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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cultura, identidade e globalização


Cultura Brasileira, Identidade Cultural e Globalização

Chego ao texto conclusivo da série de textos relativos à cultura brasileira e no entanto pouco considerei a situação presente da cultura brasileira e sua relação muito complexa com a questão da identidade cultural e a da globalização. Como penso que seria uma omissão no mínimo criticável, tentarei adiante considerar alguns aspectos dessas relações complexas sem nenhuma pretensão de resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Como o leitor decerto notará, os textos precedentes concentram-se no estudo das origens e da formação da cultura brasileira. Dado que elaborei o plano do conjunto de artigos relativos à cultura brasileira conferindo prioridade a conceitos básicos e à forma como alguns dos grandes representantes da tradição do pensamento social brasileiro os abordaram, suponho haver coerência no conjunto dos textos postados. Além disso, caberia também adiantar que este é um artigo de composição livre, inspirado nas minhas observações e nas muitas leituras que fiz sem anotações ou a intenção de escrever sobre o assunto.

Além do que já expus sobre a cultura brasileira, importaria acrescentar que o conceito é muito discutível, assim como os dois outros que dão título a este texto. As pessoas tendem a falar de cultura brasileira, mesmo pessoas muito educadas e até especialistas, como se o conceito indicasse uma realidade uniforme ou pelo menos coerente. Na verdade, isso está bem longe da verdade. Toda cultura, sobretudo as culturas do nosso tipo, estão expostas a variações no tempo e no espaço, além de se diferenciarem internamente. Há pouco propus a duas turmas minhas da Universidade Federal de Pernambuco que descrevessem uma viagem importante na vida de cada membro das turmas relacionando o local visitado (cidade, vila ou país) com características culturais de Recife. Para minha surpresa, os alunos me forneceram nas descrições feitas um rico material etnográfico, isto é, relativo à descrição de costumes e valores culturais observados nas viagens que fizeram. A maioria das descrições era relativa a cidades do interior de Pernambuco. Um dos aspectos mais interessantes dos trabalhos consistia precisamente na constatação da grande variedade de costumes, hábitos de vida e valores culturais relativos à religião, culinária, vestuário, educação, formas de entretenimento, cenas de rua etc.

Mencionei o exemplo acima para sugerir o quanto a cultura recifense, e mais amplamente pernambucana, contém de diversidade. Essa diversidade depende de muitos fatores, entre eles os de classe, espaço, tempo, modos de tradição... Tudo isso importa para sugerir o quanto é difícil fixar conceitos como os que dão título a este texto. No entanto, falamos e ouvimos correntemente falarem de cultura brasileira, cultura pernambucana, cultura nordestina, como se fossem realidades facilmente apreensíveis e consensualmente aceitas. Isso não é verdade nem tenho a pretensão de apresentar a verdade sobre esses assuntos. Por isso afirmei já no parágrafo inicial que meu objetivo não é resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Meu objetivo principal é propor claramente muitas dessas questões e assim induzir o leitor a refletir sobre elas, considerar respostas possíveis, procurar estudar e compreender melhor o que não tem respostas definitivas e absolutas.

Na década de 1970, como consequência da instituição dos programas de pós-graduação em diversas universidades brasileiras, surgiram várias obras nas quais os autores se propunham apresentar análises ideológicas da realidade social brasileira e de muitas das obras que aqui tenho estudado ou mencionado. O livro que provavelmente alcançou mais repercussão dentro dessa corrente foi o do historiador Carlos Guilherme Mota: Ideologia da Cultura Brasileira. Um dos principais objetivos do autor é exatamente questionar o conceito de cultura brasileira. Embora seja pouco preciso na abordagem deste assunto, e de modo algum forneça ao leitor uma resposta satisfatória, seu objetivo principal é desmontar esse conceito que no seu entendimento não passa de uma construção ideológica. Tentando exprimir isso de forma mais clara, ele procura demonstrar que o conceito de cultura brasileira é uma representação criada por certos intelectuais ligados às classes dominantes cujos interesses moldam a realidade deformada do conceito.
Criticando antes de tudo Gilberto Freyre, em quem identifica antes de tudo o grande ideólogo das oligarquias tradicionais e decadentes do Nordeste, Mota é incapaz de reconhecer ou admitir que uma obra como Casa-Grande & Senzala, por exemplo, está muito além da expressão de interesses de classe e poder, muito além de ser uma mera projeção ideológica dos interesses parciais da classe social à qual Gilberto Freyre pertence, assim como outros explicadores do Brasil estudados no livro.

A relação entre realidade social e ideologia é muito complexa. Além de não ser a questão mais importante deste artigo, não tenho também uma teoria definitiva sobre ela, nem sei de ninguém que tenha proposto uma teoria universalmente aceita. Minha intenção ao mencionar o livro de Carlos Guilherme Mota foi apenas assinalar uma corrente de estudos existente nessa área, além de novamente explicitar a complexidade dos assuntos que estou considerando. Noutras palavras, meu alvo é a cultura brasileira. Falo de cultura brasileira como algo que efetivamos existe, mas me parece impossível determinar exatamente o que seja esse objeto. Por isso observei noutros artigos aqui postados sobre cultura minha convicção de que o conceito de cultura brasileira, assim como o de identidade cultural, é uma construção ideal, um conceito que compreende aspectos seletivos da realidade dependentes da perspectiva do autor que considera o problema.
Mencionei acima a grande diversidade da cultura pernambucana que constatei ao ler os trabalhos de duas turmas da Universidade Federal de Pernambuco. Observei como essa surpreendente diversidade se opõe à noção corrente do conceito de cultura pernambucana, que representa este objeto, a cultura pernambucana, como se fosse algo uniforme e coerente, algo facilmente apreensível pela observação e também pelo conceito. É certo que agora se fala muito em diversidade cultural, a começar pela própria secretaria de governo que se chama, aliás, Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. A mídia, mais do que essa secretaria e a propaganda oficial, encarregou-se de difundir essa noção que virou portanto moda ou lugar comum. Agora todo mundo fala em diversidade cultural, em carnaval multicultural e expressões afins. Isso parece sugerir que somos todos muito conscientes e tolerantes com relação à grande diversidade da nossa cultura. No entanto, não encontramos nenhuma tolerância nos que defendem ardentemente uma concepção regionalista da cultura.

Já registrei noutros textos aqui postados o exemplo de Ariano Suassuna, talvez o melhor que se possa considerar. Afinal, além de ser um grande escritor e intelectual de imenso prestígio, ele é o mais radical defensor dos valores regionais da cultura, o grande ideólogo e porta-voz da cultura nordestina. Mais exatamente, ele defende um tipo de regionalismo conservador, preso a raízes ibéricas da nossa cultura conservadas em áreas do sertão muito pobres e por isso mantidas à margem da cultura típica do mundo moderno. É difícil encontrar nas atitudes públicas e pronunciamentos de Ariano Suassuna o espírito de tolerância e diversidade corrente nos lugares comuns da propaganda oficial, nos clipes publicitários, no discurso da mídia. Ele se pronuncia nitidamente contra tudo que é expressão da cultura de massas, tudo que é expressão da cultura contemporânea produzida e veiculada pela tecnologia, pelo capitalismo de consumo, pelas forças da globalização econômica e cultural. Indico sumariamente este exemplo apenas com a intenção de sugerir a complexidade das questões concernentes a este artigo: o conceito de cultura, o de identidade cultural, o de globalização.

Se passamos à consideração do outro conceito – o de identidade cultural, já estudado no artigo referente ao modernismo, ao regionalismo e à identidade cultural – esbarramos no mesmo tipo de dificuldade. Falamos correntemente de identidade na mídia e na propaganda oficial como se estivéssemos falando de um conceito claro, uniforme e de fácil compreensão. Se no entanto começamos a analisar alguns fatos relacionados ao conceito, logo nos deparamos com grandes dificuldades. Se nossa cultura é evidentemente marcada por sua grande diversidade de valores e práticas, como determinar uma identidade uniforme, ou pelo menos objetivamente apreensível? Diante de dificuldades dessa ordem, volto a afirmar minha convicção de que esses conceitos são construções ideais, isto é, não correspondem a nenhuma realidade objetiva, a nenhuma coisa que possamos precisamente determinar no âmbito da realidade observada.

É claro que podemos indicar com segurança alguns traços gerais da nossa cultura – da pernambucana ou mais amplamente da brasileira – que são compartilhados por todos ou pelo menos pela maioria. É o caso, por exemplo, da língua. Este é um traço cultural fundamental que todos compartilhamos, isto é, todos falamos a língua portuguesa. Mas mesmo esta é extremamente diferenciada nas suas formas de expressão que se manifestam no uso que dela fazemos. Quero dizer, a língua que identifica todos os brasileiros varia de acordo com a classe social, a região, padrões de educação etc. Logo, até esse valor compartilhado por todos os brasileiros está sujeito a variações do tipo que acabo de indicar. Se considerarmos o caso da religião, as variações e até mesmo as divergências e conflitos de crença e valor são ainda maiores. Bastaria pensarmos numa questão polêmica como a do aborto para observarmos a grande variedade de pontos de vista de diferentes tipos de brasileiros. Poderia acrescentar muitos outros exemplos, uma infinidade deles, para sugerir o quanto é complexa essa noção de identidade cultural, o quanto ela supõe tanto valores afins e compartilhados quanto valores conflitantes e inconciliáveis. O que podemos em suma observar é que felizmente prevalece na organização da sociedade uma situação de consenso sem a qual a sociedade não se sustentaria, isto é, nossos modos correntes de convívio e interação não se sustentariam.

Restaria por fim tecer algumas considerações gerais sobre a globalização. Para começar, a própria periodização do conceito é muito discutível. Há estudiosos que datam o processo de globalização a partir dos grandes descobrimentos, em particular do descobrimento da América. Este fato histórico representou, entre outras coisas, a expansão do capitalismo europeu para as Américas, assim como para outras partes do mundo. No que nos interessa, transportou para o mundo onde vivemos o capitalismo, a religião, a ciência e a técnica então desenvolvidas pelos portugueses. Mais do que isso, trouxeram os conquistadores da América e do Brasil todo um complexo de expressões culturais de procedência europeia que se chocaram mas também se mesclaram com valores culturais nativos produzindo a partir daí uma cultura nova. Advirto o leitor para o fato de que já considerei essa questão nas suas linhas gerais no artigo relativo à cultura brasileira e suas matrizes. Outros estudiosos, no entanto, datam o processo de globalização a partir do século 18, tendo como marcos o Iluminismo, a Revolução Industrial, originária da Inglaterra, e a Revolução Francesa. De fato, são marcos históricos fundamentais para a fundação do mundo moderno, em particular do que hoje correntemente designamos como globalização. Não vou explorar essa questão, até porque não tenho a competência do historiador e do estudioso da história econômica e social para melhor esclarecer os problemas que ela envolve. O que objetivo ressaltar é apenas a complexidade do conceito de globalização, que já se manifesta na sua periodização.

O fato talvez mais destacável, quando consideramos o problema da globalização, consiste na sua realidade objetiva. Quero dizer, noutras palavras, que ela é um fato. Em graus variáveis, a globalização está presente em todo o mundo. Está presente no Recife, assim como em Pesqueira, Londrina, Ouro Preto, nas praias distantes dos grandes centros urbanos, nas cidades e vilas remotas dos sertões e agrestes, na China, no continente africano... Está presente nos polos mais avançados do capitalismo paulista, assim como na floresta amazônica. O que varia é o grau de manifestação dessas forças globalizadoras. A ciência e a técnica, ou a chamada civilização técnica, e a revolução comunicacional que liga em tempo real o mundo inteiro são provavelmente as expressões mais fortes disso que designamos como globalização. Este, sabemos, é um fato histórico sem precedente. Como tal, ele mudou de forma profunda a realidade social e nossas formas de relacionamento. A simples existência de um curso de letras à distância, como este que me associa a alunos que nunca encontrei nem provavelmente encontrarei, constitui mais uma evidência do que acabo de afirmar.

Durante milênios os seres humanos se comunicaram diretamente, tendo a proximidade física ou espacial como fundamento da interação social. Depois das invenções tecnológicas que hoje viabilizam os contatos à distância, ou as relações virtuais, houve uma transformação radical nos nossos modos de relação humana. É provável que hoje a maioria de nós, habitantes do mundo urbano familiarizados com a televisão e a internet, mantenha contatos antes de tudo virtuais. Essa nova realidade provocou mudanças culturais e produziu novas formas de interação social que não posso infelizmente considerar de forma mais detida numa explanação geral desse desconcertante mundo novo. Além do alcance confessadamente modesto deste artigo, não disponho de conhecimentos para explorar a fundo as questões culturais implicadas nesse processo que chamamos de globalização. Por isso quase que me limitei a assinalar sua realidade objetiva, além de ressaltar sua complexidade, isto é, a própria complexidade do conceito. Reiterando o que afirmei no início, e agora concluindo, meu propósito principal foi acentuar a complexidade dos conceitos relativos a este texto. Foi ainda explicitar problemas, torná-los mais evidentes com a intenção de induzir o leitor a refletir melhor sobre a complexidade aqui indicada. Portanto, este texto é antes um texto relativo à explicitação de problemas e reflexões do que um texto de respostas e soluções fáceis.

Recife, junho de 2011.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Nacionalismo, Futebol e Identidade Cultural


Como sabem os estudiosos da nossa história política e cultural recente, “Um dia na vida do Brasilino”, de Paulo Guilherme Martins, é uma fábula nacionalista publicada no outono de 1961. É assim que o próprio autor data muito anticonvencionalmente seu libreto. O texto está agora disponível na internet, como quase tudo. Passou a circular nela como edição comemorativa dos 41 anos do seu lançamento. Dado que retorna inalterado, é razoável supor que Martins se mantenha fiel à mesma ideologia, que a subscreva com a mesma convicção com que a escreveu no outono de 1961. O sentido ideológico da fábula é de uma transparência meridiana: o cotidiano do brasileiro, simbolizado na figura de Brasilino, é atravessado do primeiro ao último minuto pela dominação onipresente do imperialismo econômico e cultural. O processo de acelerada globalização disparado a partir de 1964, ano em que os militares impuseram às forças de esquerda uma derrota devastadora, tornou no presente o mote do nacionalismo e anti-imperialismo de esquerda inteiramente anacrônico. No entanto, a ideologia sobrevive aparentemente intocada.

Figura de mil faces, tal a variedade camaleônica com que se amolda a todos os grupos políticos, econômicos e culturais que a adotam, a ideologia nacionalista goza de excelente saúde repontando no discurso exaltado dos que defendem nossa particularidade lingüística, nossa integridade culinária, bastaria lembrar a hilariante apologia da broa de milho feita por um político de esquerda vindo do exílio, as políticas estatizantes como linha de resistência à dominação econômica imposta pelos Estados Unidos, nossa amada e ameaçada identidade cultural. Não se sabe bem o que seja, nossa identidade cultural, mas o fato é que todos os dias alguém aparece na mídia para defendê-la e não raro salvá-la. É tão viva e vigilante que ocupa lugar de destaque no seio da nossa política cultural dispondo de secretaria própria no Ministério da Cultura: a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural. O título soa um tanto paradoxal. Se celebramos a diversidade cultural, se o argumento da miscigenação cultural e racial tornou-se hegemônico na consciência brasileira, graças antes de tudo à obra admirável de Gilberto Freyre, como explicar a resistência imposta ao livre contato entre culturas em plena era da globalização? Como explicar a instituição de uma secretaria destinada a velar pela nossa identidade, além de a estimular com ações políticas concretas? Como explicar que até entre nós, entre brasileiros de uma região comum, acendam-se os ânimos de pernambucanos contra a invasão do carnaval baiano, que nos levantemos contra os sulistas, os baianos também, e portanto invalidemos um suposto princípio de unidade dentro da identidade nacional?

É também significativo o imenso prestígio político e intelectual de um ideólogo como Ariano Suassuna, defensor de uma noção de cultura e identidade cultural tão extremada que, perto dele, muitos dos nossos nacionalistas mais exaltados parecem cosmopolitas ou ainda entreguistas, se queremos usar um termo ancrônico, todavia ainda vivo na fala intransigente de Suassuna. Como ele próprio afirma sem meias medidas:
“Um prêmio chamado Sharp, ou Shell, Deus me livre! Não quero. Acho esses nomes feios. Não recebo prêmio de empresas ligadas a grupos multinacionais. Não sou traidor do meu povo nem estou à venda. (...) A globalização é uma arma que os países ricos têm para perpetuar a dominação sobre os pobres. O patrocínio de multinacionais nos eventos de nosso país é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais”.

Coerente com sua concepção extremada de nacionalismo cultural, antes de tudo regionalismo enraizado nas fontes da cultura rústica sertaneja, Suassuna abre fogo contra toda e qualquer expressão da cultura urbana de massas, assim como qualquer expressão da cultura erudita contaminada pelo livre circuito dos empréstimos culturais. Sendo assim, na entrevista citada dispara contra a bossa nova, o tropicalismo, o rock, Tom Jobim, Caetano Veloso etc. Para ele, globalização é apenas uma arma a serviço da dominação imposta pelos países do capitalismo central a países do tipo do Brasil. Para ele, os símbolos culturais americanos representam pura e simples dominação econômica e ideológica.

Ariano Suassuna fala todo o tempo pelo povo e em nome do povo. Infelizmente, o povo não parece nem um pouco interessado em seguir o enredo que escreve para a cultura e a identidade brasileira. Para desespero do nosso extremado ideólogo, os porteiros de condomínio querem mesmo dizer okei , não oxente. Nossos artistas primitivos, expressão da cultura rústica e pré-moderna celebrada por Suassuna, atendem alegremente ao convite que a cultura urbana de massas lhes acena. O povo brasileiro, não importando o sentido que desejemos atribuir a esse termo tão camaleônico como o nacionalismo cultural, persegue deslumbrado tudo o que o discurso salvacionista de Suassuna repele: o shopping Center, o consumismo desvairado, o lixo e o luxo da cultura americana, a língua inglesa disseminada em todos os poros da nossa sociedade, o batuque eletrônico da música sem fronteiras. Deixo Ariano Suassuna em paz com seu regionalismo intransigente e intolerante. Ele importa, para o meu argumento central, como evidência dos extremos a que pode chegar a ideologia que aqui me ocupa.

Se há um símbolo consensual na nossa indefinida e inapreensível identidade cultural, não duvido de que seja o futebol. Aqui vai uma ilustração que me parece mais persuasiva do que a mais refinada elaboração teórica que eu acaso pudesse acrescentar a este artigo. A seleção brasileira enfrentou a argentina na antevéspera do dia da Independência. Quatro horas antes do jogo ouvi vizinhos cantando festivamente o hino nacional. O fato me chamou a atenção o suficiente para que eu fosse até a varanda. De lá divisei grupos entusiasmados entoando o hino, alguns curiosamente perfilados em pose solene, como se tivessem a bandeira nacional tremulando à frente. Esta, aliás, não tremulava à frente desses grupos tomados de fervor nacionalista, mas tremulava em muitas das varandas e janelas que observei. Os jogadores brasileiros exibiram-se admiravelmente, venceram o jogo e a euforia atravessou sem exagero todas as nossas classes sociais de um extremo a outro do país.

Em contraste com esse espírito de autêntico orgulho nacional, de expressão de unidade cultural sobrepondo-se a divisões de classe e região, dois dias mais tarde vivemos o feriado que historicamente assinala nossa independência política. Preocupado em observar o fato cotejando-o com o precedente relativo à seleção brasileira, não deparei nenhuma expressão de autêntica e espontânea consciência nacional, nenhuma evidência coletiva de orgulho associado à nossa independência. A identidade cultural localizada por Mário de Andrade na inconsciência espontânea do povo parece emudecida durante o dia consagrado à independência política do Brasil. A julgar pela realidade visível, nosso sete de setembro é apenas um feriado qualquer que o brasileiro típico aproveita para desfrutar na praia ou dedicar ao lazer dissociado da memória histórica relativa à razão do feriado.

Mas o futebol compreendido como fator de unidade e identidade cultural justifica algumas ponderações que me parecem ainda mais relevantes do que tudo que acabo de anotar acima. Procedendo a um ligeiro exercício de imaginação sociológica, indago de mim para mim próprio qual seria a reação de um nacionalista empenhado na defesa de nossa identidade cultural se acaso vivesse na época em que o futebol começou a penetrar na nossa realidade cultural. Como sabemos, eis um fato importante para a maioria dos brasileiros, o futebol foi introduzido no Brasil por um inglês residente em São Paulo. Esporte de nacionalidade inglesa, o futebol chega à nossa terra no auge do colonialismo inglês, que de resto já dominava a economia brasileira há muito tempo. Ingressa no Brasil como esporte de elite, basta percorrer ligeiramente a iconografia relativa aos estádios de futebol nesse período inicial, e vai sendo gradualmente assimilado pelo povo. É um exemplo fascinante de assimilação cultural processado pela via do desnivelamento, como já nos ensinou Mário de Andrade. Se o jazz constituiu um exemplo de nivelamento, ascendendo de camadas negras socialmente marginalizadas para a elite, o futebol percorreu o percurso inverso.

Mas volto a nosso hipotético nacionalista paladino da identidade cultural. Seria razoável supor que no momento em que o futebol penetrava no Brasil ele reagisse indignado amparado no argumento da nossa autenticidade cultural, alegando provavelmente que o futebol não passava de um instrumento de dominação cultural imposto pelo colonialismo inglês. Falaria provavelmente em nome do povo, cuja integridade cultural precisaria ser por ele defendida, assim como no presente Ariano Suassuna e tantos nacionalistas e regionalistas generosos e abnegados o defendem. Infelizmente, o povo demonstra, mesmo quando tutelado politicamente, como é ainda fato no Brasil do século xxi, ser sujeito de determinados desejos e vontades. Assim, ignorando a alfândega cultural imposta por nosso intelectual nacionalista, foi se aproximando da bola de procedência inglesa, foi batendo bola aqui, mais adiante num terreno baldio, depois num campo de futebol e por fim chegou ao Maracanã, um dos palcos da universalidade futebolística. Como sempre ocorre em qualquer processo de empréstimo ou assimilação cultural, não adotou passiva ou mecanicamente o futebol. O que de fato fez foi adaptá-lo acrescentando-lhe sua ginga de corpo, seu modo próprio de assimilação. Sabem os entendidos, e neste assunto todo brasileiro é entendido, que nada afirmo aqui de original. Estou apenas repetindo com palavras próprias o que Gilberto Freyre e muitos outros intérpretes da cultura, nacionalistas ou não, já disseram bem antes de mim.

Mas o futebol representa no Brasil, além da unidade identitária acima argumentada, nossa maior fonte de orgulho nacional, até mesmo de arrogância nacional. Nem o avanço da globalização econômica e cultural, dissolvendo fronteiras e transportando jogadores através de nações, clubes e símbolos de paixão esportiva cada vez mais indeterminados, abala a estabilidade dessa potente raiz de orgulho e arrogância do brasileiro. O fato é que a globalização converteu a seleção brasileira numa autêntica legião estrangeira, como acertadamente observou Roberto Pompeu de Toledo. Os clubes competem agora em escala global e o jogador, apesar do costumeiro lero-lero nacionalista, quer antes de tudo fama e fortuna. Seu sonho é ir o mais cedo possível para a Europa, fazer vida e glória na Europa. Isso não anula o nacionalismo da torcida, que continua exaltando arrogante os triunfos da nossa legião estrangeira como se cada um daqueles heróis jogasse num clube nacional da nossa idolatria, mas confirma a prioridade objetiva da globalização do esporte.

Penso que as questões acima esboçadas merecem uma reflexão mais detida no momento em que o mundo inteiro acompanha a Copa do Mundo disputada na África do Sul. Ela constitui mais uma evidência da globalização que dissolveu as fronteiras do futebol. Quase todas as seleções competidoras têm de nacional apenas os símbolos estampados nas cores das camisas e no hino de cada seleção. Os jogadores e técnicos obedecem apenas ao critério do melhor contrato ou salário, acrescido da fama. Nossa legião estrangeira, que veste as cores do Brasil, é tão alheia ao cotidiano do nosso futebol que eu mesmo, apreciador deste esporte, desconheço vários dos atletas que nos representam. No entanto, a torcida brasileira, assim como a das demais nações, continua investindo paixão e sentimentos nacionais em símbolos globalizados pelo mercado. Esse fenômeno que no momento coloniza a imaginação das massas em escala global mais uma vez comprova o quanto a ideologia e a realidade objetiva se desencontram na história da cultura.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ariano Suassuna na Bravo


Uma Nova Conciliação Cultural?

Alguns dos mais agudos críticos da história cultural brasileira têm com propriedade acentuado o caráter conciliador que permeia seu desenvolvimento. A argumentação geral se desdobra com igual propriedade para o domínio correlato da história política. Dado que as formas culturais não são nunca inocentes, ainda quando se possa argumentar em defesa da autonomia relativa dos produtos estéticos, como dissociar arte e ideologia, mais ainda quando a expressão artística segrega nítidos valores ideológicos?
Especificando as questões acima propostas em termos genéricos, como ler a ampla matéria sobre Ariano Suassuna publicada na revista Bravo! passando ao largo de alguns problemas ideológicos implicados nos juízos e formulações de louvação quase irrestrita dirigidos à obra e à ação intelectual de um escritor que se tem distinguido como um opositor intransigente das formas culturais e ideológicas geradas pelo capitalismo na era de sua triunfante globalização?
A conciliação aparente entre a orientação ideológica da revista e a do escritor fere o leitor atento com um inquietante rumor de perplexidade. Senão vejamos. Bravo! constitui em muitos sentidos um fato notável na cena cultural contemporânea. O que no caso importa acentuar com vistas aos propósitos deste artigo polêmico é o que simboliza como fator de aceleração mercadológica da cultura. Ostentando credenciais de requintada modernidade estética, assinaláveis na seleção geral das matérias e sobretudo na produção gráfica que lhe imprime inusitada vestimenta, a revista pode bem ser distinguida como um sopro revitalizador do acéfalo jornalismo cultural brasileiro. Sei que a modernidade, estética ou não, é impura e talvez indefinível. Ainda assim, reitero a perplexidade derivante da conciliação observável entre a revista e a obra e a ideologia de Ariano Suassuna.
A ideologia mercadológica da revista reponta, como frisei, em toda a sofisticada composição gráfica e na documentação fotográfica que imprimem relevo estético aos textos publicados. Assim, se Ariano Suassuna tem fundamentalmente concorrido para nobilitar o passado cultural nordestino, dissolvendo as bases da dominação patriarcal e oligárquica em mitologia sertaneja, convertendo a tradição artística popular em reacionarismo estético erudito, tudo isso operando no sentido de cimentar ideologicamente a manutenção das formas tradicionais de dominação no Nordeste, Bravo!,em contrapartida, mercantiliza, em termos capitalistas avançados ou sulistas, o folclore e a cultura da miséria nordestina. Em suma, Ariano Suassuna e Bravo! constituem uma variante cultural da aliança entre o Brasil do atraso e o Brasil moderno.
Observe-se, a propósito, a foto que ocupa toda a página 61 . Sugeriria que fosse interpretada em três planos distintos, e no entanto entrelaçados. No primeiro plano, a figura ambígua do mandarinato patriarcal. Ambígua porque, retendo na identidade individual de Suassuna símbolos vivos da nossa miscigenação cultural, alia o medalhão ostensivamente exibido sobre o peito à face matreira do popular, o ar bonachão dissimulando o mandarim gestor e protetor da identidade cultural do povo disposto no plano intermediário da foto. Esse povo, dançando sobre a poeira e difusamente enquadrado entre o primeiro plano, o do mandarim-popular, e o plano de fundo, onde se elevam as pedras míticas do reino sertanejo, paga o ônus secular do atraso e da dominação oligárquica.
Seria incapaz de negar a devoção sentimental de Ariano Suassuna a esse povo. Ele encarna, de fato, na arte que produz, assim como na viva figura humana que seduz e cativa a admiração de tantos que o lêem e convivem, valores fundamentais do povo brasileiro e especificamente nordestino. Essa verdade não é entretanto incompatível com a verdade da dominação ideológica que exerce no plano das relações simbólicas entre grupos e interesses sociais. Aparentemente, nada disso é merecedor de relevo no conjunto da matéria publicada pela revista Bravo!.
O tom laudatório dominante no artigo de Reinaldo Azevedo vale-se do artifício do elogio contra o outro para ressaltar os méritos de Suassuna. Assim, o outro desqualificado é ora o vanguardismo modernista de São Paulo, ora Caetano Veloso e os tropicalistas, ora os círculos acadêmicos colonizados, ora os intérpretes “derrotistas” do Brasil. A evidência maior desse artifício retórico está registrada na página 63. Contrapondo Ariano Suassuna a Mário de Andrade nas representações míticas e ficcionais de João Grilo e Macunaíma, louva no primeiro o tom otimista dirigido pela intenção de converter João Grilo em herói triunfante, enquanto o segundo, vítima de melancolia tropical, encarna no anti-herói Macunaíma o derrotismo que pontua muitas das nossas interpretações do Brasil. Não bastasse isso, alude ainda a Mário de Andrade como um mero turista descritivo, ou compilador de cocos.
Proposto nos termos acima, o paralelo neutraliza, antes de tudo, o caráter incaracterístico, o paradoxo é intencional, de Macunaíma. Ora, se Reinaldo Azevedo lesse as entrelinhas polissêmicas de Macunaíma não poderia deixar de perceber essa extraordinária representação do herói popular como um ser crivado de ambiguidades e contradições. Qualificá-lo como anti-herói é, em suma, privá-lo de seus traços substanciais. Por extensão, criticar Mário de Andrade como um derrotista é desconhecer por completo o fato de que nenhum outro intelectual brasileiro tanto concorreu, neste século, para o aprimoramento da nacionalidade inspirado por um desejo generoso e tenaz de reforma das nossas instituições culturais, de valorização das tradições móveis, friso bem o adjetivo, que sustentam essa suposta e controvertida identidade cultural brasileira. O período precedente não traduz um juízo de onisciência crítica, como procedeu Reinaldo Azevedo ao referir-se a Suassuna como “o maior prosador vivo da literatura brasileira”, mas um fato da cultura verificável por quem se dê ao trabalho de investigar a historiografia cultural do período.
Ao fazer de Macunaíma não um anti-herói, como quer o articulista, mas uma representação complexa do brasileiro distintamente incaracterístico e móvel – mobilidade que é tanto geográfica quanto psicológica e moral – Mário nos comunica uma noção muito mais fecunda e transformadora da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que não nos ilude quanto aos seus impasses, daí a atmosfera “derrotista” e “melancólica” que reponta no fecho da obra. Por outro lado, ao idealizar as virtudes mágicas e tradicionais do povo oprimido do Nordeste, Ariano Suassuna ratifica os mecanismos da dominação tradicional da qual é, aliás, o supremo representante intelectual e ideológico na cena contemporânea.
O mote do nacionalismo cultural, sempre explícita ou implicitamente reposto no debate intelectual brasileiro, sem dúvida aproxima, de modo genérico, Mário de Andrade, Ariano Suassuna, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Jorge Amado, Glauber Rocha, Villa-Lobos e outros que decisivamente contribuíram para o nosso desenvolvimento cultural. Dada porém sua óbvia generalidade, tendente a dissolver num autêntico saco de gatos todo tipo de orientação estético-ideológica, impõe-se a necessidade de distinções qualificativas. Noutras palavras, importa acentuar não apenas o que os aproxima, mas sobretudo o que os diferencia, quando não os opõe. Ora, o que se observa é precisamente o contrário. Subordinando essas distinções fundamentais a valores de ordem mercadológica, cada vez mais favorecidos pelo empobrecimento do debate de idéias, inclinam-se os agentes do processo cultural para os parelelos e analogias carentes de qualquer exame criticamente sustentável.
Uma evidência é o paralelo acima proposto por Reinaldo Azevedo. Outros, antes dele, já propuseram parelelos regidos pelo desejo de aproximar Mário de Andrade e o que Ariano Suassuna e seus seguidores têm realizado culturalmente em Pernambuco. A apropriação do título “na pancada do ganzá”, convertido em bloco carnavalesco de identidade nitidamente conservadora, além de música idem composta e gravada por Antônio Nóbrega, ilustra bem o fenômeno. Despreza-se, no caso, entretanto, uma distinção essencial entre a militância nacionalista de Mário de Andrade, de um lado, e, de outro, a generalidade dos que no Nordeste, e sobretudo em Pernambuco, reivindicam o nacionalismo cultural e seus correlatos ou implícitos: a identidade cultural, a resistência à dominação cultural, o culto da tradição.
É sabido o quanto Mário de Andrade se empenhou na conservação e valorização da cultura popular, na qual discernia o fundamento da brasilidade cultural. Neste sentido, seria justificável aproximá-lo dos nacionalistas em geral. Não sendo entretanto um conservador cultural – para não dizer um reacionário, como é nitidamente o caso de Ariano Suassuna e seus seguidores mais fiéis -, resulta descabido aproximá-lo dos nacionalistas conservadores pela via equívoca dos paralelos e analogias sem rigorosa apreciação das afinidades e diferenças envolvidas.
Procurarei demonstrar ligeiramente meu ponto de vista tomando como referência uma questão essencial suposta no nacionalismo cultural: a relação entre a identidade cultural e a tradição. Embora Reinaldo Azevedo critique Mário de Andrade de passagem chamando-o de turista descritivo, conviria observar uma anotação feita por este durante sua viagem pelo Nordeste. Propondo a distinção entre tradição móvel e tradição imóvel, depois de acentuar que sua identidade de modernista não significava desprezo pelas tradições brasileiras, escreve ele:
“O que a gente carece, é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, as danças populares”.
Assim, se de um lado defende e acolhe as tradições móveis, de outro repele as imóveis. Quem quer que tenha lido atentamente O Turista Aprendiz terá com certeza observado que Mário de Andrade nada tem em comum com um “turista descritivo”. Selecionando criticamente o legado da tradição, ao mesmo tempo que consciente de algumas relações fundamentais entre as formas de criação cultural e as bases materiais em que se inscrevem, chega mesmo a fazer restrições virulentas a Os Sertões, de Euclides da Cunha, por entender que seu apuro estético teria concorrido para estetizar a miséria da seca. Tendo visto de perto o que significa a devastação humana gerada pela seca, repele indignado as formas de representação ideológica que, ainda hoje, servem objetivamente à manutenção desse estado de coisas no Nordeste. Compreende-se, assim, as duras palavras que desfecha contra Os Sertões:
“O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante. Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez pra encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopéia... Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora”
.
Será de fato possível qualificar passagens como estas, e tantas outras que pontuam a narrativa do diário de viagens de Mário de Andrade, como próprias a um “turista descritivo”, ou ainda como típicas de um observador derrotista dos problemas básicos da sociedade brasileira? Um dos grandes méritos do nacionalismo cultural praticado por Mário de Andrade – seja como artista, seja como intelectual militante – consiste no modo inventivamente crítico como soube combinar a tradição e a modernidade, a lição das correntes estéticas internacionais e os traços específicos da cultura e da sociedade brasileira. É isso, em síntese, o que o distingue como um nacionalista renovador. Os conservadores, em contrapartida, têm aversão incontida às forças da modernidade. Celebram esteticamente a tradição brandindo idéias em princípio louváveis, como a integridade da identidade cultural brasileira, concorrendo de modo objetivo na esfera ideológica para legitimar as formas tradicionais de dominação que se nutrem do nosso atraso e da miséria tão belamente emoldurada nas páginas da revista Bravo!.
A afinidade ou mesmo a aliança substancial observável entre as formas tradicionais de dominação e esses nacionalistas conservadores é exemplificada pelo próprio Ariano Suassuna, que se tem servido do exercício de um cargo público, o de Secretário de Cultura do Estado, para conceber e executar um projeto que é uma expressão do seu projeto pessoal de cultura, não dos distintos grupos sociais identificados com interesses, aspirações e representações coletivas irredutíveis a um projeto unilinear e excludente como é o dele. Essa questão, que me parece de interesse político fundamental no terreno da cultura, é entretanto obscurecida ou simplificada no artigo de Paulo Carneiro.
Outro fato que me parece sugerir o estreitamento do nosso debate ideológico transparece no louvor que se presta a Ariano Suassuna por se distinguir, no clima de conformismo dominante, como um suposto socialista empenhado na resistência à dominação cultural imposta pelo capitalismo na era da cultura globalizada. Não nego que seja um opositor irredutível do capitalismo e da expressão de modernidade que este hoje triunfantemente impõe. Mas o que propõe ele, ou o que sonha ele, senão uma utopia regressiva que delirantemente associasse a preservação de uma cultura mitológica do sertanejo a formas de organização social enraizadas nas tradições rurais? Em suma, uma manifestação delirante de socialismo primitivo.
Concluindo, o anticapitalismo representado esteticamente na obra de Ariano Suassuna é um anticapitalismo de natureza regressiva. Noutras palavras, nega de costas para o presente. Ou ainda, traduzindo de outro modo, desta vez citando palavras de inspiração legitimamente crítica estampadas numa das páginas da revista, “de frente para o passado”.

Nota: Não cabe numa nota sumária esclarecer devida e factualmente alguns processos correntes de censura ou silenciamento de textos incômodos, sobretudo quando o autor, como é o meu caso, é praticamente um anônimo. Esclareço apenas que este artigo me foi encomendado por Reinaldo Azevedo, então editor da Bravo! Foi solicitado sob a condição de ele, R. Azevedo, publicar uma réplica. Aceitei prontamente a proposta, pois meu propósito é discutir ideias. Ele nunca respondeu, sequer acusou recepção do artigo. Assim, esta nota explica um pouco melhor os dois comentários abaixo postados: o de César Melo e o meu.

Recife, 20 de maio de 1998