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quarta-feira, 5 de março de 2014

Eliane Brum


Eliane Brum não existe. Não faltará quem leia esta frase certo de que estou troçando com a realidade ou simplesmente enlouqueci. Afinal, as evidências apreensíveis pelo senso comum são irrefutáveis: Eliane Brum é repórter, jornalista, colunista, documentarista, ficcionista... Eu próprio admito ter diante dos olhos outra evidência aparente: um livro intitulado A menina quebrada. Na aba da contracapa examino demoradamente a foto de uma mulher identificada como Eliane Brum. Ela me devolve o olhar com a cabeça pendida e um rosto indefinível: misto de ironia, acolhimento e uma audácia intrigantemente delicada e determinada. Mas resisto à ilusão dos sentidos e insisto em me dizer: Eliane Brum não existe. Por isso preciso inventá-la.
Vou inventar Eliane moldando-a numa personalidade passível de conter e expressar valores éticos e existenciais que eu condensaria nesta frase: nada do que é humano me é estranho. A frase, sabe o leitor, procede de Terêncio e inspirou gênios do pensamento como Karl Marx. Desdobrando esse princípio, Eliane desde cedo determinou-se a viver uma vida excepcional. Embora consciente dos limites por vezes cruéis impostos pela realidade objetiva, ela faz de sua inquietação uma permanente força de reinvenção de si própria. Dou-lhe a palavra para que não digam que desenho toscamente minha personagem como se ela fosse um fantoche à serviço da minha imaginação arbitrária:
“... não basta saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. (...) Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau de livre arbítrio”.
José Castello escreveu um fascinante capítulo no qual narra seus encontros com Clarice Lispector. Refiro-me ao capítulo que abre o volume Inventário das Sombras. Muito jovem e tímido, tateando ainda um caminho como escritor e jornalista, ousou enviar um conto para que Clarice o apreciasse. Ela respondeu com franqueza rude, mas necessária. Disse, noutras palavras, que ele era muito covarde para escrever. Escrever para remover os véus enganadores da realidade e reinventar-se, é o caso de escritoras como Clarice e Eliane Brum, é antes de tudo um exercício de determinação e coragem. Por isso Eliane se recusa a ser um clichê e faz da escrita um ato de intransigente reivindicação da sua individualidade, isto é, da sua singularidade irredutível. Eliane há muito descobriu este milagre banal, como é da natureza de quase todos os milagres: cada um de nós é a expressão de uma singularidade irredutível. Não é espantoso que entre tantos bilhões que somos, tantos bilhões que foram e na terra de algum modo deixaram impressos os rastros de sua passagem, cada um de nós seja em algum indeterminável sentido absolutamente único? A maioria, por inconsciência ou covardia, como disse Clarice exortando José Castello a se inventar através da literatura, dobra-se às conveniências, à ilusória segurança dos que se dissolvem no anonimato, na repetição alienada apreensível na sociedade das massas. Estes anônimos, que nunca escreverão uma simples linha portadora da sua singularidade, que nunca se empenharão num ato de recusa ao rebanho da repetição, não sabem nem querem saber da existência de mulheres como Clarice e Eliane.
É difícil determinar a natureza e os limites das colunas que Eliane Brum escreve. Aliás, ela é a primeira a reconhecer a insuficiência desta classificação. Depois de muito escavar um termo que melhor qualifique o que escreve, arrisca afirmar que escreve sobre direitos humanos. Consciente, no entanto, de que sua singularidade complexa transborda da medida dos conceitos cogitáveis, resigna-se a ser o que é e de resto indicia sua originalidade: uma mulher que escreve para importunar a falsa ordem do mundo e a ilusória segurança do leitor. Por isso este termo anódino, coluna, indica de imediato um fato irrelevante: Eliane assinava a coluna da última página da revista Época. Mais tarde passou a assinar a coluna na internet. É desta que extrai o conjunto dos textos que compõem A menina quebrada.
Se me desse ao trabalho de ler a revista Época, teria inventado Eliane há muitos anos. Mas confesso que também tenho preconceitos. À diferença do brasileiro típico, orgulhoso de não ter preconceito, fato que faz dele o pior tipo de preconceituoso, tenho sem dúvida vários. Quando vi a Época exposta pela primeira vez numa banca de revista, tive a curiosidade de a folhear. Fui até a última página e olhei com vago interesse a foto dessa mulher que tanto demorei a inventar. Não perdi tempo lendo sua coluna porque minha apreciação ligeira e preconceituosa da revista fez com que eu simplesmente a ignorasse. Afinal, a revista me pareceu apenas uma versão impressa da programação televisiva da Globo, um calidoscópio de imagens e textos talhados para leitores sem fôlego mental. Navegador ocasional do Facebook, vi recentemente algumas postagens de colunas (insistirei na designação anódina, já que identifica o conjunto de textos contidos no volume A menina quebrada) assinadas por Eliane. Desta vez, felizmente, cedi à curiosidade e logo descobri estar diante de minha melhor invenção jornalística.
Como acima sugiro, o termo coluna me incomoda, incomoda tanto que eu removeria o subtítulo do livro simplesmente por enquadrar as mais de 400 páginas da prosa radical e iluminadora de Eliane Brum num conceito demasiado genérico e portanto pobre demais para sequer indicar a múltipla, complexa e perturbadora personalidade da autora. Também penso que termos alternativos como artigo ou crônica seriam insuficientes para traduzir a real dimensão desses textos que vinculam certos gêneros do jornalismo à literatura, à prosa escrita para os periódicos, mas sempre tensionada pela intenção crítica e reflexiva, o mergulho destemido de uma inteligência e sensibilidade singulares na trama trepidante e confusa do mundo cotidiano que nos assalta e fascina. Pois o que Eliane Brum escreve é uma mescla indefinível de crônica de memórias, reportagem, confissão calibrada pelo fio cortante da (auto)apreciação isenta de complacência ou dócil acomodação às idéias feitas, que de resto não são idéias, apenas automatismos mentais passíveis de acomodar nossa alienada aceitação da realidade como ela não é. É por isso que ler Eliane é um exercício de reinvenção em duas vias: reinvenção do leitor pela autora, desta por aquele.
Convém ir um pouco ao próprio livro para melhor ilustrar o que acima imprecisamente escrevi. A Apresentação já anuncia, no próprio título, o mundo que Eliane desdobrará aos olhos do leitor: “Um percurso de (des)identidades”. Os ossos do ofício (meus estudos de muitos anos dedicados à sociologia da cultura e domínios conexos) propiciaram-me certa familiaridade com os escritos e práticas pertinentes à identidade. País de extenso e traumático passado colonial e escravista, o Brasil vive ainda engavetado nos impasses da identidade cultural, que é antes uma ideologia do que um saber baseado na e aferido pela realidade objetiva. Por certo, estados como o Rio Grande do Sul e Pernambuco se distinguem nessa obsessão traduzida inclusive em práticas institucionalizadas, mitos e fantasias compensatórias para os impasses emperrados pela tradição conservadora, entre outros obstáculos.
Eliane Brum investe contras essas brumas da ideologia seu pensamento aderente às tensões do concreto, da realidade viva que continuamente desmente nossas projeções consoladoras acerca do que seria nossa identidade, individual e coletiva. Sendo jornalista e repórter, ela lida por profissão e escolha com a realidade crua dos fatos, com a empiria de um solo minado pelos ventos da mudança e da incerteza, pelas tensões desnorteantes pulsando entre o mundo globalizado e Ijuí, seu obscuro lugar de origem; entre a tradição procedente da família de imigrantes e da cultura local e as turbulências da modernidade, pós-modernidade ou como queiram designá-la os acadêmicos e teóricos. Eliane afia as armas da razão e da experiência reflexiva mirando no fundo da retina o furacão que tanto nos desconcerta e tememos. E assim se apresenta ao leitor já nas primeiras linhas do seu livro: “Escrevo porque a vida me dói, porque não seria capaz de viver sem transformar dor em palavra escrita. Mas não é só dor o que vejo no mundo. É também delicadeza, uma abissal delicadeza, e é com ela que alimento a minha fome”.
Depois de expressar as motivações primárias que a impelem para a escrita, ela acentua o papel que a dúvida também desempenha no que escreve. O que oferece ao leitor não é a certeza que os carentes de amparo e os simplistas procuram. Ela respeita a inteligência e a coragem do leitor. Por isso lhe oferece a dúvida que é sua razão de escrever ou de chegar a algum outro lugar através dela. A certeza, sabem os que ousam duvidar, não leva a lugar nenhum. Por isso ela, impiedosa, afasta das suas páginas o leitor covarde e conformista. Assim, deixa claro que sua aspiração é descentrar o leitor, erguê-lo da cadeira da certeza preguiçosa e indiferente para que ele veja verdadeiramente o mundo. Ver o mundo com olhos livres, como disse Oswald de Andrade, é mudar de lugar, deslocar a perspectiva de quem vê.
A determinação perspectivista com que Eliane Brum se debruça sobre o mundo remete a afinidades profundas com a pensadora mais radical do século 20: Hannah Arendt. O que me parece explicar a radicalidade do olhar crítico de ambas é a coragem generosa e ousada com que se movem para a perspectiva do outro, ainda quando esse outro seja o nazista, no caso de Hannah Arendt, ou o pedófilo, no caso de Eliane. Mencionei o exemplo do pedófilo (conferir a coluna intitulada “Pedófilo é gente?, pp. 87-92) porque a boa consciência do presente passou a suprimi-lo do horizonte ético e humano como um monstro. No entanto, os que ousam pensar com radicalidade sabem muito bem que a vida não é assim tão simples. Alternativas maniqueístas como isso ou aquilo, médico ou monstro, para lembrar o famoso romance de Stevenson, vítima ou algoz, culpado ou inocente, puro ou impuro são o combustível ideológico e moral que move os simplórios, os intolerantes, fanáticos, dogmáticos e, no limite, os fascistas enceguecidos pelo desejo de aniquilamento de qualquer diferença. Hannah Arendt e Eliane Brum são radicais porque ousam sair de si próprias, dos limites de toda perspectiva individual para empatizar com o outro, colocar-se imaginariamente no ponto de vista do outro. Por ousarem tanto, elas chocam e levantam fúrias de indignação e intolerância. Na verdade, elas traduzem no exercício do pensamento a coragem dos que pensam com radicalidade. Pensar com radicalidade é ser capaz de tornar-se o outro.
Chegando ao termo das considerações acima esboçadas, movido por minha teimosa determinação de inventar Eliane Brum, perguntei-me se acaso poderia encontrar uma medida ou precedente para o que ela representa como expressão singular e radical do jornalismo brasileiro. Lembrei-me então de Millôr Fernandes e Paulo Francis. Mas logo admiti que o paralelo que tinha em mente era descabido. Estes, que tanto me ensinaram e tanto aprendi a admirar, tensionavam por vezes a liberdade de pensar ao extremo da arrogância brutal e do sadismo. Não é nunca o caso de Eliane Brum. O que nela mais me impressiona é a capacidade de pensar radicalmente o mundo inspirada pelo desejo predominante de compreender o próprio inominável. Ela sabe que a natureza humana é um poço sem fundo, sabe o que contém de horripilante, e todavia mergulha até o mais fundo do fundo. Mesmo diante do horror, resiste à tentação demasiado humana da condenação, da segurança assegurada por alguma fé consoladora. Por isso tentou-me dizer que é portadora da vontade sábia dos estóicos. Mas estes pregam e refinam um sentido de compaixão humana estranho ao amor com que Eliane acolhe o mundo e melhor se expressa na forma personalizada apreensível nos sentimentos que devota aos pais, à filha e ao marido. Além disso, duvido que ela aspire ao ideal da ataraxia indissociável da filosofia estóica, embora a determinação da vontade e a aceitação do mundo, a forma como diz sim ao real, sem dúvida a aproximem dessa tradição filosófica.
Eliane Brum é uma mulher tão rara que precisei inventá-la à medida que lia seu livro apaixonante e iluminador. Como duvido em demasia, ou me tornei demasiado cético à força de medir sem ilusão o mundo humano que vejo à minha volta e, pior ainda, sou forçado a tolerar, dei por favas contadas que ela não passava de uma invenção, mais uma invenção da minha imaginação descontente. Mas preciso concluir dobrando-me à força dos fatos: Eliane Brum existe, sim. Durante dias mergulhei no seu livro seduzido pela tentação de ser ela. Se eu fosse mulher, queria ser Eliane Brum.
Recife, 8 de dezembro de 2013


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Lições sobre Hannah Arendt


As coleções ideadas pelos editores para servirem de pórtico ou introdução didática à obra de grandes escritores e pensadores são uma faca de dois gumes. O gume cego tende a embalar a inércia mental do leitor. Nos casos mais graves, quando este é também intelectualmente desonesto, corta o corpo da obra com gume alheio escondendo a arma do crime. O gume afiado, pelo contrário, ilumina a ignorância do leitor motivando-o a ir do comentador à obra comentada. Este é o mérito que antes de tudo destaco ao resenhar o livro 10 Lições sobre Hannah Arendt. Luciano Oliveira, o autor, condensa em dez lúcidas e transparentes lições o conjunto da obra de Hannah Arendt.

Ele começa ressaltando um fato animador: a trajetória ascendente da obra de Hannah Arendt no contexto da cultura brasileira, intra e extra acadêmica. De fato, como apropriadamente informa o leitor, o essencial da obra de Hannah Arendt é correntemente acessível ao leitor interessado. Leigos como eu, por exemplo, já leram Hannah Arendt, além de possuírem pelo menos parte significativa da sua obra. Além de desconcertar o leitor, não raro também indigná-lo, ela o ilumina, termo que Luciano Oliveira faz questão de sublinhar em certa passagem do seu livro.

Por que Hannah Arendt tanto desconcerta o leitor não relutando em afrontar suas convicções e pressupostos mais enraizados, também as verdades cômodas dentro das quais nos instalamos e assim aliviamos nossa consciência do fardo das interrogações éticas e humanas mais inquietantes? É por essas e outras, de resto bem esmiuçadas no seu livro, que Luciano, de mangas de camisa no convívio com os amigos e até inimigos mais cordiais, costuma brincar com Hannah Arendt chamando-a de “velhinha irritante”. Como todo humorista usa e abusa da hipérbole como figura de retórica, Luciano, sendo dos bons, não foge à regra. No caso de Hannah Arendt, porém, ele errou de figura retórica. Isso sugere o quanto ela, intransigente no exercício de pensar, excedeu as medidas convencionais da polêmica. Pois o fato é que mais de uma vez jogou contra o leitor tomada pela paixão de pensar isenta de qualquer tipo de concessão. E ao jogar, expondo-se a todos os riscos e reações éticas, políticas e epistemológicas, ela provocou algo que vai muito além da irritação do leitor contrariado ou contestado dentro dos limites que com frequência opõem o autor e o leitor, os sentidos ambíguos da obra e a recepção equívoca que no geral suscita.

No sentido acima indicado, o melhor do livro de Luciano concentra-se na sétima e na oitava lições, respectivamente dedicadas a Eichmann em Jerusalém e a “Reflexões sobre Little Rock”, incluído no volume Responsabilidade e Julgamento. Outras controvérsias em que Hannah Arendt se meteu são também consideradas pelo comentador. Estas, porém, notadamente a que envolve Eichmann e questões conexas, se inscrevem em contextos bem mais momentosos, para não dizer politicamente explosivos. Quando se ofereceu ao famoso periódico The New Yorker para cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt escolheu mergulhar no olho do furacão. Luciano contextualiza e critica nos termos devidos esse episódio comparável ao Caso Dreyfus, que sacudiu a opinião pública francesa entre fins do século 19 e início do século 20 fixando de forma indelével na história da cultura a função pública do intelectual.

Não vou evidentemente reconstituir nesta resenha o processo que Luciano tão bem delineia e aprecia no seu livro. Minha intenção é tão-só recortar algumas questões mais relevantes contidas na obra e atadas ao contexto de que é fruto e efeito. Talvez a celebridade conquistada por Hannah Arendt graças à coragem radical do seu pensamento possa ser sintetizada na expressão que cunhou para traduzir seu juízo acerca do carrasco nazista Eichmann: a banalidade do mal. Esta expressão ganhou curso, provocou reações exaltadas e foi a extremos de ruptura de grandes amizades, como a que existia entre Hannah Arendt e Gershom Scholem. Friso, para o leitor apressado, não afirmar que a ruptura se deva apenas à expressão que anoto, mas ao fato de ela encapsular as reações extremas desencadeadas pela intervenção de Hannah Arendt no processo, que por certo vai muito além da pura qualificação jurídica.

Luciano escolheu com senso de propriedade impecável as epígrafes que encabeçam cada um dos capítulos do seu livro. No que tem por título “A banalidade do mal – Eichmann em Jerusalém”, ele recorta uma penetrante passagem de uma carta de Hannah Arendt endereçada a Gershom Scholem. Nela Hannah nega a radicalidade do mal. Noutras palavras, o mal é apenas “banal”, pois se manifesta na epiderme do mundo. O mal não teria o poder de se entranhar nas profundezas do mundo, apenas o bem. Portanto, só este é radical. Transpondo seu juízo para a personagem que desencadeou todo esse tumulto que ocupa Luciano e o leitor em geral, Hannah se põe literalmente diante de Eichmann, enjaulado sob a proteção de paredes de vidro transparente, e talvez chocada tenha constatado não estar diante de um ser demoníaco, um monstro inqualificável. Aliás, monstro é um substantivo que prescinde de qualificação.

Hannah Arendt mira, escrutina e devassa as linhas apreensíveis do carrasco e nada encontra além de um homem banal, um homem normal, um burocrata eficiente que se esmerou no exercício da sua função com zelo exemplar. Não é chocante ler isso quando ponderamos que o burocrata em questão coordenava a mais terrível operação de extermínio de um povo? Não é chocante pensar que Hannah Arendt, judia como o seu povo aniquilado em campos de concentração, escreve sobre um dos mais terríveis carrascos do nazismo qualificando-o apenas como um ser banal, um burocrata eficiente, decerto pai de família modelar? A propósito, George Steiner, outro intelectual judeu que estica ao limite a coragem de pensar, escreveu algo semelhante no seu livro Linguagem e Silêncio. Neste livro, assim como em muitas entrevistas e depoimentos, ele reitera esta verdade desnorteante: o oficial nazista que comandava os campos de concentração era um homem como eu e você. Enquanto durante o dia, servidor zeloso do regime a que servia, coordenava as operações de extermínio dos judeus, à noite, cercado pela família, lia Shakespeare e Goethe, ouvia Bach e Mozart, cultivava, em suma, a mais alta tradição da cultura humanista europeia. Logo, o humanismo sublime que tanto cultuamos não constitui nenhuma garantia contra a barbárie. Ponto.

Espremendo o sumo da verdade, ou antes da coragem de pensar o que poucos ousam, foi isso o que Hannah Arendt ousou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Mas Luciano nos lembra de que ela foi além disso, pois também introduziu na polêmica a colaboração dos judeus com os nazistas no processo de gradual extermínio do seu próprio povo. Esta variante do livro polêmico está bem documentada na introdução sumária de Luciano, que naturalmente não se estende além do devido. Durma-se com o barulho que essa “velhinha irritante” provocou no mundo e entre seu próprio povo. Gershom Scholem, assim como outros judeus indignados, não dormiu, mas com certeza perturbou o sono da velhinha irritantemente ousada. Como não imaginar que ela não tenha sofrido durante essas batalhas ideológicas tão momentosas? Afinal, ela sabia da radicalidade do amor, tanto sabia que foi capaz de continuar amando seu mestre, herói filosófico e amante: Martin Heidegger, nazista confesso que nunca se retratou. Amou ainda mais Heinrich Blüchner, seu marido devotado, com quem compôs, como dizia o amigo comum Randall Jarrell, uma monarquia dual. Ela amou a amizade com a integridade com que poucos o fazem. Bastaria lembrarmos o amor que devotou a Karl Jaspers, Hermann Broch e Mary McCarthy. Esta, a propósito, incluiu em Occasional Prose um belo e comovente obituário intitulado “Saying Good-bye to Hannah (1907-1975)”.

Como todos que ousam pensar o pensamento na sua radicalidade, ainda quando sabendo que não existe verdade absoluta, Hannah Arendt pagou a essa convicção o tributo que outros, antes e depois, pagaram e continuarão pagando. Penso, por exemplo, em Sócrates, epítome do pensador radical, Émile Zola e, entre os contemporâneos de Hannah, Bertrand Russell e George Orwell. Foram todos de algum modo punidos, além de transtornarem o léxico ideológico corrente. Talvez por isso Luciano inaugure sua série de epígrafes extraindo de uma entrevista a interrogação incontornável: onde situar Hannah Arendt ideologicamente? Conservadora ou liberal (no sentido americano do termo, conviria frisar)? Ela responde sem aparentar maior inquietação a respeito do assunto. Tanto que alega não acreditar que as questões do século em que viveu tivessem relação relevante com essas qualificações. Parece-me significativo registrar que, no obituário acima mencionado, Mary McCarthy a identifica como “conservationist”, termo que remete antes à ecologia do que à ideologia. Intentando ser fiel a McCarthy, esclareço que ela usa o termo no sentido seguinte: Hannah Arendt acreditava que devemos conservar tudo que já foi pensado.

Voltando à lição que dedica ao “Caso de Little Rock” , Luciano descreve com brevidade suficiente o que me parece sugerir o processo de pensar de Hannah Arendt, processo que acabava lançando-a no olho do furacão. Visando conferir precisão ao que segue, preciso acentuar brevemente que “O Caso de Little Rock” foi um episódio crucial na luta contra a segregação racial nos EUA. De que modo Hannah Arendt interveio? Ela simplesmente se perguntou o que faria se fosse a mãe de uma menina branca. Em seguida, o que faria se fosse a mãe de uma menina negra atirada - esta literalmente, a outra em termos hipotéticos - no cerne da batalha racial.

Ora, deixando de parte as respostas que propõe, e é aí que ela se encrenca com todos os bem e mal pensantes do mundo, o que ressalto é o fato de Hannah pensar o real com empatia. Esta é a forma mais radical de pensar, se podemos concentrá-la numa única palavra. Pois o que é o pensamento empático, senão esse procedimento com que ela própria ilustra sua atitude mental e política diante da realidade da segregação racial? O procedimento pode ser transposto para sua interpretação do totalitarismo, do nazista Eichmann, do comprometimento do seu mestre e amante Heidegger com o nazismo etc. Hannah pensava colocando-se imaginariamente no lugar do que pensava. É daí que me parece proceder a radicalidade do seu pensamento que projetou luz e entendimento no mundo, mas também irritação e ódio, fúria e rejeição. Pensar aderindo à perspectiva do outro, sobretudo quando este é o nosso avesso, é manifestação raríssima de liberdade e generosidade espiritual. É daí, suponho, que procede a radicalidade do pensamento de Hannah Arendt.

Não posso concluir esta resenha sem antes lhe acrescentar uma nota de frustração pessoal. Deploro o fato de Luciano simplesmente ignorar no seu estudo do conjunto da obra de Hannah Arendt o livro dela que é o meu favorito. Refiro-me a Homens em tempos sombrios. Conhecendo tão bem o autor, e portanto sabendo o quanto aprecia a literatura, causa-me certa estranheza o silêncio que aqui deploro. Afinal, ele também compartilha com Hannah Arendt um profundo apreço pela literatura, apreço que de resto se espelha na sua escrita tão avessa à padronização instituída pela cultura acadêmica. Espelha-se ainda na sua admiração de leitor fiel de Machado de Assis e Graciliano Ramos, que dele mereceram um volume de ensaios críticos. (Ver O Bruxo e o Rabugento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010).

Em Homens em tempos sombrios, como sabemos, Hannah Arendt reúne um grupo de grandes intelectuais marcados em circunstâncias variáveis pelos horrores do século em que viveram. A exceção é Lessing, poeta, dramaturgo e filósofo do século 18. Sua inclusão deve-se ao fato de merecer no ensaio de abertura do volume um tratamento equivalente ao de um contemporâneo dos demais estudados em seguida. Esse livro sobre o qual Luciano Oliveira infelizmente silencia revela os dotes extraordinários de Hannah Arendt como ensaísta consagrada ao ofício da biografia intelectual sintética. Retenho ainda na memória de minhas leituras desse livro as belas e comoventes páginas que escreveu sobre o caráter melancólico de Walter Benjamin. Não bastasse isso, e os horrores do século em que viveu, teve a infelicidade de estar sempre nos lugares errados.

Embora o título do livro seja extraído de um poema de Brecht, um dos artistas nele estudados, e o título bem a propósito condense a relação crucial entre o intelectual e o contexto histórico, a ensaísta é sensível aos traços distintivos que individualizam seus personagens (Abro parênteses, literalmente, para lembrar que o livro inclui dois capítulos sobre personalidades de natureza distinta: o papa João XXIII e Waldemar Gurian). Afinal, como ela própria ressalta, deles emana a luz, ainda que tênue, que nos anima a continuar vivendo e lutando quando a escuridão desce sobre as nossas vidas. É antes dessas obras e dos espíritos criadores excepcionais que lavramos um sentido para nossas vidas e para o mundo, bem mais neles do que em teorias e conceitos procedentes de outras fontes de saber e representação da realidade humana.
10 Lições sobre Hannah Arendt.
Autor: Luciano Oliveira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

sábado, 1 de setembro de 2012

Minha avó Hannah


A foto que ilustra esta crônica não é infelizmente a que a inspira. Procurei-a, a inspiradora, no Google e noutras fontes possíveis. Não a encontrei. Sendo assim, peço ao leitor benevolente um certo exercício de imaginação visual ao ler o que segue.
Um dia vi uma foto de Hannah Arendt. Lembro-me de que foi pouco depois de ler a tradução brasileira, Companhia das Letras, de Homens em tempos sombrios. Aliás, andei remexendo minhas prateleiras, agora bem encolhidas, pois me desfiz de muito que erradamente julguei não mais precisar, na esperança de encontrar nessa edição a foto que procuro, a inspiradora desta crônica. Não encontrei meu exemplar. Certamente dei-o a algum amigo. Resta-me o exemplar de uma edição em inglês, mas nesse não há sequer uma foto. Privado da foto que procuro, valho-me tão só da minha memória.

Recuando no tempo, foi ao ver a foto de Hannah Arendt que me comovi prontamente, pois ela me fez evocar a imagem de minha avó Joaquina, a quem sempre chamei de vovó Quininha. Achei extraordinária, à altura da vida de ambas, a semelhança – semelhança estritamente física, acentuo. Em tudo mais que poderia considerar, tendo em mente o pouco que sei da vida e da obra de Hannah Arendt, associo mulheres de mundos e experiências totalmente diferentes. Mas espanta-me ainda a semelhança física que me leva sempre a associar a imagem de minha avó à de Hannah.

Sugiro ao leitor cultivado na obra de Hannah Arendt que largue a crônica por aqui, se acaso espera ler em qualquer sentido uma apreciação crítica da sua obra. Não é meu propósito. Esta crônica, deixo claro, não passa de um exercício arbitrário de memória inspirado por uma foto dessa extraordinária pensadora, tão independente e corajosa na defesa de suas convicções que induziu meu amigo Luciano Oliveira, estudioso de sua obra, a chamá-la de “velhinha irritante”. Antes que o confundam no sentido que imprime ao aposto com seu toque tão pessoal de humor, o tom e a intenção de Luciano é de admiração e afeto.

A foto de Hannah tocou-me de modo singular. Não apenas levou-me prontamente a evocar a imagem de minha própria avó, como já afirmei, mas me mordeu a consciência com um travo de culpa sem reparação. A imagem de minha avó que me veio à memória foi a da última vez em que a vi. Eu estava dentro de um ônibus cheio de passageiros trafegando na Rua Imperial, que foi cenário tortuoso da minha infância e adolescência. Ia na direção de Afogados quando, por alguma razão que me escapa, fiquei retido em meio ao trânsito paralisado, fenômeno então incomum. Daí dizer que a razão desse fato me escapa.

Coincidência ainda mais singular foi o fato de o ônibus parar bem próximo à casa onde minha avó vivia com meu tio Nelson. Depois que deixei minha família e passei a mudar de endereço como um judeu errante, minha avó foi viver nessa casa apenas compartilhada com meu tio Nelson. Como este vivia pelo mundo, rodando pelas estradas no exercício itinerante de sua profissão de caminhoneiro, ela ficou reduzida a uma solidão quase absoluta. Em pé no ônibus cheio de passageiros, vi-a no centro da porta de entrada, os cotovelos apoiados na parte inferior da porta que se dividia em duas partes. A parte superior estava logicamente aberta.

Lembro-me de que era tardinha, aí pelas cinco da tarde. Minha avó fitava a rua sem prender os olhos em nenhum objeto preciso. Seu olhar era portanto o olhar vago de quem olha para fora como se olhasse para dentro, ou simplesmente neutralizasse a visão dispersando-a numa sucessão de sensações móveis. Dentro do ônibus imobilizado no rio congelado do trânsito, esqueci-me de mim e de tudo que me rodeava enquanto concentrava minha visão em minha avó. Separava-nos a distância de uns cinquenta metros. A imagem que dela irradiava era a da velhice abandonada e solitária. Vendo-a paralisada na tarde, o olhar perdido no movimento da rua, senti uma dor imensa, um dó imenso da minha avó. Não bastasse a imagem para sempre pregada na minha memória, leio ainda naquele ser miúdo e solitário todo um longo e doloroso percurso de privação fechando o círculo estreito e opressivo de sua vida.

E assim salto da imagem para a memória distendida no tempo carente de reter na crônica os vincos dominantes da passagem de minha avó por este mundo. Ela pouco falava de si própria, das dores que acumulou ao longo de uma longa vida. O que sei de mais pessoal e doloroso é de certo modo parte da memória comum da família. O marido era um bruto, por um tudo, sobretudo por um nada, tratando os filhos a pancada, não raro impondo aos mais rebeldes, como minha mãe e meu tio Aloísio, surras impiedosas. Quando morreu, deixou a família praticamente desamparada: minha avó e cinco filhos. Foram salvos por meu pai que, depois de casar com minha mãe, abrigou a família inteira na sua casa de comerciante solteirão e abastado.

Na verdade, meu pai não casou com minha mãe, mas com a família dela. Minha avó continuou prisioneira da casa e da cozinha, espaço natural da mulher dentro da ordem patriarcal. Depois vieram os filhos das suas filhas, netos quase sempre entregues aos cuidados de minha avó. Quanto aos filhos dela, foram cuidar de suas vidas e ela ficou entre as famílias constituídas por minha mãe e minha tia Vitória. Encurtando o enredo, esse foi seu destino: cuidar até à velhice dos filhos das filhas, além do filho Nelson, homem de nervos abalados, miseravelmente escravo de uma avareza intransigente.

Prisioneira de uma vida tão áspera, marcada pela privação e a rudeza do trato, além da violência sem reserva do marido, não é de estranhar fosse minha avó uma mulher também áspera e pragmática. Via a realidade através do filtro estreito do grupo familiar, a vida regida por interesses materiais. Cuidava dos filhos, mais tarde dos netos, com um senso de dever impecável, mas nada punha de amor, de expressão afetuosa manifesta nesse trato com os parentes. Pelo contrário, vivia quase sempre resmungando pelos cantos da casa, sempre cuidando das tarefas repetitivas e repreendendo com severidade, embora não me lembre de vê-la uma única vez castigando fisicamente nenhum filho ou neto.

Um dia me dei conta de que aquela aspereza de trato, a função provedora isenta de afeto, neutra de amor e carícia, era apenas uma couraça defensiva, o meio que desde cedo precisou aprender para lidar com a brutalidade do mundo. Descobri um dia, noutras palavras, que minha avó era apenas um ser carente de amor, privado portanto de tudo que era incapaz de nos dar de forma manifesta em ato e palavra. Minha avó não me dava amor. Resmungava comigo como se eu fosse apenas um objeto de dever maternal devido à razão muito simples de que não sabia o que era dar e receber amor.

Menino carente de amor, privado de amor de mãe e de necessária regência paterna, comecei timidamente, em tom meio de brincadeira, a alisar os cabelos de minha avó, acercar-me dela e de repente tocá-la com uma carícia corrida, curta o suficiente para prevenir qualquer rejeição. Ela reagia crispada, resmungava um “vai pra lá” sem convicção, e assim fui lentamente dissolvendo-lhe a couraça. De tanto cercá-la com gestos cada vez mais ousados e firmes de afeto, acabei conquistando seu amor. Não que tenha passado a me tratar com carícia e afago, mas passou a aceitar sem reservas meus gestos de afeto. Foi assim que me tornei seu neto favorito.

Preocupada com meu futuro, passou a seguir-me com advertências pragmáticas ao me surpreender com frequência absorto na leitura de algum livro. É que certo dia, por um desses acasos felizes e simplesmente inexplicáveis, pus-me a remexer o topo da estante do meu tio Edmundo, já falecido, que ocupava lugar central dentro da sala de estar. Essa estante era uma figura ambígua, símbolo do lugar que a cultura letrada ocupava num mundo povoado pelo analfabetismo e as tarefas imediatamente orientadas para o duro exercício da sobrevivência. Num mundo tão primitivo, de cultura letrada tão raquítica, o livro e a estante ocupavam lugares desprezíveis e enigmáticos, objeto tanto de desprezo quanto de admiração. Daí a ambiguidade acima assinalada.
Meu tio Edmundo, leitor de jornal e gramática, de romances e outras matérias intrigantes, foi até colaborador ocasional do Jornal do Commércio, um dos dois principais periódicos de Pernambuco. Morto ainda relativamente jovem, deixou no mundo minha tia Vitória e seus quatro filhos. De quebra, essa estante de livros intocáveis dominando com silêncio inquietante para minha curiosidade de adolescente a sala de estar quase sempre deserta, pois há muito a família morava em Recife. E eis que chegou esse dia em que, mordido pela curiosidade, desandei a catar a chave da estante. Encontrei-a afinal, já recoberta pela ferrugem do esquecimento. Abri-a sem ainda saber que estava descortinando um mundo, o mundo que se sobreporia à minha paixão febril pelo futebol, às vagabundagens pelo desgoverno de Igarapeba com seus canaviais, sua gente pobre e rude, seus horizontes que, na minha imaginação, aquelas milhares de páginas já desbotadas pelo tempo ampliariam até os confins da Sibéria, guiado por Dostoiévski, até as múltiplas e míticas paisagens europeias traçadas pela pena de Alexandre Dumas, o pai e o filho, Walter Scott, Charles Dickens, Thomas Hardy, Eça de Queiroz e folhetinistas como Lorenzo Gualtieri, autor de Maria, a fada do bosque.

A descoberta desse mundo fabuloso da imaginação, até então silenciado e protegido pelo vidro e a poeira da estante do meu tio, foi sem exagero uma mudança radical na minha vida. Para começar, como já sugeri, afastei-me das vagabundagens da vila e até o futebol ficou um pouco encolhido dentro da fatias de tempo que dividiam as rotinas do meu dia. Os amigos, dando pela minha falta, surpreendendo-me encolhido na solidão dos livros, retido no silêncio da sala deserta, não entendiam o que se passava comigo. A oposição mais firme, embora recoberta de cuidados antevistos no futuro sombrio que me aguardava, procedia de minha avó. Temendo ver-me reduzido à solidão inútil de um leitor de livros mofados, avessos à ordem prática do mundo, minha avó continuamente se acercava de mim e me advertia: “Vai cuidar da vida, menino. Livro não dá dinheiro a ninguém. Por que não segue o exemplo de Antônio Costa? É um ativo, um sacudido, sempre ganhando dinheiro...”

Era assim que minha avó procurava salvar-me da inutilidade, da catástrofe que seria tornar-me mais um letrado desocupado no mundo regido pelo trabalho árduo e a necessidade vigilante. Não sabia ela, coitada, nem teria como, que aqueles livros obscuros e desprezados, mas também portadores de segredos invejados pelos iletrados, salvaram-me das rotinas tediosas da vila, descortinaram na minha imaginação e na minha inteligência relutante, mas carregada de interrogações, um rastro de luz e entendimento que passei a seguir diligentemente através de minha vida. O que de melhor fiz de mim, não tenho dúvida, teve início na solidão e no silêncio daquela sala de estar no dia em que abri a porta da estante com a chave enferrujada e um sopro de vento correu as páginas dos livros mofados contaminando-me para sempre.

Quem diria que meu errático percurso de leitor me transportaria da estante do meu tio às páginas da “velhinha irritante”? Mais improvável ainda pareceria essa semelhança física que surpreendi espelhada entre a foto de uma e a memória da outra. Para além da minha culpa, ainda latejante, por não ter naquela tarde distante descido do ônibus para espantar a solidão desamparada da minha avó, enredo-me em vagos e improváveis símbolos que me prendem à lenda do judeu errante ou à semelhança física entre uma judia, a mais extraordinária judia da cultura do século vinte, e minha pobre e obscura avó. Como não me decidi a descer do ônibus para ir ao encontro de minha avó, aquela foi a última imagem que dela retive. Logo mais tarde segui errando pela vida, enquanto ela foi viver em Salvador acolhida pelo amor do meu tio Aloísio.

E segui errando, errando através de cidades, estradas, ruas e endereços como um judeu errante. Errando nos bares, no trânsito promíscuo de corpos sem aderência, meros móveis de carne e prazer momentâneo. Errando através de pousos, refúgios, pensões e camas sempre moventes. Errando também através de livros, dos labirintos traçados pelo pensamento e a imaginação de escritores e artistas incontáveis. Esse é meu melhor e mais fiel modo de erro. Não daria completa razão à minha avó, quando me advertia vaticinando um futuro de fracasso para seu neto querido, porque, vindo de um mundo tão obscuro, tão crivado de erros e fracassos, chegar aonde cheguei é inegavelmente um triunfo. Portanto, o fantasma de Judas, o obscuro, o trágico e pungente personagem de Thomas Hardy que tão poderosamente vincou minha imaginação com linhas sombrias, não se converteu na realidade que poderia ter sido a minha vida. Mas acreditem que cheguei bem perto dele, do seu fracasso irreparável.

Voltando a Hannah e minha avó, presto minha humilde memória a esta ao lhe emprestar o nome de uma das mulheres mais admiráveis do século. Houvesse eu descoberto a judia, “a velhinha irritante” durante o tempo em que convivia ainda com minha avó, teria com certeza falado de uma à outra, teria sobretudo ressaltado a semelhança física que entre elas identifico. Receio porém que minha avozinha, prisioneira irredimível do seu orgulho obscuro, atado à medida crua da razão utilitária, confinaria sua curiosidade a uma pergunta curta e direta: “Quanto ela ganha pra escrever esses trastes?”
Recife, 14 de agosto de 2012.