Mostrando postagens com marcador Isaiah Berlin. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Isaiah Berlin. Mostrar todas as postagens

domingo, 15 de julho de 2012

Estação Tolstoi


O primeiro parágrafo de Anna Karenina, de Tolstoi, é justificadamente um dos mais atraentes e inesquecíveis da literatura universal. Mal o percorre, o leitor é prontamente seduzido por aquelas palavras impregnadas de ressonâncias imaginativas e assim atravessa o livro volumoso tomado pelo desejo de desvendar a história singular de cada família infeliz. As felizes decerto não lhe passam pela cabeça, já que são todas iguais, segundo a apreciação do autor. Ou será que há leitores seduzidos pela história de Anna Karenina supondo desvendar a história de uma heroína pertencente a uma família feliz? Cada família infeliz é infeliz de modo próprio ou singular.

O problema que de imediato me ocorre é refutar a ilusão contida na ideia de família feliz. Tolstoi, como sua heroína, não nasceu nem viveu numa família feliz. Nem como filho, cujos pais morreram quando era muito pequeno, nem como pai e ancião às portas da morte, como o comprova o filme de Michael Hoffman baseado no romance homônimo A última estação (The last station), de Jay Parini. Além de não conhecer o que muitos acreditam ser uma família feliz, Tolstoi foi um homem complexo e atormentado, sempre dividido nos seus desejos, ações, e convicções mais profundas. Depois de viver como sua esposa durante 48 anos, sua mulher Sofya confessou ignorar que tipo de homem ele era.

Comecei este artigo evocando o parágrafo de abertura de Anna Karenina porque o filme de Michael Hoffman me fez evocá-lo num sentido tragicamente irônico. O filme induziu-me ainda a uma outra associação que reforça a tragédia irônica patente no fim da vida do grande escritor e líder religioso, figura revestida de uma aura profética disseminada não apenas na Rússia autocrática saturada de misticismo, mas em grande parte do mundo. A outra associação que me ocorreu remete a Shakespeare e King Lear, tão grosseiramente incompreendidos por Tolstoi num ensaio intitulado “Sobre Shakespeare e o teatro”. Como não perceber essas duas ironias trágicas que singularizam o último ano de vida de Tolstoi condensado no filme de Hoffman? Difícil imaginar família mais infeliz que a dele, assim como é quase inevitável a identificação entre o ancião doente e atormentado fugindo da própria casa e família e o rei traído e desamparado pelas filhas a quem insensatamente transferiu seu poder.
Como observei, a ação do filme concentra-se no último ano de vida de Tolstoi (Christopher Plummer). Investido da liberdade imaginativa característica da literatura de ficção, mesmo quando inspirada em personagens e eventos históricos, Jay Parini nos revela o último ano da vida de Tolstoi, sua turbulenta relação com sua mulher Sofya (Helen Mirren), a implacável rivalidade entre esta e Chertkov (Paul Giamatti), líder do movimento religioso baseado nos escritos de Tolstoi, centrado na perspectiva de Valentim Bulgakov (James McAvoy). Bulgakov foi enviado por Chertkov para Yasnaya Polyana depois que o secretário de Tolstoi foi preso. Sua função expressa era não só substituir o secretário precedente, mas também espionar a ação de Sofya em benefício de Chertkov e do movimento religioso que este coordenava.

A rivalidade entre Sofya e Chertkov precipita o fim trágico de Tolstoi, disputado sem tréguas por interesses e paixões intransigentes. O inferno doméstico em que Tolstoi e Sofya viveram durante anos foi desencadeado quando o escritor adotou uma forma anárquica de cristianismo que acabou resultando na sua excomunhão da Igreja Ortodoxa, além de convertê-lo em inimigo da autocracia russa. Talvez o espectador que pouco conheça Tolstoi e o movimento religioso que liderou - em termos de organização e ação prática encabeçado por Chertkov, punido com dez anos de exílio – se surpreenda ao ler nas cenas iniciais do filme que Tolstoi era então o escritor mais celebrado do mundo. A informação seria mais precisa se esclarecesse que a celebridade decorria antes do papel religioso do que literário exercido pelo autor de Guerra e paz. Hoje o que antes de tudo sobrevive é o escritor literário, mais uma razão para a compreensível surpresa do meu hipotético espectador. O tolstoísmo que se difundiu pelo mundo durante o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, influenciando poderosamente personagens históricos excepcionais como Gandhi e Wittgenstein, é hoje uma pálida memória em meio à babel das seitas e movimentos religiosos concorrentes no mercado da fé.

O jovem e casto Bulgakov, dócil seguidor do tolstoísmo, tanto que de início nada questiona nos seus líderes nem nas ações e pregações correntes na comunidade em que passa a viver, sofre de um sintoma revelador da sua tibieza. Espirrar é sua reação compulsiva sempre que se defronta com uma situação que lhe provoca embaraço, relutância ou temor. Lembrei-me de que Mario Vargas Llosa usa artifício literário semelhante para caracterizar psicologicamente a cegueira ideológica do protagonista de A guerra do fim do mundo, inspirado em Euclides da Cunha. Por isso cheguei a supor que o livro de Vargas Llosa seria a fonte desse detalhe caracterizador de Bulgakov. Somente mais tarde descobri, ouvindo comentários do próprio diretor do filme, que a fonte inspiradora fora um conto delicioso e pouco conhecido de Tchekhov: “The Sneeze” (“O Espirro”). O alcance crítico da alusão é maior do que aparenta, pois me parece esclarecer o tom tchekhoviano (com perdão do neologismo), ou tragicômico que pontua muitas das melhores cenas do filme.

Mais do que o centro da propriedade rural do nobre Leon Tolstoi, Yasnaya Polyana tornou-se um lugar mítico, santuário para onde acorriam peregrinos e místicos tocados pela fé nos ensinamentos religiosos de Tolstoi. O cristianismo anárquico concebido por Tolstoi representa Jesus não como um deus, mas como um ser humano investido de virtudes humanas excepcionais. É baseado nesse princípio que Tolstoi define sua versão do evangelho e procura pautar sua ação no mundo. Inspira-se ainda nas tradições místicas do mujique, o camponês russo, fonte mítica inspiradora do populismo russo contraposto à corrente dos ocidentalistas, que divisavam nos valores modernos dos países europeus mais avançados a solução para o atraso social e político da Rússia.

Tolstoi pregou e tentou praticar, sempre emaranhando-se em contradições penosas agravantes do seu caráter atormentado, um tipo de socialismo do qual decorria sua convicção de que a propriedade era um roubo, inclusive a intelectual. Essa questão está na raiz da rivalidade entre Sofya e Chertkov. Enquanto este não mediu esforços e maquinações para fazer com que Tolstoi afinal assinasse um documento convertendo sua obra em propriedade pública (Tolstoi não escrevia para os editores, como afirma numa cena do filme, mas para o povo), aquela lutou tenazmente para preservar todas as propriedades do marido em benefício de si própria e da família. Chertkov venceu provisoriamente, como é evidente no filme, ao convencer Tolstoi a transformar sua obra em propriedade pública. Mais tarde, porém, já depois da morte do escritor, a lei do regime autocrático por ele combatido devolveu à viúva a propriedade causadora de muitos dos conflitos e tormentos compreendidos pela trama do filme.

Tolstoi afirma que o amor é o valor universal que liga todas as religiões. Se ele tem acaso razão, a verdade que prega, como todo órfão do absoluto, tem validade puramente abstrata ou teórica. Infelizmente, a história da religião desmente de ponta a ponta a verdade que prega, que antes dele Jesus Cristo e outros homens excepcionais também pregaram, não raro ao preço da liberdade e da vida. Saltando do absoluto religioso para o político, ou ideológico em geral, o que realisticamente se impõe é a impossibilidade do absoluto no reino contingente e falível da realidade humana. O que infelizmente vemos e sofremos acompanhando na tela as vidas dos seres que se amam, mas sobretudo se combatem e se castigam no microcosmo de Yasnaya Polyana, é a prevalência do mal. Eis mais uma ironia trágica pontuando o fim de Tolstoi, esse homem tão atormentado e perseguido pela miragem do absoluto.

Isaiah Berlin, um dos estudiosos que mais profundamente perscrutaram esse homem genial e indecifrável, escreveu um dos mais citados ensaios contemporâneos movido pela ambição de o explicar. Refiro-me a “O porco-espinho e a raposa” (“The hedgehog and the Fox”). Berlin propõe a tipologia que confere título a seu ensaio com o propósito de explicar o conflito insolúvel que atormentou a vida de Tolstoi. Como toda tipologia, esta não escapa ao risco da simplificação grosseira, sobretudo quando manejada por intérpretes canhestros ou dogmáticos. Não é o caso de Isaiah Berlin, talvez o mais refinado e perceptivo filósofo político e ensaísta da moderna tradição liberal. Seguindo a distinção que propõe ao esboçar sua tipologia, a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe apenas uma, mas ela é sumamente importante. Fixada esta baliza distintiva, o ensaísta enumera alguns dos grandes nomes da cultura identificando-os ora com a raposa (Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Puchkin, Joyce...), ora com o porco-espinho (Platão, Dante, Pascal, Dostoievski, Nietzsche...).

O grande infortúnio de Tolstoi, segundo a admirável argumentação que Isaiah Berlin desdobra ao longo do seu ensaio, foi acreditar que era um porco-espinho, quando era por natureza uma raposa. Nos seus escritos religiosos ou proféticos, quem se impõe é o porco-espinho, não raro enrijecido num moralismo que o impeliu a incorrer em erros e injustiças desconcertantes num homem dotado de gênio. Bastaria pensar na apreciação crítica absurda que faz de Shakespeare contida no ensaio acima citado. Sua pregação moralista e dogmática estende-se à apreciação da arte em geral, sem poupar sequer sua própria obra. Também sua percepção do mundo moderno, sua aversão à ciência e à tecnologia, é de uma estreiteza espantosa. Seu moralismo sexual beira a hipocrisia mais chã enredando-se em extremos de contradição e culpa. Portanto, o que me parece mais importar em Tolstoi, e é isso que lhe assegura a imortalidade incontestável, é a obra literária na qual se espelha sua autêntica natureza: a natureza da raposa que sabe muitas coisas, embora nenhuma seja exclusiva ou absoluta.
Recife, 10 de julho de 2012.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nacional e Universal


Começo este breve ensaio enunciando a contradição relativa ao movimento dialético que permeia toda a nossa história cultural baseada na antinomia do nacional e do universal. Entendo que esta perspectiva teórica é fundamental para que adequadamente se coloquem os problemas atinentes à nossa formação cultural. Aplicável ao conjunto dessa formação, ela me interessa, em particular, na consideração dos dois movimentos culturais decisivos da nossa cultura no século vinte: o modernismo paulista e o regionalismo recifense. Retomo portanto essa contradição para novamente conferir alguma atenção a esses movimentos e a seus dois líderes incontestes: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Penso que Antonio Candido é o estudioso que melhor empregou esse esquema dialético na análise da nossa literatura compreendida em suas conexões essenciais com o contexto histórico-cultural. Seu emprego do método dialético consiste na função integradora, não excludente, dos polos contraditórios implicados no processo da análise. Nos termos que importam para este ensaio, os pólos compreendidos na relação entre o nacional e o universal não se relacionam de modo excludente, mas sim integrador. É por compreender a relação deste modo que represento o desdobramento histórico do modernismo e do regionalismo como forças que se negam continuamente ao mesmo tempo em que se alimentam manifestando-se de forma indissociável.

Não haveria modernismo paulista sem os fecundos empréstimos culturais provenientes dos movimentos da vanguarda européia. A própria inflexão nacionalista do movimento muito deve à contribuição de um europeu e vanguardista como Blaise Cendrars. Toda a teorização estética e cultural de Mário de Andrade, assim como de Gilberto Freyre, é em boa medida tributária do contato que estabeleceram com outras fontes de cultura e estudiosos que confessadamente os influenciaram. É por adotar este ponto de vista que discordo da tradição nacionalista ou regionalista ciosa de conceber nossa história cultural como autônoma, como explicável baseada apenas em fatores dissociados e até hostis a nossos vínculos com a cultura ocidental. O que pressuponho como atitude fundamental de análise das culturas é a interdependência necessária entre elas observável.
Ainda hoje, não obstante o acelerado processo de globalização cultural em que vivemos, há quem pretenda sustentável uma noção de nacionalismo dissociada do intercâmbio entre valores culturais. Há ainda quem critique a importação de ideias, ou a imitação cultural, como pura e simples subserviência de povo colonizado. Um dos mais lúcidos estudiosos da história das ideias no Brasil há muitos anos corretamente assinalou que
“A inteligência brasileira formou-se pelo mesmo processo que plasmou o povo brasileiro, isto é, graças às contribuições estrangeiras. Eduardo Prado diz que ´escrever a história do Brasil é escrever a história da imigração neste país`. Escrever a história de suas ideias é, também, descrever as aventuras das ideias estrangeiras no Brasil. Nesse lento processo de formação intelectual é natural que tenha havido e que haja imitação. Era compreensível que imitássemos os colonizadores. Estes, porém, ao exercerem a sua ação, sofreram também a influência das condições novas que o meio lhes oferecia e aí já se encontra uma primeira modificação do modelo original europeu. Certos autores, muito ciosos de originalidade, costumam denunciar a imitação como a fonte dos nossos defeitos e erros. É mister, porém, não esquecer que a imitação é um fenômeno social natural e universal”. (Cruz Costa. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6).
Acredito que o melhor da obra dos nossos escritores expressa a interação fecunda dos empréstimos culturais. Além disso, procuro demonstrar que o nacionalismo adotado por Mário de Andrade está longe de algumas interpretações redutoras tendentes a figurá-lo como um nacionalista avesso à cultura universal. O próprio herói Macunaíma, símbolo maior do nosso nacionalismo literário e cultural, foi descoberto graças aos vínculos profundos que Mário de Andrade estabeleceu com a cultura alemã. Lido por muitos como sendo pura e simplesmente o símbolo cultural do brasileiro, realização suprema do nosso Modernismo nacionalista, Macunaíma é todavia muito mais complexo. No estudo crítico que reputo o melhor e o mais agudo já produzido sobre este herói, argumenta Gilda de Mello e Souza precisamente no sentido de ressaltar o sentido universalista ou europeu da obra. Este sentido está de resto explícito no título do seu estudo, composto de um binômio, tupi e alaúde, empregado por Mário de Andrade num poema de Paulicéia Desvairada para traduzir sua identidade bifronte, isto é, nativa e européia. Como ela certeiramente observa,
“... o núcleo central de Macunaíma, não obstante os mascaramentos de toda a ordem que despistam ininterruptamente o leitor, permanece europeu, ou, mais exatamente, universal, e se liga ao tema eterno da busca do objeto mágico, de que a Demanda do Santo Graal representa no Ocidente a realização mais perfeita.” (Ver Gilda Mello e Souza. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, p. 92)
O nacionalismo de Mário de Andrade é, por conseguinte, universalista. Dizendo o mesmo de um outro modo, observou Anatol Rosenfeld ser supra-regional e cosmopolita. Segundo este crítico, Mário de Andrade buscava dentro da sua concepção de nacionalismo isento de etnocentrismos, assim como Herder, reconhecido como o pai do Nacionalismo Cultural, “...a autodefinição nacional no pluralismo positivo das culturas”.
Levando em consideração a amplitude dos estudos já consagrados às obras de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, é curioso que tão pouco ou quase nada se tenha feito no sentido de associá-los de modo mais franco à obra de Herder. Dado o papel fundador que este desempenha na história do nacionalismo cultural, caberia aqui esboçar as linhas profundas que o aproximam sobretudo de Mário de Andrade. Como salienta Hans Kohn, o nacionalismo moderno surge no século 18 diretamente associado à democracia e ao industrialismo. Seu advento representa o primeiro momento da história de alcance propriamente universal. ( Hans Kohn, Historia Del Nacionalismo). Quanto ao desenvolvimento particular do nacionalismo cultural, observa que este prevalece nos países carentes de soberania política e culturalmente dependentes. Isso torna historicamente compreensível o fato de a Alemanha da segunda metade do século 18, politicamente retalhada em inúmeros principados e culturalmente dependente da França, distinguir-se como matriz dessa fecunda tradição identificada como nacionalismo cultural. É portanto nesse contexto que se materializa a obra de Herder, herói intelectual de um dos maiores estudiosos das idéias no século 20, Isaiah Berlin.

Houve já quem identificasse Herder como o pai do nacionalismo cultural, tamanha é a sua importância na história das ideias atinentes à tradição romântica e ao papel do intelectual como agente dos processos de autonomia cultural nos países dependentes. Se é fato que concebia o Estado como uma nação com caráter nacional, entendia isso como um meio orientado para um fim universalista. A isso caberia acrescentar que, de acordo com Isaiah Berlin, o nacionalismo proposto por Herder é cultural, não político, isto é, tem como fundamento os grupos humanos naturais, baseados nos vínculos de sangue, vizinhança, valores empíricos, mas mutáveis, constituintes do que enfim podemos conceber como a cultura viva de um povo. Entendendo o nacionalismo nestes termos, opõe-se a toda forma de dominação exercida em nome de qualquer espírito de conquista política. Por isso coerentemente rejeita o ideal do conquistador, seja o antigo, como Alexandre Magno, seja o contemporâneo, como Frederico o Grande, ou os pósteros, incluídos os que invocaram os ideais do nacionalismo cultural para dominarem outros povos e culturas.

Importa reter criteriosamente esse traço do nacionalismo originário de Herder porque, dentro de suas múltiplas manifestações históricas, ele foi apropriado por correntes políticas de extrema-direita inspiradas pela dominação guerreira e a destruição de particularidades, nacionais ou étnicas, qualificadas como inferiores ou degeneradas. Em suma, como objeto de supressão, como alteridade justificadora de operações de guerra e conquista. O exemplo mais devastador desse tipo de nacionalismo é naturalmente o nazismo. Faço aqui esta breve menção, cuidando de ressaltar a distinção necessária observável entre ele e o nacionalismo cultural proposto por Herder, para que não se perca de vista o fato de que há muitos modos e formas de apropriação do nacionalismo.

Visando melhor traduzir a concepção de nacionalismo cultural de Herder, lembraria a metáfora naturalista que propõe. Afirma, em suma, que as culturas são como um jardim composto de muitas flores, cada uma dotada de características próprias e irredutíveis (cf. Isaiah Berlin, Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O ensaio que tomo como referência é Herder e o Iluminismo, pp. 379-446). É impressionante observar-se a equivalência que guarda com a metáfora musical proposta por Mário de Andrade ao reivindicar o nacionalismo cultural brasileiro como fundamento da nossa universalidade ainda irrealizada. Inspirado por essa mesma noção de nacionalismo cujo fim seria o universal, valeu-se Mário de Andrade de uma metáfora musical com o propósito de ressaltar que o Brasil somente se realizaria como cultura própria quando fosse capaz de contribuir com seu acorde singular, um acorde exclusivamente brasileiro, para o concerto das nações civilizadas:
“De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.” (A Lição do Amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 15).
Ao propor acima sua noção de nacionalismo, Mário de Andrade acentua nitidamente a compatibilidade que julga estar contida na relação entre o nacional e o universal. Seu correspondente – Drummond, no caso – como tantos estudiosos que consideram este problema, tende a identificar oposição ou contradição onde, segundo o entendimento de Mário de Andrade e de Herder, há perfeita congruência, já que uma coisa pressupõe a outra: o universal é irrealizável sem o nacional que para ele converge, assim como o nacional se converterá em exotismo, e no limite xenofobia, se não visar o universal como seu fim. Melhor devolver a palavra a Mário de Andrade que assim corrige Drummond:
“...você fala em ´apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites`. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente deixará de ser nacional.”
Tanto Herder quanto Mário de Andrade, confirmando sua concepção supra-regional e universalista do nacionalismo, tiveram fina sensibilidade para a apreensão e o entendimento crítico do singular. Sendo assim, não apenas estudaram e teorizaram apaixonadamente as culturas particulares de que faziam parte, mas toda expressão singular de cultura. Basta observar, por exemplo, o zelo e curiosidade empática com que Herder se debruça sobre culturas de todos os quadrantes, das africanas às indígenas, das terras desérticas às regiões frias, assim como das diferentes épocas, indo das mais antigas às contemporâneas. (Cf. Herder. Idées sur la philosophie de l´histoire de l´humanité. Ver em particular Livre VII, pp. 45-82).

No que se refere ao brasileiro, estendeu seu espírito de pesquisador por todo o Brasil, como o demonstram suas viagens etnográficas ao Norte e Nordeste, além dos seus estudos folclóricos, etnográficos, sócio-antropológicos e linguísticos. Mas o fato é que nunca se fechou etnocentricamente dentro das fronteiras nacionais. Pelo contrário, desde cedo, nutrido por autêntica e rara formação católica, religião fundada sobre o princípio da universalidade, aprendeu línguas e outras culturas cuidando sempre de iluminar sua compreensão do Brasil relacionando-o com o diferente, o estrangeiro, o outro através do qual reconhecemos nossa singularidade. Isaiah Berlin, a quem sigo na minha compreensão do caráter universalista do nacionalismo cultural professado por Herder e Mário de Andrade, observa que para Herder é graças ao advento do cristianismo que os horizontes da humanidade se alargam extraordinariamente. Sendo uma religião de cunho universal, estende-se doutrinariamente a todos os seres humanos superando assim todas as formas de lealdade e identidade fundadas em valores locais. Segundo Isaiah Berlin, a tese acima era francamente adotada pelo iluminismo cristão da Alemanha. Conforme acrescenta,
“...apesar de tudo o que se tem dito em contrário, Herder nunca abandonou esse ponto de vista. Sua crença central foi expressa perto do fim da vida com palavras semelhantes às de seus primeiros escritos: ´Gabar-se do seu país é a forma mais estúpida de bazófia... O que é uma nação? Um grande jardim silvestre cheio de plantas boas e ruins; vícios e loucuras se misturam com virtudes e méritos. Que Dom Quixote vai quebrar uma lança por essa Dulcinéia?` O patriotismo era uma coisa, o nacionalismo outra: uma ligação inocente com a família, a linguagem, a cidade, o país, suas tradições, não deve ser condenada. Mas ele prossegue dizendo que o nacionalismo agressivo é detestável em todas as suas manifestações e que as guerras não passam de crimes”.
Considerando ainda o ponto referente à singularidade das culturas, Herder argumenta baseado no próprio saber do seu tempo para realçar a singularidade observável no reino da natureza e também das culturas. Mas também ressalta, ao mesmo tempo, a realidade empírica da variedade infinita a esta acrescentando o fato igualmente observável da permanente mutabilidade. Ele acomoda a aparente contradição aí contida afirmando haver sobre a terra “... uma única e mesma espécie de homens”. Afirma adicionalmente que não se deve oprimir o dessemelhante, em cujo conceito identifica nominalmente o negro e o americano.

O sentido da mutabilidade permanente de tudo o que vive, na natureza quanto nas sociedades humanas, encontra correspondente na obra de Mário de Andrade na distinção que propõe entre tradição móvel e tradição imóvel. Objetivando esclarecer que sua identidade de líder do movimento modernista não supõe desprezo pela tradição, por todo o legado cultural brasileiro que passa expressamente a defender a partir de 1924 com espírito proselitista, como sua correspondência com Drummond e outros escritores limpidamente evidencia, assim distingue os dois tipos de tradição que propõe: “O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares”. ( Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, p. 254).

Passando a Gilberto Freyre, não sei de nenhum estudo que sequer insinue algum paralelo entre ele e Herder. O melhor estudo que sobre ele conheço, sobretudo por se tratar de investigação ampla e profunda no âmbito da gênese das ideias que fecundaram a composição de Casa-Grande & Senzala, não faz qualquer alusão a Herder (cf. Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos). O que podemos sem mais detido exame reconhecer é que também Gilberto Freyre revela aguda sensibilidade para captar e traduzir sociologicamente o sentido do singular assim como da infinita variedade das culturas.

Houve já quem observasse, penso em Darcy Ribeiro, que sua fina percepção do singular, dos entretons que tecem o multifacetado tecido da cultura, seria decorrente não do cristianismo universalista tal como assimilado por Herder e Mário de Andrade, mas de sua formação protestante dentro de um contexto tradicionalmente católico. Nele, entretanto, não diviso a mesma acentuação do sentido universal das culturas particulares que surpreendo na leitura das páginas de Herder e Mário de Andrade, menos ainda o entrelaçamento complexo do nacional e do universal. Como acima fica bem explícito, tanto Herder quanto Mário de Andrade visavam o universal como fim do nacional. Quanto a Gilberto Freyre, seu ponto de vista me parece haver sido sempre o do nacional ancorado nas fontes do regional. De qualquer modo, o pouco que expus justifica minha estranheza diante do fato de tão pouco ou quase nada existir na bibliografia de Mário de Andrade e Gilberto Freyre com relação a este ponto.

Concluo essas notas soltas acima designadas como um breve ensaio ressaltando os elos que identifico entre a cultura europeia e cultura universal. Seguindo de resto formulações correntes, por que identifico o universal, no âmbito da cultura erudita, com o europeu? Antes de tudo, porque preciso fatalizadamente me posicionar dentro dos horizontes de minha percepção da realidade. Noutras palavras, a realidade que percebo e intelectualmente apreendo está enraizada na tradição europeia. A ela devemos, preliminarmente, a língua que nos exprime e através da qual nos exprimimos. A ela devemos ainda os fundamentos da tradição dentro da qual elaboramos nossa formação científica e literária. Lembrando uma platitude todavia oportuna, não haveria sociologia no Brasil, e por conseguinte nossa formação, emprego e produção acadêmica, dissociada de toda uma tradição relativa a esse campo gestada na Europa e a partir dela difundida por grande parte do mundo.

Refutar esses vínculos que tomo como evidentes, e empiricamente aferíveis, em nome de algum suposto exclusivismo particularista – de região, nação ou identidade cultural – é deslizar irrecorrivelmente para o solo minado já aqui indicado. Assim procedendo, logo nos enredaremos nas contradições e paradoxos embutidos na falsa disjuntiva nacional versus universal. Outra poderosa razão para que eu identifique o universal com o europeu deriva do reconhecimento de que a proposição e defesa de valores universais são características marcantes da cultura européia.
Recife, 7 de setembro de 2009.