domingo, 7 de abril de 2013

Egoísmo


Durante muito tempo subestimei a centralidade do egoísmo na organização biopsíquica do ser humano. Esse é um fato correntemente reprimido na noção que temos do que somos e de como nos relacionamos com o outro, assim como com a realidade em geral. Formado dentro da tradição cristã em cujas raízes pulsa um humanismo sentimental e idealizador da natureza humana, cresci embalado pela crença na minha própria bondade. Por extensão, também na bondade do meu semelhante. Sei que simplifico a representação da natureza humana dentro da tradição cristã, pois não esqueço de que ela convive com uma representação também negativa e falível do ser humano. Medindo-me bem melhor do que de fato era, expressava inconscientemente meu narcisismo, além de um desejo de ilusão que anulava ou coloria a percepção rotineira de nosso egoísmo impregnado de maldade.

Essa representação da natureza humana é patente na nossa idealização da infância, no mito baseado na pureza e inocência da criança. Ora, a observação mais elementar demonstra precisamente o contrário. É impressionante nossa cegueira diante da maldade que tão corriqueira e espontaneamente se manifesta no comportamento da criança. Bastaria observar, por exemplo, o que acontece em qualquer família de filho único quando nasce um segundo, isto é, um competidor do amor e atenção até então absolutos desfrutados pelo primogênito, até então rei ou rainha do lar. Além de observar essa realidade rotineira em muitas famílias depois que lavei os olhos da minha percepção ingênua, tolhida pela necessidade de idealizar a infância, acrescentei a essa matéria empírica relatos de amigas que me esclareceram sobre o egoísmo cruel desfechado contra a irmã que vinha ao mundo para subtrair-lhes a condição de rainha do lar, objeto absoluto do amor dos pais.

Conto uma que vale por muitas. Minha amiga, hoje médica e filha de uma psicanalista, também minha amiga, contou-me esta história exemplar que acabou convertida em brincadeira muitas vezes repetida no nosso convívio prazeroso. Era filha única quando, aos 3 anos, nasceu não apenas uma, mas duas gêmeas. Destronada, começou a hostilizar as irmãs recém-nascidas. Um dia a mãe, ocupada em amamentar as gêmeas, tentava conter seus ciúmes, seu desejo imperioso de amor exclusivo advertindo-a para o fato de que, privadas de amamentação, as gêmeas morreriam. “Ah, é, mãe? Então não amamenta não”.

Isso rendeu-nos bom motivos de gargalhada, um riso então esclarecido pelo egoísmo competitivo que se manifesta já na origem da nossa vida. Mas quantos pais e adultos não continuam testemunhando histórias desse tipo com a inocência cega ou a inconsciência passiva dos que se deliciam pontuando complacentemente: “como minha filha é engraçada, como as crianças são deliciosamente inocentes”. Será isso pura e simples insciência do universo infantil ou sintoma do narcisismo que nos tolhe a percepção realista e desilusória da nossa natureza?
Também a observação de grupos de crianças, do modo como convivem na família, na escola, nas brincadeiras e projeções do seu imaginário infantil, são reveladores da nossa poderosa disposição para o mal já pronunciada na infância. Bertrand Russell foi um filósofo racionalista de extraordinária lucidez. No entanto, só muito tardiamente se apercebeu desses traços do nosso egoísmo votado ao mal, à competição e fantasias de destruição do outro. Já por volta dos 50 anos, fundou com Dora Russell, sua segunda mulher, uma escola pioneira na Inglaterra. O propósito de ambos era instituir uma educação libertária inspirada em modelos educacionais supostamente científicos que marchavam, em síntese, contra a tradição vitoriana asperamente repressiva. Quando no entanto se deu conta de que os “anjinhos” aos quais aspirava converter em seres saudáveis e liberados de padrões repressivos tendentes apenas a produzir o mal eram capazes de misturar alfinetes à sopa dos coleguinhas à hora da refeição, precisou revisar toda sua concepção pedagógica.

Crianças são espontaneamente cruéis. São cruéis entre si, no convívio que travam tecido por brincadeiras de nítido fundo sado-masoquista. O bullying, palavra que designa um fenômeno psicossocial que ingressou no circuito da mídia de forma muito positiva, constitui evidência exemplar das nossas disposições agressivas. O romance O Senhor das Moscas (Lord of the Flies), de William Golding, retrata em clima de antiutopia imaginária o que seria uma sociedade composta por crianças isoladas numa ilha. Esta obra, e sei de muitas outras de sentido semelhante dentro da tradição literária e cinematográfica, desdobra-se no avesso de todas as idealizações da infância nutridas pela tradição religiosa, pedagógica, antes de tudo por nossa natureza narcisista.

É também oportuno mencionar duas teorias que muito concorreram para reforçar nossa idealização da condição humana: o marxismo e o culturalismo que se tornou moeda corrente no discurso sobre o egoísmo e o mal nas nossas relações sociais. Segundo a primeira, de nítido viés historicista, não existe a natureza humana enquanto tal, mas apenas variantes humanas produzidas pelas condições materiais e históricas das relações humanas. É essa concepção que induz Marx, Engels e seus seguidores a projetarem num futuro incerto a sociedade ideal, um ideal de humanidade reconciliada segundo o qual transitaríamos do reino da necessidade para o reino da liberdade. Nesse ideal paradisíaco, transposto do céu para a terra, seriam abolidas as classes sociais e portanto todas as manifestações da opressão e do mal decorrentes da injusta e cruel divisão da humanidade entre senhores e escravos, entre capitalistas e proletários e variantes antagônicas equivalentes. Logo, a representação do mal e da injustiça como constitutivos da nossa condição humana não passaria de metafísica ou justificação ideológica da desigualdade e da opressão de classe.

Quanto à segunda, o culturalismo, postula a cultura como fundamento último da nossa natureza mutável na medida em que mudam as culturas. Seguindo coerentemente esse princípio, todo mal, toda injustiça, tudo que há de negativo no ser humano seria atribuível às condições da cultura. Esse culturalismo, quando progressista, postula a mudança cultural como meio eficaz de transformação positiva das relações humanas; quando conservador, opõe-se veementemente à mudança cultural encarando-a sempre como uma ameaça às constantes humanas, à identidade de um determinado grupo ou sociedade.

O que ambas teorias, a marxista e a culturalista, compartilham é a convicção de que não existem constantes humanas também decorrentes da nossa natureza biológica. Claro que a inversão de ambas, substituídas por uma concepção puramente biológica, incorre no mesmo excesso teórico determinado por um princípio monista ou absoluto. Num extremo teríamos o historicismo econômico-social ou cultural; noutro, o extremismo biológico. Ora, acredito que a verdade não radica nem num extremo nem no outro. A verdade é que nossa natureza humana resulta da articulação complexa entre natureza e cultura. Noutros termos, nem somos determinados pelas condições materiais da nossa existência social, postulado do marxismo, nem pelas condições culturais, postulado do culturalismo, tanto o de corte progressista quanto o conservador. Por fim, também não somos redutíveis à nossa natureza de fundo biológico. A chave de tudo, que todavia não abre porta ideal nenhuma, consiste na complexa interação dos fatores naturais com os culturais. Dentro dessa moldura teórica, acredito que temos alcançado realizar em graus variáveis estados mais ou menos imperfeitos de organização humana. Solução última, sonho de todo utopista, isso não existe.

Seria também preciso frisar que há certa sabedoria no nosso egoísmo, ou pelo menos inconsciente dispositivo de autossobrevivência. Isto é, nosso egoísmo nos poupa do sofrimento decorrente da empatia e simples compaixão diante da miséria corrente do nosso semelhante. Como suportá-la se nossas forças altruístas, se nosso senso de compaixão nos inclinassem ativamente para a miséria alheia? Nosso sofrimento e nossa culpa seriam insuportáveis se verdadeiramente empatizássemos com a dor e o sofrimento que a todos os momentos irrompem à nossa volta. É talvez por isso, e nisso há algo de saudável força de preservação do nosso ego, que de ordinário sofremos apenas diante do sofrimento daqueles que amamos, sejam parentes, amigos, o cãozinho de estimação...
Novamente, a formulação acima não deve ser compreendida em termos absolutos. Embora movidos por nosso egoísmo espontâneo tendamos bem mais para o polo da sobrevivência e do interesse enraizado nas nossas disposições egoístas, quantos exemplos extraordinários e desconcertantes não temos de sacrifício, renúncia e empatia com a dor e a necessidade do outro humano? Que medida humana poderia afinal esgotar nossa humanidade inexplicável?

Salvador, 7 de fevereiro de 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário