terça-feira, 4 de setembro de 2012

Denis Bernardes


No fecho de uma das obras-primas de Bergman, O sétimo selo, a morte conduz o séquito das suas vítimas recortadas na linha do horizonte. Seguem-na, os mortos, enfileirados e dançando. Dançam uma dança solene rumando para a escuridão irreversível. A cena é narrada por um obscuro artista ambulante. À luz do amanhecer, descreve a cena para sua mulher que traz o filho pequeno ao colo. A visão do narrador se dilui quando a mulher sensatamente observa: você e suas fantasias... E se vão puxando a carroça através dos campos desertos da vida. Cito de memória, daí a omissão das aspas.

Foi a morte de Denis Bernardes, no último sábado, 1 de setembro, o que me induziu a evocar o filme e a cena acima descrita com as tintas borradas da memória. Quem conhece o filme sabe que é uma luta entre o cavalheiro medieval (Max von Sydow) e a morte. A luta se trava na forma de uma partida de xadrez. O cavalheiro é um jogador exímio, um adversário refinado na arte do jogo, que é o jogo da vida, mas sabemos que está fadado à derrota. Pois quem teria gênio, astúcia e poder para dobrar a Inescapável nesse longo e fatal combate que contra ela travamos?

Setembro chegou privando-me, sem aviso prévio, de mais um dos grandes amigos de minha vida. O primeiro, Daniel Lima, morreu em abril. Com sua imaginação irreverente, Daniel habituou-se nos últimos anos do nosso convívio a aludir à morte como a Magra Caetana. Na visão do saltimbanco do filme de Bergman, ela lidera o séquito dos mortos portando a foice e a ampulheta. Nunca conversei com Denis, a sério ou brincando, sobre essa figura mítica e aterradoramente real. Lembro-me de que falamos com muito humor da velhice. Meu último encontro com ele e Gildo Marçal foi com certeza o mais divertido de tudo que com ambos compartilhei. Entramos a falar da vida e da velhice com a imaginação transfigurada pela magia do vinho tinto (que Gildo há muito estava proibido de beber e por isso nos acompanhava com a sobriedade lúdica dos viciados em Coca-cola) e daí fantasiei nosso internamento numa clínica geriátrica em tom bem mais delirante do que o da personagem de Bergman descrevendo a Magra Caetana e seu séquito dançando rumo à escuridão definitiva.

Além da beleza da cena que encerra o filme de Bergman, achei belo fantasiar meus amigos Daniel e Denis somando-se ao séquito da morte dançando como crianças. Ambos reverteram, fatalidade dos que morrem, à escuridão que ata os dois extremos de nossa passagem por este mundo: a escuridão do útero, de onde brotamos, e a escuridão do desconhecido, obra da foice e da ampulheta empunhadas pela Magra Caetana. Nada me custa imaginar Daniel saltitante, dançando a dança incontornável da morte. Custou-me um pouco figurar Denis despedindo-se da vida e dos que o amam, e aqui ficam, seguindo as pegadas dionisíacas de Daniel, a este dando uma mão, a Gildo a outra, enquanto mergulhavam na escuridão que doravante nos separa.

A memória involuntária, entretanto, astuta como a Magra Caetana no jogo de xadrez da vida, salta do fundo do meu inconsciente e repõe na luz transparente do dia uma cena de certo carnaval de Olinda. De repente, me vi na folia ao lado de Denis, Rita, Marjorie e Natan Sarmento. Logo que Denis e Rita casaram, depois de um namoro que começou no meu apartamento, o casal Marjorie e Natan a ambos somou-se criando uma espécie de confraria de farras de fim de semana. Participei de poucas, duas ou três, mas foi o suficiente para avaliar o quanto se ligaram através dos elos profundos da amizade feita de convívio alegre e festivo. Até onde pude perceber, esse foi o momento mais feliz da vida de Denis. A partir de então, nossa amizade encolheu e foi recuando para encontros esparsos e ocasionais. Outros amigos bem mais importantes entraram na sua vida. De uns dez anos para cá, diria que são eles, não eu, que melhor poderiam pronunciar-se sobre Denis, sobre fatos e experiências que mais profundamente vincaram seus últimos anos de vida.

Mas a imagem do carnaval que brotou do meu inconsciente traduz algo do espírito festeiro de Denis, avesso das suas características mais notáveis, aquelas que moldavam as linhas de um temperamento introspectivo, não raro dissimulado atrás de muitas portas inacessíveis. O Denis que aqui reponta, em plena folia do carnaval de Olinda, é o folião fantasiado como Dom Quixote, galopando um cavalo de fantasia escudado por seu fiel Sancho Pança, Natan Sarmento. Poucas vezes me diverti tanto no carnaval de Olinda seguindo-os rua afora na caça dissimulada, mas sempre sintomática, das mulheres lindas enfeitiçadas por esse circo colossal, esse delírio da imaginação coletiva que é o carnaval. Essas impressões me marcaram de forma tão profunda que na mesma tarde, recolhendo-me momentaneamente da folia, comecei a compor um longo poema intitulado Carnaval de Olinda. Por isso tomo a liberdade de abaixo transcrever os versos inspirados nas fabulosas aventuras que a fantasia carnavalesca os impeliu a desatar pelas ruas coloridas de Olinda:
De repente, um homem magro e recluso
se transfigura em Quixote
erra pelas ruas perseguindo mulheres
belas e atormentadas pela falta de amor ou pura carne.
Outro homem, um que fazia concursos e que já foi comunista
agora se chama Sancho e é louco qual o seu amo.
Mulheres vão libertando
que vivam o que desviveram.
A virtude atirem contra o diabo
que o corpo será dos homens,
amém.

São essas as memórias e imagens que quero reter nesta crônica dedicada a Denis Bernardes. Já que não era Bernardo, mas Bernardes, ficam aqui implícitos os muitos que foi. Outros com certeza melhor diriam sobre a obra de historiador que produziu, tão pouco conhecida. Mas o fato de Evaldo Cabral de Mello, um dos maiores historiadores brasileiros, distingui-lo com referências elogiosas a seu O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822, sugere um pouco do que esta obra representa para o estudo do processo histórico complexo, e ainda pouco estudado, da nossa independência. Outros ainda, a maioria, poderiam opinar sobre sua vida de professor e pesquisador. Outros sabem melhor da coerência discreta com que militou em nome de causas e movimentos políticos temperados por sua presença sempre admirável no seu timbre de tolerância e civilidade, no senso de virtude agregadora que assinalava sua participação em muitos grupos intelectuais e políticos.

Alguns amigos comuns ocasionalmente me falavam nos últimos tempos de um Denis transformado por experiências dolorosas associadas à doença e circunstâncias privadas alheias ao nosso convívio direto, que se estendeu, com as interrupções inevitáveis, de 1974 à época em que casou com Rita de Cássia, sua segunda mulher. Depois disso nossos encontros foram sempre, como acima salientei, esparsos e ocasionais. Costumo dizer que a amizade é o privilégio da intimidade. Tive a ventura de compartilhar isso com Denis e alguns poucos, pois amizades autênticas não se fazem nem perduram em redes sociais ou no circuito volátil das festas e reuniões sociais. E a intimidade é por natureza inconciliável com a exposição. Denis foi dos raros dotados de um senso não somente ético e político, mas também temperamental, nitidamente discriminativo da fronteira entre vida pública e vida privada, entre o privilégio da intimidade, expressão maior da amizade, e a vida pública.

A propósito, conviria religá-lo neste ponto a Daniel Lima. Ato assim, por mero arbítrio associativo, as duas pontas da crônica, já que comecei juntando-os num mesmo parágrafo e agora volto a reuni-los para concluir a crônica. Foram ambos homens afortunados, pois tinham o dom de se fazer amar. Embora tão distintos em termos de personalidade e temperamento, desfrutaram sempre do privilégio de serem bem amados, de preservarem amizades fiéis ao longo da vida. Até onde sei, essas amizades essenciais se prolongaram até à linha fatal onde foram colhidos pela Magra Caetana portando sua foice e sua ampulheta. Um dia, nós que aqui ficamos e lhes preservamos a vida que sobrevive na memória e nos ritos simbólicos que atualizam no tempo os que partiram, um dia seremos também colhidos pela Inescapável. Tudo que desejo (que mais desejar em face da necessidade?) é que ambos, Daniel e Denis, tenham partido dançando de mãos dadas com Gildo Marçal, Paulo Medeiros e tantos outros que já percorreram a linha irreversível da vida. Tudo que desejo é também saber dançar a dança da morte, que se aprende na vida, no momento em que a foice e a ampulheta sobre mim descerem.

Recife, 3 de setembro de 2012.

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