sábado, 1 de setembro de 2012

Minha avó Hannah


A foto que ilustra esta crônica não é infelizmente a que a inspira. Procurei-a, a inspiradora, no Google e noutras fontes possíveis. Não a encontrei. Sendo assim, peço ao leitor benevolente um certo exercício de imaginação visual ao ler o que segue.
Um dia vi uma foto de Hannah Arendt. Lembro-me de que foi pouco depois de ler a tradução brasileira, Companhia das Letras, de Homens em tempos sombrios. Aliás, andei remexendo minhas prateleiras, agora bem encolhidas, pois me desfiz de muito que erradamente julguei não mais precisar, na esperança de encontrar nessa edição a foto que procuro, a inspiradora desta crônica. Não encontrei meu exemplar. Certamente dei-o a algum amigo. Resta-me o exemplar de uma edição em inglês, mas nesse não há sequer uma foto. Privado da foto que procuro, valho-me tão só da minha memória.

Recuando no tempo, foi ao ver a foto de Hannah Arendt que me comovi prontamente, pois ela me fez evocar a imagem de minha avó Joaquina, a quem sempre chamei de vovó Quininha. Achei extraordinária, à altura da vida de ambas, a semelhança – semelhança estritamente física, acentuo. Em tudo mais que poderia considerar, tendo em mente o pouco que sei da vida e da obra de Hannah Arendt, associo mulheres de mundos e experiências totalmente diferentes. Mas espanta-me ainda a semelhança física que me leva sempre a associar a imagem de minha avó à de Hannah.

Sugiro ao leitor cultivado na obra de Hannah Arendt que largue a crônica por aqui, se acaso espera ler em qualquer sentido uma apreciação crítica da sua obra. Não é meu propósito. Esta crônica, deixo claro, não passa de um exercício arbitrário de memória inspirado por uma foto dessa extraordinária pensadora, tão independente e corajosa na defesa de suas convicções que induziu meu amigo Luciano Oliveira, estudioso de sua obra, a chamá-la de “velhinha irritante”. Antes que o confundam no sentido que imprime ao aposto com seu toque tão pessoal de humor, o tom e a intenção de Luciano é de admiração e afeto.

A foto de Hannah tocou-me de modo singular. Não apenas levou-me prontamente a evocar a imagem de minha própria avó, como já afirmei, mas me mordeu a consciência com um travo de culpa sem reparação. A imagem de minha avó que me veio à memória foi a da última vez em que a vi. Eu estava dentro de um ônibus cheio de passageiros trafegando na Rua Imperial, que foi cenário tortuoso da minha infância e adolescência. Ia na direção de Afogados quando, por alguma razão que me escapa, fiquei retido em meio ao trânsito paralisado, fenômeno então incomum. Daí dizer que a razão desse fato me escapa.

Coincidência ainda mais singular foi o fato de o ônibus parar bem próximo à casa onde minha avó vivia com meu tio Nelson. Depois que deixei minha família e passei a mudar de endereço como um judeu errante, minha avó foi viver nessa casa apenas compartilhada com meu tio Nelson. Como este vivia pelo mundo, rodando pelas estradas no exercício itinerante de sua profissão de caminhoneiro, ela ficou reduzida a uma solidão quase absoluta. Em pé no ônibus cheio de passageiros, vi-a no centro da porta de entrada, os cotovelos apoiados na parte inferior da porta que se dividia em duas partes. A parte superior estava logicamente aberta.

Lembro-me de que era tardinha, aí pelas cinco da tarde. Minha avó fitava a rua sem prender os olhos em nenhum objeto preciso. Seu olhar era portanto o olhar vago de quem olha para fora como se olhasse para dentro, ou simplesmente neutralizasse a visão dispersando-a numa sucessão de sensações móveis. Dentro do ônibus imobilizado no rio congelado do trânsito, esqueci-me de mim e de tudo que me rodeava enquanto concentrava minha visão em minha avó. Separava-nos a distância de uns cinquenta metros. A imagem que dela irradiava era a da velhice abandonada e solitária. Vendo-a paralisada na tarde, o olhar perdido no movimento da rua, senti uma dor imensa, um dó imenso da minha avó. Não bastasse a imagem para sempre pregada na minha memória, leio ainda naquele ser miúdo e solitário todo um longo e doloroso percurso de privação fechando o círculo estreito e opressivo de sua vida.

E assim salto da imagem para a memória distendida no tempo carente de reter na crônica os vincos dominantes da passagem de minha avó por este mundo. Ela pouco falava de si própria, das dores que acumulou ao longo de uma longa vida. O que sei de mais pessoal e doloroso é de certo modo parte da memória comum da família. O marido era um bruto, por um tudo, sobretudo por um nada, tratando os filhos a pancada, não raro impondo aos mais rebeldes, como minha mãe e meu tio Aloísio, surras impiedosas. Quando morreu, deixou a família praticamente desamparada: minha avó e cinco filhos. Foram salvos por meu pai que, depois de casar com minha mãe, abrigou a família inteira na sua casa de comerciante solteirão e abastado.

Na verdade, meu pai não casou com minha mãe, mas com a família dela. Minha avó continuou prisioneira da casa e da cozinha, espaço natural da mulher dentro da ordem patriarcal. Depois vieram os filhos das suas filhas, netos quase sempre entregues aos cuidados de minha avó. Quanto aos filhos dela, foram cuidar de suas vidas e ela ficou entre as famílias constituídas por minha mãe e minha tia Vitória. Encurtando o enredo, esse foi seu destino: cuidar até à velhice dos filhos das filhas, além do filho Nelson, homem de nervos abalados, miseravelmente escravo de uma avareza intransigente.

Prisioneira de uma vida tão áspera, marcada pela privação e a rudeza do trato, além da violência sem reserva do marido, não é de estranhar fosse minha avó uma mulher também áspera e pragmática. Via a realidade através do filtro estreito do grupo familiar, a vida regida por interesses materiais. Cuidava dos filhos, mais tarde dos netos, com um senso de dever impecável, mas nada punha de amor, de expressão afetuosa manifesta nesse trato com os parentes. Pelo contrário, vivia quase sempre resmungando pelos cantos da casa, sempre cuidando das tarefas repetitivas e repreendendo com severidade, embora não me lembre de vê-la uma única vez castigando fisicamente nenhum filho ou neto.

Um dia me dei conta de que aquela aspereza de trato, a função provedora isenta de afeto, neutra de amor e carícia, era apenas uma couraça defensiva, o meio que desde cedo precisou aprender para lidar com a brutalidade do mundo. Descobri um dia, noutras palavras, que minha avó era apenas um ser carente de amor, privado portanto de tudo que era incapaz de nos dar de forma manifesta em ato e palavra. Minha avó não me dava amor. Resmungava comigo como se eu fosse apenas um objeto de dever maternal devido à razão muito simples de que não sabia o que era dar e receber amor.

Menino carente de amor, privado de amor de mãe e de necessária regência paterna, comecei timidamente, em tom meio de brincadeira, a alisar os cabelos de minha avó, acercar-me dela e de repente tocá-la com uma carícia corrida, curta o suficiente para prevenir qualquer rejeição. Ela reagia crispada, resmungava um “vai pra lá” sem convicção, e assim fui lentamente dissolvendo-lhe a couraça. De tanto cercá-la com gestos cada vez mais ousados e firmes de afeto, acabei conquistando seu amor. Não que tenha passado a me tratar com carícia e afago, mas passou a aceitar sem reservas meus gestos de afeto. Foi assim que me tornei seu neto favorito.

Preocupada com meu futuro, passou a seguir-me com advertências pragmáticas ao me surpreender com frequência absorto na leitura de algum livro. É que certo dia, por um desses acasos felizes e simplesmente inexplicáveis, pus-me a remexer o topo da estante do meu tio Edmundo, já falecido, que ocupava lugar central dentro da sala de estar. Essa estante era uma figura ambígua, símbolo do lugar que a cultura letrada ocupava num mundo povoado pelo analfabetismo e as tarefas imediatamente orientadas para o duro exercício da sobrevivência. Num mundo tão primitivo, de cultura letrada tão raquítica, o livro e a estante ocupavam lugares desprezíveis e enigmáticos, objeto tanto de desprezo quanto de admiração. Daí a ambiguidade acima assinalada.
Meu tio Edmundo, leitor de jornal e gramática, de romances e outras matérias intrigantes, foi até colaborador ocasional do Jornal do Commércio, um dos dois principais periódicos de Pernambuco. Morto ainda relativamente jovem, deixou no mundo minha tia Vitória e seus quatro filhos. De quebra, essa estante de livros intocáveis dominando com silêncio inquietante para minha curiosidade de adolescente a sala de estar quase sempre deserta, pois há muito a família morava em Recife. E eis que chegou esse dia em que, mordido pela curiosidade, desandei a catar a chave da estante. Encontrei-a afinal, já recoberta pela ferrugem do esquecimento. Abri-a sem ainda saber que estava descortinando um mundo, o mundo que se sobreporia à minha paixão febril pelo futebol, às vagabundagens pelo desgoverno de Igarapeba com seus canaviais, sua gente pobre e rude, seus horizontes que, na minha imaginação, aquelas milhares de páginas já desbotadas pelo tempo ampliariam até os confins da Sibéria, guiado por Dostoiévski, até as múltiplas e míticas paisagens europeias traçadas pela pena de Alexandre Dumas, o pai e o filho, Walter Scott, Charles Dickens, Thomas Hardy, Eça de Queiroz e folhetinistas como Lorenzo Gualtieri, autor de Maria, a fada do bosque.

A descoberta desse mundo fabuloso da imaginação, até então silenciado e protegido pelo vidro e a poeira da estante do meu tio, foi sem exagero uma mudança radical na minha vida. Para começar, como já sugeri, afastei-me das vagabundagens da vila e até o futebol ficou um pouco encolhido dentro da fatias de tempo que dividiam as rotinas do meu dia. Os amigos, dando pela minha falta, surpreendendo-me encolhido na solidão dos livros, retido no silêncio da sala deserta, não entendiam o que se passava comigo. A oposição mais firme, embora recoberta de cuidados antevistos no futuro sombrio que me aguardava, procedia de minha avó. Temendo ver-me reduzido à solidão inútil de um leitor de livros mofados, avessos à ordem prática do mundo, minha avó continuamente se acercava de mim e me advertia: “Vai cuidar da vida, menino. Livro não dá dinheiro a ninguém. Por que não segue o exemplo de Antônio Costa? É um ativo, um sacudido, sempre ganhando dinheiro...”

Era assim que minha avó procurava salvar-me da inutilidade, da catástrofe que seria tornar-me mais um letrado desocupado no mundo regido pelo trabalho árduo e a necessidade vigilante. Não sabia ela, coitada, nem teria como, que aqueles livros obscuros e desprezados, mas também portadores de segredos invejados pelos iletrados, salvaram-me das rotinas tediosas da vila, descortinaram na minha imaginação e na minha inteligência relutante, mas carregada de interrogações, um rastro de luz e entendimento que passei a seguir diligentemente através de minha vida. O que de melhor fiz de mim, não tenho dúvida, teve início na solidão e no silêncio daquela sala de estar no dia em que abri a porta da estante com a chave enferrujada e um sopro de vento correu as páginas dos livros mofados contaminando-me para sempre.

Quem diria que meu errático percurso de leitor me transportaria da estante do meu tio às páginas da “velhinha irritante”? Mais improvável ainda pareceria essa semelhança física que surpreendi espelhada entre a foto de uma e a memória da outra. Para além da minha culpa, ainda latejante, por não ter naquela tarde distante descido do ônibus para espantar a solidão desamparada da minha avó, enredo-me em vagos e improváveis símbolos que me prendem à lenda do judeu errante ou à semelhança física entre uma judia, a mais extraordinária judia da cultura do século vinte, e minha pobre e obscura avó. Como não me decidi a descer do ônibus para ir ao encontro de minha avó, aquela foi a última imagem que dela retive. Logo mais tarde segui errando pela vida, enquanto ela foi viver em Salvador acolhida pelo amor do meu tio Aloísio.

E segui errando, errando através de cidades, estradas, ruas e endereços como um judeu errante. Errando nos bares, no trânsito promíscuo de corpos sem aderência, meros móveis de carne e prazer momentâneo. Errando através de pousos, refúgios, pensões e camas sempre moventes. Errando também através de livros, dos labirintos traçados pelo pensamento e a imaginação de escritores e artistas incontáveis. Esse é meu melhor e mais fiel modo de erro. Não daria completa razão à minha avó, quando me advertia vaticinando um futuro de fracasso para seu neto querido, porque, vindo de um mundo tão obscuro, tão crivado de erros e fracassos, chegar aonde cheguei é inegavelmente um triunfo. Portanto, o fantasma de Judas, o obscuro, o trágico e pungente personagem de Thomas Hardy que tão poderosamente vincou minha imaginação com linhas sombrias, não se converteu na realidade que poderia ter sido a minha vida. Mas acreditem que cheguei bem perto dele, do seu fracasso irreparável.

Voltando a Hannah e minha avó, presto minha humilde memória a esta ao lhe emprestar o nome de uma das mulheres mais admiráveis do século. Houvesse eu descoberto a judia, “a velhinha irritante” durante o tempo em que convivia ainda com minha avó, teria com certeza falado de uma à outra, teria sobretudo ressaltado a semelhança física que entre elas identifico. Receio porém que minha avozinha, prisioneira irredimível do seu orgulho obscuro, atado à medida crua da razão utilitária, confinaria sua curiosidade a uma pergunta curta e direta: “Quanto ela ganha pra escrever esses trastes?”
Recife, 14 de agosto de 2012.

2 comentários:

  1. Olá, Fernando!!! Grato pelo texto. Vejo que você fez as pazes com um passado. Você um gênio, útil não sei pra que. Nietzsche diz que o homem é o único animal atado às memórias, sobretudo sofridas. A história da sua avó é interessante retrato da nossa geração. Lembra, sim, minha mãezinha. São Benedito fica mais emblemática que Nova York. Que Ribeirão. Recife. E a rua Imperial supera a 5ª Avenida. Você é o meu Nietzsche dos trópicos. Cachorro não tem memórias. Ainda bem. Uau-Uau! Abraço

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  2. Meu querido Cap: Brincadeira à parte, você tem razão ao observar que fiz as pazes com um certo passado. Queria que você soubesse que você é e foi sempre parte de um outro: o que conjuga admiração e amizade. Acredite que você é ainda na minha memória um dos raros heróis daquele tempo. Não uso levianamente o termo herói. Você foi sempre para mim um modelo de integridade, coragem e fidelidade aos melhores valores do povo que procurei amar isento de popularismo e da idealização cômoda e não raro hipócrita da esquerda e da direita que sempre o espoliou e continua espoliando-o.

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