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domingo, 14 de outubro de 2012

Jorge (bem)Amado



O ano de 2012 assinala o centenário de dois dos mais consagrados escritores da literatura brasileira: Jorge Amado e Nelson Rodrigues. Em tempo, acrescentaria ainda Álvaro Lins, hoje infelizmente quase esquecido. Este, contudo, era um crítico literário e a tradição letrada nunca concede a essa categoria, a crítica, o valor atribuído ao criador literário no sentido estrito do termo (explicitando: o romancista, o poeta e o contista). O fato, de resto, deveria importar para que a cultura acadêmica tivesse a humildade de admitir a subordinação da crítica e da teoria à criação literária compreendida no sentido estrito que acabo de especificar. O assunto é de enorme relevância, mas não posso infelizmente considerá-lo sem enredar-me em digressões impertinentes.

Num país cujo público letrado é tão ralo, Jorge Amado e Nelson Rodrigues distinguem-se antes de tudo pelo extraordinário sucesso editorial, notadamente o primeiro. Jorge Amado alcançou o raro privilégio de viver de literatura bem antes do advento da televisão e da expansão da universidade brasileira. Enquanto a primeira contraiu ou desviou o público potencial da literatura, a segunda pouco concorreu para ampliá-lo. Com isso ou contra isso, Jorge Amado foi o mais afortunado dentre os representantes de uma corrente ficcional que conciliou de forma inusitada na nossa tradição literária a qualidade estética e o sucesso editorial. O leitor sabe que me refiro à corrente do romance social nordestino, cuja irrupção, no início dos anos de 1930, afetou a orientação da literatura experimental da década precedente e pouco mais tarde deslocou para segundo plano o romance de cunho psicológico e metafísico de Cornélio Pena, Octavio de Faria, Lúcio Cardoso e alguns outros. A cristalização e ápice desta última corrente é constituída pela obra de Clarice Lispector.

Já que o mercado é a única ideologia que nos sobra no presente, não é à toa que inicio este artigo ressaltando o singular sucesso editorial de Jorge Amado. É certo que, a julgar pelas estatísticas correntes, Paulo Coelho o superou como expressão desconcertante da literatura globalizada. Ainda assim, Jorge Amado detém trunfos estranhos ao sucesso colossal do rival. Além da amplitude da sua obra, acumulada dentro de um ritmo de progressão regular que se estendeu do início dos anos 1930 a 1994, data de publicação do seu último romance, teve grande parte da sua obra adaptada para o cinema, a televisão, o teatro e o rádio. Não bastasse tanto, Jorge Amado foi dos raros escritores brasileiros inventores de uma mitologia nacional. Ele traduziu em termos estritamente ficcionais o Brasil mítico inventado por Gilberto Freyre no âmbito das ciências sociais. O Brasil da sua ficção, sobretudo a Bahia, é uma reinvenção sua de tal modo impregnada no imaginário nacional que com ele, assim como com Gilberto Freyre e alguns poucos, aprendemos a ver e sentir o país real transfigurado por sua imaginação lírica, romântica, porejante de sensualidade e idealização imantada não no que somos, mas no que desejamos, não na tradição realista que ele sempre subverteu, mas numa forma de idealização romântica que nos representa como certamente gostaríamos de ser.

Diante do que acima esbocei, é previsível que a magnitude da data, o centenário de Jorge Amado, pouco encoraje apreciações pautadas pela isenção crítica, pela avaliação indiferente ao espírito de celebração. Lembrando ainda os soberanos interesses do mercado, a pressão é grande e espontânea o suficiente para que fiquemos apenas no batuque do samba exaltação, virtude de resto distintamente brasileira. Friso, portanto, que este artigo desdobra-se deliberadamente na contracorrente dessas manifestações previsíveis. Antes, porém, ressalto que Jorge Amado, como aliás qualquer autor de obra e biografia complexas, pode ser abordado em consonância com inúmeras perspectivas e escalas de valor. O que cabe ao crítico é explicitar seu ângulo de apreciação argumentando de forma coerente com o que se propõe a explorar. Antes de explicitar o meu, cuido de reconhecer alguns méritos inegáveis do autor e da obra.

Um dos grandes méritos de Jorge Amado, extensivo aos melhores representantes do romance nordestino dos anos 1930, foi conferir expressão palatável para o público leitor mais amplo conquistas estéticas propostas e limitadamente experimentadas pela linha de ponta do modernismo difundido no curso da década anterior. Refiro-me mais precisamente à incorporação do povo na literatura, à introdução bem sucedida da linguagem coloquial no discurso literário, à representação ficcional da cultura do povo. Estes são postulados pelo modernismo a partir de sua guinada nacionalista, isto é, a partir de 1924. Mas essa tradução de postulados estéticos e ideológicos do modernismo em clave regionalista não se fez sem alguns problemas que foram bastante discutidos pela crítica. Mário de Andrade, por exemplo, enfrenta essa questão no texto da sua célebre conferência de 1942 quando, a pretexto de celebrar os 20 anos do modernismo, procede a um balanço do movimento em tom isento de complacência mesclando crítica objetiva e apreciação impiedosa do papel que individualmente desempenhou no processo cultural.

Considerando o lugar central ocupado na literatura brasileira pela corrente do romance nordestino, Mário de Andrade louva as conquistas compreendidas pelos postulados que acima indiquei. Não o faz, entretanto, sem na outra dobra criticar nesses romancistas (à parte Graciliano Ramos, ressalva minha) o excesso de inspiração e improviso. Noutras palavras, a ausência de rigor construtivo que sempre exigiu do artista. O fato de empenhar-se em produzir uma obra comprometida com ideais humanistas e politicamente progressistas, apreensíveis na sincera identificação com o povo iletrado e oprimido, não isenta o artista do domínio da técnica e da linguagem artística, dos meios culturais necessários à criação literária.
Ora, sabemos que essa crítica afeta diretamente a obra de Jorge Amado, pois nele sempre prevaleceu, de par com seu notável talento para a fabulação e a transfiguração lírica da realidade, o desleixo relativo ao estilo e à linguagem. Por isso, mesmo a crítica mais favorável e simpática à sua obra (destacaria aqui Álvaro Lins, Antonio Candido, Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima) critica sua imaginação sensualista e primitiva, sua representação sentimental e idealizada do povo expressa na solução mágica dos conflitos e na caracterização psicológica das suas personagens demasiado esquemática. Parece-me de fato muito pobre a caracterização psicológica das suas personagens. À diferença de um Graciliano Ramos, que articula com maestria ação e caracterização subjetiva, ambiente e personagem, quando não um termo através do outro, Jorge Amado tende sempre para a caricatura quando formaliza literariamente antes tipos sociais (como o personagem de extração popular investido de virtudes idealizadas ou o pequeno-burguês, contra quem investe seu espírito satírico) do que representações realistas convincentes.

Aparentemente, o romancista nunca deu muita importância a essas restrições. Pelo menos é o que se deduz de uma frase conhecida com que à vontade se definiu: “Sou apenas um baiano romântico e sensual”. Alfredo Bosi não deixa por menos e assim comenta a frase: “Definição justa, pois resume o caráter de um romancista voltado para os marginais, os pescadores e os marinheiros de sua terra que lhe interessam enquanto exemplos de atitudes ´vitais`: românticas e sensuais...” (Ver História concisa da literatura brasileira, 34ª edição, pp. 405-6). Bosi vai adiante frisando que essa poética espontânea passou ao largo do realismo crítico contentando-se em fornecer ao leitor “...pieguice e volúpia, em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ´folclóricos` em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano” (Id., p. 406).

Cito e, além de citar, subscrevo o juízo crítico. Mais longe ainda que Bosi foi Walnice Nogueira Galvão, outra grande representante da crítica acadêmica. É dela a crítica mais devastadora que conheço sobre a obra de Jorge Amado. No auge da ditadura militar brasileira e do sucesso editorial do ficcionista baiano, 1973, ela escreveu um ensaio crítico a propósito do lançamento de Tereza Batista Cansada de Guerra (Ver “Amado: respeitoso, respeitável”, in Saco de Gatos).
Walnice abre seu ensaio esboçando uma equação complexa, mas essencial à análise da relação entre o escritor, o Estado e o mercado na tradição literária brasileira. Depois de louvar a coragem cívica com que Jorge Amado e Érico Veríssimo ousavam pronunciar-se contra a censura dentro dos limites de expressão impostos pela ditadura, contrapõe estes romancistas, significativamente independentes do Estado, já que dependentes do gosto público na esfera do mercado de livros, aos intelectuais dependentes do Estado, isto é, aqueles que são empregados públicos por não lograrem viver profissionalmente do exercício da literatura. Esboçadas essas linhas (remeto o leitor interessado ao ensaio de Silviano Santiago que replica e desdobra as consequências do teorema de Walnice, como escreve ele, no livro Vale quanto pesa), Walnice explora em termos críticos a relação entre a dependência do mercado e a qualidade da obra examinando em tom devastador o romance Tereza Batista Cansada de Guerra.

Analisando aspectos fundamentais do romance com corte preciso e polêmico, a ensaísta demonstra nesta obra particular as insuficiências formais e ideológicas da obra de Jorge Amado. Argumentando contra o caráter populista da sua ficção, sempre marcada pela idealização dos oprimidos, que são antes de tudo figuras da marginalidade baiana, ou do lumpemproletariado, fato que parece no mínimo irônico num escritor que foi militante comunista durante grande parte de sua vida, Walnice contrasta Tereza Batista com Moll Flanders, protagonista do romance homônimo de Daniel Defoe. O paralelo resulta constrangedor para nosso fabulista baiano. Bastaria lembrar que Tereza Batista é uma prostituta dotada de grande consciência política, portadora das melhores virtudes populares. Isso se aplica a ela quanto a todos os heróis marginais de Jorge Amado, o que contradiz liminarmente o conceito de lumpemproletariado.

Citando a própria Walnice, “Já Tereza não resvala, única personagem sempre virtuosa do romance. Se puxamos à memória os pobres de Brecht e de Buñuel, pensamos que Jorge Amado está brincando uma brincadeira sem graça; tudo se passa em seu romance como se a ética da miséria fosse outra e pobre virtuoso não morresse de fome; a idealização da miséria nada fica a dever a Gilberto Freyre. A tessitura ficcional interrompe-se a todo instante para dar ocasião a enunciados abstratos e polêmicos sobre a miséria; concretizada em Tereza, jamais aparece. Ela é, de fato, um ser moral, como alguma duquesa riquíssima de Balzac; no quadro frio e cruel das altas esferas francesas do século XIX, onde todos se entredevoram, de vez em quando há uma personagem assim. E Balzac aponta a condição, necessária mas não suficiente, pois só como exceção se dá, em que pode surgir um ser moral: em cima de um monte de dinheiro” (op. cit., p. 16).
Além dessa idealização da miséria, Walnice também ressalta um dispositivo formal, o discurso indireto livre, empregado por Jorge Amado para resolver em termos ambíguos, que variam da representação realista à mítica ou mágica, conflitos sociais evidenciadores da sua ideologia populista. Trocando novamente em miúdos: a heroína do povo é sempre virtuosa e vencedora, as divindades africanas sempre intervêm em defesa dos heróis populares. A isso se soma o discurso saturado de baixo calão, quando não da pura e simples pornografia e da perversão sexual. Walnice alinha exemplos convincentes da sua crítica relativa a esses aspectos do romance, também presentes noutras obras de Jorge Amado.

Seria simplista, como alguns supõem, considerar a crítica acima como evidência da polaridade entre rejeição da crítica acadêmica da obra de Jorge Amado versus aceitação unânime do público. Há sem dúvida alguns críticos acadêmicos que reconhecem no romancista baiano um dos mais importantes da literatura brasileira. Por outro lado, seria um engano traduzir seu extraordinário sucesso de público como evidência de unanimidade. O que me parece todavia previsível é o clima de irrestrita celebração assinalando a passagem do centenário desse extraordinário inventor de um Brasil mitológico. E o fato é que a mitologia é avidamente consumida e amada não apenas pelos brasileiros carentes de uma representação mítica e romântica da nossa cultura cujos traços predominantes são a sensualidade, o excesso desatado de culpa e governo, a idealização das nossas misérias seculares e o sincretismo mágico mesclando em tom confraternizador o arcaico e o moderno, os grupos e classes que não são o que são, mas por certo são o que o típico leitor amadiano (brasileiro ou estrangeiro ávido de exotismo cultural) gostaria que fossem.
Recife, 25 de setembro de 2012.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Machado e alguns críticos




Leio no avião, voando de Recife a Salvador, o livrinho sobre Machado de Assis que Alfredo Bosi escreveu para a coleção Folha Explica. Com elegância e estilo, traços que distinguem os grandes intelectuais uspianos, ele introduz duas fortes objeções: uma contra o método crítico de Antonio Candido sintetizado na sabida fórmula: conversão do fator externo (ou sociológico) em interno (ou estético); a outra, contra o famoso esquema do descompasso entre base escravista e ideologia liberal proposto por Roberto Schwarz para analisar o conjunto dos romances de Machado.

Retomo a anotação precedente iniciada em pleno voo. Bosi estica a primeira objeção ao extremo de caracterizar o método crítico de Antonio Candido como determinista. Não bastasse tanto, associa os fundamentos do sociologismo crítico deste a Louis de Bonald, o notório pensador reacionário francês. Bosi não se detém uma linha sequer na demonstração do vínculo ideológico entre os dois autores, deixando assim no ar a suspeita de um tom de maledicência crítica. Diz isso e vai adiante como que insinuando que o estilo e a elegância uspiana consistem na leviandade da crítica que morde soprando, ou atinge o alvo evitando nomeá-lo.

É curioso observar como os parâmetros da crítica literária de fundamentação sociológica propostos por Antonio Candido tem suscitado mal-entendidos. Enquanto uns erradamente, no meu entender, confundem sua concepção da crítica ao identificarem-na com uma forma espúria de formalismo sociológico, outros, é o caso de Bosi, criticam-no por subordinar os valores estéticos da obra aos sociológicos. Que me lembre, todavia, nenhum dos que se colocam na última categoria chega ao extremo de qualificar a obra crítica de Candido como determinista.

Pessoalmente sustento minha convicção de que Antonio Candido é a mais alta realização da crítica literária e cultural formada nos quadros da nossa ainda rala tradição acadêmica. Além dos seus dotes extraordinários de crítico, já evidentes no perfil precocemente sólido espelhado na crítica de rodapé que escreveu ainda quando estudante, seus ensaios de fundamentação metodológica, reunidos no volume Literatura e Sociedade, encerram a mais lúcida, penetrante e flexível reflexão teórica de que dispomos sobre o assunto. Nos ensaios aos quais aludo, notadamente os dois primeiros – Crítica e sociologia e A literatura na vida social – não encontro formulações que justifiquem as duas deduções acima assinaladas, isto é, o formalismo sociológico e, menos ainda, a crítica de base sociológica de cunho determinista.

Passando a Roberto Schwarz, o mais distinto discípulo de Antonio Candido, aqui Alfredo Bosi tem o zelo de proceder de modo mais criterioso. Depois de ressaltar o argumento do descompasso entre base econômica escravista e adoção do ideário liberal europeu no Brasil imperial, suporte teórico da obra de Schwarz sobre Machado de Assis, observa a ausência de tratamento dialético da antítese proposta. No entender de Bosi, Schwarz é incapaz de captar as expressões diferenciadas do liberalismo brasileiro, o que põe em xeque o argumento da desfaçatez e volubilidade das elites, dado estrutural da análise desenvolvida por Schwarz. Ademais, refutando o esquema deste, baseado no pressuposto da homologia entre forma estética e estrutura social como uma peculiaridade da formação sócio-econômica brasileira, ressalta que a conjunção liberal-escravista é identificável em “todas as formações da monocultura exportadora pós-coloniais, como o Brasil do açúcar e do café, as Antilhas do açúcar, particularmente Cuba e Jamaica, e todo o Velho Sul algodoeiro dos Estados Unidos” (p. 21). Acrescenta que em todos os casos mencionados a economia e a ideologia de base liberal conciliaram-se com o tráfico e o trabalho escravista. Restaria então indagar sobre a pertinência e eficácia teórica do esquema formulado por Roberto Schwarz, por muitos distinguido como a melhor contribuição ao estudo da obra de Machado de Assis.
O assunto me lembra, a propósito, um ensaio de Sérgio Paulo Rouanet incorporado ao volume O Mal-estar na Modernidade. Trata-se de “Contribuição, salvo engano, para uma dialética da volubilidade”, apreciação geral de Um Mestre na Periferia do Capitalismo, segundo livro de Schwarz dedicado ao romance de Machado. Que eu saiba, o extraordinário ensaio de Rouanet não teve maior repercussão entre os especialistas, incluído o próprio Schwarz. Aparentemente, sobretudo nas páginas de abertura e fecho, é uma peça de alto louvor crítico ao livro do grande machadiano da USP. Todavia, à medida que avança na leitura, o leitor perspicaz se vai dando conta de que o desdobramento da argumentação obedece a um princípio irônico similar a tantas das armadilhas irônicas que o sutil Machado interpõe na linha entre a aparência e o fundo, entre o ato e a intenção, ou ainda entre o fato apreendido em sua mera exterioridade e sua significação profunda. Pois o fato é que Rouanet – na abertura e na conclusão, como já frisei – não poupa elogios à obra e a à fina inteligência crítica de Schwarz. Contudo, à proporção que subordina o método elogiado ao crivo da recepção crítica, vai o leitor gradualmente se apercebendo de que, no conjunto, o ensaio é uma admirável operação de desmonte de toda a obra a princípio louvada. Em suma, Rouanet aprofunda com argumentação mais sólida e ampla as objeções condensadas no livrinho de Bosi que é objeto destas anotações. Sublinho, porém, uma diferença crucial: o ensaio dele é em tudo superior ao de Bosi, diria que superior a toda a crítica que conheço contra ou a favor da obra de Roberto Schwarz relativa a Machado de Assis.

Salvador, 13 de agosto de 2004.