quarta-feira, 28 de março de 2012
Millôr na cabeça
Nota: Acabo de saber da morte já esperada de Millôr Fernandes, pois há muito estava internado na UTI. Soube do fato há alguns meses através de José Paulo Cavalcanti Filho. Como amigo de Millôr, além dos que tiveram o privilégio de com ele conviver, José Paulo estava a par de fatos ignorados pelo público e pessoas como eu. Parece-me oportuno postar novamente no meu blog o texto abaixo, em louvor de Millôr. Foi dos primeiros que dei a público, quando meu blog tinha pouco mais de um mês.
Um dia, órfão e ainda garoto, Millôr Fernandes tomou consciência do desamparo metafísico do ser humano. O que para tantos constitui a raiz inconsciente das mitologias consoladoras que inventamos para suportar a existência, para ele foi o princípio da afirmação heroica de uma individualidade livre e isenta de transcendência. A partir de então, tomou nas mãos as rédeas de sua própria vida e logo se converteu num fenômeno jornalístico e intelectual.
Não sei de intelectual mais livre do que Millôr. Dentro do seu individualismo radical, tem empenhado sua longa vida na defesa e afirmação de uma liberdade crítica intransigente. Num país entranhado em tradições tribalistas e autoritárias, Millôr atravessou golpes de Estado e ditaduras, censura dissimulada ou instituída, sempre confrontando e afrontando os poderosos e toda uma corte de ideologias e modas intelectuais que se sucedem diante do seu olhar cético e corrosivamente crítico. Não bastasse tanto, que é de resto absolutamente singular na nossa história intelectual, Millôr realiza todas essas façanhas sorrindo aquele sorriso afirmativo e cético de Voltaire, o sorriso do homem livre consciente de que nossa condição é insolúvel, de que a humanidade é uma paixão inútil e todavia vale a pena até no lampejo humilde ou assombrado da alma mais pequena.
Como muita gente de minha geração, despertei para a vida adulta durante os chamados anos de chumbo impostos pela ditadura militar. Em meio a anos de pobreza, incerteza geral e temor constante, fiz do Pasquim uma das âncoras que atenuavam os riscos de naufrágio vindos de forças sem governo. Foi nesse momento que descobri Millôr Fernandes, Paulo Francis e outros jornalistas e intelectuais. Sem que o soubessem, nunca saberão, eles me ajudaram a viver e sobretudo a rir das nossas impossibilidades e desgraças. Reiterando uma platitude todavia necessária, dada nossa corrente representação da liberdade, nossa liberdade é sempre limitada. Ninguém levou-a tão longe quanto Millôr. Isso é o que nele mais louvo, admiro e invejo. O que segue representa minha obscura homenagem a Millôr, o único prisioneiro que conquistou a liberdade de tomar sol rindo do mundo e de si próprio no pátio da penitenciária chamada liberdade. Não bastasse isso, corre como um atleta espartano ao amanhecer e pernoita como um hedonista tropical. Ou direi agora corria e pernoitava? Afinal, Millôr é eterno, mas seus músculos são mortais.
Millôr irrita-se quando o leitor iletrado supõe que seu ofício, por ser humorista, é simplesmente ser engraçado. Ora, o humor dói até quando o humorista ri. Engraçada é a chanchada, que aliás define o brasileiro como modo cultural de ser.
Deus existe
Deus é chiste
Deux existe
mais je suis un.
Definições:
1 – Censura – é uma variante da repressão. Explicando melhor, já me censuro na primeira definição. O agente não foi a polícia, o código penal ou a opinião pública. Foi a memória da minha mãe. Sou obediente até na memória.
2 – Sexo anal - é aquele que se pratica todo ano.
3 – Coerência - é a variação moral e ideológica de uma ideia fixa.
4 – Prudência - é a virtude dos covardes.
5 –Heroísmo - não conheço herói de pijama ou bermuda. A intimidade dissolve qualquer grandeza.
6 – Criança - é o tirano doméstico da sociedade permissiva.
7 – Ciclista - é a criança do trânsito recifense (conferir a definição precedente).
8- Caráter - é um vício mortificante para a saúde, sobretudo no Brasil.
9- Humanidade - é uma abstração. Por isso é tão fácil ser humanista enobrecendo-a em evangelhos, discursos e poemas, notadamente em livros de autoajuda. O que no entanto conheço são indivíduos. E sei de bem poucos recomendáveis.
10- A mídia - é um circo; os jornalistas são os palhaços; o público, cãezinhos amestrados sedentos de riso e sangue.
11- Arrependimento - se eu pudesse retornar à juventude, levaria para a cama todas as mulheres que meus tolos escrúpulos morais deixaram insatisfeitas – e eu mais que elas.
12- Correção tardia - quando jovem, pensava mal da humanidade, mas acreditava-a reformável. Hoje, velho mais nos desenganos do que nos anos, sei que é bem pior e a única reforma factível é a publicitária.
13- Nordestino - é o judeu brasileiro, só que sem Bíblia e não raro sem alfabeto.
14- Envelhecer - é viver cada vez mais perto da morte e cada vez mais longe da vida.
15- Envelhecer - é uma ressaca que se agrava com o passar dos anos, mesmo quando você é abstêmio. Por isso convém continuar bebendo.
16- Posteridade – é a consolação de todo escritor rejeitado e inédito. Pior ainda é a sina do rejeitado publicado.
17- Feministas - são tão insensatas que inventaram um movimento social apenas para ficarem mais parecidas com os homens.
18- Ejaculação precoce – é a evidência de que a pressa é amiga da imperfeição.
19- Nordestino não conversa, bate boca.
20- Nacionalismo - é o narcisismo das massas.
21- Bairrista - é o narcisista que come barro por bairro e ainda sai pela vida arrotando o melhor prato do mundo.
22- Preguiça - é o lazer do rico, o tédio do pobre e a gratuidade do sábio.
23- Compatibilidade incompatível – todas as mulheres que conheço não conseguem viver sem homem, assim como todos os homens que conheço não conseguem viver sem mulher. Ainda assim, todos que se acasalam findam separando-se, ou tolerando o fardo da infelicidade conjugada.
24- Autoajuda - é o gênero lixorário composto de altas prescrições inúteis e baixa eficácia prática cujo fim exclusivo é produzir altos rendimentos para um autor de baixa reputação. Ao cabo dessa comédia de equívocos, o autor engana o leitor enquanto este ajuda aquele.
25- Os ingleses são pragmáticos e sensatos, civilizados e portanto reprimidos. Por isso não entendo os que se casam com brasileiras e vêm morar no Brasil, ou vêm para o Brasil, casam com uma brasileira e nunca mais vão embora.
26- Ingrato é o amigo que se vinga de um favor que lhe presto ou empresto. Esta definição, ligeiramente alterada, procede da fonte irreverente de Flavio Brayner.
27- Solução para o Brasil - estou farto dos pessimistas que desesperam do Brasil condenando-o como insolúvel. O Brasil tem jeito, sim. Basta exportar todos os brasileiros.
28- Mídia – a mídia tem o poder de transformar um assassino suburbano num Romeu rejeitado de uma sórdida novela passional. Aliás, num enredo passional Romeu mataria Julieta logo depois do sequestro. Ou do casamento. Ou do ciúme que nem houve. A mídia brasileira comprova que sua regra fundamental é alcançar altos índices de audiência ao preço de qualquer cadáver. A conta vai para o telespectador, que de resto a merece.
29- Televisão – já fui forçado a sentir o cheiro de todo tipo de lixo neste país imundo. Nenhum é comparável ao da televisão.
30- Polícia brasileira - mal avistei a polícia, comecei a correr para que ela não confundisse um homem honesto com um fora da lei.
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