segunda-feira, 26 de março de 2012
Fausto Wolff e o Pasquim
Lembro-me ainda de Fausto Wolff com admiração. Pelo que dele diziam, era um beberrão gigantesco, mulherengo e briguento. Foi um dos jornalistas do Pasquim que fizeram minha cabeça anárquica ou inconformista durante o reinado do AI-5. Chovendo no molhado, eram tempos ásperos, de juventude acuada pelo medo e todavia sedenta de vida participativa. Nesse contexto quase irrespirável, mas revestido de uma intensidade e energia somente concebíveis quando somos jovens, o Pasquim pairava como símbolo de uma era assinalada pela repressão política e a permissividade dos costumes. Se eu fosse um moralista de plantão, teria silenciado toda a chamada patota (ah, a vida fugaz das gírias...) do Pasquim.
Como então se dizia, o Pasquim fez a minha cabeça. Não toda, evidentemente, pois eu lia bastante, já antes do seu surgimento, e assimilava valores em muitos sentidos divergentes dos que ele difundia. Ler o Pasquim e gente como Fausto Wolff, Millôr Fernandes e Paulo Francis era antes de tudo uma viagem de prazer liberador. Como conteúdo e forma, para chover no molhado, são indissociáveis, o Pasquim revolucionou o jornalismo brasileiro tanto num sentido quanto no outro.
É difícil para o jovem de hoje avaliar o impacto que representou. Muito do que hoje é rotina e clichê midiático, naquele momento irrompeu como um sopro de absoluta novidade. A linguagem solene e artificial dominante no jornalismo foi pulverizada por um estilo coloquial e saboroso, irreverente e agressivo, salpicado de gírias gestadas em Ipanema e logo disseminadas entre as camadas letradas e inconformistas do país. Evidentemente essa linguagem inusitada e esse coloquialismo inédito expressavam temas e valores equivalentes. O sucesso alcançado pelo jornal e pelos jornalistas que o faziam foi imediato e desconcertante. Já existia, claro, a censura imposta pelo AI-5. No entanto, as marcas mais visíveis do jornal, sua linguagem irreverente e debochada e sua ênfase sobre a renovação dos costumes, lograram ludibriar a censura. Só bem mais tarde os dispositivos repressivos do regime avaliaram melhor a dimensão política do periódico. Daí para a prisão dos jornalistas a passada foi curta.
Em meio a todo aquele abafamento, era indescritível a experiência de ser jovem pensando com inconformismo e temor, mas também com prazer, irreverência, um desejo irrefreável de revisar todo o provincianismo opressor do Brasil em que todos os dias a gente tropeçava. A opressão maior, e imediata, provinha do ambiente familiar. Por isso suponho que a leitura rotineira e apaixonada do Pasquim tenha concorrido para exacerbar meus planos de cair fora, pegar minha estrada, refazer minha vida liberto da família que me impunha um peso sufocante.Foi o que de fato acabei fazendo. Um dia, apesar do medo, da culpa,de todas as incertezas imagináveis num jovem que nega a sombra protetora e permissiva do pai para mergulhar na aventura da vida sem amparo,um dia, com o Pasquim e outras rebeldias debaixo do braço, fui me perder e me procurar por aí.
Mas volto a Fausto Wolff, pois sei agora que acaba de morrer. Considerando o quanto bebia, o quanto viveu de dissipação, poderia dizer que viveu muito: 66 anos. Eis aí uma boa idade para se morrer. Aliás, passados os 50, toda idade seria boa para se morrer, se a gente antes vivesse de modo satisfatório (nunca feliz, pois que isso é uma impossibilidade) e morresse isento de tormentos prolongados. Mas estou evidentemente pedindo demais à morte, quando sequer podemos pedir medidas razoáveis à vida. Que a morte venha, quando vier. No entanto, se eu pudesse escolhê-la, seria como no poema de Manuel Bandeira, a mais completa realização da serenidade estoica que já li condensada num poema:
Quando a Indesejada das gentes chegar (...)
Encontrará lavrado o campo
a casa limpa, a mesa posta
com cada coisa em seu lugar.
Cito de memória. Portanto, caberia pedir benevolência para a memória de quem já viaja em direção à idade com que Fausto Wolff morreu. Quero dizer, não ainda tão perto, mas por certo mais perto que longe.
Sei bem pouco dos últimos anos de Fausto Wolff. Sei que criou um site na internet, Revista Eletrônica, que vi ligeiramente uma única vez, logo que um amigo me enviou o site. Mais importante é o fato de que consagrou o melhor de suas energias intelectuais nos últimos anos a escrever romances. Li apenas um, o volumoso e surpreendemente bom À Mão Esquerda. Tenho acompanhado bem pouco do que se produz literariamente no Brasil. Leio sempre Rubem Fonseca, de longe nosso melhor contista, somente superado no Brasil pelo supremo Machado de Assis. Nem sequer conheço os romances de Milton Hatoum, com quem dividi sala na Universidade de Berkeley em outubro de 2002. Amigos comuns, em particular os que vivem ou viveram em Berkeley, fizeram-me sempre referências muito elogiosas a seus romances. Eu próprio pude ouvir palestras de Hatoum em Berkeley sobre os romances que até então escrevera: Dois Irmãos (já então traduzido para o inglês) e Um Certo Oriente, que aliás desfruta da preferência dos amigos que leram sua obra.
Recife, 06 de setembro de 2008.
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