quarta-feira, 3 de abril de 2013
O Vizinho Aposentado
Má idade é o que cotidianamente observo na varanda frontal. A qualquer hora do dia meu olhar tropeça sempre, por vezes já inconscientemente, na figura do senhor grisalho. Está sempre sentado absorto na televisão. Poucas vezes o vi de frente, poucas vezes vem à borda da varanda e lança um olhar fugidio sobre a rua, a fachada do meu prédio, minha varanda. À diferença de Alberto Caeiro, um dos mais celebrados heterônimos de Fernando Pessoa, tudo que prende o meu olhar atua automaticamente sobre minha imaginação. Poeta radicalmente sensacionista, Caeiro reitera sempre a soberania dos sentidos. Mais precisamente, a soberania da visão. Caeiro comporta-se na poesia como se nada existisse além do seu olhar. Portanto, nada importa além dele, do olhar, porque nada além dele existe. Seu ponto de vista é poeticamente coerente e sabe ele coerentemente extrair poesia da mais alta qualidade a partir da angulação filosófica em que se situa.
Eu porém, eu que não sou Caeiro nem Fernando Pessoa, e procuro acomodar-me ao alcance pedestre de minha imaginação, não posso mirar meu vizinho, sua rotina passiva e sem variação, sem que minha imaginação se desate. Na verdade, o vizinho, enquanto mero objeto de percepção, não tem para mim a menor importância. Ele importa e passa a compor significativamente a paisagem do meu cotidiano na medida em que refaço sua neutralidade, a figuração opaca de sua existência na minha imaginação. Num certo sentido, torna-se ele criação do que imagino.
Mas o ser que invento, ou suponho existir nos modos em que o imagino, não é um puro produto de minha imaginação arbitrária. Quero dizer que o imagino a partir de certos sinais, diria até evidências. Assim, vejo-o repetir-se sem variação todos os dias, todas as horas do dia, e então o imagino um homem recém-aposentado. Agora mesmo, no momento em que digito esta anotação, volto-me para a sua varanda e através da janela vejo-o imóvel, passivamente fixado nas imagens da televisão. Tudo que figuro para além de minha percepção visual, bem entendido, existe apenas enquanto criação imaginária, não enquanto dado factual ou sensível. Voltando a Alberto Caeiro, estamos ainda aqui em perspectivas opostas, já que para ele tudo que existe é o que seus sentidos – a visão antes de tudo, reitero – apreendem. Fosse eu Alberto Caeiro, o que para mim existiria seria o quadro visual que descrevo: Um homem grisalho sentado o dia inteiro diante da televisão. Isso apenas e nada além disso.
Mas dizia imaginá-lo um recém-aposentado. Esse homem à minha frente decerto trabalhou boa parte de sua vida, ou pelo menos ocupou-se com algo que lhe rendeu meios de sobrevivência segura. Agora, já entre os 60 e 65 anos de idade, retirou-se do mundo do trabalho, ou algo equivalente, e se recolheu à rotina passiva da poltrona diante da televisão. Se a tão pouco confinou sua velhice, se passivamente deixou-se reduzir a essa sombra sentada, então o horizonte de toda a vida que antes viveu me parece haver sido bem pobre. Não acredito que um homem enriquecido pela imaginação literária, ampliado na sua percepção do mundo através de símbolos impressos, também audiovisuais, envelheça de forma tão passivamente triste. Um homem nutrido por fontes de vida moventes para além do trabalho que o confina, notadamente se não é um trabalho sem variação, apenas tolerado como fonte necessária de subsistência, jamais se esgota enquanto ser produtivo, como ser restrito ou condenado ao trabalho. É por isso que deploro essa massa sombria de seres produtivos gestada pelo trabalho alienante.
Antes, bem antes de ingressar no mercado de trabalho, meu vizinho foi mentalmente disciplinado pela ideologia burguesa para perder seus dias na poltrona onde melancolicamente compõe a paisagem de minha rua. Seu disciplinamento, sua rendição passiva às engrenagens dominantes neste mundo, articula-se lá longe, bem longe, ainda na primeira infância. É lá que lhe moldam a consciência para aprender que amar é dar e receber presente; que estudamos e lemos visando tão somente ideais de realização profissional e ascensão social; que a cultura intelectual importa apenas na medida em que serve a fins utilitários; que a arte, assim como o que entendemos como formação humanista, é puro passatempo, ou desperdício de desocupado. As forças onipresentes do mercado desde então atuam para reduzir seu valor a moeda e objeto de troca.
Admito estar traçando acima apenas uma imagem caricatural do capitalismo de consumo. Se esboço uma representação tão grosseira da nossa socialização pelas forças do mercado, faço-o tão-só para assinalar o roteiro insensível traçado entre a inserção da maioria no mundo e esse desfecho melancólico do aposentado atado à poltrona diante da televisão. Como as forças do mercado afortunadamente não funcionam regidas por nenhuma fatalidade determinista, há sempre uma minoria indisciplinável blefando contra as normas do jogo. Em algum ponto imprevisível do percurso essa minoria começa a emitir tons dissonantes, podendo até cantar fora do tom. Contra as pressões do interesse pragmático, traduzível em moeda corrente e ganância cumulativa, ela escolhe, por exemplo, seguir o rastro iluminado e iluminador da poesia. Às vezes um vago sopro na tarde, outras um tom azul entre as nuvens, a poesia assim se revela e nela, na sua obscura corrente, a minoria se salva. Então aprende que não precisa vender sua alma no mercado para sobreviver dentro da ordem imperativa da necessidade, muito menos vender-se para desfrutar dos privilégios assegurados pelos administradores do poder.
Portanto, são muitos os caminhos da dissonância, do canto fora do tom, do desvio que nos aparta do rebanho disciplinado. O caminho pode ser estético, religioso, político ou simplesmente humano, compreendido este termo no sentido da variedade infinita dos modos humanos de ser. O que sei é que os que o seguem não estão condenados a percorrer a estrada que vai dar no nada a que de minha varanda, a que de minha janela cotidianamente assisto. Ainda bem que nunca serei lido por Alberto Caeiro, pois bem posso imaginar o desprezo com que fecharia minha janela ou dinamitaria minha varanda farto diante de minhas suposições delirantes. Para Caeiro, reduzido ao horizonte da pura realidade sensível, tudo que há é o homem solitário na sua poltrona diante da televisão. Pobre de quem apreendesse no mundo tão somente o que é sensivelmente apreensível. Mas essa é uma ordem de pobreza apenas atribuível a Alberto Caeiro, variação heteronímica de Fernando Pessoa. Se não existisse a imaginação poética deste, sequer existiria um nome que atendesse por Alberto Caeiro.
10 de setembro de 2008.
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