como é, esta solução é inconcebível. Portanto, tudo vai continuar como sempre foi. Como observei algures, nunca subestimem o poder de inércia social do Brasil. Noutras palavras, a força das nossas tradições retrógadas. Somente a organização democrática do povo poderia forçar essas mudanças. Mas o povo nada sabe nem quer saber. O povo, domesticado por cinco séculos de tirania patrimonialista e catequese que afinal nos valeu um santo, continua achando que tudo deve vir do governo: o governo pai, atualmente mãe Roussef, e provedor. Com um Estado como o nosso, o Brasil continua sendo o paraíso do capitalismo sem risco, também das multinacionais e corporações que aqui fazem o que querem. (Revista Será?, 28 março 2014).

Radicalização e violência
Discordo da estranheza acentuada no Editorial da Revista Será?: Radicalização e Violência. A democracia que temos de fato é e sempre foi restrita. Ela exclui a maioria dos brasileiros. Liberdade de expressão, por exemplo, é um direito que importa apenas para a minoria que pensa e opina no Brasil. Não significa nada para a maioria que vive um cotidiano factualmente opressivo e violento. Nossa violência é endêmica e impregna nossos modos correntes de vida. É tão endêmica que nem a percebemos. O que me espanta é a persistência dessa percepção mítica de um país sempre representado como alegre, feliz e festeiro. Somos também isso, mas tudo isso convive com a violência. Portanto, nada de estranhável. Aliás, acho mesmo é que devemos nos inquietar não só com o que está acontecendo, mas também com o tom dos dois comentários dos leitores que precedem este meu, que diante deles é sinceramente banal e previsível, vindo de quem vem. Acho que o leitor de Será? deveria ler com muita reflexão o tom dos comentários acima. Eles são a faísca de uma violência social há muito reprimida neste país que me inquieta e transtorna minhas medidas de compreensão. (Revista Será?, 3 maio 2014).

Radicalização e violência II
Não resisto ao desejo de fazer uma adição ao meu comentário. O comentário de César Garcia parece o fragmento de um conto de Rubem Fonseca, escritor que ousaria dizer profético. Como sabemos, ele teve um livro de contos (Feliz Ano Novo) censurado pela ditadura. Se não soubesse um pouco de política, acharia irônica a censura a uma obra literária sobre a violência brutal no auge de uma ditadura. Acho sintomático o fato de o escritor que melhor traduziu literariamente a violência brasileira ter sido um delegado de polícia. Continuo achando que o conjunto da obra de Rubem Fonseca é o que melhor explica os formigueiros urbanos que habitamos. A classe dirigente brasileira, herdeira do colonialismo e do escravismo, continua governando a sétima economia do mundo com a mentalidade dos engenhos cujo fogo já se apagou há muito tempo. Essa é uma das contradições desconcertantes entre a história das mentalidades e a econômica. (Revista Será?, 3 maio 2014).

O despertar do gigante
Teresa Sales: Você tem razão ao assinalar distinções significativas entre dois tempos do Brasil “despedaçado”. No entanto, acho que sua apreciação é otimista demais ao traduzir as explosões sociais agora correntes com o despertar do gigante. Sem dúvida, ele está despertando em muitos sentidos. Mas o trote da carruagem, a julgar pelos fatos cotidianos, tende mais para a reação desordenada, para explosões sociais que, na falta de melhor expressão, designaria como movimentos pré-políticos. Um dos aspectos inquietantes dessas manifestações, como aliás ressalta o Editorial desta semana, é a violência, é a depredação anárquica do nosso frágil tecido social. Noto na revista uma concepção um tanto difusa de democracia que tende, salvo erro de avaliação minha, a confundir democracia com funcionamento das instituições políticas. Ora, isso é muito pouco para definir a estabilidade democrática de um país como o Brasil. Sustento a opinião de que a maioria, apesar do bolsa família e outras mudanças positivas, continua vivendo à margem de um Estado efetivamente democrático.
Enquanto não tivermos democracia social para valer, e estamos ainda muito longe disso, as forças de instabilidade, potencialmente anárquicas, são sempre uma ameaça possível. Minha perspectiva, como frisei discutindo com Sérgio Buarque, é a da longue durée, até porque não tenho competência como alguns da revista, para opinar com segurança sobre os processos vivos e conjunturais da política e da economia. Por observar o Brasil do ângulo acima acentuado, não consigo ser otimista. Uma análise mais adequada teria que incorporar as mudanças profundas do capitalismo global e o modo como ele funciona num país periférico como o Brasil, que nunca foi capaz de ajustar suas contas com a modernidade. Tentei sugerir algo disso no comentário que postei sob o título Consumo vs. Civilização. (Comentário sobre o artigo de Teresa Sales, O despertar do gigante, Revista Será?, 17 maio 2014).





terça-feira, 20 de maio de 2014

Nos Murais da Internet II


Brasil Insolúvel
Depois de tanto arriscar a própria vida em busca de uma solução para o Brasil, até para a humanidade, pois todo utópico é no fundo um delirante, Ferreira Gullar curvou-se à força dos fatos: a vida não tem solução. O verso é da letra que escreveu para um belo samba de Paulinho da Viola. O problema do Brasil, no entanto, é que ele é insolúvel além de qualquer medida razoável. Problemas básicos que outros países solucionaram, no Brasil persistem, quando não se agravam. Ao invés de lutar por soluções viáveis, algumas bem simples, preferimos nos refugiar na festa, na piada, em mitos consoladores como Brasil, país do futuro. O futuro está sempre além, aquém ou em nenhum lugar. Por isso nunca o alcançamos. Além do mais, o melhor dele é fruto de projetos do presente, que é o único tempo real. Mas nos resignamos a ser um país pequeno, cuja grandeza está apenas no carnaval e no futebol. Também nos consolamos com a esperança, sintoma de desamparo no presente. Só quem está muito mal é que vive de nutrir esperança. A esperança, como o futuro, está sempre além do nosso poder e vontade. Quando faremos do presente um presente que confirme nossa grandeza imaginária? (11 de março 2014)

Mobilidade carnavalesca
Tentei chegar à prévia do Piano, troça carnavalesca na qual cantei muitas vezes e vivi carnavais memoráveis. No Pina o trânsito deu um nó tão apertado que acabei perdendo a paciência e descendo do ônibus (opcional, friso). Precisei andar cerca de 7 km para afinal encontrar um táxi (na praça de Boa Viagem) e voltar para casa frustrado e cansado. Liguei a TV e então vi o povo nas ruas alegre e feliz. Fico imaginando o que sofreu para chegar aos pólos da folia e penso o que muitas vezes já pensei ao ver a resignação e tolerância com que nosso povo suporta tantas opressões cotidianas que logo se dissolvem em riso, batuque e festa. O que penso é isto: como o povo brasileiro se contenta com tão pouco! De onde vem tanta alegria e prazer de viver mesclados a um estado cotidiano de coisas tão opressivas e revoltantes? Confesso que não entendo nem louvo esse modo de ser brasileiro. Talvez ele explique o fato de sermos um país tão pequeno, tão pequeno que se consola com sua grandeza geográfica. Esse povo, transportado nas nossas cidades como gado, humilhado de todas as formas, se desmancha em festa delirante e inconsciente ao ouvir o bater de um tambor. Merecemos ser o que somos. (27 de fevereiro 2014)

Beijo gay na TV Globo:
Acabo de ler uma postagem de Renato Janine Ribeiro sobre o beijo gay que fecha com final feliz (ou infeliz?) uma telenovela da Globo. O impressionante é o fato de a emissora divulgar uma nota para a mídia justificando a cena. O Brasil definitivamente foge à minha estreiteza mental. Como é que, a essa altura da história, o país que se vangloria de sua sensualidade, de suas virtudes integradoras, capaz de juntar na mesma mesa e cama todas as raças, classes e ideologias, pelo menos de acordo com os mitos correntes, precisa apresentar uma justificativa moral e estética para uma cena de beijo entre dois gays? Países de tradição puritana, como a Inglaterra e os EUA, já banalizaram esse tema e a liberdade a ele associada, que é matéria de direitos humanos sancionada em lei. Lei lá não é como aqui, que discutimos ao infinito se pega ou não pega. Tenho que concluir repisando um inevitável lugar comum: o Brasil não existe. Ou é uma ficção inventada pela Globo. Tudo isso por causa de um beijo entre dois gays? (3 de fevereiro 2014)

Tesouros de João Pessoa
Para Fatima, Paulo, Juliana, Rosa, António, Eduardo, Taciana, Salete, Nino, Marcelle, Junior e João Batista:

Amigo é coisa tão rara
Em meio a tanto comércio
Que há quem confunda a cara
Com a coroa do preço.

Em João Pessoa me deram
O que mais quero e careço
Sendo o que são, o que eram
Eu tão-somente agradeço

O tudo que não tem paga
O tudo que em trigo teço
O que a maré apaga
E entanto sempre amanheço

Como a aurora na linha
Entre o arco-íris e o mar.
Tudo converge e se aninha
No que já foi e será.
(João Pessoa, 14 de janeiro de 2014).

A destruição da nossa memória social:
No fim dos anos 1970 fui morar em São Paulo. Lembro-me ainda do impacto que sofri diluído dentro daquela floresta de concreto. Lembro-me ainda de sentir a alienação dolorosa de quem vive numa cidade que demoliu os suportes materiais da memória social de quem a habita: prédios, praças, jardins, cinemas e todo o complexo arquitetônico cujo sentido humano consiste no fato de simbolizar a memória que vivemos no espaço da cidade. Meu estranhamento foi tão doloroso que senti a urgência de conhecer a história de São Paulo com seu passado submerso na paisagem de concreto e ruas de trânsito congelado. Foi quando descobri e li comovido o livro de Ecléa Bosi: Memória e Sociedade - lembranças de velhos. É uma das mais belas expressões do que significa memória social.
Acreditem que hoje sinto, morando no Recife, sensação de estranhamento semelhante: não mais me reconheço na cidade da minha infância, adolescência, juventude... O caso é bem mais grave. Em São Paulo eu era já o estranho que chegava; aqui estou me tornando estranho porque o poder da política corrupta e do capital desalmado estão demolindo a cidade onde vivi a maior parte da minha vida. Algo de mim, algo de cada recifense portador de memória ruiu com as paredes e a história sem texto do Edifício Caiçara. (28 de setembro 2013)

Medicina no Brasil:
Tenho evitado me meter nesta controvérsia relativa à importação de médicos estrangeiros, em particular os cubanos. Minha justificativa é muito simples: contrariamente a tantos que opinam à vontade sobre tudo, sobretudo acerca do que nada entendem, procuro opinar apenas quando tenho razões fundamentadas para fazê-lo. Este caso, porém, chegou a extremos intoleráveis. Refiro-me, em particular, às vaias dos médicos de Fortaleza, que constituem insulto inqualificável. Sem entrar nos detalhes da controvérsia, lembro pelo menos um argumento definitivo para que eu aprove a importação de qualquer médico qualificado e portador dos meios culturais e linguísticos necessários ao exercício de sua profissão no Brasil: eles vão para onde ninguém quer ir. Essa campanha implacável movida pelas instituições médicas, aparentemente em defesa da saúde dos pacientes, serve antes de tudo para encobrir e justificar a mentalidade corporativa dominante neste país cruel. O que defendem de forma inconfessável é antes de tudo interesses mercantis. Além disso, os médicos estrangeiros estão indo trabalhar aonde ninguém quer ir, repito. Acredito que levarão algum socorro a uma grande parcela dos brasileiros desamparados e expostos ao puro e simples abandono.
Quanto aos nossos médicos de todas as faixas, excluo as exceções de praxe, todos os dias abusam dos nossos direitos. Refiro-me precisamente a pacientes do meu tipo, relativamente privilegiados. Ainda não temos, pelo menos no Recife, sequer o direito elementar de ser atendidos mediante hora marcada. Ontem mesmo fui a um hospital de referência, o Memorial São José, e esperei 2 horas para ser atendido por um cirurgião que me despachou depois de 5 minutos. E esperei numa sala cheia, televisão ligada, como a teletela de 1984 (George Orwell), sentado numa cadeira apertada e desconfortável. Quando mudaremos o Brasil Profundo, o que harmoniza tecnologia de ponta e outros luxos do capitalismo globalizado com a mentalidade escravocrata que envenena ainda hoje nossas relações sociais? (27 de agosto 2013)

Médicos cubanos
Depois de ver reportagens do Jornal Nacional (ontem e anteontem) sobre a contratação de médicos cubanos, retifico o apoio, embora condicional, que emprestei a essa medida do governo. Além disso, peço desculpas a meu amigo José Carlos Cordeiro Freire, um dos mais intransigentes críticos do governo, por ter discordado dele. Lembrando um samba de Paulo Vanzoloni, curvo-me à força dos fatos. Aliás, acho que este princípio deveria reger todo tipo de discussão que travamos no Facebook. Se os fatos prevalecessem sobre o discurso ideológico, sempre deformado por nossas paixões e interesses não raro inconscientes, seríamos melhor formados pelo debate público no qual nos empenhamos. Mas quem está interessado nisso e em tudo mais, salvo o carnaval? O Brasil realizou o milagre de reduzir pão e circo a circo.
(1 de março 2014)


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Facebook e amizade


O Facebook é uma das evidências definitivas da transição de um mundo baseado nas relações face a face, expressão cunhada pela sociologia e logo estendida à linguagem corrente, para as relações virtuais. Trocando isso nos meus miúdos, deixamos de nos encontrar, de nos ver e tocar materialmente para nos relacionar como signos verbais e imagéticos, ou ainda audiovisuais. Por isso o Facebook é a grande esquina global onde todos se cruzam, se veem e se falam sem sequer precisar levantar-se da cadeira. Basta agora um clique no mouse e logo todos nos conectamos, nos fazemos milagrosamente presentes, não obstante ausentes, fechados cada um na sua ilha ou casulo.
Todos os dias vejo e converso com pessoas que nunca encontro. Estou só, cada vez mais só, e todavia povoado, aturdido por vozes e imagens, textos e palavras que já não vivo como um estado de vivência alucinada, mas como o novo estado de normalidade e modo de ser inventado pela tecnologia digital. Aprendemos a prescindir do outro e a lavrar ainda mais fundo nosso egoísmo e solidão porque nos tornamos essa inefável figura remota e imediata, ausente e presente, solidária e indiferente, ávida de vida e notícia e todavia aridamente entediada. A revolução que nos refaz é tão inusitada e contraditória que corrói as categorias lógicas mediante as quais a linguagem expressava a identidade e a contradição, as noções de espaço e tempo, de velocidade e duração. Em suma, estamos todos aprendendo a ser outro a cada dia. As condições do ser e do tempo foram viradas de ponta cabeça e não sabemos ainda o que fazer deste admirável mundo novo.
Embora declare minha incompetência que tem algo de geracional para lidar com a tecnologia digital, longe de mim pintar o Facebook com tintas sujas e paletas tortas. Aliás, se assim procedesse seria apenas contraditório de modo inconsequente. Pois não sou parte da rede, não me conecto quase diariamente para saber dos amigos, próximos e remotos, íntimos e estranhos? Apesar de ser um navegante bem seletivo e inconstante, tenho olhar atento para captar tudo que me parece interessante, inteligente, tudo que confere sentido e presença às pessoas que amo – agora virtualmente, vá lá, mas antes isso do que nada.
Cadastrei-me no Facebook por sugestão de um amigo. Além de ser incompetente para fazer essas coisas, ele me deu um conselho muito razoável: como tenho um blog e quero ser lido, então deveria cadastrar-me para postar o link de tudo que publico no blog. Segui o conselho com uma intenção, mas, como é freqüente, a realidade engendrou outras – ou outros efeitos, melhor direi. Bem pouca gente freqüenta meu blog, mas em compensação acabei sabendo do paradeiro de amigos há muito desaparecidos da minha vida. Passei a saber onde estão, com quem estão, o que comem, o que opinam e tudo que expõem na vasta esquina global. Aprendi inclusive a me valer da hiper-exposição da rede para melhor evitar quem não desejo, a melhor saber de quem quero, a rir com as postagens que me desatam o riso, a me comover com a beleza que irrompe na telinha numa multiplicidade de formas.
Em suma, encurtando o caminho, pois ninguém mais tem paciência para ler mais de uma página, o Facebook é o que já disse: a grande vitrine ou esquina global do mundo revolucionado pela tecnologia digital. É ainda tribuna, antro de fofoca e narcisismo sem freios ou senso de conveniência, palco de afetos e insultos, de indignação e conformismo. É ainda o palco onde todos nos supomos artistas e portanto importantes. Aqui todos se concedem uma importância indevida, uma relevância que ilude até os mais anônimos. Aqui, como tudo que é invenção humana, planta-se tudo e tudo frutifica, até o que já nasce podre. Há gosto para tudo e desgosto idem. Por isso importa recortar, cada um a seu modo, o seu jardim e lavrar o que resulta em colheita coletiva e portanto incontrolável. Quero dizer, cada um faz o que quer com o jardim alheio: há quem distinga a flor e amorosamente a recolha para enriquecer seu próprio jardim, assim como há quem a esmague ou simplesmente ignore. Somos assim ambivalentes em tudo: no amor como na guerra, no condomínio como no Facebook. Somos o bem e o mal porque estes pólos indissociáveis estão entranhados na nossa natureza. Concorre ainda para agravá-la o fato de que o bem não raro produz o mal e vice-versa. Agora ninguém mais precisa visitar ninguém, pois a internet fundou definitivamente a aldeia global. Se você não gosta, não importa de que ou de quem, basta desconectar. Desconectei.
já que este texto vai agora para o meu blog, então posso esticá-lo à vontade. Mas não ao ponto de entediar o típico leitor de blog, que nesse contexto é apenas uma variante do feicebuqueiro (que vá o neologismo). Quero dizer, um leitor algo mais paciente, que não larga o autor no meio de uma frase simplesmente porque este excedeu a medida de uma página, não importando sua qualidade. Seguindo uma sugestão de leitura de Fátima Duques, li uma crônica bem curta, mas certeira, de Ronaldo Monte, blogueiro mais experimentado do que eu. Ele critica com humor seco e preciso a diluição do conceito de amizade introduzida pelas redes sociais. É um fato que muito me incomoda. Embora tenha noutro texto deplorado essa nova noção de amizade, o amigo de Facebook, aproprio-me das sugestões oportunas de Ronaldo para acrescentar à minha improvisada caracterização do Facebook um aspecto cuja omissão empobreceria ainda mais minhas ponderações.
Importaria lembrar que a depreciação do conceito de amizade independe em certo grau da erosão afetiva causada pelas redes sociais. Na realidade, ela está entranhada na nossa mentalidade cultural, tendente ao desleixo e inconsequência das relações afetivas. Não é à toa que qualquer estranho, a propósito de tudo ou de nada, bate nas nossas costas e efusivamente nos chama de amigo ou amigão. No Brasil, dentro ou fora das festas e bares, todo mundo é amigo, todo mundo pulveriza na inconsequência das nossas relações este ser tão precioso e raro: o amigo. Outra evidência consiste na leviandade com que nos prometemos visitas e marcamos encontros sem que nunca umas e outros se tornem realidade. São coisas que dizemos por dizer com a inconsciência com que respiramos ou dormimos. Os estrangeiros que conheci ou acolhi no Brasil ficam desorientados quando se apercebem de que os convites e supostas visitas são apenas “para inglês ver”. Nada disso é para valer, assim como uma infinidade de coisas que prometemos e juramos não são para valer. Charles de Gaulle foi muito generoso quando disse a frase que ficou registrada na nossa história: Le Brésil n´est pas un pays sérieux.
Ronaldo Monte tem razão quando pisa no pé do Facebook irritado com essa banalização da amizade, que na rede se faz e desfaz com um simples clique no mouse. Mas volto a insistir neste ponto: somos um povo de amizades inconsistentes e fantasiosas. Somos amigos de carnaval, de festas que a troco de nada pipocam em qualquer terreiro ou esquina. Isso diz muito sobre a nossa futilidade e há muito me educou para desconfiar do foguetório dos amigos que me cercam nas circunstâncias convenientes ao egoísmo, à leviandade, ao mero acaso das circunstâncias. Amigo é outra coisa e não se faz no ruído momentâneo das festas e bares. Amigo é jóia rara que precisamos lavrar durante anos, sobretudo nas circunstâncias adversas e até extremas, pois é quando a amizade de fato reponta nas linhas puras da sua raridade.
O Facebook dissolveu o sentido real da amizade, que agora se faz ou refaz num simples clique, mas a cultura brasileira minou há muito, entre festa e batuque, misturando e diluindo cores e afetos, o sentido ontológico da amizade. Quem duvidar que procure um amigo na hora da necessidade, aquela que define quem é quem, quem é amigo ou simples parceiro de copo e de passo carnavalesco. Se amizade não se faz no Facebook, também não se faz num país onde todo mundo é amigo e amigão, onde as crianças aprendem desde os primeiros dias de escola a chamar a professora de tia e tiazinha. Uma cultura que assim socializa suas crianças está lavrando desde a origem o culto da amizade inconseqüente e confundindo amor e amizade com falso parentesco. Portanto, não culpemos o Facebook por males entranhados na nossa cultura que tanto celebramos, como se essa manifestação de amizade fosse algo além da futilidade dos afetos. Quantos estrangeiros não se enganam com esse foguetório, esses braços abertos para a amizade que não passa de festa? Quando a festa acaba e os bares se fecham, quando a escuridão desce sobre nossas vidas, quase sempre descobrimos desamparados que não há e nunca houve nenhum amigo real.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Entrevista sobre Gilberto Freyre


Fellipe Torres - Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre traça um paralelo entre a arquitetura da Casa-grande e o patriarcalismo. Seria possível atualizar a comparação ao observar a arquitetura moderna de arranha-céus, de apartamentos minúsculos onde impera o individualismo? O quanto do patriarcalismo enxergado por Freyre permanece em vigor na sociedade? Com que outros elementos ele coexiste?
Resposta - A pergunta é muito pertinente e infelizmente apoiada por muitas evidências. A força da tradição em Pernambuco, diria que no Brasil em geral, é extraordinária. Isso quer dizer que muitos traços nocivos do patriarcalismo e do escravismo dentro do qual fomos formados continuam bem vivos no presente. Gilberto Freyre (também Joaquim Nabuco, que antecipou muitas das intuições críticas de Freyre) teve olhar agudo para discernir esses traços. Basta conferir a obra de ambos. Essa herança me parece tão negativa que não posso opinar sobre o processo de acelerada expansão urbana do Recife sem qualificá-lo como simplesmente predatório. Incorporamos a modernidade e o capitalismo globalizado retendo algumas das piores forças do passado opressivo que herdamos. As evidências estão nas ruas e na nossa relação com os espaços público e privado; na arquitetura e na expansão comandada por políticos e empresários de mentalidade ainda senhorial. No fundo, são ainda coronéis dissimulados sob a aparência da nossa modernidade perversa. O exercício da democracia nestes trópicos autoritários e festeiros é ainda um grande mal-entendido, não obstante os avanços inegáveis.

F. T. - Em uma época em que a eugenia ganhava força com o nazismo, Freyre surgiu defendendo a miscigenação como uma forma de enriquecimento cultural e racial. Quais as mais relevantes heranças (dos índios, negros e portugueses) que vivenciamos até hoje como parte da cultura nacional?
R- Penso que a herança mais relevante consiste na revalorização da nossa condição de povo racial e culturalmente miscigenado. Ninguém concorreu mais para a reconciliação do brasileiro com sua real condição sócio-antropológica do que Gilberto Freyre. Mas importa reconhecer que a interpretação proposta por Freyre, e adotada até oficialmente, exerce funções ambíguas. Se de um lado ela realça uma integração social efetiva, de outro também mascara o vinco cortante de autoritarismo, racismo e profunda desigualdade social inerentes às nossas relações sociais.
Gilberto Freyre foi uma pessoa singularmente contraditória. Ele próprio tinha consciência disso. Aliás, ninguém explicou melhor Gilberto Freyre do que ele próprio nos muitos textos em que se debruçou sobre si próprio com uma obsessão narcisista sem precedente na nossa cultura. A deleitação narcisista com que falava de si próprio não anulava o olhar aguçado com que tantas vezes iluminou sua própria obra e personalidade. Na obra tardia, no entanto, o vinco do olhar autocomplacente prevalece e daí a tensão crítica e autocrítica baixa drasticamente. Mas o que queria acentuar ao derivar para essa linha de consideração era o fato de que ele foi um conservador otimista. Isso é raro e diria até contraditório. Sua interpretação otimista do Brasil tem sido infelizmente desmentida pelo próprio desdobramento de muitas das nossas características culturais tão louvadas na sua obra. Nossa expansão urbana, por exemplo, acima brevemente considerada, tende a criar zonas crescentes de segregação, fato que contraria sua visão integradora da nossa cultura. Basta observar a fronteira que isola o shopping Center da rua e das moradias tingidas de pobreza e miséria; o automóvel versus o transporte coletivo; os condomínios isolados da rua por altos muros, segurança privada e até cerca elétrica versus as favelas e mocambos onde os pobres se espremem entre o mangue e o esgoto a céu aberto. Enfim, depois de 125 anos de abolição formal da escravidão, uma paisagem urbana bem longe do otimismo pintado pela tradição mais otimista do nacionalismo cultural cujo representante mais ilustre é precisamente Gilberto Freyre.

F. T. - Gilberto Freyre exerceu forte influência na literatura, em autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Filho, Osman Lins... Na cultura contemporânea de modo geral (incluindo-se a literatura), ainda enxergamos traços de influência de Casa Grande & Senzala? Filmes como O som ao redor atualizam a temática?
R - Com certeza. A visão dominante de nacionalismo cultural, manifesta nas expressões artísticas e noutras formas de discurso sobre o Brasil, e aqui incluo ainda o discurso oficial e publicitário, é muito poderosa e portanto permeia o conjunto da nossa sociedade. Muitos dos nossos intelectuais e artistas contribuíram para a consolidação desse imaginário, desde modernistas como Mário de Andrade até o regionalista Ariano Suassuna. Mas não há dúvida de que o articulador supremo desse nacionalismo cultural foi Gilberto Freyre. Seu correspondente na literatura é Jorge Amado, cuja penetração no mercado literário internacional generalizou uma visão mítica e até folclórica do Brasil. Nesse sentido, Jorge Amado é mais uma criação de Gilberto Freyre do que o próprio José Lins do Rego. Quanto ao filme O som ao redor, confirma o que acabo de observar. Um dos grandes méritos do filme é precisamente atualizar na expressão fílmica a interpretação de Gilberto Freyre.

P - O universo acadêmico sempre foi bastante crítico em relação à produção freyriana, chegando a rejeitá-la em vários momentos. Como Casa Grande & Senzala é vista hoje pela academia? É uma obra estudada? Quais são as principais contribuições para a formação de novos profissionais e pesquisadores das ciências humanas?
R – A obra de Gilberto Freyre foi praticamente silenciada na academia durante a vigência da ditadura militar. Atenuado e diria hoje dissolvido o clima de antagonismo ideológico marcado pela intolerância mútua, a obra de Freyre passou por um processo de revalorização crescente. Hoje voltou a ser quase uma unanimidade. A obra dele está com certeza acima desses embates ideológicos e dos traços negativos da sua biografia, de resto bastante deploráveis e conhecidos. A crítica esclarecida e isenta sabe que é preciso distinguir obra e autor, obra e biografia. Duvido porém que ela esteja sendo estudada tanto quanto aparenta. Voltamos a falar muito elogiosamente da obra de Gilberto Freyre, mas muitos que se pronunciam sobre ela na academia baseiam-se nos comentadores e em apreciações muito parciais. O mais grave é observar que muitos dos que radicalmente o negavam sem o lerem passaram a louvá-lo com a mesma leviandade corrente nos círculos acadêmicos brasileiros.
Talvez a contribuição maior de Gilberto Freyre consista na forma como assimilou com muito discernimento crítico e criativo as teorias e métodos estrangeiros, a articulação complexa entre o nacional e o universal, a tradição e a modernidade. Foi explorando de forma genial essas vias complexas que Gilberto Freyre se tornou provavelmente o maior inventor do Brasil. O melhor livro já publicado sobre a formação intelectual de Freyre, refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallhares-Burke, demonstra com rigor crítico e documental impecáveis isso que sumariamente assinalo.
Nota: Concedi a entrevista acima a Fellipe Torres, do Diário de Pernambuco. Tudo se processou através de e-mail. Fiz apenas uma exigência: que ele me enviasse o texto editado antes da publicação no jornal. Ele concordou. Para minha surpresa, descobri por acaso que publicou uma reportagem na edição de hoje, 2 de dezembro, sobre os 80 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala e a realidade presente da expansão urbana do Recife. Cita algumas frases recortadas da entrevista que lhe concedi. Aparentemente, o jornal publicará no decorrer desta semana outras reportagens baseadas num paralelo entre a obra de Gilberto Freyre e outros aspectos da nossa realidade sócio-cultural. Em suma, Fellipe Torres não cumpriu os termos do nossos acordo informal. Mais uma razão, portanto, para que me sinta à vontade para postar a íntegra da entrevista no meu blog. Em tempo: tomei a liberdade de acrescentar um parágrafo ao texto antes enviado para ele.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Carpeaux e Merquior


Começo por esclarecer ao leitor que este artigo foi escrito há algum tempo. Na ocasião em que meu amigo César Melo o leu, prontamente sugeriu-me propor a Daniel Lopes, nosso editor do blog Amálgama, que o publicasse quando do intervalo entre as datas da morte de Carpeaux e Merquior. Lembro ao leitor desmemoriado, como é o meu caso, que Merquior morreu em 07 de janeiro de 1991; Carpeaux, 03 de fevereiro de 1978. Minha intenção, portanto, era encaminhar o artigo para Daniel em meados de janeiro passado. A data passou, também o mês e somente agora, meio envergonhado de minha memória, proponho afinal a Daniel que publique o artigo. Encerro esta nota introdutória acrescentando uma razão pessoal e outra pública visando justificar a publicação tardia. A pessoal prende-se ao fato de que César, Daniel e eu admiramos a obra de Carpeaux e Merquior, além de nos identificarmos com a tradição do humanismo liberal a que se filiam; a segunda deriva do silêncio, salvo desatenção compreensível num leitor pouco regular da mídia, que cercou as datas acima assinaladas.

Tenho ainda uma outra razão, esta bem recente, para justificar a repostagem deste artigo. Embora pouco informado sobre a produção crítica corrente, até por não ser e nunca ter sido crítico militante, tenho lido dois críticos da nova geração de escritores pernambucanos: Cristiano Ramos e Eduardo César Maia. Além de intervirem com freqüência nas redes sociais e em eventos relacionados à literatura, têm ambos explicitado o quadro ideológico ao qual vinculam sua atividade crítica. Adeptos confessos e combativos do liberalismo humanista, escrevem e debatem publicamente as obras e as idéias correntes salientando a importância que os críticos considerados neste artigo têm na sua formação. A eles acrescentam Octavio Paz, Mario Vargas Llosa, Ortega y Gasset e Álvaro Lins. Dado que a tradição liberal dentro da qual nos alinhamos é ainda tão incompreendida no Brasil e na América Latina, quando não deliberadamente deformada, acolho com vivo entusiasmo estes jovens decididos a intervir no nosso ambiente intelectual tão pobre de obras e idéias, sobretudo neutralizado no seu potencial crítico pela prática longeva da cordialidade literária. Friso conferir ao termo cordialidade o sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda. Como foi tão incompreendido, e ainda o é, esforcei-me por esclarecê-lo no artigo Raízes do Brasil, que o leitor interessado pode conferir no meu blog. E assim fecho a nota explicativa antes que ela se torne mais extensa que o artigo original.

Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, enquanto sua visibilidade decai no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzida em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias.Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.