segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Aforismos e desaforos III


Não recomendaria a ninguém um deus que me fizesse à sua imagem e semelhança.
Se compaixão matasse, Cristo não teria morrido na cruz. Há porém compaixão que pesa como uma cruz.
Ninguém herda nem adota caráter, assim como não se herda nem adota gênio. Caráter é uma conquista; no Brasil, um castigo que não aconselho a ninguém.
O sujeito que ousa dizer que é neoliberal é capaz de vender qualquer coisa.
O crime mais hediondo para o capitalismo é não ter renda.
Comunismo não é ideologia inventada e adotada pelo pobre. O que o pobre inventa é a nobreza das fantasias de carnaval.
É fácil explicar o triunfo universal do capitalismo: sua matéria prima ou fator redutor do seu funcionamento é o egoísmo. Somos tão egoístas que consumimos o primeiro terço da nossa vida sugando a renda dos nossos pais. Nos dois restantes sugamos a renda e o trabalho dos outros próximos.
Piada de velório: tão insignificante que passava despercebido bem antes de morrer.
Imortais de academia são tão mortais que confundem vaidade com imortalidade.
Quando perguntaram ao canalha por que ele era canalha, respondeu com a candidez somente concebível num canalha: a gente tem que ser alguma coisa na vida.
Ecos de García Morente: minha vida que não é minha, já que não a fiz eu, é contudo minha, pois somente eu posso vivê-la. Portanto, depois de uma certa idade, não importando as circunstâncias, não posso culpar ninguém pelas misérias que são minhas.
Livre arbítrio é uma ilusão mais poderosa do que o mito do Super-homem na imaginação infantil.
O único amor que fica é o que frutifica. O que o vento leva é o que mortifica, pois morre e fica, vai mas fica.
Se você ainda vê filme de Hollywood em busca de um final feliz, melhor migrar para a ilha de Caras, que é aliás minha leitura compulsória na cadeira da minha cabeleireira. Minha única alternativa é folhear Caras ou ficar me namorando no espelho. Como já envelheci me vendo, melhor o final feliz de Caras. Meu consolo é saber que um dia ficarei completamente careca.
Como diria um folião que ainda não voltou para casa, deixe o carnaval passar. Depois disso voltarei a ser o que mais tento ser: um homem tão reconciliado com o mundo como o folião com o seu carnaval.
O cerne do affair Yoani Sánchez não é a liberdade de opinião e derivados (a quem serve? Quem a financia? Quais os seus interesses etc.). O cerne da questão é a inviabilidade de um modelo de socialismo que se petrificou em tirania passada de irmão a irmão durante mais de meio século. Cito indiretamente duas fontes insuspeitas, pelo menos para a esquerda: socialismo em país pobre socializa apenas a pobreza. Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.
Por fim, o que responder a um dogmático que denuncia o embargo imposto pelos EUA como a causa do fracasso do socialismo cubano? O que dizer então do outro, isto é, o soviético que alimentava este e caiu de podre?
Se você não ajusta as contas com o seu passado, acaba apedrejando Yoani Sánchez por crimes que você cometeu.

Recife, fevereiro 2013.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Aforismos e desaforos II


A mulher que jura fazer tudo por amor é capaz de fazer qualquer coisa.

Os únicos erros imperdoáveis são os que escolhemos.
Os erros mais dolorosos são os irreversíveis.

Ela infernizou minha vida com o amor mais inocente e dependente concebíveis. Por isso já não duvido de que há formas de amor piores do que o inferno.

Só uma pessoa absolutamente inocente acreditaria que a inocência é inofensiva.
A maior vítima da inocência é a compaixão.

Seduzi Maria Inocência com um colar e ainda hoje ela me cobra as perdas e danos que me causa.

Antagonismo genético: a gravidez que pode ser o sonho de uma mulher pode igualmente ser o pesadelo definitivo do homem que a fecunda.

Sexo virtual é o meio mais seguro de controle da superpopulação.
Sexo virtual é mais estéril do que encíclica papal.

Batata, fundador do Bacalhau do Batata, é um dos mais celebrados heróis populares do Brasil. Gregório Bezerra é um dos heróis populares mais ignorados do Brasil. Não falta, contudo, popular indignado denunciando os políticos que temos.

Somente no Brasil promovem festa, carnaval e futebol como se fossem formadores de cidadãos. Depois ainda se espantam com as tempestades que colhem.

A supremacia universal do futebol é a evidência de que nossa razão foi transplantada do cérebro para o pé.

O Recife é sem dúvida a cidade mais musical do Brasil. De domingo a domingo, ouço serra elétrica, martelo, buzina, cachorro latindo e gente conversando aos berros, inclusive no celular. Nossa incivilidade despreza até a tecnologia digital. O recifense não trabalha, desacata a ordem pública; não conversa, bate boca.

De acordo com estudo realizado pela ONU, o parlamentar brasileiro é o segundo mais caro do mundo. Fazendo o que faz, se ele nos pagasse ainda sairia muito caro.

Somos tão inconscientemente egocêntricos que atribuímos nossa ferocidade às feras, nossa rapacidade aos ratos, nossa agressividade ao leão e ao galo, nossa grosseria ao cavalo, nossa lascívia ao gavião. Por fim, já que em toda a natureza não há espécie comparável à nossa maldade, tivemos que inventar a figura mítica do Demônio cuja sinonímia e provas do crime são fartas nos boletins de ocorrência, no instituto médico-legal, no código penal e nos necrológios.

Foi por ser francês que Sartre disse: o inferno são os outros. Se fosse brasileiro, mandaria os outros para o inferno. Se fosse pernambucano, iria sozinho.

O Brasil não existe. O Brasil é apenas a mais grandiosa obra de ficção da literatura universal. Por isso nossa literatura é tão insignificante. Que gênio da imaginação poderia competir com esse gigante feito de símbolos insubstanciais? Ouçam a tempestade fantasiada que sopra nos sambódromos e nos estádios de futebol: ficção pura.
Recife, fevereiro de 2013.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Aforismos e desaforos


O Brasil já teve um Ministério da Desburocratização. Realizou a obra que alguns brasileiros ajuizados previram: burocratizou ainda mais o país. Por que não renovamos essa experiência extraordinária fundando agora o Ministério do Funcionamento? Tenho certeza de que faria o país parar de vez.
O Brasil é ruim, mas comigo é pior.
O Brasil deu à incivilidade moderna duas grandes contribuições: o carnaval e o futebol. Um povo capaz de tal façanha não precisa ser governado a pão e circo. O circo é suficiente.
Carnaval é regressão tribal. Como suportar o peso, a responsabilidade suposta na condição do indivíduo moderno? As massas precisam refugiar-se em algum abrigo tribal, que tanto pode ser o carnaval quanto a adesão ao nazismo. Ruim por pior, antes o carnaval.
Sou do tempo em que paralelepípedo era palavrão.
Sou do tempo em que o trânsito transitava e carro era meio de transporte. Agora, levando a regência verbal ao pé da letra, o trânsito tornou-se intransitivo.
Sou do tempo em que engarrafamento era uma grande quantidade de garrafas, geralmente esvaziadas durante o carnaval.
Sou do tempo em que masturbação era doença.
Masturbação é a prática sexual mais universal que existe, inclusive na velhice. Até os impotentes vingam-se com a masturbação imaginária.
Sou do tempo em que as pessoas tinham pudor e as mulheres enrubesciam. Hoje constrangimento moral é pó de ruge.
Sou do tempo em que gala era outra coisa. Não era o que se vestia, mas o que se vertia.
Sou do tempo em que a lança-perfume era liberada e o carnaval acabava na Quarta-feira de Cinzas. Agora, traduzindo apropriadamente a propaganda oficial do governo de Pernambuco, vivemos em estado de permanente anarquia.
O Brasil vive num estado de violência que beira a guerra civil. Por isso ninguém mais o percebe. A guerra no trânsito, a violência endêmica, rebeliões de todos os tipos, a começar pelas da polícia, banalizaram os conflitos ao ponto de torná-los imperceptíveis. Como estranhar que nos vejamos como um povo amável e cordato?
Sou do tempo em que a mulher não gozava, apenas submetia-se aos ditames cristãos da preservação da espécie.
Sou do tempo em que jogador de futebol era apenas jogador de futebol e fazia o que sabe fazer com um par de chuteiras. Agora inventaram de fazê-lo falar, entre outras impropriedades, e assim a chuteira lhe subiu à cabeça.
Já há quem faça na televisão o que não fui capaz de fazer nem no bordel.
A televisão é o único eletrodoméstico que emburrece e corrompe.
Se eu acreditasse em reencarnação, gostaria de voltar ao mundo como cachorro, ainda que vira-lata. Além de muito complicado, o ser humano se tornou demasiado dispendioso. É tão descaradamente traidor que transferiu o peso da fidelidade para Deus.
O etnocentrismo é uma doença tão incurável quanto a rinite alérgica.
Para o bairrista, qualquer acampamento urbano é a melhor cidade do mundo, contanto que seja a sua.
Amor é a mercadoria que mais vende, embora jamais ouse declarar o seu preço. Aliás, sequer admite sua redução ao fetiche da mercadoria.
Como ter polícia com a polícia que temos?
Não é fácil ser adulto. Sei de muita gente que não apenas vive da nostalgia da infância, mas também nunca saiu dela.
Misericórdia pelo outro e por mim próprio. Somos pequenos e vulneráveis demais para merecer algo melhor.
Recife, fevereiro de 2013.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Máximas e Mínimas VIII


A revolução tecnológica tornou a mentira factualmente inviável. No entanto, nunca se mentiu tanto, assim como nunca houve tanto crédulo imbecil. Definitivamente, o ser humano não suporta a verdade.
A renúncia do papa, em pleno carnaval, não teve o poder de silenciar um só tamborim, um só grito de folião, uma nota de frevo nas ruas. O país de maior população católica do mundo deu livre curso ao seu carnaval indiferente à renúncia da autoridade suprema do catolicismo. O fato é excepcional, mas os exemplos da irrelevância normativa da religião no mundo secularizado são apenas uma banalidade. Embora não falte especialista que fale em reencantamento do mundo, fico com minha convicção de ignorante: o que há é desencantamento do reencantamento. Trocando em miúdos, Deus continua sendo objeto de fé, mas de uma fé semelhante à que temos num protetor secularizado e rebaixado à nossa medida humana. Deus se tornou menos normativo do que o guarda de trânsito.
O pernambucano não é solidário nem no carnaval.
Há pessoas mesquinhas até no gozo da nossa maior orgia coletiva, o carnaval. Precisam suprimir o prazer do outro para viver a ilusão narcisista do prazer exclusivo e absoluto.
Não posso definitivamente levar a sério um país que sopra aos quatro ventos do universo, com absoluta razão, que faz e é o melhor carnaval do mundo.
Somos tão vulneráveis que em princípio qualquer coisa pode nos matar. Podemos morrer de amor. Podemos morrer por falta de amor, causa provavelmente mais frequente. Mais frequente ainda é morrermos de fome. Portanto, antes um prato cheio do que um coração amante e amado.
Se tivesse ainda alguma ilusão acerca da humanidade, sentaria durante dez minutos diante de uma televisão ligada.
Tive compaixão do homem arrastado pela corrente ruidosa do carnaval. Sequer gostava do carnaval; sequer ensaiava um passo de frevo ou entoava uma marchinha. Debateu-se na corrente, que o empurrou à deriva da massa, simplesmente por já não saber de si, de sua solidão, de sua carência de amor. No delírio que o possuía, acreditou que o amor, produzido por um feliz acaso, o abraçaria em plena folia. Seria uma mulher de linhas e traços opacos, mas belos, sensuais e inconfundíveis. Tudo que sabia era que desceria sobre ele como um milagre, um marco zero refundando sua vida árida e vil.
Na Quarta-feira de Cinzas, mais exausto que a massa ébria, mais esvaído do que o carnaval, cujos últimos clarins vibravam no ar tórrido do asfalto, tombou na sarjeta e perdeu os sentidos. Dizem uns que foi recolhido por uma ambulância do Samu; outros, que seu corpo afundou nas águas sujas do Capibaribe. Por fim, um louco ou visionário, que há muito vaga pelas ruas, jura que o viu ascender aos céus de braço dado com a Virgem Maria, que doravante será apenas Maria.
Qual é o prato mais servido na mesa do pobre? O vazio.
Qual é o melhor carnaval do mundo? O que acabou.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Carnaval de Olinda


Carne a carne
Città di carne
Farol de Olinda falling down falling down falling down.
Um chifre nesta vida...
Não, amor, na outra.
El carnaval es sueño
sueño.

Olinda, patrimônio da humanidade.
Ruas de mijo e esgoto
movente a cidade secreta.
Dançar nas ruas aspirando esse rumor de barbárie
que ninguém vê na tv.
Um frevo ferve uma rua
em outra um samba subindo.
Let's go to maracatu maracatu maracatu.
Teu cheiro asco ou fedor
errar de porta e de amor
e a febre me possuindo.

J'aime beaucoup les femmes brésiliennes.
Por favor, traduz meu desejo pra ele.
Diz que eu quero casar com um francês
para sair do Brasil.
Unreal city.

La ville est ici ici.
O Havaí e o Haiti são aqui.
Rio de Ci, mãe da minha dor
Valencia de Isabel
Londres de Kate
Colchester de Anita
Florença de Antonella
Paris é o mundo
Babylon revisited.

Vomitar o meu tédio na folia.
I am growing old, my hair is growing thin.
El carnaval es sueño
sueño
e entanto é tudo como um fim
que não sei. Eu nada sei.


Unreal city
Abolimos a cidade e não há mais Brasil.
Durante cinco dias, num reino sem normas, fica abolido o Brasil.
Dado que o mundo é sonho, unreal city
nesta cidade vigora um outro modo de casa.

De repente, um homem magro e recluso
se transfigura em Quixote
erra pelas ruas perseguindo mulheres
belas e atormentadas pela falta de amor ou pura carne.
Outro homem, um que fazia concursos e que já foi comunista
agora se chama Sancho e é louco qual o seu amo.
Mulheres vão libertando
que vivam o que desviveram.
A virtude atirem contra o diabo
que o corpo será dos homens,
amém.

De hoje até quarta-feira
que faço da minha vida?
Me agarra porque hoje eu sou
da maneira que você me quer
o que você pedir eu lhe dou
seja você quem for
seja o que Deus quiser.

Unreal city
Città di carne.
A vida é carne ou só um sonho.
Mas eu cansei de sonhar.

Homens que acumulam e oprimem
outros sem teto, famintos
mulheres que erguiam muros entre a virtude e a rua
casais selados em cartório com herança e propriedade
e tantos bens por zelar
todos na rua se cruzam
num mar de sol e folia.
Cancelam todas as normas
e já não querem voltar para casa.

Voglio una donna.
Nas ruas que eram só carne
um outro sonho de gozo ou de prazer sem medida.
Ele foi indo foi indo
no mar de Olinda caiu
no frevo se dissolveu.
Babylon revisited.

Eu que fui dona de casa pela virtude oprimida
ao mundo larguei minhas filhas
agora sou tua puta plasmando em meu corpo
um outro ser, feiticeira
um outro outra em mim.
Um transe vem e me toma
nesse teatro do mundo
Olinda, commedia dell'arte
e vou com os homens, me perco.
Nas mais escusas esquinas
eles me abusam e possuem.
Ai, Túndio, como mentimos
que estranhas forças me desgovernam!

E eu fui indo fui indo falling down falling down...
Mas era apenas tua lança perfume.

It was the best of times, it was the worst of times
It was the days of freedom and pleasure
It was the days of betrayal and jealousy.

The world is a dangerous place
mas os brasileiros se derramam pelas ruas
se agarram pelas esquinas e fodem a céu aberto.
Abolem o mundo civil com seus códigos e letra de arbítrio
com suas penas e o dever
instituído em princípio.
Da brutalidade à celebração dionisíaca
transitam assim como quem
apenas cruza uma rua, uma pinguela suspensa
entre o dever e a anomia.
Que estranho modo de povo
foi nesses trópicos moldado!

Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí.
Sem lenço e sem documento ele saiu por aí.
Mário de Andrade que tomava cocaína
no frevo com Cícero Dias.
Blaise Cendrars que subiu o morro
e quis se fazer mestiço.
Tom que cantou a Mangueira
e se exilou na floresta
antes que inventassem a ecologia.
Oswald devorando o mundo
sem no entanto ver que o Brasil o canibalizava.

Unreal country
que estranho povo o teu
nesse delírio avenida
tanto na vida matando
agora celebra a vida.

Gilberto Freyre, aristocrata malandro
deitou o patriarca e a mucama
na mesma mestiça cama sacana
e nos explica a seu modo patriarcal e ambíguo.
Afirma, nega afirmando
plasma na letra um estilo
de mestiçagem e deslize.

Unreal Recife
Recifernália do antropófago Jomard
acorde torto na pauta dos contentes.
Flávio Brayner e um piano em Paris
num frevo evocando a saideira.
Esta cidade foi minha
e entanto nunca a amei.

O circo, quero mais circo.
Os romanos governaram a decadência
apoiados na política mínima panem et circenses.
Mas Pindorama Brasil com circo aboliu a fome.

Filma minha alegria, me entrevista
faz de mim uma estrela da Globo.
To be free is always to be on tv.

Um dia serei pandeiro
o teu menino, teu homem
teu porto além da alegria.
Teu índio em Pindorama
te saqueando na cama
ai, minha caça vadia!
Teu passo frevo arraial
domingo de carnaval
tua melhor fantasia.
E cinzas, quando isso eu for
vertidas sobre uma flor
no céu azul de Olinda.

Flesh to flesh, earth to earth, ashes to ashes.
Estas cosas pensé en la Recoleta,
en el lugar de mi ceniza.

E quando um dia, meu amor...
When you are old and grey and full of sleep
me asilarei na concha da tua alma
e nela, libertos do carnaval, seremos felizes
até quando chegue quarta-feira de cinzas.

Enfin, la chair est triste
la vie est aussi triste
et je suis fatigué
of laughing at her face
as if all that was funny.


Fernando da Mota Lima.

Recife/Olinda, quarta-feira de cinzas, fevereiro de 1995.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Carnaval e Piano


Como tantas coisas boas da vida, O Piano foi fruto de uma sucessão de acasos encenados em sucessivos carnavais. O primeiro reuniu-me a Flávio Brayner e Sérgio Gusmão na esquina do Café Cordel. Já não lembro o ano exato. Foi aí por volta do ano 2000. Fiquemos com a data redonda, tão marcante como símbolo de século e milênio. Sérgio, que era já amigo de Brayner, chegou carregando uma porção de instrumentos de percussão atados à volta de sua figura corpulenta: pandeiros, zabumba, chocalho, tamborim... Feitas as apresentações, queixamo-nos do ar meio parado do carnaval naquele momento. Seriam seis ou sete da noite. De repente, começou a cair uma chuvinha fina, chuva inglesa, dessas que não chovem mas molham e persistem. Então, por mero acaso, comecei a cantar Chove Chuva, de Jorge Ben. Sérgio foi desafivelando os instrumentos, que começou a percutir, e pouco a pouco foi juntando gente. Foi nessa noite acidental que tudo começou.
Lá pelas tantas tínhamos já sustentado uma folia entusiasta e quente à frente do Café Cordel cheio de cadeiras espalhadas pela calçada. Fizemos ali um grande e espontâneo carnaval. Sérgio era o coração e a força agregadora daquela linda festa. Como há muito vive como profissional da música, conhece uma infinidade de gente que faz o carnaval, sobretudo tocando no carnaval. Essa gente passava pela rua e logo, atraída por Sérgio, entrava na folia e com seus instrumentos imprimia energia, beleza e variedade à festa. Num certo momento, como um sopro de transfiguração mágica do carnaval, formamos espontaneamente uma imensa roda de ciranda. Enquanto Sérgio e eu, no centro da roda, (ele na percussão e eu cantando Cirandeiro, de Edu Lobo e Capinam) puxávamos a ciranda, logo seguida de outros ritmos, uma multidão linda e festiva movia-se como uma onda azul espraiando-se na noite.
Nesse momento, Flávio Brayner ocupou papel secundário. Afinal, não havia piano, seu centro e força de irradiação festiva. A ideia da folia incluindo o piano, que por fim batizou o bloco, veio alguns anos mais tarde no carnaval de Casa Forte. Pouco sei dessa parte da história, pois dela não participei. Sei apenas que a ideia e o comando do processo veio de ambos, Brayner e Sérgio. Quando voltei a agregar-me ao grupo, já sob a batuta do piano, foi novamente no carnaval do Recife.
O Piano tem hino – ou bossa-frevo, se assim posso dizer – e um belo estandarte. Este é obra da pintora Teresa Costa Rego. O hino é de autoria de Flávio Brayner, Janete e Sérgio Gusmão. Também eu, logo ao fim do carnaval do ano passado, compus um frevo em louvor do Piano. Chama-se Frevo do Piano. Pensava ensaiá-lo neste ano com Flávio e Sérgio para em seguida incluí-lo no nosso repertório. A doença, no entanto, privou-me de mais um carnaval, talvez o último. Digo último por viver, talvez solitariamente, uma insatisfação crescente com o fato de concentrarmos nosso carnaval na Rua da Guia. Não bastasse tanto, nossa sede ou salão improvisado é o Restaurante Panquecas, em tudo inconveniente para uma festa como a nossa. É uma casa que se alonga do fundo à fachada como um corredor quente e sem janelas, além das instalações precárias. Não bastasse tanto, a Rua da Guia está no foco de um carnaval cada vez mais ruidoso, cada vez mais incompatível com o Piano que, perdoem a presunção, procura realizar um carnaval de inspiração democrática no sentido festivamente mais alto do termo. Em meio a tanto excesso e ruído, com lances de barbárie respingando os acordes refinados do nosso som, é cada vez mais difícil cantar Tom Jobim, Chico Buarque, Antonio Maria, os grandes frevos e marchas tradicionais em meio a tanta pancadaria.
Acho que o Piano pode sem presunção orgulhar-se de fazer um carnaval que mescla democraticamente o melhor da nossa rica diversidade musical. Outra expressão notável do seu espírito democrático consiste no fato de que nossos microfones estiveram sempre abertos à participação dos que livremente entram na nossa festa. Essa licença democrática é marca tão patente do Piano que já por várias vezes nosso maestro, Flávio Brayner, irritou-se, com razão, diante dos excessos de bêbados desafinados que acabam entrando na festa e no coro para bagunçar nosso carnaval.
Esta crônica, alinhavada na manhã da quarta-feira de cinzas, vale um pouco como compensação para minha grande frustração decorrente da impossibilidade de mais uma vez, mais um carnaval, cantar e suar e abraçar feliz os muitos amigos que anualmente encontro no Piano: Bella, Gio, Neide, Janete, Nara, Ana Dubeux e Cyril, Erlyck e Lucila, Geneide e Priscila, Karina, Eliane, Conceição, Dora, André e Deborah, Dirceu, Celso, Alexandrina e Jorge Jatobá, Eliene e Sílvia Gusmão, Sílvia e Yoni, Vera e Ana, Mané e Elbe, Maria, Luiza e Lais, Lucivânio, Pedro Gabriel, Clarissa, Márcio, Stella Abranches, Stella Maris, Fernanda, Teresa Costa Rego e Teresa... quantos mais, meu Deus? Desculpem a lista tão parcial e até o próximo carnaval, ou até o Juízo Final.
Quarta-feira de Cinzas do carnaval de 2010.