quarta-feira, 28 de março de 2012

Millôr na cabeça



Nota: Acabo de saber da morte já esperada de Millôr Fernandes, pois há muito estava internado na UTI. Soube do fato há alguns meses através de José Paulo Cavalcanti Filho. Como amigo de Millôr, além dos que tiveram o privilégio de com ele conviver, José Paulo estava a par de fatos ignorados pelo público e pessoas como eu. Parece-me oportuno postar novamente no meu blog o texto abaixo, em louvor de Millôr. Foi dos primeiros que dei a público, quando meu blog tinha pouco mais de um mês.
Um dia, órfão e ainda garoto, Millôr Fernandes tomou consciência do desamparo metafísico do ser humano. O que para tantos constitui a raiz inconsciente das mitologias consoladoras que inventamos para suportar a existência, para ele foi o princípio da afirmação heroica de uma individualidade livre e isenta de transcendência. A partir de então, tomou nas mãos as rédeas de sua própria vida e logo se converteu num fenômeno jornalístico e intelectual.
Não sei de intelectual mais livre do que Millôr. Dentro do seu individualismo radical, tem empenhado sua longa vida na defesa e afirmação de uma liberdade crítica intransigente. Num país entranhado em tradições tribalistas e autoritárias, Millôr atravessou golpes de Estado e ditaduras, censura dissimulada ou instituída, sempre confrontando e afrontando os poderosos e toda uma corte de ideologias e modas intelectuais que se sucedem diante do seu olhar cético e corrosivamente crítico. Não bastasse tanto, que é de resto absolutamente singular na nossa história intelectual, Millôr realiza todas essas façanhas sorrindo aquele sorriso afirmativo e cético de Voltaire, o sorriso do homem livre consciente de que nossa condição é insolúvel, de que a humanidade é uma paixão inútil e todavia vale a pena até no lampejo humilde ou assombrado da alma mais pequena.
Como muita gente de minha geração, despertei para a vida adulta durante os chamados anos de chumbo impostos pela ditadura militar. Em meio a anos de pobreza, incerteza geral e temor constante, fiz do Pasquim uma das âncoras que atenuavam os riscos de naufrágio vindos de forças sem governo. Foi nesse momento que descobri Millôr Fernandes, Paulo Francis e outros jornalistas e intelectuais. Sem que o soubessem, nunca saberão, eles me ajudaram a viver e sobretudo a rir das nossas impossibilidades e desgraças. Reiterando uma platitude todavia necessária, dada nossa corrente representação da liberdade, nossa liberdade é sempre limitada. Ninguém levou-a tão longe quanto Millôr. Isso é o que nele mais louvo, admiro e invejo. O que segue representa minha obscura homenagem a Millôr, o único prisioneiro que conquistou a liberdade de tomar sol rindo do mundo e de si próprio no pátio da penitenciária chamada liberdade. Não bastasse isso, corre como um atleta espartano ao amanhecer e pernoita como um hedonista tropical. Ou direi agora corria e pernoitava? Afinal, Millôr é eterno, mas seus músculos são mortais.
Millôr irrita-se quando o leitor iletrado supõe que seu ofício, por ser humorista, é simplesmente ser engraçado. Ora, o humor dói até quando o humorista ri. Engraçada é a chanchada, que aliás define o brasileiro como modo cultural de ser.
Deus existe
Deus é chiste
Deux existe
mais je suis un.
Definições:
1 – Censura – é uma variante da repressão. Explicando melhor, já me censuro na primeira definição. O agente não foi a polícia, o código penal ou a opinião pública. Foi a memória da minha mãe. Sou obediente até na memória.
2 – Sexo anal - é aquele que se pratica todo ano.
3 – Coerência - é a variação moral e ideológica de uma ideia fixa.
4 – Prudência - é a virtude dos covardes.
5 –Heroísmo - não conheço herói de pijama ou bermuda. A intimidade dissolve qualquer grandeza.
6 – Criança - é o tirano doméstico da sociedade permissiva.
7 – Ciclista - é a criança do trânsito recifense (conferir a definição precedente).
8- Caráter - é um vício mortificante para a saúde, sobretudo no Brasil.
9- Humanidade - é uma abstração. Por isso é tão fácil ser humanista enobrecendo-a em evangelhos, discursos e poemas, notadamente em livros de autoajuda. O que no entanto conheço são indivíduos. E sei de bem poucos recomendáveis.
10- A mídia - é um circo; os jornalistas são os palhaços; o público, cãezinhos amestrados sedentos de riso e sangue.
11- Arrependimento - se eu pudesse retornar à juventude, levaria para a cama todas as mulheres que meus tolos escrúpulos morais deixaram insatisfeitas – e eu mais que elas.
12- Correção tardia - quando jovem, pensava mal da humanidade, mas acreditava-a reformável. Hoje, velho mais nos desenganos do que nos anos, sei que é bem pior e a única reforma factível é a publicitária.
13- Nordestino - é o judeu brasileiro, só que sem Bíblia e não raro sem alfabeto.
14- Envelhecer - é viver cada vez mais perto da morte e cada vez mais longe da vida.
15- Envelhecer - é uma ressaca que se agrava com o passar dos anos, mesmo quando você é abstêmio. Por isso convém continuar bebendo.
16- Posteridade – é a consolação de todo escritor rejeitado e inédito. Pior ainda é a sina do rejeitado publicado.
17- Feministas - são tão insensatas que inventaram um movimento social apenas para ficarem mais parecidas com os homens.
18- Ejaculação precoce – é a evidência de que a pressa é amiga da imperfeição.
19- Nordestino não conversa, bate boca.
20- Nacionalismo - é o narcisismo das massas.
21- Bairrista - é o narcisista que come barro por bairro e ainda sai pela vida arrotando o melhor prato do mundo.
22- Preguiça - é o lazer do rico, o tédio do pobre e a gratuidade do sábio.
23- Compatibilidade incompatível – todas as mulheres que conheço não conseguem viver sem homem, assim como todos os homens que conheço não conseguem viver sem mulher. Ainda assim, todos que se acasalam findam separando-se, ou tolerando o fardo da infelicidade conjugada.
24- Autoajuda - é o gênero lixorário composto de altas prescrições inúteis e baixa eficácia prática cujo fim exclusivo é produzir altos rendimentos para um autor de baixa reputação. Ao cabo dessa comédia de equívocos, o autor engana o leitor enquanto este ajuda aquele.
25- Os ingleses são pragmáticos e sensatos, civilizados e portanto reprimidos. Por isso não entendo os que se casam com brasileiras e vêm morar no Brasil, ou vêm para o Brasil, casam com uma brasileira e nunca mais vão embora.
26- Ingrato é o amigo que se vinga de um favor que lhe presto ou empresto. Esta definição, ligeiramente alterada, procede da fonte irreverente de Flavio Brayner.
27- Solução para o Brasil - estou farto dos pessimistas que desesperam do Brasil condenando-o como insolúvel. O Brasil tem jeito, sim. Basta exportar todos os brasileiros.
28- Mídia – a mídia tem o poder de transformar um assassino suburbano num Romeu rejeitado de uma sórdida novela passional. Aliás, num enredo passional Romeu mataria Julieta logo depois do sequestro. Ou do casamento. Ou do ciúme que nem houve. A mídia brasileira comprova que sua regra fundamental é alcançar altos índices de audiência ao preço de qualquer cadáver. A conta vai para o telespectador, que de resto a merece.
29- Televisão – já fui forçado a sentir o cheiro de todo tipo de lixo neste país imundo. Nenhum é comparável ao da televisão.
30- Polícia brasileira - mal avistei a polícia, comecei a correr para que ela não confundisse um homem honesto com um fora da lei.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Fausto Wolff e o Pasquim



Lembro-me ainda de Fausto Wolff com admiração. Pelo que dele diziam, era um beberrão gigantesco, mulherengo e briguento. Foi um dos jornalistas do Pasquim que fizeram minha cabeça anárquica ou inconformista durante o reinado do AI-5. Chovendo no molhado, eram tempos ásperos, de juventude acuada pelo medo e todavia sedenta de vida participativa. Nesse contexto quase irrespirável, mas revestido de uma intensidade e energia somente concebíveis quando somos jovens, o Pasquim pairava como símbolo de uma era assinalada pela repressão política e a permissividade dos costumes. Se eu fosse um moralista de plantão, teria silenciado toda a chamada patota (ah, a vida fugaz das gírias...) do Pasquim.

Como então se dizia, o Pasquim fez a minha cabeça. Não toda, evidentemente, pois eu lia bastante, já antes do seu surgimento, e assimilava valores em muitos sentidos divergentes dos que ele difundia. Ler o Pasquim e gente como Fausto Wolff, Millôr Fernandes e Paulo Francis era antes de tudo uma viagem de prazer liberador. Como conteúdo e forma, para chover no molhado, são indissociáveis, o Pasquim revolucionou o jornalismo brasileiro tanto num sentido quanto no outro.

É difícil para o jovem de hoje avaliar o impacto que representou. Muito do que hoje é rotina e clichê midiático, naquele momento irrompeu como um sopro de absoluta novidade. A linguagem solene e artificial dominante no jornalismo foi pulverizada por um estilo coloquial e saboroso, irreverente e agressivo, salpicado de gírias gestadas em Ipanema e logo disseminadas entre as camadas letradas e inconformistas do país. Evidentemente essa linguagem inusitada e esse coloquialismo inédito expressavam temas e valores equivalentes. O sucesso alcançado pelo jornal e pelos jornalistas que o faziam foi imediato e desconcertante. Já existia, claro, a censura imposta pelo AI-5. No entanto, as marcas mais visíveis do jornal, sua linguagem irreverente e debochada e sua ênfase sobre a renovação dos costumes, lograram ludibriar a censura. Só bem mais tarde os dispositivos repressivos do regime avaliaram melhor a dimensão política do periódico. Daí para a prisão dos jornalistas a passada foi curta.

Em meio a todo aquele abafamento, era indescritível a experiência de ser jovem pensando com inconformismo e temor, mas também com prazer, irreverência, um desejo irrefreável de revisar todo o provincianismo opressor do Brasil em que todos os dias a gente tropeçava. A opressão maior, e imediata, provinha do ambiente familiar. Por isso suponho que a leitura rotineira e apaixonada do Pasquim tenha concorrido para exacerbar meus planos de cair fora, pegar minha estrada, refazer minha vida liberto da família que me impunha um peso sufocante.Foi o que de fato acabei fazendo. Um dia, apesar do medo, da culpa,de todas as incertezas imagináveis num jovem que nega a sombra protetora e permissiva do pai para mergulhar na aventura da vida sem amparo,um dia, com o Pasquim e outras rebeldias debaixo do braço, fui me perder e me procurar por aí.

Mas volto a Fausto Wolff, pois sei agora que acaba de morrer. Considerando o quanto bebia, o quanto viveu de dissipação, poderia dizer que viveu muito: 66 anos. Eis aí uma boa idade para se morrer. Aliás, passados os 50, toda idade seria boa para se morrer, se a gente antes vivesse de modo satisfatório (nunca feliz, pois que isso é uma impossibilidade) e morresse isento de tormentos prolongados. Mas estou evidentemente pedindo demais à morte, quando sequer podemos pedir medidas razoáveis à vida. Que a morte venha, quando vier. No entanto, se eu pudesse escolhê-la, seria como no poema de Manuel Bandeira, a mais completa realização da serenidade estoica que já li condensada num poema:
Quando a Indesejada das gentes chegar (...)
Encontrará lavrado o campo
a casa limpa, a mesa posta
com cada coisa em seu lugar.
Cito de memória. Portanto, caberia pedir benevolência para a memória de quem já viaja em direção à idade com que Fausto Wolff morreu. Quero dizer, não ainda tão perto, mas por certo mais perto que longe.

Sei bem pouco dos últimos anos de Fausto Wolff. Sei que criou um site na internet, Revista Eletrônica, que vi ligeiramente uma única vez, logo que um amigo me enviou o site. Mais importante é o fato de que consagrou o melhor de suas energias intelectuais nos últimos anos a escrever romances. Li apenas um, o volumoso e surpreendemente bom À Mão Esquerda. Tenho acompanhado bem pouco do que se produz literariamente no Brasil. Leio sempre Rubem Fonseca, de longe nosso melhor contista, somente superado no Brasil pelo supremo Machado de Assis. Nem sequer conheço os romances de Milton Hatoum, com quem dividi sala na Universidade de Berkeley em outubro de 2002. Amigos comuns, em particular os que vivem ou viveram em Berkeley, fizeram-me sempre referências muito elogiosas a seus romances. Eu próprio pude ouvir palestras de Hatoum em Berkeley sobre os romances que até então escrevera: Dois Irmãos (já então traduzido para o inglês) e Um Certo Oriente, que aliás desfruta da preferência dos amigos que leram sua obra.

Recife, 06 de setembro de 2008.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Idade e finitude



Uma das ilusões de minha juventude era supor que a velhice implica sabedoria, uma serena aceitação da vida e do envelhecimento gradual e inevitável. Leio gente como Drummond, Philip Roth, Caetano Veloso e outros dizerem o contrário. Mesmo os que envelhecem alegremente, com vitalidade invejável, como é o caso de Caetano, não relutam em reconhecer que a velhice traz sempre limitações indesejáveis, quando não dolorosas, para quem a vive. O espelho, e antes de tudo o próprio corpo, emitem progressivos sinais indicativos da nossa perda de vitalidade. Portanto, ninguém precisa ser um Narciso deslumbrado ante a própria imagem no espelho das águas mutáveis para sentir os crescentes abalos da idade.

Espero envelhecer como Daniel Lima, o mais admirável exemplo que conheci de velhice alegre e plena de energia. Daniel envelheceu com tanta juventude espiritual que nunca consegui vê-lo como um velho. No entanto, ouvi-o muitas vezes deplorar a perda irreversível de vitalidade. Se não se queixava mais abertamente, era provavelmente por fidelidade, não sei até que grau efetivamente assimilada, à sua convicção católica nas virtudes da idade. Afinal, não é à toa que é padre, condição que, somada aos anos de formação em seminário, identificou-se com sua própria vida e visão de mundo. Como Alceu Amoroso Lima, católico ainda mais consistente e convicto que ele, acreditava que a idade e a experiência nos trazem alguma sabedoria, uma maior capacidade de aceitação da vida.
Será que alguma sabedoria advirá de minha velhice? Confesso que hoje considero isso muito duvidoso. O que já sei, e me parece saudável, é que a idade implica uma consciência transformadora da noção que tenho dos limites de minha vida. Melhor dizendo, de minha finitude. Quando jovem, não tinha consciência do quanto sou finito, do quanto minha vida está fatalmente orientada para a minha morte. Por isso tanto me desperdicei, tanto gastei de mim na companhia de gente sem importância, vivendo coisas irrelevantes, que nada importaram para a minha vida. Quantas vezes não errei embriagado em madrugadas sem rumo, oprimido pela solidão da carne, caçando mulheres que nada representavam para mim? O que nelas via e buscava era o gozo momentâneo e fugaz do corpo, a sede do sexo enquanto puro sexo, sem prolongamento ou conexão de qualquer outra natureza. Durante um tempo mais ou menos prolongado, sentia necessidade compulsiva de beber nos fins de semana, ir sempre para os bares e cenários de badalação noturna. Conheci muita gente cujos nomes ignorava. Bebia com essa gente e me enredava num círculo promíscuo sem aderência ou real envolvimento do indivíduo que eu era. Estas são algumas das consequências negativas da inconsciência da idade, da inconsciência de nossa natureza finita.

Hoje sei palpavelmente que minha vida é finita. Sei hoje que vivo para morrer, que em algum momento futuro tudo que sou e sinto e penso se dissolverá em poeira. Dust stardust, nonada. Digo-o isento de angústia, a salvo dos tormentos que oprimem os incapazes de sequer encararem o fato meridiano e incontornável de seu envelhecimento, de sua finitude. Mas não identifico nisso nenhuma bravura, nenhuma coragem especial. Na verdade, considero-me um homem fraco, um homem de coragem muito assustada, ou pouco em si própria confiável. Talvez eu me acovarde e vacile, talvez me acanalhe se souber da morte que chega emitindo anúncios de chegada, alertando sua vítima para a fatalidade do momento último. O que sei é que felizmente tenho sido sempre capaz de encarar todos esses fatos e possibilidades isento de angústia, ansiedade, medo antecipado. Isso, no entanto, não quer dizer que terei a coragem de que precisarei no momento decisivo. Reiterando a sábia lição dos estoicos, o único tempo real é o presente. Logo, cuidemos de deixar os males do futuro entregues a seu tempo, até porque não temos como prefigurá-los. Portanto, ceder à ansiedade de temer o que ainda não é é apenas sofrer por antecipação, na linha do presente, o que não existe, ou não existe ainda. Os males que vierem hão de vir sem que precisamente saibamos o que serão, como serão.

Desdobrando ainda as implicações que hoje tenho de minha finitude, diria que ela é positiva na medida em que me fez mais seletivo em quase todos os sentidos significativos de minha vida. Consciente de que vivo para morrer, de que já vivi pelo menos dois terços do que me cabe neste mundo transitório, aprendi a valorizar o sentido do meu tempo. Já não me passa pela cabeça errar pela noite à cata de aventuras sem importância impelido por fantasias insensatas. Faz anos, por exemplo, que me afastei dos bares e festas onde nunca encontrei motivos de real gratificação existencial. Se há muito incomodava-me já o gregarismo ruidoso e inconsequente de nossas celebrações sociais, das festas onde ninguém está com ninguém e ninguém de fato importa para ninguém, hoje tudo isso me sabe simplesmente desinteressante. Diria mais, diria inconcebível.

Também as leituras e muito do que vivo na solidão e rotina de minha casa, também isso se alterou. Infelizmente, ocupo-me ainda com muita coisa que, fosse eu mais estritamente criterioso, deveria afastar de mim. Por vezes solicitações de amigos, até de meros conhecidos, constrangem-me a perder tempo com coisas que livremente evitaria. Mas aí entra uma inevitável cota de negociação com a vida, com limites de convivência praticamente imperativos. Ou aceitamos esses limites e constrangimentos da vida convivida, ou então nos internamos em algum deserto impraticável. O que sei, em resumo, é que aprendi a governar melhor minha vida e meu tempo depois que assimilei a consciência de minha finitude. Espero ainda, em algum passo improvável do futuro, libertar-me dos livros que já não importam, nem nas prateleiras e menos ainda enquanto matéria de leitura; da música que não se harmonize integralmente com minha sensibilidade; do semelhante que me entrava o caminho e concorre para infelicitar ainda mais a vida e minha obscura e discreta passagem. Ser é conviver, dizia Drummond. Mas a solidão conquistada, a que escolhemos como condição necessária da experiência que carece de recuo em face do tumulto e futilidade da vida, esta amplia nossa ilha simbólica poupando-nos, entre outras coisas, das companhias pouco recomendáveis.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Velhice ou má idade



Confesso nunca haver sido importunado pelo fantasma da velhice, ou mesmo da morte. Muitas vezes me perguntei a razão de assim conduzir-me diante de um problema que noto atormentar tanta gente que conheço. Hoje então, submersos na atmosfera tirânica da cultura narcisista, sei de quem já se atormenta antes dos trinta apenas por considerar fugazmente a possibilidade do amadurecimento e da velhice. Se assim nos comportamos ante a mera possibilidade de perda da juventude, o que dizer da morte? A morte tornou-se uma realidade obscena, na verdade impronunciável. Interrogo-me há muito, desde que li Philippe Ariès, pelo menos, sobre os rumos de uma cultura que incorre na insensatez de pretender suprimir do seu horizonte precisamente o que há de mais inelutável na nossa condição. Aí radica, talvez, a evidência da supressão de uma forma elementar de sabedoria humana.
Abstraindo considerações mais alongadas sobre a história cultural, pondero tão somente os limites convencionais de minha experiência, de fatos correntes vividos ou observados durante minha infância e adolescência. Lembro-me, por exemplo, de que meu pai, que nunca foi exemplo de sabedoria e coragem, acolheu com resignação estes terrores da nossa experiência contemporânea: a maturidade, a velhice e a morte. Poderia igualmente estender esta observação a pessoas de sua geração que participaram do mundo de minha infância e adolescência: minha avó materna, vizinhos, conhecidos incontáveis. Não retenho nenhuma memória de pessoas que se angustiassem ou suportassem inconformadas limitações, dores e perdas naturalmente acolhidas como parte incontornável da nossa condição. Em suma, todos aparentavam saber e resignadamente aceitar o fato, então inelutável, de que seres humanos amadurecem, envelhecem e por fim morrem. Tudo isso era e é doloroso, claro. Decerto não ocorreria a ninguém de livre vontade viver experiências tão infelizes e indesejáveis. O que friso é o fato de que as pessoas prescindiam de formação estoica, filosoficamente considerada, para resignar-se a essa condição de fatalidade.
Foi isso, em suma, o que acima quis sugerir quando me referi a uma forma elementar de sabedoria humana. É flagrante que essa forma elementar de sabedoria dissolveu-se no cerne de uma cultura que elege o culto infrene e delirante do hedonismo como modo e fim de uma condição realisticamente incogitável. Pois, salvo engano, nenhum milagre da ciência e da técnica, nenhuma possibilidade assegurada pelo mercado, nada disso tem o poder de anular nosso fatal processo de envelhecimento e morte. A ciência e a tecnologia médica podem hoje, como é fato, estender o prazo de nossas vidas, pelo menos das camadas socialmente privilegiadas, mas não anular a realidade imperativa do envelhecimento, com tudo que contém de redução gradual e progressiva de nossas potencialidades, menos ainda abolir a mortalidade inscrita na nossa natureza.
Talvez meu modo de experiência individual relacionado a esta questão me tenha até o presente isentado da angústia associada à premonição da velhice e da morte. O convívio frequente com pessoas bem mais velhas, a começar pelo meu pai, propiciou-me um modo de familiaridade prematura com esses fantasmas. Crescendo dentro dos limites fechados de uma vila, onde todos os tipos de idade e experiência se mesclavam, aprendi a conviver com a doença, a velhice, a morte. Aliás, duas delas, a doença e a sombra da morte, cedo infiltraram-se na minha própria vida. Diria ainda que a leitura de alguns poetas e filósofos foi decisiva para que eu logo assimilasse, pelo menos enquanto fato teórico, ou realidade de consciência e imaginação, a fatalidade do que constitui matéria de denegação e assombro para Narciso.
Que me lembre, intentando ainda escavar no passado meu modo pessoal de familiaridade com a morte, a poesia de Manuel Bandeira foi uma descoberta decisiva de acolhimento resignado de minha finitude. Quando na minha juventude sobreveio uma doença cardíaca, minha reação imediata foi de pânico e desamparo. Privado de meios materiais e psíquicos para enfrentar uma realidade que me assombrava, vaguei durante alguns dias sobre a cama presa de opressões indescritíveis. Foi a meio disso que a poesia de Manuel Bandeira – mais exatamente aquela consagrada ao tema da doença e da morte – desceu sobre mim, sobre minha solidão desamparada, e me foi gradualmente em mim me repondo e me foi iluminando e reconciliando com a ordem obscura e inevitável de minha vida. A isso somou-se a música de Bach, que desde então passou a constituir o que concebo como a materialização suprema da expressão musical.
Retomo meu tema variando o registro, agora tendente à sátira. São inumeráveis as evidências cotidianas do estado de inconsciência que hoje define o rebaixamento deplorável de nossa experiência humana. O publicitário, uma das divindades do mundo cretino em que vivemos, aciona a máquina de calcular e dela extrai um slogan que logo se dissemina pela mídia e a consciência geral: A boa idade. Alude à idade em que me encontro, que já não é velhice, muito menos maturidade. Esta foi a motivação principal que me levou a intitular de Má Idade a fase atual do meu diário. A velhice tornou-se assim outra condição obscena do presente, além da morte. Graças à indústria publicitária, ninguém mais envelhece. Passa-se miraculosamente da juventude, ideal supremo da cultura hedonista, para a boa idade. É patético, para não dizer deprimente, ver essas multidões de mulheres e homens reumáticos, fisicamente combalidos e deformados pela idade, rebolando nos salões de festa da terceira idade (eis outro avatar da terminologia consumista).
Outro dia, aliás, fui dançar com Bella no Clube da Aeronáutica, bem próximo a meu apartamento. A festa promovida pelo clube, sempre às quintas, chama-se Salla (sic) de Dançar. Embora frequentada por gente de todas as idades, o predomínio é dos velhos, fato de resto igualmente observável em festas desse tipo. Perdão, quis dizer terceira idade, ou boa idade. Observei consternado velhinhas (vozinhas, como diria Bella) ridiculamente mimetizando garotas. Pior: garotas vulgares, remexendo os quadris desproporcionalmente avolumados pelo peso dos anos, erguendo a ponta da saia acima dos joelhos. Seus parceiros são negros jovens e musculosos. Estão ali, suponho, como prestadores de serviço a essas velhas comportando-se como adolescentes retardadas, iludidas pela fantasia de que o tempo é recuperável ou reversível.
É triste ver pessoas envelhecerem desse modo. Mas a inconsciência desse estado real é tamanha que talvez ninguém mais se dê conta do quanto é indigna essa forma de envelhecimento e decadência. Como percebê-la, se a própria terminologia que a recobre é já intencionalmente fabricada para servir à alienação, à incapacidade de mirarmos a velhice com aquele estoicismo elementar do passado que vi refletido na face do meu pai, de minha avó, dos velhos do seu tempo? Digo-o sem nenhum traço de nostalgia, até porque continuo preferindo o presente. Sou e espero continuar sendo um homem do presente, dentro dele vivendo sem ceder à tentação da evasão fácil e irrealista orientada para um passado de fantasia, recriação imaginária do mal-estar na linha do presente. O que subjaz ao argumento que aqui venho desenvolvendo é algo bem distinto: é a capacidade de relacionar a experiência do presente à medida do tempo vivo, traduzido na consciência da tradição que nos vincula às condições em que nos formamos, à corrente invisível da experiência que deságua no presente. Somente o narcisista, alheio ao tempo que supõe trânsito, envelhecimento e morte, somente ele vive a ilusão do eterno presente, um tempo ilusoriamente absoluto, portanto sem nexos com o que foi e o que será.
A crítica do presente não supõe necessariamente nostalgia, linha de fuga para o passado ou ainda algum ideal utópico. Uma das prisões supostas na meia idade ou velhice deriva precisamente dessa pressuposição, isto é, se criticamos o presente é porque somos nostálgicos, porque a idade fatalmente nos impele, até inconscientemente, a idealizar o passado, ou contrapor ao presente opressivo alguma impraticável utopia. Esse psicologismo barato é moeda corrente. Até amigos íntimos, gente de minha própria geração, valem-se desse expediente grosseiro para desqualificar uma crítica contra a música barata que hoje somos obrigados a ouvir em qualquer lugar público, inclusive em casa, já que os vendedores de cd pirata trovejam rua afora sua mercadoria criminosa. O exemplo sugere a que ponto descemos na nossa inconsciência social e estética. Bastaria o cotejo mais elementar entre a bossa nova e seus sucessores dos anos 60 e 70, época suprema em toda a história da nossa música popular, com o que hoje correntemente se produz e divulga, para que salte aos olhos o abismo de qualidade separando um e outro tempo. No entanto, quando vez ou outra ensaiei dizer coisas desse tipo, tão evidentes e indiscutíveis, prontamente retrucaram: “Ah, você está sendo nostálgico. Durante nossa juventude também havia muita porcaria que hoje esquecemos”. Ora, esquecemos, ou esqueci, porque nunca sequer perdemos tempo ouvindo esse lixo que atulha nossos ouvidos. O mais curioso, no argumento, é o quanto ele despreza a lógica suposta no meu juízo. Retrucam com tolices dessa natureza como se eu por acaso falasse da porcaria musical de minha juventude...

Recife, 02 de setembro de 2008.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Cioran (fragmento de um diário)



Releio Cioran: Exercícios de Admiração. Esse romeno de formação francesa, que muito à vontade declara a ambição de escrever em francês melhor do que os próprios franceses, é sem dúvida um filósofo escritor. O traço talvez mais saliente dos ensaios curtos e textos de circunstância que compõem este volume – salvo o longo capítulo inicial dedicado a Joseph de Maistre – é o pessimismo dissolvente com que encara a condição humana. O curioso é que essa sua peculiaridade, com freqüência expressa em termos desabusados, não deprime o leitor. Pelo menos posso dizer que não me deprime, antes pelo contrário.

Cioran é um homem governado por excessos, presa fácil das paixões infrenes. Como ele próprio reconhece, é pouco afeito à nuança. Escrevendo sobre Otto Weininger, frisa as qualidades deste que mais o seduziam: o exagero desmedido, a negação extrema, a aversão ao bom senso, a busca intransigente do absoluto. Em suma, tudo que não sou nem me apetece. Weininger foi uma referência crucial na juventude de Wittgenstein. É este um dos argumentos mais fortes de Ray Monk, o biógrafo que mais profundamente me marcou. Sua biografia de Bertrand Russell em dois magníficos volumes (The Ghost of Madness e The Spirit of Solitude) é provavelmente a melhor que já li em toda a minha vida. A que dedica a Wittgenstein, The Duty of Genius, é também excelente, mas não tanto quanto a de Russell. Monk é um wittgensteiniano e coerentemente toma o partido de Wittgenstein contra Russell em ambas as biografias. Isso entretanto não basta para que a biografia do primeiro seja melhor que a do segundo. Sendo mais preciso, Monk toma o partido de Wittgenstein por nele identificar uma integridade ética e intelectual superior à de Russell.

Voltando a Weininger, ele é tão central para a compreensão da vida de Wittgenstein proposta por Monk que a epígrafe que este escolheu para The Duty of Genius é extraída de Sexo e Caráter, o livro fundamental de Weininger: “Lógica e ética são fundamentalmente idênticas; não são mais do que dever para consigo mesmo”. A epígrafe evidentemente é a pista que conduz ao título da biografia, portanto do seu sentido substancial. Cito a epígrafe em português por não dispor do meu exemplar da biografia em inglês. Alguém o levou ou roubou, não sei. Tenho adotado como norma neste diário registrar primeiramente uma obra no original sempre que a tenha lido primária ou exclusivamente no original. No caso de The Duty of Genius, cito a epígrafe em português por dispor apenas da edição publicada pela Companhia das Letras.

Cioran é autor de boutades deliciosas. Referindo-se à misantropia, escreve estas palavras que não resisto à tentação de citar: “Não receie encontrá-lo: de todas as criaturas, as menos insuportáveis são as que odeiam os homens. Não se deve nunca fugir de um misantropo” (p. 120). A propósito dos benefícios catárticos da função da escrita, revela haver sobrevivido graças a ela. Julgo compreender o que escreve acerca da função liberadora da escrita por experimentar corriqueiramente esse fato de raiz psicológica. Considero-o de resto tão saudável que viso antes de tudo a função expressiva da escrita, até porque não sou um escritor profissional e quase nada publiquei dos meus escritos erráticos e dispersos, além de no geral circunstanciais. Cioran é evidentemente um escritor profissional. Como tal, pode melhor apreciar os benefícios catárticos da escrita. Observa assim que “Quando detestamos alguém a ponto de querer liquidá-lo, o melhor é pegar uma folha de papel e escrever várias vezes que X é um canalha, um crápula, e imediatamente percebemos que o odiamos menos e que quase não pensamos mais em vingança (...) Suportei-me melhor assim, como suportei melhor a vida. Cada um se cuida como pode” (pp. 127-8).

Registrando um pouco de minha experiência pessoal a esse propósito, com freqüência noto que o mero fato de escrever no diário páginas duras contra determinadas pessoas ou situações funciona efetivamente como um dispositivo descompressor, um liberador de energia agressiva reprimida. Talvez o caso mais facilmente observável no meu diário seja o referente a tudo que na realidade social brasileira inspira-me revolta e aversão. Escrevo reiteradamente acerca dessas coisas e sinceramente gostaria de suprimi-las de um diário que estimaria menos pesado e menos negativo. Sucede, no entanto, que sou rotineiramente vítima de abusos e agressões a meus direitos elementares de cidadania numa realidade regida pela anomia; sou vítima da desonestidade ou descaso de pessoas e instituições que burlam minha boa fé, quando não simplesmente me ignoram. E não consigo nem quero adaptar-me a esses horrores grandes e pequenos inscritos no nosso cotidiano cultural, embora saiba de minha impotência, o que naturalmente acentua minha revolta. Diante disso, transporto muitas vezes intencionalmente parte dessas irresoluções para as páginas do meu diário. Aqui me pronuncio contra a grosseria dos recifenses, sua incivilidade crônica, sua inconsciência social que em verdade define um padrão de convívio. Noto então que o mero registro da crítica, da denúncia irrefreável, da indignação impotente, tudo isso como que se quebranta, cede na força opressiva que tanto me perturba. É esse, em substância, o processo psíquico que Cioran assinala na sua própria escrita.

Escrevendo sobre Scott Fitzgerald, indica Cioran dois modos de lucidez verificáveis nos seres humanos. O primeiro ele o caracteriza como um privilégio ou dádiva. Seria próprio dos que vivem a vida ou a experiência do mundo como algo transparente e assim sentem-se como que libertos do sofrimento de sabê-la transparente, já que ela assim os define. Ainda que a vivam como um estado de crise permanente, não sofrem nem se queixam do que afinal é inerente à sua condição. O outro modo de lucidez é sempre uma revelação tardia sobrevindo como um acidente, “uma rachadura interior que ocorre em dado momento”(p. 108). Este é o modo de lucidez característico de Scott Fitzgerald. Sua expressão mais plena e transparente está documentada num dos textos literários mais dilacerantes, verdadeiros e impiedosos que já li: The Crack-up. É a rachadura a que alude Cioran quando emprega a expressão “rachadura interior”.

Passo a palavra ao romeno da catástrofe, que sintetiza com felicidade o essencial do que escreve Scott Fitzgerald no seu dilacerante texto autobiográfico: “Até então, fechados numa agradável opacidade (refere-se aos que se identificam com o segundo modo de lucidez acima caracterizado, nota minha) aceitavam suas evidências sem avaliá-las nem lhes pressentir o vazio. Ei-los desiludidos e como que involuntariamente engajados no caminho do conhecimento. Ei-los tropeçando entre verdades irrespiráveis, para as quais nada os preparara. Por isso, experimentam sua nova condição não como um dom, mas como um ´golpe`. Nada preparara Scott Fitzgerald para enfrentar ou suportar essas verdades irrespiráveis. O esforço que fez para se acomodar a elas não deixa, contudo, de ser patético” (p. 108).

The Crack-up é o relato pungente de uma experiência de desintegração, expressão lúcida e dolorosa da ruína de um homem que antes viveu mimado pela glória literária e a dissipação de sua fortuna e talentos num estado de orgia inconsciente e infrene. Algo dessa atmosfera, ambientada nos círculos mundanos da Paris dos anos 20, foi recriado em The Sun also Rises, de Hemingway, mas sobretudo na obra de Scott Fitzgerald. Diria que antes de tudo nos seus contos. Meu favorito é Babylon Revisited, que já contém muito do que Fitzgerald expressará em nome próprio, isento de qualquer artifício ficcional, na sua lúcida, atordoantemente lúcida escavação autobiográfica. The Crack-up é o relato de uma ruína, a lúcida descrição do desmoronamento de uma mente brilhante e de um escritor emblemático da dissipação enlouquecida de uma geração, the lost generation, espremida entre duas guerras devastadoras.

Scott Fitzgerald morreu pouco depois dos quarenta. Não resistiu à experiência devastadora documentada na sua excepcional peça autobiográfica. Sua mulher, Zelda, parceira lendária de mergulho esgotante nos labirintos sedutores da vida, entrou em pane e acabou internada numa clínica psiquiátrica, onde morreu num incêndio. Otto Weininger, acima mencionado, suicidou-se com pouco mais de vinte anos. Seu suicídio foi cercado por circunstâncias patéticas, pois escolheu matar-se na casa onde Beethoven morreu. O fato não é de modo algum acidental, já que cultuava Beethoven como o gênio supremo. Weininger legou à inteligência do seu tempo um livro crucial para Wittgenstein e outras mentes poderosas: Sexo e Caráter. Como observa Cioran, pretexto para estas páginas pouco animadoras, cada um cuida ou precisa cuidar de suportar a vida como pode. Não consigo seguir à vontade, nem de fato, o espírito do seu pessimismo. Acredito ainda que a vida encerra outros valores e possibilidades além da mera e desoladora experiência da suportação. Sem a intenção de pregar ânimo demasiado para o exercício da vida, sei que ela representa bem mais que isso.

Diário - Recife, 30 de novembro 2008.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Madrugada na praia II



A solidão é um exercício de escuta
absorção na silenciosa atmosfera dos objetos.
Quando tudo aparentemente dorme
os sentidos captam no ar
infinita variedade de vozes
no sono da noite pulsando.
Aviões descrevem rumorosa viagem nos céus
livros falam pela voz dos símbolos
objetos compõem um mundo impregnado de presenças.
Estou só
e no entanto
a solidão não é.

Porto de Galinhas, agosto 1987.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Madrugada na praia



É noite em tudo.
O universo é só noite
e a noite de tudo recobre
minha noite mais íntima e incompartilhável.
Dentro e fora de mim as sombras se imobilizam
sobre tudo suspensas
e tudo que revestem é por dentro sombra.
Em sombra me dissolvo.
Desamparado espreito um anúncio de aurora
sinal de gente na praia deserta.
Mas sinto que todos dormem
todos naufragam nessa momentânea suspensão de tudo
líquido abismo
intangível rotação do nada.
No bojo da noite
rompendo a imobilidade da sombra
o silêncio no qual a ausência difusa se alarga
ouço a voz do mar crescendo.
E logo outras vozes secundam:
cão galo homem afundando na areia
ronco de motor distante.
Tudo milagrosamente se conjuga
e contra a sombra investe.
A luz, ainda tênue, desprende-se do véu de trevas.
Na distância, o prenúncio do dia
por tantos símbolos invocado
à treva se vai impondo.
Volto à sala
toco os objetos repostos na moldura dos sentidos
e reconstituído sei que voltei a ser.

Porto de Galinhas, agosto 1987.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Memória



Que estranha a memória do que foi
E em vão quero em remendos recompor
Memória que reluz e já não dói
Que foi, não é, talvez não mais amor.

Que estranha a memória, esse mundo
Mais vasto que o presente agora incerto.
Revem, mundo memória, e toca o fundo
De mim lavrando a alma e o ser deserto.

Que estranha a memória do amor
Da dor, da perda, do rastro de poesia
Que a noite convertia em esplendor
E o oco do que é ser não mais doía.

E o eco de outro som na noite vinha
Soprando entre o mar e a cidade
E tudo que sobrava, que eu retinha
Era rito de amor, felicidade.

Mas onde essa memória, onde se esconde
A vida que esvaída quis salvar.
Seu sítio, em que mapa, diga onde
O tempo do vivido, onde há?

A voz na noite vaga me responde:
O tempo é o presente e nada mais
Existe ou de tua busca já se esconde.
Memória é o que sobra nos anais
Jornais, diários, trapos da saudade;
Memória é a ilusão de reviver
O que vivido não será jamais.
O eco não é mais felicidade.

Recife, 23 de agosto de 2011.