domingo, 28 de abril de 2013

O Acaso


Se colho o que plantei
E se mereço o que tenho
Acolho os erros que errei
E de julgar me abstenho.

Não obstante a sorte
Existe e tanto varia
Que afeta a vida e a morte
O ser que foi ou seria.

Seu nome é também acaso
A variável que o dia
Muda ao capricho do prazo
De quem trabalha ou vadia.

Seu nome é também fortuna
Que leviana premia
O pleno quanto a lacuna
Texto barato ou poesia.

A mim me importa o que colho
Escolho que me retém
Aquém do que amo e escolho
E sigo sem mais ninguém.

Recife, 28 de abril de 2013.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Princípios de sabedoria


Se eu fosse um homem sábio, minha vida seria regida pelos princípios que abaixo especifico:
1 – O sentido da minha vida seria fundado no meu eu. Um dos erros mais insensatos em que incorremos é o de fundar esse sentido em algo fora de nós. Com o perdão da terminologia pedante, traduziria este princípio como o da autonomia ontológica.
2 – O ser deve realizar-se regido antes pela vontade do que pelo desejo ou o prazer. O desejo privado de potência é a via mais curta para a nossa infelicidade.
3 – Nunca aprisionar a realização do ser em um ideal absoluto, seja ele o amor, o poder, a família, a riqueza material, a utopia política, a religião...
Comentando livremente os princípios acima, arrisco-me a dizer que os únicos homens que os realizaram foram Sócrates, Montaigne e Spinoza. Embora fosse cristão, Montaigne elegeu Sócrates como seu modelo, não Cristo. Aliás, acho que Sócrates está para a tradição filosófica ocidental assim como Cristo está para a tradição cristã.
Transpondo o comentário para o mundo em que vivemos, penso que as tendências culturais dominantes desdobram-se no lado avesso dos princípios acima expostos. Se estou certo e os princípios que postulo têm validade, resta logicamente concluir que estamos vivendo na contracorrente de qualquer possibilidade de uma vida sábia. Traduzindo de um modo mais corrente, cavamos nossa infelicidade enquanto nos iludimos supondo viver em conformidade com “qualidade de vida” e outros clichês publicitários. Embora tanto falemos em autonomia e liberdade individual, em liberdade de escolha e outros belos ideais, pouco notamos o quanto vivemos regidos pela heteronomia ontológica, para dizer o avesso do que acima designei como autonomia ontológica.
Quanto à relação entre a vontade e o desejo, friso nada ter contra este. Pelo contrário, seria ótimo vivermos em conformidade com nossos desejos, ou realizar nossos desejos mais importantes. O problema é que a cultura hedonista dominante no presente promove a ilusão sistemática da realização do desejo, não importando qual seja. Num mundo reduzido ao império da mercadoria, realizar nosso desejo significa, trocando em miúdos, ter o poder de comprar. No caso, não só confundimos o ter com o ser, mas vivemos como se o princípio da nossa potência de realização do desejo, qualquer desejo, residisse no nosso poder de compra.
Em suma, ter é ser e ter é deter a potência de comprar. Esta me parece ser a fonte primacial da nossa infelicidade, da nossa insatisfação que se nutre do consumo insaciável. Somos infelizes e permanentemente insatisfeitos porque somos prisioneiros de uma ordem de funcionamento da realidade fundada na busca insaciável do desejo. O desejo não pode nunca alcançar sua satisfação, pois assim o funcionamento do sistema de consumo se esgotaria. Esta lógica, expressa em termos de mercado, é extensiva à totalidade da nossa experiência subjetiva, já que ela foi aprisionada pelas regras universais do mercado. Num mundo onde tudo tem preço, perdemos a noção do nosso valor não monetário. Não é portanto à toa que nosso valor passou a ser mensurado pelas leis do mercado. Tudo aparenta reduzir-se a duas perguntas que governariam nossas vidas: qual é o seu preço? Por quanto você se vende?

Recife, 24 de abril de 2013.

sábado, 20 de abril de 2013

Curitiba


Tão pouco a ti te conheço
E entanto tanto me atrais
Por ti meu pouso eu esqueço
E digo te quero mais.

Tuas mulheres tão lindas
Travam-me o passo, a visão
E sonho nas noites findas
Retê-las no coração.

Mulheres de Curitiba
Passando indiferentes
Não sabem da lenda antiga
Cegando a visão que sente.

Mulheres de Curitiba
Por que me deixam demente
Se elas se vão e o que fica
É o meu desejo doente?

Mulheres de Curitiba
Ardendo no sol tão frio
Tecem no ar essa intriga
Ferindo meu ser vazio.

Curitiba, 17 de abril de 2013

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Solidão e Curitiba


A solidão, Curitiba
É fria com céu nublado.
Mas é de sempre. É a vida
Sem teu futuro ou passado.

Também liberta do espaço
É só real e presente
Passa à medida que passo
Sente o que o ser em mim sente.

A solidão, Curitiba
Existe além da cidade.
É sempre igual. Tão antiga
Que ri da felicidade.

A solidão, Curitiba
Nada te dá ou te quer
Castiga tudo que é vida
Atando o barco à maré.

A solidão, Curitiba
É uma cidade qualquer.
Onde quer que a gente viva
É ela sempre o que é.

Curitiba, 12 de abril de 2013.

domingo, 14 de abril de 2013

O amor na paisagem


O encontro entre mim e a paisagem
Tal era o sortilégio de o viver
Que a tarde se fechava na estiagem
E a noite se fundia em meu querer.

Havia uma harmonia tão secreta
Entre paixão de ser e amanhecer
Que a luz da madrugada antes discreta
Pintava em teu olhar um entardecer.

Que mistério, amor, havia então
No elo que atava o coração
Às cores da paisagem que floria?

A luz sobre teu corpo desmaiava
E enquanto de prazer eu me afogava
O fogo da paisagem renascia.

Recife, 21 de dezembro de 2012.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Indivíduo e meio social


Há um desacordo irredutível entre o que somos por dentro, e até por fora, e o modo como a opinião alheia nos aprecia. Ser livre, na medida em que isso é possível, é libertar-se da tirania da opinião que não só nos vê como não somos, mas também nos escraviza à semelhança do que ela vê. Essa subordinação do indivíduo aos ditames da sociedade, ou do meio social, é corriqueira e de ordinário inconsciente, sobretudo num mundo governado pela ilusão da autonomia individual, por clichês publicitários segundo os quais somos livres para ser na vida o que quisermos. A medida da minha liberdade é a medida do meu desejo, eis o que a todo instante reiteram para nos venderem toda a sorte de produto. Lembrando Montaigne, convém não subestimar a medida da nossa cega adesão aos hábitos e convenções sociais. Por isso tantos reiteram impensadamente a ilusão de uma ordem de liberdade que não passa de automatismo induzido pela indústria do consumo.

Durante muito tempo de minha vida dei importância demasiada à opinião do outro, à sua apreciação equívoca, tantas vezes leviana e infundada, e às expectativas com que cercava minhas ações, não raro determinando-as, induzindo-me a fazer não aquilo que mais autenticamente me traduzisse, mas o que convinha à sua compreensão estreita, capricho ou mera rotina. Como se de algum modo assim me comandasse: seja assim simplesmente porque é assim que somos, ou porque se espera que assim sejamos. Foi talvez o excesso de desajuste prematuro dentro de uma comunidade mesquinha, ou a medida de uma excentricidade e estranheza que não escolhi, nem a princípio tive delas consciência, o que me impeliu a buscar vias de fuga e expressão humana orientadas para a realização do indivíduo chamado Fernando da Mota Lima.

Um dos fatos humanos que me persuadem da insuficiência das explicações sociológicas, embora seja eu um profissional desta discutível ciência, a sociologia, é a espantosa diversidade, e imprevisibilidade dos modos como o indivíduo reage às condições do meio. Quando o sociólogo teoriza sobre essa ordem de fatos sociais, invariavelmente sobrepõe o meio ao indivíduo. Isso independe de sua orientação teórica, que no contexto importa apenas para determinar os variáveis graus de subordinação do indivíduo ao meio, ou à sociedade. Admito que esta proposição geral é verdadeira quando aplicada à média humana convencional. Os indivíduos que todavia se distinguem em todas as formas de relação e expressão social distinguem-se precisamente por contrariarem a proposição acima enunciada.

Não me refiro apenas ao indivíduo identificado pela ação heroica ou a excepcionalidade que o diferencia da massa ignara e conformista. Longe de mim a intenção de reivindicar uma concepção sociológica do herói ou do indivíduo extraordinário. Se é fato que ambos ratificam minha tese, não é fato que neles prioritariamente me baseie para sustentá-la. Penso antes em indivíduos comuns, no sentido de que se dissolvem no anonimato das massas. Noutras palavras, não gozam de nenhum tipo de fama ou reconhecimento social que lhes transportem o nome e a identidade para além do círculo em que suas vidas se manifestam. Privados embora de fama, ou qualquer tipo de glória, esses indivíduos existem contrariando com sua existência distintiva o suposto império que o meio sobre eles exerce. Não chegam a constituir uma multidão, fato que por certo representaria uma constante ameaça à ordem convencional da sociedade, mas não são tão minoritários quanto presumem os cultores do indivíduo herói. Posso dizer que conheci vários nos meios e nas circunstâncias mais diferenciadas a até imprevisíveis. A experiência que neles identifico e assimilo não concorre em nenhum sentido sociológico para a elaboração de uma teoria passível de explicar os modos fundamentais da relação indivíduo e sociedade. Seria absurda tamanha pretensão. Meu simples propósito é alertar contra qualquer ambição de determinismo sociológico.

Se o argumento acima esboçado tem alguma consistência, insisto em sustentar que tem, meu ponto de vista em defesa de um certo quinhão de autonomia e liberdade individual funciona como um antídoto para qualquer concepção determinista, para qualquer perspectiva pessimista levada ao extremo da impotência individual em face dos poderes do mundo. Apesar de tudo, apesar antes de tudo do meu próprio ceticismo, nunca duvidei de que o indivíduo pode realizar na vida algum ideal de liberdade que o distinga do conformismo corrente, da adesão resignada à ordem social, à opinião servil que o quer ratificando as expectativas falsamente sólidas do teatro social que representamos.

Diário, Recife, 02 de agosto de 2004.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Tereza da praia

Luciano Oliveira (voz) e Fernando da Mota Lima (voz e violão) cantando Tereza da Praia, de Tom Jobim e Billy Blanco. A gravação, improvisada sem qualquer ensaio prévio, solicita por isso a boa vontade do ouvinte. Agradeço a Mári Ribeiro, autora da gravação. O local foi o apto. dela e de Giulia. Recife, novembro 2012.

domingo, 7 de abril de 2013

Egoísmo


Durante muito tempo subestimei a centralidade do egoísmo na organização biopsíquica do ser humano. Esse é um fato correntemente reprimido na noção que temos do que somos e de como nos relacionamos com o outro, assim como com a realidade em geral. Formado dentro da tradição cristã em cujas raízes pulsa um humanismo sentimental e idealizador da natureza humana, cresci embalado pela crença na minha própria bondade. Por extensão, também na bondade do meu semelhante. Sei que simplifico a representação da natureza humana dentro da tradição cristã, pois não esqueço de que ela convive com uma representação também negativa e falível do ser humano. Medindo-me bem melhor do que de fato era, expressava inconscientemente meu narcisismo, além de um desejo de ilusão que anulava ou coloria a percepção rotineira de nosso egoísmo impregnado de maldade.

Essa representação da natureza humana é patente na nossa idealização da infância, no mito baseado na pureza e inocência da criança. Ora, a observação mais elementar demonstra precisamente o contrário. É impressionante nossa cegueira diante da maldade que tão corriqueira e espontaneamente se manifesta no comportamento da criança. Bastaria observar, por exemplo, o que acontece em qualquer família de filho único quando nasce um segundo, isto é, um competidor do amor e atenção até então absolutos desfrutados pelo primogênito, até então rei ou rainha do lar. Além de observar essa realidade rotineira em muitas famílias depois que lavei os olhos da minha percepção ingênua, tolhida pela necessidade de idealizar a infância, acrescentei a essa matéria empírica relatos de amigas que me esclareceram sobre o egoísmo cruel desfechado contra a irmã que vinha ao mundo para subtrair-lhes a condição de rainha do lar, objeto absoluto do amor dos pais.

Conto uma que vale por muitas. Minha amiga, hoje médica e filha de uma psicanalista, também minha amiga, contou-me esta história exemplar que acabou convertida em brincadeira muitas vezes repetida no nosso convívio prazeroso. Era filha única quando, aos 3 anos, nasceu não apenas uma, mas duas gêmeas. Destronada, começou a hostilizar as irmãs recém-nascidas. Um dia a mãe, ocupada em amamentar as gêmeas, tentava conter seus ciúmes, seu desejo imperioso de amor exclusivo advertindo-a para o fato de que, privadas de amamentação, as gêmeas morreriam. “Ah, é, mãe? Então não amamenta não”.

Isso rendeu-nos bom motivos de gargalhada, um riso então esclarecido pelo egoísmo competitivo que se manifesta já na origem da nossa vida. Mas quantos pais e adultos não continuam testemunhando histórias desse tipo com a inocência cega ou a inconsciência passiva dos que se deliciam pontuando complacentemente: “como minha filha é engraçada, como as crianças são deliciosamente inocentes”. Será isso pura e simples insciência do universo infantil ou sintoma do narcisismo que nos tolhe a percepção realista e desilusória da nossa natureza?
Também a observação de grupos de crianças, do modo como convivem na família, na escola, nas brincadeiras e projeções do seu imaginário infantil, são reveladores da nossa poderosa disposição para o mal já pronunciada na infância. Bertrand Russell foi um filósofo racionalista de extraordinária lucidez. No entanto, só muito tardiamente se apercebeu desses traços do nosso egoísmo votado ao mal, à competição e fantasias de destruição do outro. Já por volta dos 50 anos, fundou com Dora Russell, sua segunda mulher, uma escola pioneira na Inglaterra. O propósito de ambos era instituir uma educação libertária inspirada em modelos educacionais supostamente científicos que marchavam, em síntese, contra a tradição vitoriana asperamente repressiva. Quando no entanto se deu conta de que os “anjinhos” aos quais aspirava converter em seres saudáveis e liberados de padrões repressivos tendentes apenas a produzir o mal eram capazes de misturar alfinetes à sopa dos coleguinhas à hora da refeição, precisou revisar toda sua concepção pedagógica.

Crianças são espontaneamente cruéis. São cruéis entre si, no convívio que travam tecido por brincadeiras de nítido fundo sado-masoquista. O bullying, palavra que designa um fenômeno psicossocial que ingressou no circuito da mídia de forma muito positiva, constitui evidência exemplar das nossas disposições agressivas. O romance O Senhor das Moscas (Lord of the Flies), de William Golding, retrata em clima de antiutopia imaginária o que seria uma sociedade composta por crianças isoladas numa ilha. Esta obra, e sei de muitas outras de sentido semelhante dentro da tradição literária e cinematográfica, desdobra-se no avesso de todas as idealizações da infância nutridas pela tradição religiosa, pedagógica, antes de tudo por nossa natureza narcisista.

É também oportuno mencionar duas teorias que muito concorreram para reforçar nossa idealização da condição humana: o marxismo e o culturalismo que se tornou moeda corrente no discurso sobre o egoísmo e o mal nas nossas relações sociais. Segundo a primeira, de nítido viés historicista, não existe a natureza humana enquanto tal, mas apenas variantes humanas produzidas pelas condições materiais e históricas das relações humanas. É essa concepção que induz Marx, Engels e seus seguidores a projetarem num futuro incerto a sociedade ideal, um ideal de humanidade reconciliada segundo o qual transitaríamos do reino da necessidade para o reino da liberdade. Nesse ideal paradisíaco, transposto do céu para a terra, seriam abolidas as classes sociais e portanto todas as manifestações da opressão e do mal decorrentes da injusta e cruel divisão da humanidade entre senhores e escravos, entre capitalistas e proletários e variantes antagônicas equivalentes. Logo, a representação do mal e da injustiça como constitutivos da nossa condição humana não passaria de metafísica ou justificação ideológica da desigualdade e da opressão de classe.

Quanto à segunda, o culturalismo, postula a cultura como fundamento último da nossa natureza mutável na medida em que mudam as culturas. Seguindo coerentemente esse princípio, todo mal, toda injustiça, tudo que há de negativo no ser humano seria atribuível às condições da cultura. Esse culturalismo, quando progressista, postula a mudança cultural como meio eficaz de transformação positiva das relações humanas; quando conservador, opõe-se veementemente à mudança cultural encarando-a sempre como uma ameaça às constantes humanas, à identidade de um determinado grupo ou sociedade.

O que ambas teorias, a marxista e a culturalista, compartilham é a convicção de que não existem constantes humanas também decorrentes da nossa natureza biológica. Claro que a inversão de ambas, substituídas por uma concepção puramente biológica, incorre no mesmo excesso teórico determinado por um princípio monista ou absoluto. Num extremo teríamos o historicismo econômico-social ou cultural; noutro, o extremismo biológico. Ora, acredito que a verdade não radica nem num extremo nem no outro. A verdade é que nossa natureza humana resulta da articulação complexa entre natureza e cultura. Noutros termos, nem somos determinados pelas condições materiais da nossa existência social, postulado do marxismo, nem pelas condições culturais, postulado do culturalismo, tanto o de corte progressista quanto o conservador. Por fim, também não somos redutíveis à nossa natureza de fundo biológico. A chave de tudo, que todavia não abre porta ideal nenhuma, consiste na complexa interação dos fatores naturais com os culturais. Dentro dessa moldura teórica, acredito que temos alcançado realizar em graus variáveis estados mais ou menos imperfeitos de organização humana. Solução última, sonho de todo utopista, isso não existe.

Seria também preciso frisar que há certa sabedoria no nosso egoísmo, ou pelo menos inconsciente dispositivo de autossobrevivência. Isto é, nosso egoísmo nos poupa do sofrimento decorrente da empatia e simples compaixão diante da miséria corrente do nosso semelhante. Como suportá-la se nossas forças altruístas, se nosso senso de compaixão nos inclinassem ativamente para a miséria alheia? Nosso sofrimento e nossa culpa seriam insuportáveis se verdadeiramente empatizássemos com a dor e o sofrimento que a todos os momentos irrompem à nossa volta. É talvez por isso, e nisso há algo de saudável força de preservação do nosso ego, que de ordinário sofremos apenas diante do sofrimento daqueles que amamos, sejam parentes, amigos, o cãozinho de estimação...
Novamente, a formulação acima não deve ser compreendida em termos absolutos. Embora movidos por nosso egoísmo espontâneo tendamos bem mais para o polo da sobrevivência e do interesse enraizado nas nossas disposições egoístas, quantos exemplos extraordinários e desconcertantes não temos de sacrifício, renúncia e empatia com a dor e a necessidade do outro humano? Que medida humana poderia afinal esgotar nossa humanidade inexplicável?

Salvador, 7 de fevereiro de 2011.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O Vizinho Aposentado


Má idade é o que cotidianamente observo na varanda frontal. A qualquer hora do dia meu olhar tropeça sempre, por vezes já inconscientemente, na figura do senhor grisalho. Está sempre sentado absorto na televisão. Poucas vezes o vi de frente, poucas vezes vem à borda da varanda e lança um olhar fugidio sobre a rua, a fachada do meu prédio, minha varanda. À diferença de Alberto Caeiro, um dos mais celebrados heterônimos de Fernando Pessoa, tudo que prende o meu olhar atua automaticamente sobre minha imaginação. Poeta radicalmente sensacionista, Caeiro reitera sempre a soberania dos sentidos. Mais precisamente, a soberania da visão. Caeiro comporta-se na poesia como se nada existisse além do seu olhar. Portanto, nada importa além dele, do olhar, porque nada além dele existe. Seu ponto de vista é poeticamente coerente e sabe ele coerentemente extrair poesia da mais alta qualidade a partir da angulação filosófica em que se situa.
Eu porém, eu que não sou Caeiro nem Fernando Pessoa, e procuro acomodar-me ao alcance pedestre de minha imaginação, não posso mirar meu vizinho, sua rotina passiva e sem variação, sem que minha imaginação se desate. Na verdade, o vizinho, enquanto mero objeto de percepção, não tem para mim a menor importância. Ele importa e passa a compor significativamente a paisagem do meu cotidiano na medida em que refaço sua neutralidade, a figuração opaca de sua existência na minha imaginação. Num certo sentido, torna-se ele criação do que imagino.
Mas o ser que invento, ou suponho existir nos modos em que o imagino, não é um puro produto de minha imaginação arbitrária. Quero dizer que o imagino a partir de certos sinais, diria até evidências. Assim, vejo-o repetir-se sem variação todos os dias, todas as horas do dia, e então o imagino um homem recém-aposentado. Agora mesmo, no momento em que digito esta anotação, volto-me para a sua varanda e através da janela vejo-o imóvel, passivamente fixado nas imagens da televisão. Tudo que figuro para além de minha percepção visual, bem entendido, existe apenas enquanto criação imaginária, não enquanto dado factual ou sensível. Voltando a Alberto Caeiro, estamos ainda aqui em perspectivas opostas, já que para ele tudo que existe é o que seus sentidos – a visão antes de tudo, reitero – apreendem. Fosse eu Alberto Caeiro, o que para mim existiria seria o quadro visual que descrevo: Um homem grisalho sentado o dia inteiro diante da televisão. Isso apenas e nada além disso.
Mas dizia imaginá-lo um recém-aposentado. Esse homem à minha frente decerto trabalhou boa parte de sua vida, ou pelo menos ocupou-se com algo que lhe rendeu meios de sobrevivência segura. Agora, já entre os 60 e 65 anos de idade, retirou-se do mundo do trabalho, ou algo equivalente, e se recolheu à rotina passiva da poltrona diante da televisão. Se a tão pouco confinou sua velhice, se passivamente deixou-se reduzir a essa sombra sentada, então o horizonte de toda a vida que antes viveu me parece haver sido bem pobre. Não acredito que um homem enriquecido pela imaginação literária, ampliado na sua percepção do mundo através de símbolos impressos, também audiovisuais, envelheça de forma tão passivamente triste. Um homem nutrido por fontes de vida moventes para além do trabalho que o confina, notadamente se não é um trabalho sem variação, apenas tolerado como fonte necessária de subsistência, jamais se esgota enquanto ser produtivo, como ser restrito ou condenado ao trabalho. É por isso que deploro essa massa sombria de seres produtivos gestada pelo trabalho alienante.
Antes, bem antes de ingressar no mercado de trabalho, meu vizinho foi mentalmente disciplinado pela ideologia burguesa para perder seus dias na poltrona onde melancolicamente compõe a paisagem de minha rua. Seu disciplinamento, sua rendição passiva às engrenagens dominantes neste mundo, articula-se lá longe, bem longe, ainda na primeira infância. É lá que lhe moldam a consciência para aprender que amar é dar e receber presente; que estudamos e lemos visando tão somente ideais de realização profissional e ascensão social; que a cultura intelectual importa apenas na medida em que serve a fins utilitários; que a arte, assim como o que entendemos como formação humanista, é puro passatempo, ou desperdício de desocupado. As forças onipresentes do mercado desde então atuam para reduzir seu valor a moeda e objeto de troca.
Admito estar traçando acima apenas uma imagem caricatural do capitalismo de consumo. Se esboço uma representação tão grosseira da nossa socialização pelas forças do mercado, faço-o tão-só para assinalar o roteiro insensível traçado entre a inserção da maioria no mundo e esse desfecho melancólico do aposentado atado à poltrona diante da televisão. Como as forças do mercado afortunadamente não funcionam regidas por nenhuma fatalidade determinista, há sempre uma minoria indisciplinável blefando contra as normas do jogo. Em algum ponto imprevisível do percurso essa minoria começa a emitir tons dissonantes, podendo até cantar fora do tom. Contra as pressões do interesse pragmático, traduzível em moeda corrente e ganância cumulativa, ela escolhe, por exemplo, seguir o rastro iluminado e iluminador da poesia. Às vezes um vago sopro na tarde, outras um tom azul entre as nuvens, a poesia assim se revela e nela, na sua obscura corrente, a minoria se salva. Então aprende que não precisa vender sua alma no mercado para sobreviver dentro da ordem imperativa da necessidade, muito menos vender-se para desfrutar dos privilégios assegurados pelos administradores do poder.
Portanto, são muitos os caminhos da dissonância, do canto fora do tom, do desvio que nos aparta do rebanho disciplinado. O caminho pode ser estético, religioso, político ou simplesmente humano, compreendido este termo no sentido da variedade infinita dos modos humanos de ser. O que sei é que os que o seguem não estão condenados a percorrer a estrada que vai dar no nada a que de minha varanda, a que de minha janela cotidianamente assisto. Ainda bem que nunca serei lido por Alberto Caeiro, pois bem posso imaginar o desprezo com que fecharia minha janela ou dinamitaria minha varanda farto diante de minhas suposições delirantes. Para Caeiro, reduzido ao horizonte da pura realidade sensível, tudo que há é o homem solitário na sua poltrona diante da televisão. Pobre de quem apreendesse no mundo tão somente o que é sensivelmente apreensível. Mas essa é uma ordem de pobreza apenas atribuível a Alberto Caeiro, variação heteronímica de Fernando Pessoa. Se não existisse a imaginação poética deste, sequer existiria um nome que atendesse por Alberto Caeiro.

10 de setembro de 2008.