sexta-feira, 19 de março de 2010
Misael, o Misógino
O Amor nos Trópicos – Misael, o Misógino.
Severo Machado
Misael trocava de mulher como troco de camisa. Quero dizer: tenho 82, transpiro abundantemente e detesto camisa suada.
Misael veio lá de baixo, do pé da escada. Lá embaixo, no piso da madeira roída pelo cupim, mulher era matéria escassa, mais rara que beleza em barraco de favela. Misael fez de tudo, mas foi lenta e tenazmente subindo os degraus de madeira roída pela miséria: foi porteiro, balconista, vendedor de livro, bebida, auxiliar de escritório, gigolô, bancário... Cursou escola pública aos trancos e barrancos, mas aprendeu que a educação era instrumento eficaz de ascensão social. Por isso afiou as virtudes da razão na lâmina fria do saber prático. Nada de literatura, humanidades, ficção de desocupado, de gente cheia de minhoca na cabeça. O negócio é matemática, ciências, o saber que muda a realidade e eleva saldo bancário. Pulando de galho em galho, às vezes escorregando, outras raras caindo, Misael chegou à Faculdade de Direito do Recife. Na primeira oportunidade, tornou-se fiscal da receita através de concurso. Nesse tempo já trocava de camisa com alguma freqüência, embora nem transpirasse tanto nem detestasse camisa suada.
Misael subiu como foguete em noite junina. Noite junina do Nordeste, onde a cultura urbana retém a camada renitente dos costumes da roça e a ordenação errática do asfalto semelha um acampamento de retirantes. Cinco anos depois de vida de fiscal da receita, ei-lo vaidosamente posto no alto de uma cobertura suspensa em um condomínio de luxo. Lá embaixo o mar de Boa Viagem quebra na areia iluminada pela luz noturna. Agora Misael troca de camisa todos os dias e aprendeu a detestar camisa suada. As mulheres cheiram mal, resmunga depois de largá-las suadas e descontentes na cama. O salário é bom e seguro, mas não compra tudo.
Misael entra na sala e liga a tv. O economista – professor universitário e Ph.D pela Harvard University, USA – entrevista o assessor para assuntos de administração pública – professor universitário e Ph.D pela Oxford University, England:
Você acha que a instituição de fiscais de fiscais seria uma solução para as práticas corruptas freqüentes na Secretaria da Fazenda?
Poderia ser uma boa idéia. Sabemos porém que os fiscais de fiscais também são humanos. Logo, haveria o risco de eles cederem à mesma tentação que impele os fiscais ao uso corrupto das suas atribuições públicas.
Misael deu uma gargalhada e desligou a televisão. Melhor ir caçar mulher. Mulher é como camisa: uso uma vez e jogo na máquina de lavar. Há quem faça pior, disse ele a uma chorosa com a tocante intenção de a consolar.
Misael era bruto com as mulheres. No convívio dos amigos, porém, era um doce de pessoa. Gargalhava por um nada, servia generosamente os amigos, grudava-se a eles nos bares ruidosos onde assistiam a jogos de futebol. Ia com freqüência acompanhado por mulheres, sempre bonitas. Mas não lhes dava a mínima importância. Parecia entender que a função delas era tão-só adornar o ambiente e fornecer evidência de sua posse. Misael exibia mulheres como os caçadores de feras exibiam na sala de visitas a pele dos leões abatidos num safári. E os amigos o invejavam: Misael é muito macho. Gostar de mulher é aí.
Tarde de domingo na cobertura de Misael. O tédio, quase uma fria lâmina depressiva, pesava-lhe horrivelmente no coração. Odeio as tardes de domingo. Meus amigos estão felizes, reunidos em família, se empanturrando em mesas fartas de comida e alegria doméstica. Liguei para Gilberto Rocha e logo ouvi a família ruidosa e feliz lá no fundo da linha. Liguei em seguida para Álvaro Carvalho e é sempre a mesma coisa. Todos eles se fecham em família, comem e bebem e tagarelam até o cair da noite. Todo mundo feliz, todo mundo cercado pela família e eu aqui penando solitário dentro desta cobertura imensa e vazia. Que fazer, ele se pergunta e se repete roendo as unhas do tédio. Corre ao telefone e liga para Vadinho, o corretor de puta:
E aí, cara?
Tenho uma mina pra você, Misael. Arquivo novo, gostosa de doer. Chama-se Inocência White.
Cacete, cara, como é que uma puta tem um nome desses?
É filé, Misael. De classe média, fez até universidade. Mas é doidinha de pedra, cara. Faz pouco que saiu das mãos de Zoca Porrada. Conhece?
Quem não conhece Zoca, Vadinho?
Pois é, cara. Ele esbarrou na mina por aí, se desmanchando na droga, batendo prego nas calçadas da Rua da Moeda. Até ficou com ela uns tempos em casa. Mas se ela é doida de pedra, ele é barra pesada. Você conhece o tipo. Inocência vivia levando pancada, mas acho que gostava, pois não pegava a estrada de volta pra casa. Vive repisando aquela idiotice: sem medo de ser feliz. Diz que aprendeu essa besteira de um vidente que antes foi psicólogo e hoje é um publicitário quase tão rico quanto Washington Olivetto. Um dia Zoca encheu os bofes e deu-lhe um chute na bunda. Foi quando ela veio parar aqui. É puro filé, Misael. Vai encarar?
Que mais eu posso fazer num domingo desses, Vadinho? Manda a mina, cara. Mas comigo você já sabe: puta eu uso uma vez e nem mando para a máquina de lavar. Puta eu jogo fora. A gargalhada de um abafando a gargalhada do outro.
Misael casou. Antes disso deu para beber pesado. Enchia a cara todas as tardes de domingo porque já não suportava a solidão e o tédio fechando-se sobre as paredes desertas da cobertura. Casou com a filha de Honesto Jardim, criminalista. Honesto era mais rico que os próprios bandidos ricos a quem protegia das malhas frouxas da justiça brasileira. Ganhou tanto dinheiro zelando pela fortuna suja dos seus clientes que Misael se sentiu pobre e humilhado quando pela primeira vez entrou na sua cobertura. Diva, a filha de Honesto Jardim, era uma mulher dengosa e bonita. Também falava alto e pelos cotovelos, mas ninguém lhe dava ouvidos. O pai pagava-lhe todos os caprichos sob a condição implícita de que sempre lhe rendesse vassalagem irrestrita. Era uma prisão tão doce, e cara, que nunca passou pela cabeça de Diva uma palavra de protesto ou gesto de desagrado. Seu último capricho foi apaixonar-se por Misael. Honesto fez uns cálculos mudos, resignou-se a ganhos modestos e suspirou consentindo: poderia ser pior.
Misael mediu ganhos e conseqüências, mediu sobretudo o custo doloroso dos domingos de tédio e solidão, e não pensou duas vezes. Não previra, entretanto, o quanto lhe custaria a presença diária de Diva na mesma cama, as noites amordaçadas pela mesma camisa, a mesma malha suada, a consciência de que a camisa atirada à máquina de lavar pela manhã voltava à sua cama na noite do mesmo dia. Aumentou a dosagem do whiskey e assim a embriaguês entrou-lhe no sangue e na rotina.
Diva, vou sair com Gilberto Rocha e Álvaro Carvalho. A gente vai ver o jogo do Náutico e depois bater um papo no Colarinho.
Toda mulher é suja, Alvinho. Até a minha.
Ia já pelas tantas, a mesa do Colarinho tombando sobre as ondas do alto mar, quando disparava esse tipo de comentário nos ouvidos de Álvaro e Gilberto. Eles riam deliciados e replicavam com ditos equivalentes. Tudo aquilo: a presença ruidosa dos amigos, os jogos de futebol, a idolatria por Romário e Kuki, o whiskey derramado sobre as mesas do Colarinho, tudo aquilo Misael descobriu que era o seu gozo real, seu prazer de viver. O mero e vago pensamento de que precisaria voltar para casa, deitar na cama ao lado de Diva, vestir a mesma camisa já rota e suada, isso o atormentava sem reparação. Por isso bebia.
E por aí foi nadando em álcool e dinheiro. A fortuna de Honesto Jardim crescia sem pausa e com ela, por afinidade ou contaminação, também crescia a fortuna de Misael e Diva. De tanto vestir a mesma roupa e aspirar o mesmo suor noturno na mesma camisa gasta e suada, erraram a medida de alguma dose e o acaso deu-lhes uma filha. Misael roeu a corda, lamuriou-se à borda dos ouvidos cúmplices de Álvaro e Gilberto: Por que não nasceu homem, porra? Mulher é coisa suja, mesmo quando é filha. Os amigos riam e por fim o confortavam, senão com palavras, por certo com as garrafas de whiskey enxugadas na mesa do Colarinho.
Álvaro e Gilberto adoravam atiçar a misoginia de Misael:
Misa, diga aí cinco coisas amáveis contra a mulher.
1 – Mulher não tem senso de humor. Nem de amor, pois ama com completa insensatez.
2- Quem pode confiar na sensatez / de um bicho que menstrua todo mês?
3 – A mulher acredita em amor eterno. Provando que não tem juízo, quando ama quer logo casar iludida com a tolice de que o casamento sacramenta a eternidade do amor.
4 – A mulher é incapaz de renunciar a suas ilusões amorosas, salvo no caso em que a ilusão de um amor maior ocupa o espaço do amor gasto ou insatisfeito.
5 – Mulher é um bicho muito complicado.
6 – A mulher é uma terra incógnita.
Chega, Misa. Pedi apenas cinco. Você não deixa pedra sobre pedra.
Que é que eu posso fazer, Alvinho? Esse deserto é fértil. Se eu abrir a torneira, vai haver um dilúvio no Colarinho.
E riam, riam de se dobrar sobre a mesa.
Passaram os anos e outros acasos que lhe trouxeram mais dois filhos. Quero dizer: mais duas filhas. Ele se desesperava na intimidade dos amigos, roía o pó do destino inclemente e desabafava ainda e sempre: por que não um homem, porra? Mulher é suja. Mais alguns anos e estarão menstruando como a mãe. O pior é que são camisa que gruda no corpo, bens de propriedade definitiva. Onde uma máquina de lavar que me liberte dessas camisas sujas grudadas a meu corpo? Os ouvintes e confidentes complacentes já não eram Álvaro e Gilberto, nem o cenário era a mesa do Colarinho. Misael olhou em torno e se sentiu confortado pelo atmosfera cúmplice dos presentes reunidos numa sala dos Alcoólatras Anônimos.
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Conto muito legal. Excelente!
ResponderExcluirO andróide Misael elenca trejeitos que o fazem tresandar, assim engaifonar sobre a mulher lhe é próprio, ao passo contrário, a androfobia não lhe convém. Talvez Misael no fundo no fundo busque um madeiro, sim um lenho. Portanto sua exabundância em relação ao sexo oposto bem o conduziu para o AA. Misto de cágado com avestruz, Misael merece levar a verruma no anel, imagino o machão suando a camisa...
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