Mostrando postagens com marcador Conto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Conto. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mioca e Nino


Iam a caminho da praia, já noite fechada, quando ouviram um sopro débil vindo do beco escuro. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco. Ouviram outro sopro, este bem nítido: miau... Apuraram a vista e logo divisaram, no canto da parede, a gatinha encolhida e assustada. Depois de alguma hesitação, Marilena, tocada pela visão da gata encolhida e abandonada no beco, estendeu as mãos trazendo-a para perto de si.
“Minhoca. Agora você se chama Minhoca”. Batizou-a assim sem refletir.
Logo Cláudio, que a tudo assistia silenciosamente, corrigiu-a: “Não é Minhoca. Ela tem cara de Mioca. Não acha?”. Marilena assentiu e logo trocaram a caminhada na praia pelo socorro a Mioca. Voltaram para casa sentindo os pelos úmidos e sujos da gatinha cujos olhos assustados seguiam fixos e tensos os movimentos dos pais adotivos. Sim, sem que nada discutissem ou acordassem, desde já Marilena e Cláudio sabiam que iriam doravante cuidar de Mioca.
Mal chegaram em casa, cuidaram de lavá-la. Mioca trazia nos pelos e em todo o corpo as marcas sujas das ruas, dos buracos onde por certo se refugiou de longos dias de abandono. Marilena sentira o tremor do seu corpo magro, o arrepio dos pelos ao contato com seu próprio corpo. Imaginaram, ela e Cláudio, que sobrevivera a muitas privações. Depois do longo e cuidadoso banho, enxugaram-na com carinho e por fim lhe serviram leite e carne moída. Apesar da fome, Mioca começou comendo ainda desconfiada, olhos fixos em Marilena e Cláudio. Depois de se afastarem discretamente, temendo ainda assustá-la, deixaram-na comendo na cozinha e foram cuidar das medidas práticas para alojá-la na casa. No fundo do armário embutido, que era quentinho e recolhido dentro do quarto que compartilhavam, arrumaram o cantinho onde Mioca passaria a viver. E assim Mioca ganhou um lar e pais.
Na manhã seguinte, tão logo acordou, Marilena acercou-se do quartinho de Mioca, já de olhos abertos, sempre fixados nela com um misto de desconfiança e temor. Depois de tomá-la nos braços para levá-la à cozinha, notou-lhe o corpinho quente, como se estivesse febril. No decorrer do dia, apesar dos cuidados que lhe dispensaram, Marilena e Cláudio notaram que a temperatura do corpo indicava o estado febril que desde cedo lhes inspirara desconfiança. Resolveram então ligar para Rosa, a veterinária do bairro que uma amiga, protetora de gatos e animais de estimação, lhes indicara.
“Ela está realmente muito febril”, observou Rosa visivelmente preocupada. Depois de examiná-la demoradamente, enquanto Marilena e Cláudio aguardavam inquietos, Rosa decidiu que o mais seguro seria ficar com ela durante o dia na clínica para proceder a um diagnóstico mais preciso. Quando voltaram à tarde, Rosa lhes disse que o estado febril de Mioca era indício de uma enfermidade mais grave do que de início supusera. Em suma, não haveria como curá-la sem submetê-la a uma cirurgia.
Mioca foi operada no dia seguinte. Voltou para casa nos braços de Marilena com o corpinho magro protegido por uma roupa cirúrgica. Marilena e Cláudio acomodaram-na no seu cantinho e desde então passaram a cuidar dela com amor inquieto e sempre vigilante. O pior é que continuava doente e a cirurgia não cicatrizava. Todos os dias precisavam remover com paciência e zelo a roupa cirúrgica para renovar a aplicação de medicamentos e ataduras. Mioca miava temerosa e encolhia-se desconfiada, o que dificultava os curativos obrigatórios feitos por Marilena com a ajuda de Cláudio.
O tempo passou e nada de Mioca ficar curada. Diante disso, Marilena e Cláudio precisaram recorrer a outros veterinários indicados por Rosa, que se confessou incapaz de prover a cura necessária. Por isso numa certa manhã Marilena e Cláudio acomodaram Mioca numa cestinha confortável e bem aquecida e levaram-na de carro para ser examinada por Carmen, professora-veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Notando a expectativa apreensiva com que aguardavam a conclusão do exame, Carmen disse sorridente para Marilena e Cláudio:
“Pois é, amor dá trabalho. Qualquer amor, inclusive de bicho”.
“É o que vivo dizendo a Marilena, que aliás me dá muito mais trabalho do que Mioca”, respondeu Cláudio com laivos estudados de rabugice que sempre provocavam risos em Marilena e nos amigos já afeitos a seu humor travosamente divertido.
Ao fim dos exames, apesar do clima descontraído desatado pela conversa errática e carregada de simpatia recíproca, Carmen não lhes deu solução nem sossego. Seria preciso submeter Mioca a mais uma cirurgia. Depois desta vieram outras, assim como novas idas e vindas à Rural. Em casa, Mioca continuava submetida aos curativos diários. Apesar do cuidado amoroso com que lhe ministravam medicamentos e medidas de assepsia preventivas de agravamento da infecção, Mioca sempre se contraía temerosa.
Não obstante a constância e o amor de Marilena e Cláudio, bastante para desatar-lhe o olhar antes fixo e assustado, Mioca parecia viver assombrada por temores insondáveis. Se acaso recebiam uma visita, ela se entocava no seu cantinho. Como viviam rotineiramente reservados, as visitas eram raras. A mais freqüente era a de Gastão Fortuna, cuja notória avareza inspirava recorrentes piadas à língua cortante de Cláudio. Marilena ria com ambos. À medida que a amizade entre ela e Gastão se estreitava, apesar de ela aprender a defender-se da avareza dele escondendo algumas garrafas de vinho para forçá-lo à contrariedade de trazer alguma, Marilena foi gradualmente substituindo a reserva inicial pelo tom brincalhão e zombeteiro de Cláudio. Assim, a presença ocasional de Gastão somou-se ao ambiente da casa. Até Mioca, que sempre corria para a sua toca tão logo via Gastão entrando, até ela foi se resignando ao convívio com Gastão como se dissesse: entre tantas desgraças, que mal me pode fazer mais uma que de resto não me fere o corpo? Numa noite extraordinária, com a sala cheia de convidados alegremente bebendo e tagarelando, Mioca entrou na sala, para espanto risonho dos pais, e saltou sobre o corpo de Gastão. Como o feito inusitado não lhe custou nenhum dinheiro, Gastão riu com gosto enquanto alisava os pelos do corpinho magro e castigado de Mioca. Foi uma cena memorável na crônica daquela família minúscula cujo centro expectante era a possibilidade da cura de Mioca.
Econômico até no gasto dos afetos, Gastão Fortuna contava meticuloso os investimentos que fazia no convívio dos amigos. Talvez por isso fosse observador atilado dos comportamentos. Assim, passou a perceber o quanto a presença de Mioca curiosamente humanizara Cláudio. Pois este nunca fora de gastar muito afeto, nunca dele repontavam os desmandos carentes e efusivos do brasileiro movido pela indisciplina e o excesso. Suas motivações, distintas das de Gastão, emanavam de fontes improváveis, talvez de certa disposição cética que não raro deslizava para modos de cinismo pouco condizentes com as naturezas mais amorosas. Esse grão de amor e desvelo entrou-lhe na casa depois que passou a viver com Marilena. À percepção de Gastão, todavia, o vinco de ternura, de vulnerabilidade afetiva, isso proveio de Mioca arrastando pelos cantos da casa o seu martírio miado, sua dor renovada a cada cirurgia, a cada curativo, a cada infecção renitente e renovada. O certo é que passou a sofrer no cotidiano, Marilena ainda mais, a doença incurável de Mioca. Embora tanto dela cuidassem, tanto fizessem para curá-la, os fracassos das cirurgias sucessivas findou por abatê-los em certos momentos. Uma noite, enquanto bebiam vinho conversando sobre a sorte infeliz de Mioca, Cláudio acabou desabafando:
“Se Mioca não ficar curada, ou infelizmente um dia morrer dessa doença, não mais cederei à tentação de trazer outro gato para a nossa casa”.
Marilena assentiu, embora no fundo sentisse que aquela onda quieta e secreta de amor materno circulante no seu ser não seria abafada pelos desastres provenientes do seu amor por Mioca. Resignaram-se a sofrer por Mioca, a continuar lutando para curá-la, mas ficou ajustado que depois dela nenhum outro gato entraria no seu mundo privado.
9h da noite. O interfone toca. Cláudio e Marilena olham-se intrigados. “Quem será, Leninha?”
A voz do porteiro: “Professor, seu Gastão e uma amiga dele perguntam se podem subir”.
“Agora essa, Leninha. Basta a gente se esquecer de passar a chave na porta e logo Gastão vem se enfiando casa adentro. Filho da puta!”
Cláudio lembrou-se a tempo de pedir a Marilena para esconder as garrafas de Bordeaux e os dois litros de Jack Daniel`s comprados naquela manhã no Carrefour. Tinham feito a feira etílica precisamente naquele dia. Quando Marilena levantou-se para remover as garrafas da mesa, Gastão e a amiga entraram.
“Ora viva! Temos bebida fina na mesa. Isso quer dizer que chegamos na hora exata”. Abraçou Cláudio, que remoia o desejo de estrangular o sovina impertinente, e disse para Marilena: “Marilena, esta é Miss Haig, minha amiga de aventuras literárias e sobretudo de copo”.
Marilena trocou dois beijos convencionais com Miss Haig e foi logo perguntando:
“Seu nome é mesmo Miss Haig?”
“Não. Na verdade me chamo Maísa. Fui rebatizada por um amigo de Gastão cujas garrafas de Haig bebi com tanta avidez que ele, por vingança ou troça, passou a me chamar assim. Eu e Gastão gostamos tanto da brincadeira que prontamente adotamos minha nova identidade. Como acho que a nossa identidade é uma ficção ou mera convenção social, troquei de nome tão à vontade que passei a me reconhecer como Miss Haig. Portanto, querida, fique à vontade para me chamar Miss Haig. Aliás, já que temos Jack Daniel`s na mesa, não faço nenhuma discriminação. Sou pluralista em matéria de uísque.”.
Depois do primeiro gole, Gastão desviou o rumo da conversa para justificar a inconveniência da visita: “Cláudio, você sabe que sou um humanista, talvez o último. Preocupa-me ver você e Marilena fechados nessa devoção anti-humanista à doença de Mioca. Quero resgatar vocês para o convívio humano, para os inefáveis prazeres do convívio humano”.
Mais uma vez Cláudio ficou com os inefáveis de Gastão atravessados na garganta. Se havia um adjetivo que Gastão usava com reiteração perdulária, era por certo inefável. Na voz de Gastão, os poetas pernambucanos eram inefáveis, fossem quem fossem. O que parecia importar para seu gosto poético era o timbre do registro de nascimento. Se era poeta pernambucano, era com certeza autor de poemas inefáveis. Inefável era também o futebol de Gérson e, no presente, de Toni Kroos, o cérebro da seleção alemã. Inefável era a música de Roberto Carlos. Inefáveis eram os vinhos franceses, que por alguma razão insondável bebia sempre nas adegas alheias.
Depois de muita bebedeira e tagarelice, Mioca entrou na sala cosendo o corpinho frágil pelos cantos da parede. Para surpresa de Marilena e Cláudio, voltou a saltar sobre a barriga de Gastão cujo humanismo estava bêbado demais para afagar-lhe os pelos. Mioca recolheu sua ousadia, escorregou do sofá para o chão e se foi de volta para o seu refúgio novamente cosendo o corpo aos cantos da parede. Cláudio observou a cena acabrunhado e por fim cuspiu entredentes: “Monstro sovina!”
Gastão e Miss Haig saíram tarde da noite, ambos visivelmente embriagados. Cláudio e Marilena, exaustos e também bêbados, foram dormir desejando que a blitz da tolerância zero no trânsito obrigasse o casal de salteadores a engolir o bafômetro.
No dia seguinte, ainda remoendo as agruras da véspera e a ressaca, tiveram que pegar a estrada, pois Mioca precisava submeter-se a uma nova cirurgia na Rural. O trânsito estava mais infernal do que o previsível. Assim, a viagem foi longa e lentíssima, exigindo de ambos uma paciência excepcional. Na verdade, Cláudio logo esgotou a que lhe restava e danou-se a maldizer a imobilidade progressiva do trânsito recifense. Não fosse o amor que devotavam a Mioca, jamais atravessariam quilômetros esburacados e intransitáveis para alcançar um destino tão distante. Mas Mioca precisava daquele sacrifício e o amor custa caro, lembrou Cláudio rosnando contra o ruído das buzinas impacientes.
Voltaram já no início da noite. Mioca, acomodada na sua cestinha confortável, miava miúdo, por certo sentindo dores provocadas pela nova cirurgia à medida que o efeito do anestésico regredia. O desejo de Marilena e Cláudio era dar conta das necessidades imediatas, tomar um banho e depois cair na cama. Mas estavam tão exaustos, tão estressados pelos rigores do dia e da véspera que decidiram caminhar um pouco no calçadão da praia. Assim talvez relaxassem e pudessem voltar para afundar no sono restaurador de que tanto precisavam.
Iam a caminho da praia, próximos ao beco escuro de onde há meses recolheram Mioca, quando de repente ouviram um sopro nítido provindo do mesmo lugar: miau. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco escuro e logo divisaram um gato lindo de pelos negros e abundantes. Miau, miau, repetiu o gato olhando-os com a confiança dos deserdados aventureiros e saudáveis. Cláudio não se conteve:
“Nino. O nome dele é Nino, Leninha. O nome desse moleque safado é Nino”.
Marilena assentiu: “Que gato lindo, Cláudio. Vamos levá-lo para casa”.
E assim Nino entrou afinal nesta história que começa com quatro patas de gato e acaba com oito. O resto não conto. Adianto apenas que o final não foi feliz, pois Mioca continua vivendo seu martírio sempre amorosamente assistida por Marilena e Cláudio. Em compensação, Nino tem beleza e saúde para humilhar Mioca e de resto provar que no reino da natureza, assim como no dos humanos, a justiça é um acidente e assim as desgraças e fortunas estão sempre desigualmente distribuídas. Aliás, já que falei em fortuna, Cláudio e Marilena mandaram Gastão Fortuna e Miss Haig ir beber noutra bodega. Já que até o amor custa caro, preferiram sensatamente gastar o que têm e podem com a doença incurável de Mioca. Nino compensa as perdas.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A Boa Idade nos Trópicos


Severo Machado
Tenho setenta anos. Sou reumático, cardíaco e viúvo. Antes de aposentar-me, acalentei durante anos o sonho de envelhecer à beira mar, estoica e solitariamente esperando a morte numa praia tranquila do litoral pernambucano. A solidão da viuvez muito me doeu. Afinal, tive Carminha a meu lado, minha amada Maria do Carmo, durante grande parte da minha vida. Ficou-me de consolo a filha, Soledade, que aliás seguiu minha profissão. Fui dentista no centro do Recife durante 35 anos. Cuidei de muita gente, até de gente difícil como Sérgio Majo, Natalino, Paulo Farias, Severo Machado, Pedro Gadelha e Valêncio Costa. Se conquistei a amizade e o respeito destes, seres crivados de idiossincrasias e atávico temor à minha cadeira e instrumentos, o fato diz algo em favor do meu apreço por seres humanos, algo de minha singular bonomia. Ao cabo, todos se foram, inclusive Soledade, cujo nome foi venturosamente traído pelo destino, pois encontrou um amor em São Paulo, para lá transferiu o consultório e nunca mais voltou.

Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Por temperamento e consciência do meu jeito pouco pernambucano de ser, evitei sempre os ambientes ruidosos da cidade, as tradições festeiras que tanto importunam meus hábitos reservados. Além disso, cresci numa família de classe média modesta, mas regida por padrões de comportamento pouco comuns. Meu pai, homem discreto e amável, nunca foi de falar alto, gesticular por tudo e por nada, como é tão típico do pernambucano. Quando voltava do trabalho, acomodava-se na sua cadeira de balanço sem nunca incomodar vizinho. Apesar dos seus modos pacatos e discretos, era um homem acolhedor, afiado no humor com que comentava fatos e circunstâncias, além de me entreter com sua convivência imaginosa. Embora de pouco estudo, preso a um mundo de horizontes bem estreitos, era dotado de uma civilidade e senso de respeito que não vejo como explicar a partir das condições ambientes em que se formou. Acho que herdei muito desses traços que pingo aqui à deriva da memória.

Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Leitor voraz de literatura, apesar da inteligência e sensibilidade convencionais, sonhei ler e em alguns casos reler na solidão da velhice as grandes obras zelosamente enfileiradas na minha velha estante revestida de vidros foscos e empoeirados. Lá repousam Cervantes, Sterne, Thomas Hardy, Dickens, Balzac, Machado de Assis e uns poucos mais. Mal fechei o consultório, bati a poeira desta cidade que aprendi a detestar e fui esconder-me no meu cantinho de praia comprado em Porto de Galinhas. Fui dos primeiros a explorá-la, dos primeiros a render-lhe afeição que direi ecológica ou naturalista, pois amei-a desde o primeiro verão em que nela me instalei ouvindo nas noites de lua o violão de Baden Powell e a música suprema de Tom Jobim. Porto de Galinhas era o paraíso ecológico onde sonhei repousar minha velhice desiludida e esperar a Indesejada das Gentes com alguns laivos filosóficos de serenidade e aceitação compassiva do meu fim.

Bastou-me uma semana de aposentadoria na praia para que os turistas e veranistas predadores convertessem minha velhice num inferno. Meu sonho de viver uma velhice recolhida e sossegada, pontuada por caminhadas na beira mar ao entardecer e outros hábitos que me propiciam serenidade, tudo isso foi prontamente suprimido pelas mudanças que a indústria do turismo, crescendo a toque de festa, impôs a Porto de Galinhas. Mergulhado em funda depressão, vendi minha casinha. Sem saída, retornei a Recife onde reocupei o velho apartamento que considerara vender logo que me aclimatasse ao litoral onde fixei encontro ilusório com a Indesejada das Gentes. Vivo agora na área que os corretores de imóveis e publicitários chamam de cartão postal de Recife. Se é isso cartão postal, bem imagino o que seja o cotidiano dos carteiros.

Às sete da manhã os vendedores de gás de cozinha arrancam-me da cama. Rolam lentamente rua afora trovejando no alto-falante as virtudes e o preço irrisório do produto que me abala o sono e a paz doméstica. Depois o ruído incessante da construção civil, o bate-bate sem trégua das reformas de imóveis, o vendedor de cd pirata, as buzinas e alarmes eletrônicos dos automóveis guinchando dia e noite. Minha rua, meu bairro, a cidade inteira tornaram-se um corredor por onde rola todo tipo de mercadoria assaltando os ouvidos da população indefesa e no geral indiferente.

Não bastasse tanto, muitos dos meus vizinhos inconscientemente concorrem para infernizar o meu dia. Como a solidão imposta por uma cultura hiperindividualista é demasiado dolorosa, sobretudo para os separados e idosos, muita gente passou a projetar nos cachorros sentimentos e carências antes satisfeitos ou orientados para o semelhante. Já que este é cada vez mais indiferente, e lhe respondemos com a mesma moeda, restam os cães como companhia e consolo para a aridez e futilidade de nossas vidas. O problema é que esses diabos, os cães, latem onde e quando querem. Se não civilizamos nossos filhos, o que dizer dos cães adotados como nosso último refúgio de companhia e fidelidade?

Como observador indefeso e silencioso, impotente para moldar a cidade a meu jeito e feição, assisto desolado a um processo de aceleração urbana que vai desfigurando ainda mais uma cidade que nunca passou de um acampamento urbano. Sei que essa apreciação severa, mas verdadeira, irritaria qualquer leitor de Recife, cuja percepção de sua cidade é deformada pelo excesso de bairrismo. Aprendi na minha leitura errática de alguns antropólogos que etnocentrismo (o fenômeno que venho de nomear como bairrismo) é uma disposição universal e espontânea do ser humano. Penso que seja verdade, mas meus conterrâneos aparentem ir além dos excessos correntes quando celebram traços culturais e tradições que jamais proporia como modelo para qualquer cidade compreendida no sentido preciso do termo.

O fato é que Recife está nas mãos de um punhado de empreiteiras e políticos corruptos cuja única ambição é enriquecer a qualquer preço. Cidade sem plano de expansão e controle dos meios de recomposição do espaço urbano, marcha para ser uma São Paulo subdesenvolvida. Melhor dizendo, vai ser a São Paulo do Nordeste contendo apenas o que esta tem de pior. Mal escorado na fraqueza dos meus setenta anos, olho à minha volta, até onde mais longe a vista alcance, e não vejo um parque, uma praça, um espaço público acolhedor, ou simplesmente usável, onde possa viver algumas horas da minha rotina de aposentado. Diante de condições ambientes tão hostis, decretei eu próprio meu estado de prisão domiciliar.

Há pouco um publicitário imaginoso inventou um novo tipo de serviço vendido e prestado sobre rodas sustendo auto-falantes potentes. Quem perdeu ou teve um gato ou cachorro roubado, paga agora a esse meritório serviço para infernizar ainda mais meus ouvidos saturados desse cotidiano de bordel, com perdão das orgias que em nada importunam ou infelicitam os vizinhos. O inferno, dizia o outro, que de resto era francês, são os outros. Se o francês dizia coisas desse tipo, e graças a elas ficou famoso, citado até por gente que nunca o leu, o que diria um velhinho reumático e cardíaco prisioneiro da idade num bairro sem lei?

Hoje, quando descansava do almoço, fui acordado pelos alto-falantes. Falavam em favor de uma pobre senhora cuja gata siamesa foi roubada. Pela manhã outro agente filantrópico, ou zoológico, trovejou o desaparecimento ou roubo de um louro falante. Ontem foi a vez de um cachorro amado pela família que o procura de coração cortado. Todos esses infelizes, privados de tão inconsoláveis amores, prometem gratificação substanciosa, além de fornecerem número de telefone para ligação gratuita. Comovido com tanto amor por gatos e cachorros e louros, indo de contrapeso tanto desprezo pela minha paz doméstica, enfim encontrei um meio de bondosamente ajudar esses infelizes. Liguei para os órfãos do louro disfarçando a voz e dedurei a órfã da gata siamesa. Procedi ao mesmo tipo de troca com outros infelizes, num caso ou noutro enfiando perversamente o endereço e o telefone de algum desafeto. Ignoro que conforto levei à vida e corações de gente tão amável, mas sei que os alto-falantes continuam trovejando pelas ruas.

A perspectiva de uma viagem de uma semana sugeriu-me outra ideia humanitária. Liguei para a agência de publicidade. Alô, gostaria que você gravasse um anúncio e o transmitisse aqui no meu bairro de domingo a domingo. Quero que vá ao ar logo cedo, às sete da manhã e à tarde, logo depois do almoço. Pode ditar o anúncio, meu querido. Paga-se regiamente a quem encontrar um burro velho e reumático puxado por três patas mancas. Só três? Só. Será fácil localizá-lo, se evidentemente andar pelas ruas. Paguei a conta e logo viajei.

Voltei ainda secretamente me deleitando com o ruído que causara no ar do bairro durante minha ausência. Para minha surpresa, alguém gravou uma mensagem na secretária-eletrônica: Alô, dotô. Encontrei seu burro. Morto, mas encontrei. Tem três patas mancas e um par de remos. Estão quebrados, mas é fácil ver que eram usados por um burro remático. Tudo é possível no Brasil, suspirei desenganado. Tive tanto trabalho para me ver livre do chantagista que desisti de vingar-me dos vizinhos valendo-me do princípio cristão com que todos os dias me confortam a vida: o bem com o bem se paga.
Um dia comprarei um fuzil e serei notícia na mídia universal. Conquistarei enfim meus quinze minutos de celebridade fuzilando um carro de propaganda, envenenando uma gata siamesa ou enforcando um cãozinho veludoso. Ou ainda afogando um velho burro remador. O inferno serei eu.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amor e queijo suíço


Severo Machado

Os dois ou três leitores que acaso leram minhas crônicas talvez identifiquem contradições grosseiras nesta que aqui vai. Aliás, não sei se a designe como crônica ou conto. Faz anos que discuto com amigos chegados à literatura a distinção entre uma e outro sem que cheguemos a um acordo. Por isso, visando encurtar a intriga, passei a repisar este juízo de Mário de Andrade: conto é o que o autor diz que é conto. Sendo assim, democraticamente estendo o critério libertino ao próprio leitor: conto ou crônica é o que o leitor diz que é conto ou crônica. Sei que uma solução arbitrária como esta irrita os acadêmicos, que de resto ficam sem ter o que fazer. O que seria do ganha-pão deles sem essas bizantinices?

Prometo não ir longe na consideração das contradições grosseiras que o leitor pode identificar entre esta crônica e outras postadas no blog de Fernando da Mota Lima, que me tolera apenas por falta de melhor companhia. A recíproca é verdadeira e assim vou em frente. Fico na consideração de uma única contradição. O leitor notará que desta vez o tema da crônica não são minhas aventuras eróticas costumeiras. O blogueiro que me acolhe diz que sou cínico e cruel. Ora, precisamos afinal ser alguma coisa na vida, é o que respondo e ele engole rindo. Apesar das evidências em contrário, sou como todo mundo. Quero dizer, também visito amigos, até inimigos suportáveis, e muitos são casados, uns raros bem casados. Isso prova que, apesar dos meus inimigos, sobretudo dos amigos, nunca pratiquei o celibato militante e promíscuo. Pratico apenas o celibato promíscuo. E com tanta honestidade que repito Misael, o misógino, sem língua entre as pernas: troco de mulher como troco de roupa. Portanto, não tenho culpa se as enganadas lavam roupa suja na lavanderia errada.

Como bom brasileiro, passo ao assunto da crônica reiterando um dos bordões da nossa inconsciência nacional: não tenho preconceito. Sou mulherengo, cínico, misógino, racista, autoritário, faço o que não digo e desfaço o que não faço, mas juro de pés juntos: não tenho preconceito. Chega de autoelogio. Passemos à crônica.

Confesso que nunca entendi o amor tenaz e inabalável que Natália nutre por Leôncio e Marcela por Cristóvão. Mais que isso, que incapacidade de explicá-lo, tinha ressentimento desse amor. Como sou humano com um travo de mesquinharia na minha humanidade, ficava ressentido por não ser afortunado como eles. Eis que um dia, às vésperas do Natal, em pleno clima de festa e consumo natalino, estávamos reunidos num jantar animado na época em que Marcela e Cristóvão moravam numa casa da Rua Real da Torre cuja varanda ouviu muita gargalhada de amizade e prazer.

Alguém falou em queijo suíço, que em tempos de hiperinflação era um luxo, e então brinquei dizendo algo do tipo: sempre desconfiei de que havia um vínculo secreto entre Cristóvão e a Suíça. Foi aí que surpreendi um brilho estranho, diria sutilmente monetário, nos olhos sempre puros e delicados de Marcela. Perturbada por meu olhar, que por uns vagos segundos ficou cego diante daquele brilho intenso e fugaz, Marcela prontamente disse: “Você é um fantasioso. Imagine Cristóvão com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

De repente, tudo miraculosamente se esclareceu e assim sosseguei meu ressentimento diante desse amor que tanto invejava, ao ponto de me inspirar insone ressentimento. Só os infelizes no amor, aqueles que convertem essa infelicidade em solidão ressentida, somente eles podem avaliar a dor que nos causa a felicidade alheia, ainda que seja a dos amigos. Para mim, tudo ficou explicado e desde então dormi em paz diante desse amor tão belo e constante que tem atravessado nossa longa vida. A partir de então, suportava à vontade seus estados de felicidade espontânea em contraste com minha solidão contraída. Bastava-me dizer para meus botões, embora não costume usá-los: Isso não passa de felicidade conjugal com depósito bancário na Suíça.

Sucedeu que ontem almocei com Leôncio e Natália. Não foi tudo perfeito (nada afinal é perfeito, como dizemos invocando chuva no aguaceiro) porque Leôncio teve a infeliz ideia de convidar Lúcio Siqueira. Além de péssima companhia, Lúcio me obrigou a lhe dar carona, o que significa dizer que tive de suportá-lo sóbrio na ida e bêbado na volta. Como não dou uma pela outra – isto é, a sobriedade pela embriaguês, no caso dele – tive vontade de largá-lo no alto do viaduto Joana Bezerra.

Mas volto ao fio da meada. O almoço não foi perfeito porque havia Lúcio e porque faltava queijo suíço. Não sei por que, a meio daquela reunião divertida, avivada pelos vinhos e pratos deliciosos que Natália nos servia, tive de repente uma insofreável saudade de queijo suíço. Deixei então que me escapasse essa impropriedade: Só não está perfeito porque falta queijo suíço. E até emendei: estamos por acaso em tempos de hiperinflação?

Ao me voltar para Natália, por um instante paralisada, notei no seu olhar o mesmo brilho estranho, a mesma profundidade insondável que muitos anos antes lera no olhar de Marcela. Como que por um milagre somente concebível em divã de psicanalista (não de um qualquer, mas o de Freud), ouvi Natália repetir as mesmas palavras que anos antes ouvira dos lábios de Marcela: “Você é um fantasioso. Imagine Leôncio com conta secreta em banco suíço... Além disso, se um dia tiver a infelicidade de ficar viúva, serei viúva pobre, rica apenas de amor”.

Por pouco não saltei de desafogo e vingança. Foi como se me tirassem das costas e do coração travado um grande peso, um peso de ressentimento que não se pesa em balança de bodega. Então estava tudo explicado: esse amor que tanto invejo, que tanto me separou desses dois afortunados, Leôncio e Cristóvão, esse amor não passa de uma tenaz ilusão de viúva pobre. Elas pensam que ambos têm fortunas fechadas a sete chaves num inviolável banco suíço. Como se ambos, coitados, fossem irmãos eleitos de Maluf. Ainda bem que ambos são imortais, elas também, pois do contrário não herdariam nem queijo suíço. Razão tinha certo amigo meu que costumava dizer: amor é coisa de louco. Sendo de mulher, é loucura tresloucada.
Recife, 9 de dezembro de 2012.

domingo, 21 de outubro de 2012

A Culpa é dos Iluministas



Acho que tudo começou com aquele idiota chamado Kant. Sérgio Paulo Rouanet e vários professores da pós-graduação encheram minha cabeça com as ideias sedutoras de Kant e dos iluministas. Sapere aude: ousar saber. Pra mim saber é saber antes de tudo o meu corpo, a voz do meu corpo, o insone murmúrio do meu desejo. Foi assim que traduzi na minha vida o discurso iluminista e pós-iluminista da autonomia: ser livre para gozar o desejo latejante no meu corpo.

Minha mãe sempre exercendo a tirania doméstica dentro da família. Prematuramente envelhecida, dependente econômica e emocional do meu pai, vivia remoendo ressentimento contra tudo que não pôde viver. Um nada e lá estava ela repisando mágoas, cobrando dos filhos todos os sacrifícios sofridos durante a vida para nos gestar e criar. Meu pai, alto e belo, imenso na sua beleza, era meu ideal. Meu pai amava a vida, dela usufruindo tudo que eu queria e invejava: a farra com os amigos, o amor à música, que cantava com voz linda e sedutora. Fervi de ódio e ressentimento quando descobri que tinha uma outra família, com filhos ilegítimos da minha idade. Mas cedo o perdoei e continuei amando-o com um amor confuso, pois que contaminado por ressentimento e insofreáveis desejos de agressão.

Ainda adolescente, peguei a onda da liberação e caí na farra. Apesar dos privilégios de que sempre desfrutei na família, a começar pelos econômicos, trabalhei como garçonete num bar onde a garotada desatava os nós de todas as repressões purgadas por nossas mães. Não dava à mínima para o que me pagavam sugando minha mão de obra. Trabalhava somente pelo gosto da aventura, pelo prazer de estar dentro do agito nos fins de semana; trabalhava pelo prazer de provocar os garotos lindos com meu corpo moreno e sensual. Gostava quando um daqueles safados mais atrevidos se esfregava em mim depois de beber além da conveniência. Adorava o jogo que jogava seduzindo, provocando, mas sem dar, sem ir além do desejo provocado sem satisfação. Quero dizer, dei muito, mas só aos garotos que passei a namorar. Foram tantos, confesso, que logo perdi a conta.

Perdi a conta do que amei e dei por aí, errando nas noites de agito e droga. Mas sempre, em algum obscuro lugar, sempre me roía algo que era culpa ou insatisfação insaciável. Os garotos com quem transava logo me cansavam. Eram todos fúteis, todos idiotas, todos medindo num espelho invisível o próprio corpo, o amor vazio orientado para si próprio. Também eu me perdia nesses labirintos do desejo que me atava a mim própria. Mas havia algo além disso. Havia uma carência inapreensível de um grande amor, de um príncipe vindo de esferas insondáveis. Havia ainda medo e a recusa de repetir minha mãe, de acabar como ela: o corpo disforme, a ferocidade doméstica investida contra meu pai e contra os filhos.

Depois da graduação em jornalismo me mandei para São Paulo. Queria fazer pós, mas queria antes de tudo viver mais livremente, viver toda a liberdade a que tenho direito. Era à noite, no anonimato da grande noite paulistana, que o mundo misteriosamente se abria como um mar de possibilidades estonteantes. Eu tudo queria e a quase tudo me entregava. Às vezes, nas manhãs de ressaca, boiando confusa na maré da ressaca, sentia a dor de um vazio tão doloroso, mas tão doloroso, que eu me fechava na solidão do quarto para nem sequer ver as duas meninas com quem dividia apartamento. A sombra opressiva de minha mãe, esbravejando ressentimento e culpa na minha memória insone, servia apenas para empurrar-me mais e mais para a vida de dissipação que verti nas noites de São Paulo.

A meio da pós-graduação casei com Renato. Fui tola ao ponto de pensar que encontrara enfim meu príncipe encantado, aquela figura embaçada e linda, envolvente e dominadora que flutuava nos campos azuis de minhas fantasias consoladoras. Vieram os filhos, um casal, e logo mais tarde a separação. Depois que concluí a pós precisei trabalhar e então dobrei a jornada de trabalho. A partir daí o tempo encurtou, a liberdade infrene também, e logo me vi estressada e retalhada entre os filhos, o desejo de um homem para repartir as tarefas e o peso da família dissolvida entre tantas demandas desencontradas. A renda era polpuda, mas nunca suficiente para nossa sede de consumo, meu e dos filhos já crescendo para cair na vida como antes caí.

Lá dentro, no mais fundo de mim, o que me atormentava e perseguia já não era a figura tirânica de minha mãe envelhecida e frustrada; também não era o amor confuso e conflituoso que devotava ainda a meu pai, presença cada vez mais remota na minha vida. O que no mais fundo de mim me tiranizava era o espelho. Via-o até quando dele me ausentava. Aliás, logo descobri que se enraizara em mim, que me espelhava e sufocava até no escuro do quarto, deserto de companhia e amor. Não bastasse tanto, minha luta contra a balança tornou-se cada vez mais feroz. Por mais que lutasse, era sempre eu quem perdia. Daí para a academia de musculação o salto foi apenas uma passada. Caí de chofre diante daquele labirinto de espelhos refletindo gente ansiosa e atormentada à procura da medida ideal, da beleza ideal, do Narciso ideal absorto no espelho ideal das águas desenhando na superfície imóvel a beleza irretocável. Mas o que a realidade impiedosa refletia em todos os espelhos era meu corpo se avolumando, as formas dissolvendo-se em gordura inspirando-me um ódio irrefreável contra mim própria. De repente, dei-me conta de que os homens já não me olhavam como antes. Aliás, muitos passaram a me ignorar. Falavam comigo e me olhavam como se olhassem uma parede desbotada, uma porta debruçada sobre o abismo da minha insignificância.

Agora, no meio da madrugada insone, pulo da cama assaltada pela voz difusa de Kant, a voz gaga e gagá dos iluministas que encheram minha cabeça e me consumiram muitas horas de leitura durante meus anos de graduação e pós. Sapere aude: ousar saber. Que merda! Acendo a luz e ando pela casa inquieta. Será que os meninos já voltaram da balada? Encontro apenas o apartamento vazio, as camas e quartos desertos. Meu Deus, e se acontecer alguma coisa: algum crime, algum assalto... se andarem metidos com a turma da droga pesada? Ah, o sonho da autonomia feminina! Que merda! A culpa é daqueles putos do Iluminismo. Quem tem razão é Sandrinha, que renunciou à sua autonomia depois de atravessar os desertos que me assolam e se refugiou na fantasia do patriarcalismo do século xix. Agora Sandrinha se olha no espelho e vê apenas uma respeitável matrona regendo escravos na casa-grande onde sua vontade é lei. Queria ser Robespierre para guilhotinar todos os iluministas...

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Natalino e as meninas



O Amor nos Trópicos – Natalino e as Meninas
Severo Machado
Tudo começou com Lolita. Não a original, a de Nabokov, mas a de Kubrick. O mundo inteiro se recompôs como num sopro de iluminação e atordoamento. Amei quase sempre mulheres da minha idade, algumas até mais velhas. O que me tocava e inspirava no convívio de meninas era a imaginação contagiante que irradiavam. Nada além disso. Mas então veio a descoberta de Lolita, a obsessão comovente e patética de Humbert Humbert. E a verdade do amor que desde então passou a reger minha vida é fruto talvez de uma pura transfiguração do acaso. Ou talvez não, talvez ela em mim latejasse distante e impronunciável. Talvez já me possuísse naquele dia em que seduzi minha prima, que tinha apenas nove anos. Talvez pulsasse insensível na adoração cega com que cultuava Marilyn Monroe.
Luís Carnome, meu amigo e confidente, achava isso um absurdo. Como associar minha pedofilia ao culto de Marilyn? Marilyn é um mito gerado pela imaginação adulta, ponderava, típica da paixão por mulheres adultas. Mais que amigo e confidente, Luís era meu guru em matéria de cinema. Tudo sabendo de cinema, cultuando o cinema como passei a cultuar o corpo das meninas depois da revelação vinda de Lolita, Luís era quase sempre minha última palavra sobre a realidade paralela de Hollywood. Por isso fiquei abalado. Teria ele razão? Observe, Luís, que a raiz do erotismo de Marilyn é infantil, assim como o culto que lhe emprestamos é de natureza pedófila. A sedução poderosa e intemporal que ela exerce deriva do fato de traduzir no corpo e na linguagem uma expressão desconcertante de menina sensual, dengosa e... não sei, juro que não sei exprimir o essencial. A sedução de Lolita, ou de Marilyn é inefável, indizível como tudo que cativa e domina para além da compreensão racional.
Mas é a vida com sua força cega e irreprimível quem comanda o roteiro insensato da história humana que jogamos e sempre perdemos. Foi num domingo de sol, dentro de um antigo casarão de Salvador, que a vi pela primeira vez. Quero dizer: não ela, mas ela guiando as duas filhas presas a cada uma das mãos. A intuição brusca e fugaz cegou-me no meio da sala: estou perdido. Depois dela, com ou sem ela, nunca mais serei eu em mim como até agora me sei e me vivi e me enganei na suposição de me saber. O pior foi mais tarde descobrir que a perdição maior viria não dela, mas das duas filhas. Mal passou um mês e já nossas vidas eram tempos ajuntados e confundidos. A pedofilia, essa flor de obsessão que me consome, novamente latejava nos desvãos do corpo, vibrando quase inaudível nos subterrâneos da latência onde a carne respira sua condenação inconsciente. Eu então nada sabia da paixão que para sempre atou minha vida aos destinos de Ana Lúcia e Ana Sofia. Meu amor pela mãe, Ana Sílvia, era tão completo e absorvente que me cegava para tudo pulsando à órbita dos fatos palpáveis. Os que dizem que o amor é cego ignoram a real cegueira da razão.
Vivíamos brincando. Eu e as meninas brincávamos com a delícia e inconsciência dos inventores e habitantes primevos do paraíso. A consciência, esse graveto errante vagando nos campos sem fronteira da irracionalidade, somente a pouco e pouco se foi constelando num atormentado horizonte de desejos. Pingou aqui uma gota vibrante, mais além um noturno bater de portas, e foi avançando para o casulo onde as meninas dormiam respirando um sono de completo abandono. Nas noites de calor, a própria Ana Sílvia dizia: vá dormir com as meninas, meu amor. No quarto delas, com ar condicionado, não entram muriçocas. Eu odiava muriçocas e ainda hoje não suporto a picada de uma. Passei a dormir num colchão estendido sobre o assoalho entre as camas de Ana Lúcia e Ana Sofia. Ficava de joelhos ao pé da cama, um tempo sem memória contemplando cariciosamente a beleza daqueles corpos belos, inconscientes dessa selva em que nos consumimos, tão ainda pequenos, mas fadados à medida e gasto da nossa condição adulta. Algum tempo depois, tremendo de medo e prazer, passei da contemplação cariciosa ao toque deslizando suave por todo o corpo das minhas pequenas deusas. Um dia Ana Lúcia acordou enroscando-se feito uma gata, toda arrepiada pelo toque de minha mão: Vai embora, Natalino. Me deixa sozinha no quarto. A voz saiu-lhe grave e envolvente, como voz de mulher. E me fui atordoado e entrei no quarto de Ana Sílvia onde a possuí violentamente.
A curiosidade sexual das meninas se foi manifestando cada vez mais livremente. Queriam tomar banho comigo, dormir comigo, trepidar nas noites de rede suspensa na varanda. Sublimando penosamente meus desejos, domei-os numa clave de expressão lírica mesclando contos de fadas recriados no balanço rangente da rede, canções infantis e um despropósito de poemas tocados pela beleza e a infância de Ana Lúcia e Ana Sofia. E tudo isso em mim surdia e me sobressaltava num calor de excessos comunicados ao corpo de Ana Sílvia. Quanto mais amava e desejava as filhas, mais intensa e passionalmente possuía a mãe. Nosso gozo, um dentro do outro desavindo, era tão extremo e inefável que um dia desabei suado sobre o assoalho úmido e comecei a chorar num completo abandono de mim. A dor do prazer era tanta, tanto o desamparo da carne iluminada, que eu apenas gemia entre lágrimas: você quer me matar, você quer me deixar louco. Ela me tomava nos braços entre lágrimas de comoção e lá ficávamos largados de pura felicidade. Nenhum homem gozou como gozei em Ana Sílvia.
Em certa tarde eu lia na rede da varanda quando Ana Sofia entrou completamente nua, recostou o corpo na parede e ficou de costas para mim simulando contemplar o mar de Salvador. A beleza daquele corpo de menina, paralisado como uma oferenda ao alcance da minha mão, ainda hoje me atravessa a memória fisgada de luz e dor. Quase sem voz, pois o tuc tuc do coração me subia pela garganta, disse apenas: meu amor, entre e se vista.
Ana Lúcia, mais carinhosa e expansiva, era um tormento ainda maior. Vivia rolando nos meus braços. Muitas vezes, voltando da praia pendurada no meu ombro, corria para trás das portas para logo em seguida surpreender-me em algum recanto do apartamento. Quando menos esperava, puxava-me o calção e ria deliciada diante do meu corpo nu. Se eu entrava no banheiro, punha-se a forçar a porta querendo porque queria entrar para tomar banho comigo. Meu tormento era longo, continuado e delicioso. Nunca ninguém viveu inferno assim celestial como o que provei. Em meio a tudo, fui cada vez mais temendo perder as forças que me garantiam energia sublimadora. A paixão de possuí-las eu a continha procrastinando o gozo sonhado para um ponto indefinível do futuro, para o dia em que rebentassem na plenitude da maturação biológica.
Que fantasias tecem as linhas e cores das tatuagens impressas no corpo feminino? Um dia, possuindo Ana Sílvia, disse-lhe da minha fantasia de nela gravar um sinal do meu amor e posse. Pouco mais tarde surpreendeu-me exibindo na altura do ventre uma flor tatuada contendo as letras L e N, isto é, Luiz Natalino. Comovido, beijei-lhe o ventre e a tatuagem repetidas vezes. Logo isso bastou para que eu desandasse a desejar minhas iniciais impressas na carne de Ana Lúcia e Ana Sofia. Tanto fiz que convenci Ana Sílvia, que não precisou gastar verbo e artimanha para persuadi-las a transportar minhas iniciais no corpo. No pé direito de uma e no esquerdo da outra foram afinal gravadas as letras L e N. Correu-me por dentro um inconfessado poder de senhor de um reino, de um castelo inviolável ou um latifúndio amazonense.
Ana Sílvia deu para falar de uma vida solidamente comum. Quero dizer, uma vida casada, com papéis passados e assinados em cartório. Se nos amávamos tanto, se eu era tão feliz na companhia das meninas, por que não vivermos como uma família? Precisava recompor sua vida com as filhas em bases mais estáveis. Compreendia seus sentimentos e aspirações. Também eu queria o que ela, retesada no seu orgulho de mulher independente, confessava um tanto constrangida. Mas o medo e o desejo de possuir as meninas num futuro incerto, porém irreprimível, findou por anular qualquer possibilidade de amor casado e continuado.
Além de bela e sensual, Ana Sílvia vivia num mundo de homens. A natureza da profissão que exercia propiciava-lhe rotineiramente a oportunidade de viajar sozinha, frequentar congressos e encontros científicos, privar da intimidade de acadêmicos sedentos de aventura e até de amor refeito sobre a terra devastada das relações traídas e rompidas. O amor incerto, a insegurança sem solução previsível, tudo isso e outros imponderáveis cavaram a separação e o desenlace doloroso que findou por transportá-la para São Paulo. Soube mais tarde que casou com o homem com quem me traiu durante meses. Sabia da traição e de imediato tudo fiz para remendar nossos cacos e salvar nosso amor. Atormentada por um conflito enraizado numa formação religiosa inflexível, refugiou-se na vivência esquizofrênica de duas realidades intoleráveis: a traição efetiva contra o imperativo da fidelidade puritana. Ana Sílvia fora educada num colégio de freiras, além de criada por uma avó cujo mundo tradicional e fechado lhe impôs prisões morais inexistentes na realidade dos costumes que pipocaram a partir da década de 1960.
Muitos anos passaram enquanto errei por aí e pelo mundo. A compulsão por meninas acelerou-se a meio das minhas lutas vencidas para esquecer Ana Sílvia, Ana Lúcia e Ana Sofia. Talvez Ana Sofia me amasse ainda mais que a irmã, mas sua natureza retorcida, de expressão emocional atormentada, turvava-lhe a dor da minha perda. Era nisso igualzinha à mãe, instável como clima inglês. A imagem deriva de lá, da própria Inglaterra que, abaixo delas, amo acima de tudo mais. Ana Lúcia, porém, me perdia e pedia à distância com o mesmo desembaraço amoroso do Éden que compartilhamos em Salvador. Por isso escrevia-me cartas de dor e amor intensos na sua letra ainda à cata de uma forma madura, no traço tateante de menina. Suas cartas, tão simples e nuas, são as declarações de amor mais agudo e pungente que jamais recebi de uma mulher. Depois de as ler e chorar ferido no meu completo desamparo, eu mergulhava na solidão e no frio cortante das ruas inglesas. Andava horas a fio, sem direção ou propósito, salvo o de me castigar na minha dor sentindo o frio roer-me os ossos desertos, punir-me a carne surdamente gemendo a dor do amor irreparável.
Voltei por fim a Salvador onde nem mesmo a beleza dócil e despudorada das meninas me alivia a condição de completo desenraizamento, o desterro de judeu errante. Odeio o odor vindo das ruas, das águas sujas escorrendo pelas ladeiras ou empoçadas nas sarjetas. Odeio esse cotidiano trepidante e ruidoso, a incivilidade crônica do baiano, pior que a do brasileiro típico. Não tenho família, odeio a simples ideia de família, e nada me prende a nada. A beleza dócil e despudorada das meninas é ainda eco ou prolongamento do falo patriarcal, do escravismo que nos feriu a alma e o corpo com vincos indeléveis. A beleza dócil e despudorada excita o macho e até se deleita dobrada por sua animalidade predatória. Tornei-me uma máquina fria, movida a ódio e fantasia destrutiva. O ódio represado é tanto, de tão penosa respiração, que às vezes preciso errar dentro da noite deserta. Chego enfim à praia e brado embriagado contra as ondas invocando um deus punitivo: que venha outro dilúvio, a second coming, e tudo reduza a pedra e pó. Que sobrevivam apenas minhas deusas inconsoláveis castigadas pela condenação de me chorar para o resto dos tempos.
Durante seu exílio, tudo aqui ficou pior. Você porém ficou ainda pior que tudo. Palavras de Luís Carnome, a quem o acaso me junta num bar na noite da Barra. Mais ainda que meu guru em matéria de cinema, Luís é um sociólogo rico, um dos raros que souberam usar os instrumentos dessa profissão sórdida para enriquecer. Por isso costumo chamá-lo de Midas de Natal, terra de onde veio. Tudo que a sua sociologia toca transforma-se em pesquisa de opinião, estudo de mercado, assessoria, leite sugado das tetas violentadas do Estado. Em suma, dinheiro e poder. É humilhante o contraste entre seu poder e sucesso e meu fracasso de hedonista estoico, se é possível abusar assim de um oximoro.
Sabe do grito de guerra que adotei? Vamos às profissionais. Estou farto de mulheres complicadas infernizando-me a vida com um trem de ex-maridos, filhos delinquentes e suas opressões intoleráveis e miúdas. Faz meses que transo apenas com profissionais. São limpas, gostosas e caras. Mas posso pagar e quero, aliás, pagar algumas para você. Luís falava quase sem pausa, tomado daquela ansiedade que por aqui confundimos com alegria. Sua vida moral dissolvia-se ante meus olhos inclementes, mas como não invejar um homem que cai entre risos voltados contra si próprio? Prefiro as meninas de classe média prostituídas não por necessidade, mas por prazer e antes de tudo por escravização ao deus do consumo soberanamente regendo a vida dessas baratas tontas esvoaçando no shopping center.
Não te conto a última, Natalino. Estava em São Paulo, às voltas com um desses congressos insuportáveis de acadêmicos e políticos, quando me bateu um desejo intenso de transar com uma puta de classe média. Liguei para um corretor, eufemismo criado para designar cafetão de classe, pois existe classe até na rede dos bordéis. Perguntou-me se não gostaria de transar com duas irmãs. Topei no ato. Você não imagina a beleza delas, Natalino. Mas talvez não lhe interessassem. Tinham 18 e 20 anos. Velhas demais para mim, cortei enquanto ele caía na gargalhada. Vivi uma noite de rei. As meninas eram completas, insaciáveis e faziam de tudo com um prazer e um abandono de tudo como nunca gozei em nenhuma puta ou mulher. Já exaustos e suados, deslizei sobre seus corpos para beijar-lhes os pés. Você sabe que sou tão pedófilo quanto você, disparou o trocadilho novamente entre gargalhadas. Sabe da maravilha que descobri? Tinham duas tatuagens gravadas: uma no pé direito, outra no esquerdo. Numa a letra L, noutra a N. Mais tarde pensei casualmente: poderiam ser as iniciais de Luiz Natalino, emendou outra gargalhada. Se você tivesse tido tal sorte, encontraria afinal um motivo para invejá-lo, arrematou afrouxando nova gargalhada. Estava já tão bêbado que mal notou meu estado de miséria às bordas do desespero. Voltei para casa chutando pedra, tomado por uma dor absolutamente indizível. Foi então que me veio a ideia do incêndio. Parei num posto e comprei um bujão de gasolina. Dentro de alguns minutos tudo isso será cinzas. E ninguém saberá, sequer desconfiará que elas me consumiram e me pisaram e por fim a isso me reduziram: essa cinza fugaz dissipada na brisa noturna de Salvador.



segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Marco teórico



Marcos, o teórico

Marcos era um verboso nato, um ser vocacionado para a fala. Se nordestino fala pelos cotovelos, no geral sem juntar coisa com coisa, Marcos falava bonito, altissonante e, milagre dos milagres no reino do discurso vazio, ainda cometia a façanha de juntar coisa com coisa. Pelo menos era o que pensava e seus ouvintes extasiados confirmavam.

Não bastasse a vocação, também sobreveio a ocasião que, como bem dizem, faz o ladrão. Além do seu talento verbal, Marcos teve a fortuna de ser aluno e afilhado do promotor Valêncio Costa. Só aqueles raros que conheceram Valêncio Costa na intimidade podem melhor ajuizar sobre seus dotes verbais, sobre o preciosismo e os primores de um discurso que vertia neve no sertão e ensolarava os invernos russos, pintava revoluções sem sangue e ensurdecia os mosteiros com sua verve carnavalesca. Valêncio Costa, dizia-me seu biógrafo César Melo, era o fenômeno supremo da arte retórica. Aliás, reza a lenda que César Melo é também afilhado do insuperável Valêncio Costa.

Marcos cresceu nos bancos escolares imitando a verve e os Alpes verbais de Valêncio Costa, que foi seu professor de português. Marcos aprendeu de cor os cantos dos Lusíadas, que afoitamente recitava nos bares e festas de amigos. Ninguém os entendia, nem o léxico nem o conteúdo épico, mas todos babavam deslumbrados diante daquela torrente sem pausa. Valêncio mirava o discípulo e vaidosamente pontuava: “esse menino vai longe”, com o semblante heroico de quem fosse o transporte que elevaria Marcos ao cume dos Alpes verbais.

Confiante no seu talento verbal, Marcos cedo aprendeu a teorizar sobre tudo. Se era Copa do Mundo e ia torcer com os amigos nos bares coloridos por bandeiras brasileiras, tingidas no delírio das celebrações por bandeiras de clubes nacionais e regionais, não resistia à tentação de teorizar sobre táticas e estratégias das seleções concorrentes, sobre futebol e identidade cultural, futebol e alienação das massas, futebol e fascismo, futebol e homossexualismo, futebol e globalização, futebol e escolha racional, futebol e religião... Ninguém o ouvia, nem ele ouvia a si próprio engolido pelo furor das massas exaltadas, mas seguia teorizando no vazio, teorizando o vazio.

Marcos precisou apenas de uma hiperbólica pirueta acadêmica para saltar dos cantos dos Lusíadas para os bancos da venerável Faculdade de Direito do Recife. Depois de tudo encarar e vencer com brilho, arrancando dos mestres os mais sonoros elogios, Marcos chegou bem mais perto dos Alpes verbais ao ingressar na pós-graduação. Lá repetiu e refinou ainda mais todas as suas façanhas verbais. Transportado pelo foguete de Valêncio Costa, quando deu por si, ou por ele deram, estava plantando sua bandeira fulgurante no cume dos Alpes. Tornou-se teórico supremo da pós-graduação durante a vigência da ditadura que ironicamente fundou e promoveu programas de excelência acadêmica votados precisamente à sua contestação.

Eis que um dia Marcos, já nomeado chefe supremo da pós-graduação nacional, defrontou-se com a noite de trevas na sua travessia épica através dos reinos da epistemologia. Ia pelo campus posto em sossego, parafusando mais um discurso que à noite proferiria em louvor do Ministro da Educação, quando ouviu os clamores dos mestres e discípulos da pós empenhados numa guerra titânica. Foi quando se apercebeu de que muitas teorias lutavam pelo exercício da hegemonia acadêmica: marxista, funcionalista, estruturalista, pós-estruturalista, positivista, estrutural-funcionalista, histórico-estrutural, estrutural-histórica, anarco-conteudista, formalista, psicanalítica, carnavalesca... Simplifiquemos tudo na infalível metáfora da Torre de Babel.

Ninguém mais se entendia nas castálias da teoria acadêmica. Múltiplas e antagônicas teorias lutavam sem trégua não apenas por fundos institucionais, legitimação epistemológica e política, mas também por questões de ordem institucional rotineira, isto é, critérios de avaliação e recrutamento dos alunos, estratégias de competição e prestígio entre pares, uma luta de ordinário estendida à composição de seitas que se entredevoravam nos rituais de exame e seleção, titulação e avaliação.

Quando a crise epistemológica contaminou toda a rede das instituições pós-graduadas, o Chefe Supremo concluiu que era necessário agir com pressa e eficácia em face da pressão crescente. Convocou então Marcos, nacionalmente aclamado por seus dotes verbais, e os três gênios supremos da publicidade brasileira. Era preciso, dizia o Chefe Supremo apreensivo, dar banho no bebê salvando ambos, a água suja e o bebê. O Chefe Supremo viera do sertão, que nunca virou mar, e portanto sabia do valor precioso da água, ainda quando suja. Traduzindo o entrevero em jargão publicitário, para entendimento de todos os néscios e gênios da academia, era preciso salvar a ninhada de teorias sem todavia suprimi-la. Afinal, estamos numa democracia, certo que à moda brasileira, mas é tudo o que temos.

Foi nesse exato momento que Marcos teve um dos seus luminosos acessos verbais. Depois de falar durante uma hora sem juntar coisa com coisa, mas tudo confundindo num foguetório de causar inveja às festas de Ano Novo na praia de Copacabana, logrou acionar as turbinas intuitivas de Lúcio Siqueira, neto do venerável major Siqueira e membro maior da tríade publicitária convocada pelo Chefe Supremo. “Eureka”!, exclamou exultante Lúcio Siqueira. “Batizemos o bebê e a água suja, com o devido respeito, inspirados na genial ejaculação verbal do grande Marcos. Quero dizer, doravante o bebê e a água suja serão universalmente conhecidos no jargão acadêmico como marco teórico. Por quê? Porque singularizando Marcos expressaremos abstratamente todas as teorias concorrentes conferindo-lhes legitimidade institucional. Assim, todas serão acolhidas e reconhecidas na usina ideológica da pós-graduação. Evidentemente são moedas de valor corrente variável, isto é, umas valem mais, outras menos. Por fim, inspirados no gênio verbal de Marcos, prestar-lhe-emos o voto de imortalidade que bem merece. Eis que Marcos, o teórico, será doravante marco teórico”.

E assim nasceu marco teórico, essa figura sagrada da academia que ninguém sabe o que é. Como diria um pragmático cínico, o que importa é a função, não o ser. Importa é saber para que serve o marco teórico, embora não se saiba o que é ou ainda se funcionalmente explica alguma coisa. Se ninguém sabe o que é marco teórico, pior para ninguém. Como observou Luciano Oliveira parafraseando Ferreira Gullar, o marco teórico não foi feito para humilhar ninguém. Foi feito para imortalizar Marcos, o teórico, e sobretudo introduzir a concórdia nas seitas teóricas da academia, que podem agora guerrear em paz.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Teoria da Nova Elite




Minha identidade?
Sou pós-moderno, narcisista, consumista e high-tech. Ah, também sou rico, ideólogo intelectual da nova elite.

Religião?
Tenho a minha, que misturo sem preconceito com tudo que me torne mais livre, resolvido e saudável. Acho que religião é hoje um investimento e é bom que assim seja. Quem hoje pensaria em guerra religiosa no Ocidente? Só se fosse por acidente. Por que eu teria pudor de traduzir Deus nos termos de minha ética utilitária? As novas religiões, os pastores, hábeis investidores no mercado da fé, também as religiões tradicionais, todos estão adotando esse novo perfil religioso. Estou apenas remando com a corrente.

Preconceito?
Corta essa, galera. Nenhum. Defendo a diferença, todo tipo de diferença. Por isso estou com a diferença da mulher, sempre oprimida nessa sociedade machista, com a diferença gay, com a igualdade de todos. Logo, estou também com a igualdade racial e a liberdade religiosa.

Felicidade?
Totalmente. Como o Estado brasileiro é o Estado patrão, o Estado provedor, o Estado mãe das tetas fartas, concordo que a felicidade deve ser objeto de uma política de Estado. Melhor dizendo, é dever do Estado garantir a felicidade de todos. Afinal, não é pra isso que vivemos no país de todos?

Autoestima?
É a base de tudo, meu. Acho que o publicitário que levantou essa bola trouxe uma contribuição fundamental para a felicidade na sociedade das massas, a realização da felicidade nas condições do capitalismo competitivo em que passamos a viver. Não compreendo a modéstia desses publicitários geniais que tramam nos seus gabinetes coisas geniais como o princípio da autoestima, difundem isso no mercado e no entanto se escondem. Sem autoestima não chegamos a lugar nenhum. Como intelectual e escritor, acredito sempre em mim consciente de que a opinião alheia, sobretudo a dos meus pares, é a fonte do meu sucesso, da minha realização profissional. A primeira coisa que faço, quando acordo todos os dias, é me olhar no espelho e dizer para mim próprio: cara, você é a pessoa mais genial do mundo. Você é um vencedor. Depois disso vou para a luta certo de que transformarei todas as minhas ambições em realidade.

Ambições?
São o que mais tenho. Tenho tantas, meu, que preciso tomar umas drogas pra nocautear a insônia. Quero tudo e mais alguma coisa. Como intelectual, apareço literalmente em todas as feiras literárias. Se a literatura importa? Claro que sim, contanto que eu apareça. Não existe coisa mais fácil do que me achar numa feira literária. Basta ir aonde estão as câmeras, os escritores da moda, os astros da mídia e sobretudo os cantores, que são o verdadeiro foco das feiras. Portanto, melhor estar perto de uma guitarra ou violão do que perto de um livro ou de um laptop.

Ética intelectual?
Óbvio. Um intelectual que se preze não pode prescindir da ética. Quando resenho um livro, por exemplo, escolho uma obra sempre para falar bem. Escolho o autor vivo a quem tenho acesso e portanto pode também me promover. Qual o sentido de louvar os clássicos, todos há muito bem enterrados e portanto inoperantes no mercado? Que lucro posso eu esperar de Shakespeare, Machado de Assis, Conrad, Italo Svevo, Auden...? Deixo essa função para os críticos acadêmicos, que apostam sempre no certo, no já estabelecido. Com meu editor - de editora, blog ou periódico - procuro sempre concordar, sobretudo quando discordo. Como aparecer polemizando com os companheiros de profissão, detonando uma obra ou um autor que podem me garantir muitos rendimentos futuros?

Se sofro do tédio da controvérsia, como Machado de Assis? Depende. Se for controvérsia para me promover, fique certo de que entrarei na luta sem transigir. A controvérsia intelectual ou a polêmica literária importam na medida em que rendem dividendos publicitários. O público não está interessado no debate de ideias, mas sim nas pessoas que debatem as ideias. Além disso, não existe nada mais relativo do que gosto literário. Assim, não há como determinar se Machado de Assis é melhor do que Paulo Coelho. É tudo questão de gosto ou opinião pessoal. O que afinal importa é o rendimento promocional da polêmica. Já imaginou o que não me renderia uma polêmica com Chico Buarque ou Caetano Veloso, com Paulo Coelho ou Jô Soares?

Política?
É claro que tenho convicções políticas. Só que não são mais aquelas da militância tradicional e antiquada. Não aguento mais esse papo weberiano de ética da responsabilidade, muito menos ética de convicção. Quero dizer, devemos adotar a ética da responsabilidade na medida em que ela garanta resultados traduzíveis em fonte de renda. O negócio é calcular resultado, a ética do cálculo e benefício. A ética careta malha Lula e o PT somente porque souberam astutamente se apropriar das práticas dos grupos políticos tradicionais. A ética careta ataca Lula simplesmente porque Lulinha, símbolo de uma nova elite, enriqueceu em poucos anos, dizem que adotando meios ilícitos. Ora, para mim isso é antes de tudo prova de competência. Ataca ainda o PT e seus aliados simplesmente porque blindaram Lula quando pipocaram escândalos que, vemos agora, deram em nada. A população, o povo brasileiro que precisa de trabalho e renda, que quer legitimamente acesso ao mercado, o povo não dá a mínima para isso. Basta observar a aprovação de Lula sem precedente em toda a nossa história política. Concluindo, os resultados estão aí à vista de quem queira ver. A ética careta e ideologicamente anacrônica não vê porque é presa do preconceito contra um presidente que veio lá de baixo e não passou pela universidade. E daí? A universidade está cheia de gente que não sabe nada do que Lula sabe. Acima de tudo, não é capaz de ganhar nada do que Lula ganhou. O que importa é o resultado, o dindim no bolso.

Se com Tiririca pior fica?
É uma. Pensei que não ficaria, mas pode ficar. E daí? Se ficar pior, não será por culpa dele, muito menos minha.

Uma política para os pobres?
Por que vou me preocupar com isso? Aliás, ela já existe desde que Lula transformou o Brasil no país de todos. No mais, deixe que os pobres cuidem de sua pobreza, que não é em nenhum sentido parte da minha responsabilidade. Se fosse, criaria uma ONG para faturar ainda mais, como faz muita gente de sucesso que conheço. Catador de lixo é investimento, meu. Um conselho que te dou de graça: invista numa ONG chamada Salvador do Lixeiro. Esse papo piedoso sobre a pobreza, a desigualdade existente no Brasil, não passa de populismo da velha esquerda. Aliás, como bem disse Joãozinho Trinta, quem gosta de pobre é intelectual. Ou não foi isso que ele disse? Ou não foi ele quem disse? Tenho coisa mais importante para fazer e pensar.

Se sou um rebelde sem causa?
Claro que não, meu. Tenho causa, sim. Se escolho, e estou sempre exercendo minha liberdade de escolha, isso é já uma evidência de que minha rebeldia tem causa. Escolho minha grife. Escolho meu carro. Escolho entre a Skol e a Antarctica. Escolho minha gata não só por amor, mas também por saber que ela corresponde a meus ideais de mercado e afirmação da minha identidade. É no mercado que a gente encontra a alma gêmea e assim promove a síntese entre a tradição romântica e a bolsa de valores. Escolho entre Messi e Kaká. Escolho meu ídolo do Big Brother Brasil baseado na política promotora da diferença, que é a minha praia. Escolho a telenovela que promove a diferença. Não vou sair por aí beijando homem, meu, mas defendo a telenovela que mostra homem beijando homem. Não gosto dos negros que moram no meu condomínio nem acho que empregada doméstica deva usar elevador social, mas defendo o direito de eles ocuparem seu lugar na sociedade. Como já observei, o país é de todos. Taí uma frase que eu gostaria de ter criado. Você não imagina o quanto invejo o publicitário que bolou essa frase.

O ser que mais amo?
São dois, não um: Bill Gates e Lulinha, meus cãezinhos adorados. Não sei de dito mais verdadeiro que este: o cão é o melhor amigo do homem. Entre nós, eu e eles, não existe concorrência, conflito de opinião, choque entre vontades, a guerra que a todo instante decretamos entre nós, humanos, em nome do princípio da liberdade de cada um. Se as pessoas fossem como Bill Gates e Lulinha, o mundo seria o paraíso.

Se escolho ser eu?
Casseta e planeta! Claro que escolho ser eu e sei quem sou. Sou o que o espelho reflete. Já imaginou a vida de um intelectual como Nietzsche, por exemplo? Lembra como acabou, onde acabou? Quero é cuidar de mim, meu. Ser eu é ser saudável. Só me falta agora uma coisa: o dinheiro da entrevista que previamente acertamos. Vamos nessa.
Recife, 14 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dia das Mães




Zélia é uma mãe antiga, de um tempo cujos traços mais nítidos sumiram do horizonte do presente. Tão antiga, ou já tão irreal, que é do tempo em que as mães casavam para sempre e ao casarem consagravam sua vida ao marido, aos filhos e à casa. Quando casou com Eduardo, a quem maternalmente habituou-se a tratar como Dudu, o mundo da mulher e das suas relações com o mundo do homem parecia muito simples. Enquanto ele reinava na rua, ou no mundo, ela reinava na casa.

Dudu foi o único homem que conheceu e amou na vida. Casaram-se logo que ele se formou em medicina. Ele tinha então 23 anos de idade; ela, 17. Maria Vitória, a filha mais jovem, diz agora, com certo travo de amargura, que ele é apenas uma fotografia pendurada num móvel da sala. Ela não sabe, ou é incapaz de compreender, que Dudu está vivo. Apesar de morto há cinco anos, sua presença é tão dominante na vida de Zélia que nem consegue imaginá-lo morto. Agora que é viúva e velha, ou está na boa idade, como dizem por aí, Zélia tem a solidão dos dias que lhe restam para conversar com Dudu. Nada faz na vida, nada sobre ela decide sem antes consultá-lo. É sobretudo na hora de dormir, quando reza suas orações e pede a Deus pela vida dos filhos e netos, que senta no sofá ao lado de Dudu e conversa sobre os dois, sobre os 60 anos vividos um ao lado do outro. Um dia, tem fé, deixará de conversar apenas com o espírito de Dudu, apenas com a memória que dele preserva, e irá a seu encontro. E assim a vida e o amor que aqui compartilharam serão transpostos para uma eternidade sem incerteza ou sobressalto.

Faz dois anos que Zélia escolheu viver sozinha num pequeno apartamento. Deixou a cobertura luxuosa que dividia com arthurzinho e Maria Vitória para viver solitária na sua concha de 60m2. Ainda hoje os filhos e demais parentes são incapazes de compreender sua decisão de ficar sozinha na velhice avançada. Somente Fernando, o amigo que a escreve e assim a recria como abstrata figura tecida com palavras, somente ele aparenta compreendê-la. Sua explicação é simples: não quer morrer sem antes saber o que é ter seu próprio lugar, a pequena ilha onde precisa aprender a experiência da solidão antes da morte, da viagem última que a levará ao reencontro com Dudu.

Amanhã todos estarão aqui. Será um domingo de festa dentro da sua ilha que mal contém espaço para acolher tantos filhos, netos e outros parentes. Faz uns quinze dias que a televisão não fala de outra coisa que não seja o seu dia. Tudo isso lhe confunde a inteligência afeita apenas às práticas da vida simples que vive. De repente elevam-na a tantos modos de amor, a tantas provas de carinho, reconhecimento e importância que desacerta até o modo inconsciente de andar entre a sala e a cozinha, a TV e o telefone que amanhã tocará sem repouso.

Perplexa diante de tantas imagens sedutoras, erra estrangeira e anônima entre comerciais do shopping center e de um banco que nem conhece, entre geladeiras, móveis, farmácias, supermercados, lojas de roupas e joias, sapatarias e locadoras, sociedades comerciais e beneficentes e toda uma infinita sucessão de lojas, bancos, mercados , comerciantes, publicitários... Não bastasse tanto, ouve tanta gente famosa falando dela com amor, tanta gente que nunca a viu nem a conhece... “Meu Deus, como guardar em mim meu anonimato humilde depois de tanta celebração, depois de tantas provas e promessas de amor? Como comprar tudo que me querem vender em meu nome, tudo que me vendem do que não preciso? Até parece que gerei meus filhos e eduquei-os apenas com o propósito de que no meu dia me dessem presente. O mais engraçado de tudo é que também meus netos me querem presentear. Como não têm renda própria, me pedem dinheiro para me dar presentes que ironicamente acabo pagando”.

Maria Vitória virá com novo marido, que é já o quarto. Os filhos, saídos de amores tão desencontrados e instáveis, brigam tanto que precisa sempre testar sua paciência e compreensão do seu amor de avó para apaziguá-los quando a seu lado. Ana Célia, a primogênita, separou-se do último marido, que foi o terceiro. Queixa-se sempre da solidão da casa, da ausência dos filhos já crescidos e soltos na vida. De repente, deu para morrer de amores por cachorros e parece andar mais equilibrada. Já que nos desavimos como seres de convívio e vida rotineiramente conjugada, resta-nos agora o amor dos cachorros. Marluce, depois de tanto errar de amores, arranjou uma companheira com quem vive dentro de uma comunidade mística que criaram em Brasília. “E Arthurzinho, meu Deus, bebendo tanto que já precisou até fazer tratamento no AA... Tudo isso me confunde a cabeça e a imaginação, tudo isso desconcerta meu coração de mãe estrangeira num mundo tão desequilibrado”.

Mas amanhã todos estarão aqui. Farão tanto barulho com televisão ligada, celular, videogame e telefonemas simultâneos, conversas desencontradas em meio ao ruído do apartamento... “Meu Deus, confesso que preferiria a companhia silenciosa de Dudu. Com ele, na solidão da noite antes do sono, sinto-me afinal reconciliada comigo própria, com os valores e a atmosfera de um mundo apagado das trepidantes linhas do presente. Depois da festa, como sempre acontece, todos partirão e durante um ano viverei como uma ausência sem queixas na memória volúvel desses pedaços de mim nos quais já não me reconheço nem eles em mim se reconhecem. Não sei o que seria de mim e da minha velhice solitária, não houvesse o amor sempre fiel e presente de Dudu iluminando minha vida. Um dia viajarei afinal a seu encontro e então já não haverá dia das mães na vida de filhos e netos que gastam tanto tempo e dinheiro no shopping para me dar o que não preciso e enganar a falta do que tanto neles e em mim me dói: o sentido de um amor sem comércio”.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Delírio de Onipotência do Narciso Consumista


Eu tudo quero e tudo posso. Ser feliz, desejo supremo de todo ser humano, é apenas questão de vontade e coragem. Não ter medo de ser feliz, esta é a expressão mágica no país de todos. Aproveitar tudo, viver tudo a que tenho direito. Mais que isso: tudo que desejo. Meu desejo é a medida da realidade. O negócio é chegar lá, lá onde me espera o objeto do meu desejo. E o que aprendi e o que sei é que vale tudo: tudo por dindim, tudo para que o outro me veja e confirme minha existência, tudo pelos 15 minutos de celebridade, que no meu caso serão eternos. Ser sempre o que o outro quer, já que o outro é a medida da minha existência, já que é o outro quem valida o que sou. Ser é ser o outro e à margem do outro que me vê e me valoriza eu sou apenas a sombra do apagão, um zero. Nada.

Se Caetano Veloso canta que Narciso acha feio o que não é espelho, eu vou além, muito além, e afirmo que Narciso é o próprio espelho, que Narciso é uma criação do outro. O outro é o Big Brother, a mídia, o olhar invejoso do vizinho que quer meu carro importado porque odeia o que tenho e o que tenho é o que sou. O outro é o chefe a quem presto vassalagem para ser o que ambiciono: o executivo sem alma, o astro da mídia, a prostituta que se chama acompanhante ou modelo, o deus do futebol com quem me identifico quando visto sua camisa e majestosamente desfilo pelas ruas como se fosse ele. Se ele me toca, ou rabisca um autógrafo no guardanapo de papel onde o nome dele e o meu se imortalizam, sinto-me como se a mão de Deus sobre mim descesse. É quando sei que sou onipotente. Eu tudo posso. Eu tudo quero.

Sou the hollow man, o homem vazio, o homem oco do poema de Eliot. Não me procurem onde não estou e nunca estive: dentro de mim, pois sou pura forma aparente. Sou o reflexo de uma avenida em cujas margens vislumbro outdoors e clipes publicitários, vitrines que semelham templos onde adoramos o Deus mercadoria, massas errantes rolando por ruas anônimas à procura do que todos procuram: um quinhão de fama, um farelo de notícia que prove ao mundo e antes de tudo a mim próprio a existência dentro de mim anulada. Sou o homem vazio, o homem oco que é pura aparência. Dentro de mim há apenas poeira, um deserto sem água, trapos recobrindo minha nudez vazia e uma angústia sem norte, uma ansiedade sem objeto, um desejo de fuga sem destino, o vazio carente de algo que o preencha.

Mas tudo posso, essa é a voz sedutora do clipe publicitário que me persegue e cativa em tudo que ouço e me cerca. Ela escorre geladinha na garrafa de cerveja. Ou é na bunda deslumbrante da loura gostosa que bebe nos meus braços? Ela me faz crer que sou o dono do banco, não o correntista esfomeado entre o desejo de consumo e a taxa de juros. Ela transfigura minha solidão num harém onde as mulheres mais lindas e inacessíveis estão à distância de um travesseiro na minha cama, dóceis e servis como as mucamas dos engenhos de açúcar coloniais. Eles sobrevivem, os engenhos e seus senhores onipotentes, os engenhos e a escravaria moída pela máquina que sem alma tudo tritura; eles sobrevivem no tipo de capitalismo brutal que criamos, na mídia com seu circo de horrores cotidianos.

Sou onipotente pilotando meu carro que é uma máquina de guerra. Dentro dele viaja submissa a mulher que eu quiser, escrava do meu desejo. Dentro dele, miro com desprezo a massa anônima pendurada no estribo do ônibus, espremida nas janelas de veículos ferventes à luz do verão. Dentro dele, vejo de relance a massa de trabalhadores espremida em trens como se fosse sardinha enlatada. Dentro dele traço a fronteira entre dois Brasis atados mas divididos, cada vez mais se defrontando com surda ferocidade. Um país de todos, mas desiguais. Dentro dele, acelerando como um guerreiro em combate, atropelo o pedestre, ultrapasso sinais vermelhos, excedo todas as velocidades porque a potência do meu carro é instrumento da minha onipotência. Dentro dele estou acima da lei porque a lei e todos os códigos inventados pela sociedade são apenas o que acelero e compro.

Os valores e direitos humanos? Digam-me quanto custam, pois tenho o poder de comprá-los. Amor, delicadeza, ética, respeito, civilidade, compaixão, tudo isso soa como palavra tão vazia quanto o vazio que dentro de mim transporto. Como disse, não me procurem onde não sou e estou. Sou pura aparência produzida pelos poderes aos quais servilmente rendo minha liberdade, um sentido de humanidade e beleza que nunca provei nem me apetece. O que não suporto é a solidão, a hora fatal em que preciso mirar-me não no espelho do outro, não no espelho que é o outro, mas no espelho da parede do banheiro que habito, no espelho da minha casa sem humanidade. Nesses momentos irrompe e me sufoca a solidão dos desertos áridos, a angústia sem corpo e forma, a insatisfação sem repouso. Como explicar essa insatisfação permanente, esse movimento sem pausa, se tudo compro e tudo tenho no shopping que é o templo onde venero meus deuses e realizo minha figuração do céu na terra, céu que é aliás o único, pois que sou eterno? Os publicitários, voz da minha consciência, inventaram a terceira idade e assim aboliram a velhice. Eu, que tudo posso, fui além deles: desinventei a morte e me fiz eterno. Eu sou o outro e sou eterno. Mas por que não paro de me doer? Por que sou a droga sem a qual não suporto o mundo nem me suporto? Por que esse vazio que vai de dentro para fora de mim quando o espelho não é o da mídia, mas o da parede do meu banheiro?
Recife, 5 de dezembro de 2009

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Nudez do Escritor Tímido


O Amor nos Trópicos – A nudez do escritor tímido.
Severo Machado

Você nunca foi entrevistado antes. Por que agora?
Nunca fui convidado. Mais importante: recebo agora um convite para conceder uma entrevista paga.
Nenhum outro motivo?
Bem, talvez eu pudesse fazer minha a explicação de Inocência White depois de posar nua para uma revista consumida por mecânicos de automóveis: tirei a roupa apenas para humilhar minha timidez.
Cite um parágrafo que você jamais assinaria.
Faz mais de um século que o futuro pertence ao Brasil. Dado o papel crucial que desempenhou durante o processo de colonização, Pernambuco é o fundamento da nação, matriz da nossa identidade cultural. Por isso podemos com orgulho proclamar que Pernambuco fala para o mundo. Entre maravilhado e obediente, o mundo segue o roteiro traçado pela régua e o compasso pernambucanos.
Quem é o autor destas palavras?
Já esqueci, mas são muitos os que se orgulhariam de assumir a autoria desses disparates provincianos.
Por que você odeia tanto o Brasil e particularmente Pernambuco?
Meu ódio, se assim você prefere designar minha atitude de crítica intelectual ao Brasil, é fruto de um amor traído. Não leia aí nenhum paradoxo simplório baseado na natureza ambivalente dos sentimentos. O fato é que me fiz gente cultivando um amor ativo e crítico pelo Brasil. Por isso tentei, dentro de meus modestos limites, concorrer em algum grau para ver realizadas as mudanças coletivas passíveis de nos elevarem à dimensão de um país autenticamente moderno e democrático. Mas o Brasil deu nisso que você vê. De tanto apostar e perder, acabei reduzido ao estado de absoluta descrença em que me encontro. Em suma, acredito que o Brasil é incivilizável. Um amigo otimista costuma consolar-me, ou consolar-se, prevendo que daqui a cem anos seremos uma nação, não esse bordel cujo nome, aliás, teve como fonte uma mercadoria muito cobiçada. Sei que sou imortal, mas infelizmente minha paciência é finita.
Embora no geral situados no ambiente de Recife, seus personagens e a ação dos seus contos poderiam ser deslocados para qualquer outro lugar. Concorda?
É uma observação precisa. De fato, não me passa pela cabeça acrescentar aos personagens e às situações que vivem qualquer traço de natureza regionalista, qualquer particularismo passível de anular a especificidade histórica implícita na minha ficção.
Como você caracterizaria essa especificidade histórica?
Diria que grosseiramente meus personagens e os conflitos que vivem são fruto das transformações que em graus variáveis afetaram o conjunto das sociedades ocidentais. Somos periféricos, mas ocidentais. Personagens como Luiz Natalino, Sérgio Majo e Inocência White, por exemplo, seriam inconcebíveis dissociados das mudanças ao mesmo tempo liberadoras e devastadoras gestadas sobretudo a partir dos anos 1960. Nossas fixações regionalistas, feitas de idealizações retrógradas e fantasias de identidade cultural, passam inteiramente ao largo dessa realidade. Minha ficção nada tem a ver com o canavial do coronel ou com o batuque folclórico da escravaria de ioiô.
Não há aí um laivo de elitismo, a traição do seu desprezo pelo povo?
Não desprezo o povo, mas a mentalidade predadora e parasitária das elites brasileiras.
Se não há traição ao povo, não haveria traição à sua experiência de pernambucano na literatura que você escreve?
Não sei bem o que você quer dizer quando se refere à minha experiência de pernambucano. Passei parte da minha adolescência murado num buraco ainda mais fundo do que o buraco que é o nosso mundo rural. Sabe no entanto que autores li emprestados da estante do meu tio? Alexandre Dumas, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Robert Louis Stevenson, Thomas Hardy, Oscar Wilde, Balzac, Flaubert... Música? The Beatles, Rita Pavone, Roberto Carlos, Nat King Cole... Cinema? O de Hollywood, os filmes italianos, os seriados... O que isso tem a ver com nossa suposta identidade pernambucana? Se na minha juventude era assim, o que dizer hoje?
Você escreveu um conto intitulado Estupro Social. Você justifica o estupro apoiado em razões sociológicas? Estupraria uma mulher?
Como entendo que meu conto não é a demonstração de uma tese sociológica, acho que cabe ao leitor refletir sobre a primeira parte da sua pergunta interpretando livremente o conto. Quanto à segunda parte da questão, diria que não estupraria, mas confesso que já estuprei uma mulher quando eu tinha quinze anos. Era uma negra bonita emudecida pela opressão. Usei-a à força sem sequer saber então o que era estupro. Estava apenas repisando uma prática corrente no mundo rural nordestino e nas famílias de classe média do Recife. É claro que a inconsciência do crime não inocenta o criminoso. Sexo livre entre namorados adolescentes é uma outra invenção recente. No tempo da minha adolescência a gente se iniciava nos quartos das empregadas domésticas ou nos puteiros imundos.
Você não é impiedoso diante da miséria suportada pelo povo brasileiro?
You must be cruel in order to be kind.
E a política?
Já que desistimos de cuidar dela, hoje ela cuida de nós sem maiores embaraços. O resultado está aí à vista. Inútil comprar um kit de sobrevivência mínima cujos itens podem ir do analista ao exterminador ou justiçador a serviço da vítima desamparada pelo Estado. Reiterando uma obviedade que o medo não vê, se o mal com o mal se paga, o resultado não é soma zero, mas a multiplicação incalculável do mal.
E a literatura no mundo atual?
É irrelevante. Figura ainda nas chamadas revistas de cultura porque reduzida a turismo cultural. Ou manual de auto-ajuda. Ou variante de fofoca nas colunas sociais.
Por que então você insiste em escrever? Vaidade?
Não há vaidade que sobreviva à recepção de dez leitores descontentes. Escrevo porque a experiência de recriação literária da realidade concorre para que me compreenda melhor a mim e ao mundo em que vivo.
Uma frase que você gravaria no pára-brisa do seu carro ou no seu túmulo.
É de Alan Bennett, um dramaturgo inglês: I´ll tell you something. Heaven is going to be hell.
Você concordaria que a frase acima condensa todo o pessimismo da sua literatura?
Não. Por quê? Ora, porque minha literatura não é pessimista. O que escrevo é apenas uma reinvenção – ora realista, ora satírica ou ainda satírico-realista – da realidade que vivo e observo. Se você lê pessimismo no que escrevo, ele é um ingrediente substancial da realidade, não uma projeção negativa da minha percepção do mundo. É porém verdade que nossa expressão imaginária da realidade radica na concepção que temos da literatura. Se um escritor a concebe como mera via de fuga da realidade, uma variante da cocaína consentida que embrutece a sensibilidade e a percepção das pessoas, é provável que ele produza uma obra adequada ao consumo dos órfãos da evasão. Entendo que a literatura é uma via singular e privilegiada de conhecimento do mundo. Somo a essa função cognoscitiva uma outra que Freud identifica como manifestação do princípio de prazer. A forma estética corresponde a esta segunda função.
Apesar da discordância, insisto em dizer que a sua literatura é negativa. Por que a escuridão compreendida como metáfora não freqüenta sua obra? Quero dizer, a escuridão traduzindo sua representação sombria e opressiva do mundo, o sofrimento ou alienação a que parecem condenados seus personagens.
Porque, insisto do meu lado, minha literatura não é pessimista. Aprecio a escuridão literalmente compreendida. Afeiçoei-me a ela desde a infância. Talvez porque cresci em noites envoltas numa escuridão completa, apenas rompida em alguns pontos pela luz das velas e dos candeeiros. Não esqueça de que no Nordeste o progresso material é recente e restrito. Some a este fato uma renitente doença dos olhos que me forçava a viver encerrado num quarto escuro, mesmo à luz do dia, com um grosso tecido preto protegendo-me a visão. Talvez essas circunstâncias tenham concorrido para agravar minha timidez. Assim, associo à escuridão sentidos simbólicos bem distintos e até opostos aos sentidos correntes nas representações metafóricas da realidade. Para mim a escuridão traduz reserva, recolhimento, concentração do vivido e experimentado. Trepar no escuro, por exemplo, é algo que anima e libera minha imaginação e meus sentidos. No escuro você tem a liberdade de descobrir e mesmo reinventar o corpo da mulher. Essa coisa de trepar dentro de uma torrente de luzes, como fazem tantos casais freqüentadores de motéis, é compulsão de amantes exibicionistas. A luz do amor, mais que a da mera e vulgar trepada, irradia da escuridão, não dessa vitrine narcisista que define a banalidade do nosso tempo. Aliás, irradia mas também naufraga. Por isso, é no escuro que sofro e curo o amor perdido.
Você não é acaso narcisista?
Claro que sou. Mas pareço discreto e humilde se me comparo com a minha faxineira ou com o porteiro do meu condomínio.
Como traçar a fronteira entre a biografia e a ficção na sua obra?
Você indaga sobre esferas intercomunicantes, mas autônomas. É um despropósito, para não dizer rematada tolice, confundir o autor com a sua obra, ou seus personagens. Um tolo ou maledicente confundiu-me com meu personagem Luiz Natalino. Daí passou a acusar-me da prática da pedofilia. Voltando à natureza intercomunicante mas autônoma da realidade e da ficção, não negaria que o personagem contém muito de mim. Daí a presumir que sou pedófilo vai a distância imensurável entre a obra e a fantasia que o autor nela projeta. Bastaria dizer que o próprio nome do personagem, Luiz Natalino, é já um artifício literário indiciador do papel da pedofilia na tradição literária ocidental.
Que medos oprimiam sua infância, se você sequer temia a escuridão?
Meu grande medo era cogitar um mundo sem meu pai regendo-lhe o centro. O único mundo cogitável obedecia ao comando do meu pai movendo-lhe as forças com sua potência protetora. Tive aos nove anos um pesadelo no qual via meu pai morto de maneira brutal. Acordei chorando, completamente desamparado. Precisei de horas, dentro da escuridão vazia, para reatar o mundo a uma fonte de sentido passível de devolver-me o sono.
Você acredita em Deus?
Não. Também não acredito mais no meu pai.
Em que acredita então?
Na dúvida.
É possível tolerar nossa vida individual regida pela dúvida?
Penso que sim. A aprendizagem é longa e tormentosa, mas alguns se libertam da rede de crenças ilusórias que escoram nosso medo e o vazio flutuando à borda do abismo. Não esqueça de que as mais terríveis atrocidades produzidas pela história humana são fruto de alguma crença, alguma convicção cega e poderosa, algum sistema de fé. A crença, transformadora ou reativa, convertida em energia de ação social, tem sido a grande geradora de devastação da humanidade e do mundo natural. O mal que causei a este mundo derivou quase sempre do impulso vindo de alguma fé consciente ou obscura. Seríamos mais livres e menos destrutivos se aprendêssemos o dom da dúvida liberadora.
E sua mãe?
Foi uma ausência quase absoluta. Quero dizer: ausência física. Simbolicamente, ela vive e viverá em mim até o fim de tudo. Talvez seja isso uma condenação, mas o fato é que nunca nos libertamos daqueles que amamos. Pai e mãe, sabemos, são os modelos primários dessa aventura amorosa, quase sempre desastrosa.
Você gosta de bater?
Você gosta de apanhar?
Você gosta de mulher?
Nua ou vestida?
Você se identifica com o seu nome?
Não. Na verdade, detesto chamar-me Severo Machado. Preferiria ser Machado de Assis, Henry James, Joseph Conrad. Mas que fazer, se a crítica tem sempre a vista curta?
Há quem diga que você é uma pessoa cruel.
Sou tão inofensivo como uma flor silvestre. Lembra a última fala de Norman Bates em Psicose, já possuído pelo espírito atormentador da mãe? Pois digo o mesmo de mim: sou incapaz de fazer mal a uma mosca.
Como gostaria de concluir a entrevista?
À maneira de Brás Cubas: Não tive filhos. Não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria.
Assim encerramos a entrevista e assim perdi de vista o repórter cujo nome esqueci. Soube que uma semana mais tarde a entrevista foi publicada. Ou melhor, mutilada, tantos foram os esquartejamentos a que a submeteu o editor. Devo-lhe o crédito de render-me alguma atenção ao comunicar-me, via e-mail, a operação destrutiva imposta à entrevista. Alegou a inocência dos que matam porque recebem ordem para matar. Estava apenas pondo em prática normas editoriais adotadas em benefício do leitor. Mais uma razão, pensei, para evitar a leitura de revistas de cultura. Tive a tentação de conferir minha fala com o texto. Logo porém mudei de idéia assombrado pela possibilidade de tropeçar num monstro que não me saiu das entranhas. Seria um tormento que tive a prudência de neutralizar. Achei assim oportuno tomar a entrevista como lida e aprovada. Afinal, o que mais importava era o pagamento da entrevista cumprido, ressalto por dever de justiça, segundo as normas do mercado. Um dia, suspirei contando as cédulas magras, universalizaremos no Brasil as práticas do capitalismo de mercado. Será enfim o progresso que prossegue tremulando em vão na divisa da nossa amada bandeira nacional.
Dias mais tarde cruzei no Parque da Jaqueira com um jornalista amigo. Falou-me da entrevista, concordou com tudo que desmentiria na primeira curva do parque, bastando que se visse livre da minha presença indesejável. Ia já a caminho de fazê-lo quando alguma lembrança o deteve. Voltou-se para mim e falou quase que aos gritos: Ah, esqueci de lhe dizer que seu entrevistador suicidou-se anteontem. Aliás, seu amigo Perfídio Ventura anda espalhando que o suicídio foi de fato um homicídio. Cândido como o personagem de Voltaire, cedi à tentação da curiosidade: a quem atribui a autoria do homicídio? À sua entrevista.
Ri vexado e retomei meu passo. Embora quisesse esquecê-lo, Perfídio Ventura e sua verve maledicente vibravam-me nos ouvidos. O canalha anda por aí acusando-me de assassinar um jovem que no fundo estimei, embora deva acentuar que a entrevista foi uma lição de incompreensão comovente, ou de desacordos comprimidos no ritual de hipocrisia caracterizador das formas de relação política, no caso a literária. Sigo batendo perna pelo Parque da Jaqueira, tão importunado pela maledicência de Perfídio Ventura que me abstraio das mulheres gostosas movendo-se na vitrine da pista onde andam, correm e sobretudo fofocam. O canalha anda espalhando que matei o repórter com a minha entrevista. Quem me dera esse poder...

sexta-feira, 19 de março de 2010

Misael, o Misógino


O Amor nos Trópicos – Misael, o Misógino.
Severo Machado

Misael trocava de mulher como troco de camisa. Quero dizer: tenho 82, transpiro abundantemente e detesto camisa suada.
Misael veio lá de baixo, do pé da escada. Lá embaixo, no piso da madeira roída pelo cupim, mulher era matéria escassa, mais rara que beleza em barraco de favela. Misael fez de tudo, mas foi lenta e tenazmente subindo os degraus de madeira roída pela miséria: foi porteiro, balconista, vendedor de livro, bebida, auxiliar de escritório, gigolô, bancário... Cursou escola pública aos trancos e barrancos, mas aprendeu que a educação era instrumento eficaz de ascensão social. Por isso afiou as virtudes da razão na lâmina fria do saber prático. Nada de literatura, humanidades, ficção de desocupado, de gente cheia de minhoca na cabeça. O negócio é matemática, ciências, o saber que muda a realidade e eleva saldo bancário. Pulando de galho em galho, às vezes escorregando, outras raras caindo, Misael chegou à Faculdade de Direito do Recife. Na primeira oportunidade, tornou-se fiscal da receita através de concurso. Nesse tempo já trocava de camisa com alguma freqüência, embora nem transpirasse tanto nem detestasse camisa suada.

Misael subiu como foguete em noite junina. Noite junina do Nordeste, onde a cultura urbana retém a camada renitente dos costumes da roça e a ordenação errática do asfalto semelha um acampamento de retirantes. Cinco anos depois de vida de fiscal da receita, ei-lo vaidosamente posto no alto de uma cobertura suspensa em um condomínio de luxo. Lá embaixo o mar de Boa Viagem quebra na areia iluminada pela luz noturna. Agora Misael troca de camisa todos os dias e aprendeu a detestar camisa suada. As mulheres cheiram mal, resmunga depois de largá-las suadas e descontentes na cama. O salário é bom e seguro, mas não compra tudo.

Misael entra na sala e liga a tv. O economista – professor universitário e Ph.D pela Harvard University, USA – entrevista o assessor para assuntos de administração pública – professor universitário e Ph.D pela Oxford University, England:
Você acha que a instituição de fiscais de fiscais seria uma solução para as práticas corruptas freqüentes na Secretaria da Fazenda?
Poderia ser uma boa idéia. Sabemos porém que os fiscais de fiscais também são humanos. Logo, haveria o risco de eles cederem à mesma tentação que impele os fiscais ao uso corrupto das suas atribuições públicas.
Misael deu uma gargalhada e desligou a televisão. Melhor ir caçar mulher. Mulher é como camisa: uso uma vez e jogo na máquina de lavar. Há quem faça pior, disse ele a uma chorosa com a tocante intenção de a consolar.

Misael era bruto com as mulheres. No convívio dos amigos, porém, era um doce de pessoa. Gargalhava por um nada, servia generosamente os amigos, grudava-se a eles nos bares ruidosos onde assistiam a jogos de futebol. Ia com freqüência acompanhado por mulheres, sempre bonitas. Mas não lhes dava a mínima importância. Parecia entender que a função delas era tão-só adornar o ambiente e fornecer evidência de sua posse. Misael exibia mulheres como os caçadores de feras exibiam na sala de visitas a pele dos leões abatidos num safári. E os amigos o invejavam: Misael é muito macho. Gostar de mulher é aí.

Tarde de domingo na cobertura de Misael. O tédio, quase uma fria lâmina depressiva, pesava-lhe horrivelmente no coração. Odeio as tardes de domingo. Meus amigos estão felizes, reunidos em família, se empanturrando em mesas fartas de comida e alegria doméstica. Liguei para Gilberto Rocha e logo ouvi a família ruidosa e feliz lá no fundo da linha. Liguei em seguida para Álvaro Carvalho e é sempre a mesma coisa. Todos eles se fecham em família, comem e bebem e tagarelam até o cair da noite. Todo mundo feliz, todo mundo cercado pela família e eu aqui penando solitário dentro desta cobertura imensa e vazia. Que fazer, ele se pergunta e se repete roendo as unhas do tédio. Corre ao telefone e liga para Vadinho, o corretor de puta:
E aí, cara?
Tenho uma mina pra você, Misael. Arquivo novo, gostosa de doer. Chama-se Inocência White.
Cacete, cara, como é que uma puta tem um nome desses?
É filé, Misael. De classe média, fez até universidade. Mas é doidinha de pedra, cara. Faz pouco que saiu das mãos de Zoca Porrada. Conhece?
Quem não conhece Zoca, Vadinho?
Pois é, cara. Ele esbarrou na mina por aí, se desmanchando na droga, batendo prego nas calçadas da Rua da Moeda. Até ficou com ela uns tempos em casa. Mas se ela é doida de pedra, ele é barra pesada. Você conhece o tipo. Inocência vivia levando pancada, mas acho que gostava, pois não pegava a estrada de volta pra casa. Vive repisando aquela idiotice: sem medo de ser feliz. Diz que aprendeu essa besteira de um vidente que antes foi psicólogo e hoje é um publicitário quase tão rico quanto Washington Olivetto. Um dia Zoca encheu os bofes e deu-lhe um chute na bunda. Foi quando ela veio parar aqui. É puro filé, Misael. Vai encarar?
Que mais eu posso fazer num domingo desses, Vadinho? Manda a mina, cara. Mas comigo você já sabe: puta eu uso uma vez e nem mando para a máquina de lavar. Puta eu jogo fora. A gargalhada de um abafando a gargalhada do outro.

Misael casou. Antes disso deu para beber pesado. Enchia a cara todas as tardes de domingo porque já não suportava a solidão e o tédio fechando-se sobre as paredes desertas da cobertura. Casou com a filha de Honesto Jardim, criminalista. Honesto era mais rico que os próprios bandidos ricos a quem protegia das malhas frouxas da justiça brasileira. Ganhou tanto dinheiro zelando pela fortuna suja dos seus clientes que Misael se sentiu pobre e humilhado quando pela primeira vez entrou na sua cobertura. Diva, a filha de Honesto Jardim, era uma mulher dengosa e bonita. Também falava alto e pelos cotovelos, mas ninguém lhe dava ouvidos. O pai pagava-lhe todos os caprichos sob a condição implícita de que sempre lhe rendesse vassalagem irrestrita. Era uma prisão tão doce, e cara, que nunca passou pela cabeça de Diva uma palavra de protesto ou gesto de desagrado. Seu último capricho foi apaixonar-se por Misael. Honesto fez uns cálculos mudos, resignou-se a ganhos modestos e suspirou consentindo: poderia ser pior.

Misael mediu ganhos e conseqüências, mediu sobretudo o custo doloroso dos domingos de tédio e solidão, e não pensou duas vezes. Não previra, entretanto, o quanto lhe custaria a presença diária de Diva na mesma cama, as noites amordaçadas pela mesma camisa, a mesma malha suada, a consciência de que a camisa atirada à máquina de lavar pela manhã voltava à sua cama na noite do mesmo dia. Aumentou a dosagem do whiskey e assim a embriaguês entrou-lhe no sangue e na rotina.

Diva, vou sair com Gilberto Rocha e Álvaro Carvalho. A gente vai ver o jogo do Náutico e depois bater um papo no Colarinho.
Toda mulher é suja, Alvinho. Até a minha.
Ia já pelas tantas, a mesa do Colarinho tombando sobre as ondas do alto mar, quando disparava esse tipo de comentário nos ouvidos de Álvaro e Gilberto. Eles riam deliciados e replicavam com ditos equivalentes. Tudo aquilo: a presença ruidosa dos amigos, os jogos de futebol, a idolatria por Romário e Kuki, o whiskey derramado sobre as mesas do Colarinho, tudo aquilo Misael descobriu que era o seu gozo real, seu prazer de viver. O mero e vago pensamento de que precisaria voltar para casa, deitar na cama ao lado de Diva, vestir a mesma camisa já rota e suada, isso o atormentava sem reparação. Por isso bebia.
E por aí foi nadando em álcool e dinheiro. A fortuna de Honesto Jardim crescia sem pausa e com ela, por afinidade ou contaminação, também crescia a fortuna de Misael e Diva. De tanto vestir a mesma roupa e aspirar o mesmo suor noturno na mesma camisa gasta e suada, erraram a medida de alguma dose e o acaso deu-lhes uma filha. Misael roeu a corda, lamuriou-se à borda dos ouvidos cúmplices de Álvaro e Gilberto: Por que não nasceu homem, porra? Mulher é coisa suja, mesmo quando é filha. Os amigos riam e por fim o confortavam, senão com palavras, por certo com as garrafas de whiskey enxugadas na mesa do Colarinho.

Álvaro e Gilberto adoravam atiçar a misoginia de Misael:
Misa, diga aí cinco coisas amáveis contra a mulher.
1 – Mulher não tem senso de humor. Nem de amor, pois ama com completa insensatez.
2- Quem pode confiar na sensatez / de um bicho que menstrua todo mês?
3 – A mulher acredita em amor eterno. Provando que não tem juízo, quando ama quer logo casar iludida com a tolice de que o casamento sacramenta a eternidade do amor.
4 – A mulher é incapaz de renunciar a suas ilusões amorosas, salvo no caso em que a ilusão de um amor maior ocupa o espaço do amor gasto ou insatisfeito.
5 – Mulher é um bicho muito complicado.
6 – A mulher é uma terra incógnita.
Chega, Misa. Pedi apenas cinco. Você não deixa pedra sobre pedra.
Que é que eu posso fazer, Alvinho? Esse deserto é fértil. Se eu abrir a torneira, vai haver um dilúvio no Colarinho.
E riam, riam de se dobrar sobre a mesa.

Passaram os anos e outros acasos que lhe trouxeram mais dois filhos. Quero dizer: mais duas filhas. Ele se desesperava na intimidade dos amigos, roía o pó do destino inclemente e desabafava ainda e sempre: por que não um homem, porra? Mulher é suja. Mais alguns anos e estarão menstruando como a mãe. O pior é que são camisa que gruda no corpo, bens de propriedade definitiva. Onde uma máquina de lavar que me liberte dessas camisas sujas grudadas a meu corpo? Os ouvintes e confidentes complacentes já não eram Álvaro e Gilberto, nem o cenário era a mesa do Colarinho. Misael olhou em torno e se sentiu confortado pelo atmosfera cúmplice dos presentes reunidos numa sala dos Alcoólatras Anônimos.