segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Desacertos de um sem caráter



As evidências, tantas e reiteradas, emergentes de inesgotáveis fontes e direções, de mim fizeram o sem caráter que hoje penso ser. Um tempo tomei-me por humanista. Presumia saber o que a palavra significava. Mas vem um dia, aí por volta de 1978 (sou tão desmemoriado quanto o país em que vivo), descubro que o coronel Erasmo Dias é também um humanista. Profissão de fé assinada e reconhecida pelo próprio em entrevista a “Isto é” num dos intervalos dos surtos repressivos que desfechava contra operários do ABC e estudantes da PUC. A companhia lisonjeava-me, mas não ao ponto de impedir-me de pular fora de tão equívoca navegação humanista. Mudei eu, pedestremente sem caráter, ou a embarcação em que por certo tempo ilusoriamente me transportei?

Como fui sempre um desconfiado diante de todas as formas de poder, discretamente passei a tomar-me por um anarquista. Mas de tanto olhar em volta, de tanto tropeçar em evidências negativas, também aí fui me desencantando. Me desencantando, por exemplo, de anarquistas que cultuam ídolos de massa como se fossem deuses empunhando guitarras no Olimpo. Me desencantando de anarquistas que em nome da negação do poder, esse demônio de mil faces mutantes, racionalizam, no sentido freudiano, todas as formas de dominação a que aderem nas relações cotidianas, públicas e privadas. Me desencantando de anarquistas inconscientemente sequiosos de um poderoso que os submeta e domine: no partido, na escola, na família, no bar, na cama, na própria anarquia que confunde anarquia com “anarquia”. E lá vou eu à cata de outro caráter em que me possa caracterizadamente transportar.

Um tempo fui namorar a contracultura tupiniquim na própria Meca idem: Bahia de 1970. Achei que a coisa não passava de uma bad trip da rebeldia juvenil financiada pela família, instituição naquele contexto tão abjeta, tão execrável quanto até à altura da decretação do AI-5 se execrava o imperialismo capitalista. Fui tão infeliz na minha fantasia de integração que nem por um dia abri mão do hábito repressivo de tomar banho. Além do mais, quem então financiava minha rebeldia era a fábrica de Leon Heimer, o polonês, ao preço repressivo de oito horas diárias de trabalho (não computadas as horas extras, evidentemente).

Do bojo da contracultura, e de outras contestações culturais, desprendeu-se a venerável ideologia da liberação. O Atlântico, em Olinda, foi o palco preferencial desse renovado desejo de integração à moda contestadora do dia. No zum-zum das mesas e da radiola de fichas, drogados pelas mais delirantes fantasias, todas as noites reprocessávamos nosso exaltado ritual de liberação. Com o passar do tempo, dei para acordar oprimido por insólitos sintomas: ressaca moral, vazio e esterilidade afetiva. Christopher Lasch (ver A Cultura do Narcisismo, Editora Imago) historiador social americano, propõe inquietante diagnóstico aos eventuais interessados, que por certo não se incluem na maioria dos profissionais do ramo. Diante do quadro em que me vi metido, achei por bem desconfiar. À época, falei dessa desconfiança num artiguinho vagabundo. Moralista foi a qualificação mais amável de alguns liberados do pedaço. Entre despedaçar-me dentro e contra as práticas celebradas no pedaço e partir em busca de outra forma de integração, opitei (assim como está escrito, revisor, para que não me confundam com um criptopetista) pela segunda alternativa e fui ser alternativo.

Não é lindo, não é charmoso ser alternativo? Não é in fazer terapia alternativa, sexo alternativo, música alternativa, TV alternativa, jornalismo alternativo, educação alternativa, tudo e tudo alternativo? Um sarro, cara. Muito massa. Como resistir à sedução da cultura alternativa? Já estava decidido a ler (e aderir, claro) a bibliazinha alternativa de Fernando Gabeira, esse charmoso mutante do descartável cultural, quando o próprio veio participar de um debate no hall do Centro de Artes da UFPE. Fui de coração batendim, batendim. A plateia apertava-se fissuradamente alternativa. Até que lá pelas tantas ele falou do parto alternativo da mãe do seu filho praticado numa “clínica dominante”, com toda a aparelhagem da “medicina dominante” (há expressões mais apropriadas?) pronta para entrar em ação na hipótese de haver qualquer falha no parto alternativo. Não é massa, gente? Não é superalternativo? Também acho, mas para bom entendedor parto nessas condições mais se assemelha a aborto alternativo. Assim, voltei a mamar no seio da cultura dominante e repressiva.

Embora machucadamente resignado, dava já por encerrada minha desventurada trajetória em busca da integração quando Clériston, meu perverso reizinho da notícia, me botou no saco da “geração eu e eu”, última variante do narcisismo que a cultura dominante vem estimulando a mil. Escrevi para o último número do “Rei da Notícia” duas notas de crítica sumária à cultura do narcisismo. Vou repeti-las (não mexe não, Clériston): 1-Epitáfio da cultura narcísica: eu me amei tanto, mas tanto, que não amei; 2-Narciso mirando-se no espelho do outro: ele sou eu.

O que pretendi, explicando grosseiramente, foi por o dedo na miséria essencial do narcisismo “geração eu e eu”: a negação da alteridade. Privado da experiência do amor (perda e encontro de si próprio no encontro com a alteridade), esse tipo de narciso está condenado à esterilidade afetiva. Haja vitrine e tome picaretagem psicanalítica. Compondo a edição de texto, Clériston suprimiu a primeira parte da primeira nota e alterou a segunda, que no sumário do jornal aparece com o destaque de subtítulo. Como se não bastasse, suprimiu integralmente a segunda nota. Assim, quando já me resignara a desistir de qualquer moda contestatória, Clériston enquadrou-me no espírito narcisista da “geração eu e eu”. Eu me amei tanto, mas tanto, Clériston, que te odiei.

Publicado no jornal O Rei da Notícia, no. 6, Recife, novembro de 1985.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Leves escoriações



No Brasil, quem não é sobrenome é parente. Quem não é parente mente e prontamente se associa. Eternamente nos balançamos entre a elite e a contraelite; entre ser Ney e ser Nilo; entre Tancredo e trancado. Um exato alienígena com certeza confundiria a história do Brasil com história de trancoso. Dos mesmos é o gozo e dos sempre excluídos o engodo. Tudo Ré-publicamente se reparte entre aqueles que privadamente são a veríssima elite brasileira.
Hamletiana
Ser ou beber
Eis a questão.
Assim dizia
E assim bebia
Meu mau filósofo
Copo na mão.
Irresolvido
Se resolvia
Bebendo mais.
Filosofia
É um copo um dia
Hipocondria
Um copo a mais.

O panorama literário da província abre para o vazio. Tanta retórica, tanta frase de efeito, tantas donzelas e languidez, tanto subliterato sem caráter: tudo abrindo para o vazio. Esteticamente, sequer aportamos às margens do modernismo. Isso dá a medida extrema do que é ser subdesenvolvido dentro do subdesenvolvimento. Se as lâminas cortassem não a solidão, mas o insulto estético, decepariam a mão que as escreve. A alvorada brasílica migra da estrebaria para a academia. Quantos mitos sacrificará ainda este país para se libertar do impasse entre a farda e o fardão?
Market place
Quanto vale teu amor? Quanto o teu corpo, o teu ódio, tua paixão? Quanto o teu medo de não valer, ou valer pouco, tão demais pouco? Quanto o teu tédio, o teu emprego, o teu salário, teu coração? Quanto o teu método nessa loucura de que és louco? É tudo e pouco.
Liberation now
Como diria Luís Severiano Ribeiro, se acaso financiasse um filme de pornochanchada, sexo também é cultura. Mas de que sexo e de que cultura a gente está falando? Tomando o slogan de Luís Severiano a sério, o slogan e suas infinitas paráfrases e variações, sexo é cultura como cinema é cultura, esporte é cultura etc. Quer dizer, antropologicamente (doeu, meu amor?) tudo isso é expressão de cultura, como é expressão de cultura tudo que marca a nossa diferença com relação à natureza. Pois é exatamente nessa zona (abstraídos os significados menos decorosos), é nessa perturbadora zona da diferença entre natureza e cultura que nosso sexo, quero dizer, nossa cabeça, dança e balança.
Sendo de um lado natureza, naquilo que primariamente comporta de instinto, é o sexo de outro lado cultura naquilo que supõe conformação do instinto a um sistema de normas (leia repressão e lembre o que o velhinho Freud, chupitando seu impagável charuto, falou: civilização é repressão) que necessariamente amarram nossas práticas sexuais.
Já sei: minha cantada não funcionou. Tá na cara, tá na tua cara: minha cantada não funcionou. Posso tentar doutro modo? Por exemplo assim: vai nessa, menina. Sexo é uma coisa natural, absolutamente natural. Esses grilos, menina, esse papo de repressão, não vê que isso é coisa de intelectual enrustido, de nego que não tá com nada? Isso aí, cara: se libere numa boa, totalmente. Se liberou, né? Faz mal não: amanhã é dia de analista.
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Em poucos meses, operando essa espécie de milagre em que se esmera o Brasil brasileiro, transitamos da “Velha República” tecnoburocrática para a “Nova República” democracia de comissão. Já me explico. Qualquer das nossas autoridades que ascende a posições públicas eminentes, de ordinário lá chegando à força de expedientes escusos, logo toma a providência de constituir uma comissão de estudo. Há hoje no país comissão para tudo e solução para nada. Na ausência de projetos reais, toca-se o país à deriva de comissões muito bem comissionadas. Temos até um ministério que teve cultura sem cultor e agora enfim tem um cultor sem projeto de cultura. Nem te dão pão nem dentadura.

Eu me amei tanto, mas tanto, que não amei.

Entreouvido numa festa escandalosamente austera: fidelidade não é virtude, é privação.

Publicado no jornal O Rei da Notícia, no. 5, setembro, 1985.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Da desconfiança



1– Desconfio de todo anarquista que pede autógrafo.
2 – Desconfio de quem invoca opinião pública num país onde mal se divisa uma opinião pessoal.
3 – Desconfio de todo humorista que ri à toa e sobretudo a favor.
4 – Desconfio de todo ateu que vive da compulsiva negação de Deus. Afinal, não será sintomático repetidamente dar nome e combate ao que não existe?
5 – Desconfio dos liberados que fazem de sua vida sexual matéria de utilidade (e vaidade) pública.
6 – Desconfio dos libertários que usam verbos no imperativo.
7 – Desconfio de todo vanguardista que não toma posição, lato senso, sem antes consultar o relógio. Ou o calendário.
8 – Desconfio de todo marginal que tem bens a declarar ao leão do imposto de renda.
9 – Desconfio de toda e qualquer forma de contestação financiada.
10- Desconfio de todo comunista que tem classe.
11- Desconfio de todo extremista que abre as pernas.
12- Desconfio de todo sujeito que fala na primeira pessoa do plural.
13- Desconfio de todo idealista que necessita de nobres ideais.
14- Desconfio de todo político que invoca o povo subtraindo-lhe a polis.
15- Desconfio de todo parricida que procria.
16- Desconfio de todo humorista incapaz de se tomar como objeto de humor.
17- Desconfio do sexo oral que fala o que, se é sexo, é pra ser chupado.
18- Desconfio de todo humilde que não se identifique por um aposto humilhante.
19- Desconfio de mim, que me conheço o bastante para não me atrever a me dar as costas.
20 – Desconfio de mim: por prevenção e reiteração compulsiva.

Publicado no jornal O Rei da Notícia, no. 6, Recife, novembro de 1985.

domingo, 18 de setembro de 2011

Elogio da violência



No meu desânimo de ser humano, não é que pensei isso: ame a humanidade. Pois é, assim de cara como de cara estou falando pra você. Ame a humanidade. De cara e no imperativo. Mas reconsidero. Você vai responder que a humanidade é uma abstração e pronto: estamos conversados.
Reconsidero: não ame a humanidade. No imperativo, sim, como no imperativo antes ordenei: ame a humanidade. Não podemos chegar a um acordo? Afinal, como agora livrar-me de você sem antes convencê-la da necessidade de praticar uma violência que não está nos jornais, não está nos partidos, não está nas ruas, nos bares, na sua e na minha vida?
Ame o proletariado. Também não é praticável, sei, esse tipo de violência. Se o objeto é uma abstração menos extensa, ainda assim é isso: uma abstração. Você não levará a sério minha fala imperativa. Noutras: você vai continuar resistindo a meu apelo à violência.
Ame (não mais me escape), ame a sua classe. Média, alta, curta, nanica, marginal, dominante, dominada, não importa. Ame a sua classe. Tudo bem, é novamente a questão lógica. A classe é um objeto menos extenso, mas ainda assim abstrato. Posso eu amar uma abstração, desesperada me perguntará você. E desesperado concordarei: não, não pode. Não ame a humanidade, não ame o proletariado, não ame a sua classe, não importando o quanto seja ela desclassificada.
Vou desistir? Não, não vou desistir. Ame seu inimigo. Você não o amará e ainda aqui compreendo sua recusa. Se você não é cristã (a outra face, irmãzinha, a outra face), eu muito menos. Tudo bem: não ame seu inimigo.
Então ame a mim, que tanto preciso de amor. Por que você não me violenta? Sou também uma abstração, como abstrações são a humanidade, a classe outra, a classe mesma, a classe sem classe? Ame um ser concreto, carente, penitente, peditente de amor. Ame a mim que apelo, que suplico, que imploro à sua delicada humanidade um gesto corrosivo de amor.
Não me fale mais das delicadezas ordinárias que entediam nosso cotidiano geral. Não me fale mais do seu ódio, da sua intolerância, do seu sexo enfastiado, do seu gozo puramente verbal. Não mais me fale, por favor, das trepadas sem gozo, do outro só puro espelho, das mentiras que nos paralisam e sufocam.
Quero apenas e imploro e suplico isso: apenas um belo e inusitado gesto de violência. Quero apenas que você me ame; que despreze a delicada e comovente humanidade que a impele para a generosa praticação da indiferença, da recusa, do medo, do desprezo pelo outro. Me violente, amor, assim como imploro e não mais ordeno. Me violente e me ame, amor, como você, como ninguém mais ousa amar ninguém.
Publicado originalmente no jornal O Rei da Notícia, no. 4, Recife, julho, 1985.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Condenação



O amor chega tarde, senão nunca
E eu próprio me cansei de o esperar
Gastando minha vida, essa espelunca
Curtida em solidão de rua e bar.

O amor que um dia houve já se foi
Pois tudo nessa vida é perda e engano.
Se hoje na memória assim me dói
É que me pesa o amor, me pesa o ano

Assim fútil, traído e dissipado.
O amor findo por vezes deixa algemas
Refém no sótão sujo e abandonado

Deixa culpa no travo de poemas
Que escrevo com raiva e entanto a pena
Lavra a pena do réu já condenado.
Recife, 24 de agosto de 2011.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A aridez do amor



Já não canto o amor, pois o amor
Mudou de qualidade e natureza
Fazendo do amante e do amador
Um servo da mentira e da avareza.

Já não canto a musa. Ela migrou
Para a bolsa, o bordel, para a vitrine.
O mundo é vil comércio e o que restou
É lodo de paisagem que deprime.

Já não canto o sentido que minou
O solo em que brotava o azul da flor
A febre da paixão e do lirismo.

Canto a aridez no fio da descrença
Nutrindo no deserto essa doença
Bailando à borda do insensato abismo.
Recife, 27 de agosto de 2011.

domingo, 11 de setembro de 2011

Oclusão



A voz quer dizer: te amo
E entanto pausa, emudece.
Os sons da palavra amo
O nosso tempo embrutece
Pois ao dizê-los diz carne
Coisa, barato comércio
Cindindo o amor, sua carne
Sua desmedida sem preço.

A voz quer dizer: te amo
Com o timbre de risco e engano
Com que seu canto se tece.
Vê na corrente dos anos
Abismos e desenganos
Pois neste metro se mede.

A voz quer dizer: preciso
Além do acaso e juízo
Além da norma e razão.
Mas curva-se à natureza
Que te modela a beleza
Gravando na língua presa
A pena da solidão.

Recife, 08 de setembro de 2002.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Poema do masoquista



Ser é doer
Diz o analista
Ao masoquista
Que já avista
A dor chegando.
II
O mundo é dor:
Dor de amor
De festa, andor
Dor de alegria
Que logo finda.
Vem a ressaca
Fica, não passa
E o trem não finda
Range nos trilhos
Doendo ainda.
III
Dor de amor
Incorrespon-
dido e ferido
pela carência
de gozo e dor
pois um e outra
são o sentido
o bem à vista
a que aspira
o masoquista.
IV
Dor de poeta
Que sem carinho
Geme sozinho
No cais deserto.
Olhando em torno
Grita: socorro
Sem cão por perto.
V
Dor de amor
Que abusa e trai
E vão se esvai
No azul da flor.
Mas como é bom
Sofrer doer
Tudo perder
Só por amor.
VI
Dor chaga e luto
Dor beijo bruto
No céu da vida.
E o masoquista
Dança na pista
Rodopiando
Com o pé torto
Da mascarada
Que é ser artista.
VII
Ser é doer.
O masoquista
Dócil concorda.
Ri de alegria
Quando a alergia
Lhe morde a corda
Cardiovocal.
E ele sorrindo
Sofre tão lindo:
Dor não faz mal.
VIII
E a noite dói
E a dor acorda
O masoquista
Pleno e feliz
No seu sofrer.
Quem range e mói
A dor da vida
Tem toda a vida
Pra se doer.
Recife, 26 de abril de 2001.

domingo, 4 de setembro de 2011

Poema para Kay



Quando cresci
Um vate mineiro
Desses que sonham ser ilha
E entanto são frátria concha
Disse: vai, Nando, fall in love with Kay.

Os olhos dos brasileiros seguindo as pernas de Kay
Pernas brancas douradas viajantes
Escandinavas de Diva divinas alvinas:
As pernas de Kay.

A loura no sol dos trópicos
É bela alta transculta
Morena como vocês.
Quase não samba.
De poucos, raros batuques
A loura dança inglês.
Mas é tão gauche movente
Borrando língua e fronteira
Que dança salsa Caribe
Mesclando um toque de mangue
E sangue afro-inglês.

Por que entre tantas portas
Nos trópicos de tantos portos
Vem essa deusa impossível
Turvando-me com tantos trevos
Seus frevos dançar aqui?

Mundo mundo nado e o fundo
Profundo se abre em mim.
Mundo e Nando me infernando
Fosse eu apenas Fernando
E Kay seria meu fim.

Belo Horizonte, 25 de outubro de 1999.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Desarraigamento


Prossigo relendo espaçadamente o excelente livro de Lewis Coser sobre os mestres do pensamento sociológico. O capítulo dedicado à sociologia de Georg Simmel sugeriu-me algumas reflexões sobre o estranho e o marginal dentro da sociedade ou sobre os grupos restritos com os quais se relacionam. Vou selecionar para próxima leitura os ensaios que Simmel dedica ao assunto e Kurt Wolff agrega ao volume The Sociology of Georg Simmel.

Sempre me senti seduzido pelo estranho, o marginal, o desajustado. Não me refiro porém a estes personagens no sentido em que expressam um estilo de vida, muito menos um grupo controlado e com frequência punido pela polícia. É verdade que na minha juventude vivi a marginalidade como um estilo de vida, sobretudo nos tempos de dissipação olindense. No caso, o estilo se combinava com uma situação de marginalidade social efetiva, pois saíra da família sem lograr definir um lugar institucional no qual minha individualidade se acomodasse. Além disso, vivi durante muito tempo pulando de emprego, notadamente às voltas com a insegurança gerada pelo desemprego e a renda instável e magra.

Tornei-me desarraigado por circunstância biográfica e também por opção. A circunstância biográfica decerto mais remota liga-se ao fato de que tive pais inconciliáveis não só entre si, também inconciliáveis com a ordem cultural em que me formei. Se a norma era o homem dominador e a mulher dócil ao comando do marido e humildemente reclusa na esfera doméstica, tive em contraste uma mãe dominadora cujo descontentamento em face do meio a impelia a desafiar as normas correntes. Quanto a meu pai, este era dócil, submisso ao temperamento violento e dominador de minha mãe. Cresci privado de qualquer contato físico com minha mãe, temendo-a ao mesmo tempo em que recebia todos os afetos do meu pai isentos de temor ou mesmo autoridade.

Como isto é um diário, não um livro de memórias, evito demorar-me na reconstituição de minha infância, mesmo nos aspectos restritos à influência direta dos meus pais. O que em resumo anoto é que suas vidas desavindas, e desde o princípio inconciliáveis, afetaram de modo traumático minha infância e adolescência. Depois de infidelidades sucessivas, algumas escandalosas, minha mãe saiu em fuga para São Paulo na companhia do amante, um reles balconista da casa comercial de minha tia. A família entrou em desmantelo e seu presumível comandante, já de si humilhado e sem energia, rendeu-se vergonhosamente ao léu da sorte. Como certo dia me disse sem nenhuma culpa aparente, apenas resignação, “criei meus filhos como Deus criou batata”.

Se não fui vencedor, fui com certeza um trânsfuga, um traidor voluntário do meu pai: recusei-me discreta e seguidamente o destino de batata. É aí que entra o desarraigamento como opção. Recusei a família como legado ou pena que me impusesse pela vida afora. Sei que fiz muito no sentido de ajudar os mais errados e confusos que eu, sobretudo meu irmão mais próximo. Por um tempo, tocado pelo ideário humanista absorvido em leituras silenciosas e difíceis, além da experiência vivida à distância da família quando voluntariamente fui estudar num internato em Palmares, empenhei-me com as mais iludidas intenções na reforma da minha família retalhada por toda sorte de problema imaginável. Um dia dei-me conta de que tudo aquilo era insolúvel e de que era justificável o egoísmo que insistentemente me soprava ao ouvido relutante: se você não pode salvá-los, tente ao menos salvar a si próprio. Foi quando saí de casa, com dificuldades imensas, resistindo ao cerco das pressões morais e chantagens sentimentais de parentes desamparados, e caí na vida.

Errei durante anos inseguros movendo-me através de uma sucessão de endereços sempre provisórios, sem emprego durável ou renda previsível. Errei de cidade e sobretudo errei de corpo em corpo agitado por fantasias promíscuas longamente procrastinadas na adolescência mais temerosa. O desejo insaciável de mulher, errante de corpo em corpo, era decerto um sintoma de carência do amor que me faltou na infância e na adolescência, assim como uma objetivação das minhas fantasias de adolescente tímido e reprimido. O auge desta fase foi meu tempo de residência à deriva e vida boêmia em Olinda, Recife, Natal e São Paulo. Ao cabo, apalpei-me exausto, física e moralmente exausto, vendo à frente o desenho de uma paisagem sombria feita de esterilidade afetiva e lenta descida autodestrutiva. Fui salvo por um concurso para professor da UFPE, Depto. de Ciências Sociais, quando afundara em estado crônico de desemprego. Classificado por um triz, pela primeira vez na vida, já por volta dos 33 anos, me vi detentor afortunado de um emprego estável iluminado pela perspectiva de imprimir sentido e força construtiva à minha função docente.

O emprego estável concorreu de modo decisivo para que eu organizasse minha vida, antes de tudo acomodando meus livros, meus ideais praticáveis e minhas rotinas mais prazerosas dentro de uma ordem material equilibrada. Zombo às vezes dos idiotas conformistas que se danam a deitar em ouvidos descuidados frases do tipo: o dinheiro não traz felicidade. É verdade que o dinheiro não é garantia de felicidade, estou dizendo algo um tanto diferente da frase difundida pelo idiota conformista, nem compra tudo. Somente os que nunca tiveram dinheiro incorrem na tolice de presumir que ele compra tudo. Ficando porém no essencial, o dinheiro nem é garantia de felicidade nem compra tudo. Daí a sustentar que não traz felicidade é passar de uma consideração realista para outra completamente idiota – e conformista, como antes assinalei.

Quanto a meu desarraigamento por opção, diria que cheguei aos 55 anos sem negociar minha liberdade e minha solidão voluntária tentado pela segurança de uma família que me garantiria confortos e privilégios que não tenho nem me fazem falta. Sou um indivíduo, no sentido em que o termo goza de vigência em sociedades liberais como a inglesa e a norte-americana. Melhor dizendo: luto todos os dias para defender essa forma precária de liberdade, tão difícil de se materializar nos labirintos de uma sociedade que mescla de forma inextricável e desnorteante a norma liberal e a ordem hierárquica, a igualdade abstrata no reino do mercado e a reiteração deslizante da cordialidade regida pelo império da ação afetiva.

Não alcancei nenhum sucesso que de resto não me propus como meta social. Por outro lado, tenho consciência de que vivo muito aquém dos meus talentos e potencialidades que, sem falsa humildade, estão bem acima da média corrente no meio em que vivo. O que importa é o fato de que nenhuma mágoa de ressentido me tira o sono ou me rebaixa à tentação de invejar tipos medíocres e desonestos agraciados por um prestígio social que nunca me concederam. Deve ser triste a frustração dos talentos ressentidos, mesmo quando indiscutível a legitimidade da mágoa medida entre a ambição e o resultado efetivamente atingido.

O que quero é viver uma vida razoável e isenta de conciliações iníquas. Reiterando os limites modestos das minhas ambições, o que mais quero e tenho realizado é viver em paz comigo iluminado pela convicção serena de que comigo carrego um estoque de memória e beleza inegociáveis. No mais, gosto de dormir e acordar sossegadamente, sem no deserto da madrugada pular da cama assaltado por pesadelos que me denunciem a medida humana menor que o tolerável. Enfim, faço de mim em mim o elogio do desarraigamento autenticador de minha liberdade e autonomia possíveis quando não passo daquilo que na minha juventude meus companheiros supostamente radicais ou revolucionários qualificavam em tom desprezível como ideal de vida pequeno burguês. O irônico é que quase todos se amesquinharam nesse ideal desprezível.
Diário – Recife, 03 de agosto de 2004.