quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Islamismo no Ocidente


É difícil para um brasileiro alheio à realidade concreta das relações culturais em países como a França e a Inglaterra opinar adequadamente sobre os atos de terrorismo ocorridos há poucos dias em Paris. Além de detentor de um vasto território, o Brasil goza do privilégio de ter uma cultura nacional integrada e nunca sofreu pressões imigratórias semelhantes às que ocorrem na Europa e nos EUA. Nossas pressões imigratórias são internas, basicamente no sentido campo-cidade e Nordeste-Sudeste. Apesar de se processarem entre compatriotas, sabemos os problemas que geraram e ainda geram. Tomo a liberdade de mencionar brevemente minha própria experiência como estudante brasileiro vivendo na Inglaterra. Assim poupo o leitor de abstrações teóricas mais complicadas.
O célebre affair Salman Rushdie eclodiu pouco depois que cheguei à Inglaterra. Para quem tem memória curta, Rushdie é um paquistanês de nacionalidade inglesa. Quando publicou Os Versos Satânicos, seu explosivo romance abordando o islamismo através de mecanismos literários correntes no Ocidente, desencadeou um clima de revolta e intolerância que me deixou simplesmente chocado. Quando vi na BBC multidões de imigrantes muçulmanos manifestando-se agressivamente nas ruas, sobretudo em Bradford, no Norte da Inglaterra, onde o livro foi queimado publicamente, logo me vieram à memória imagens do nazismo e uma amostra do humor mordente de Freud. Quando estudantes nazistas queimaram obras de escritores judeus e antinazistas, Freud fez a seguinte observação ao saber que livros seus foram também para a fogueira: Como estamos progredindo... Na Idade Média eles me queimariam; hoje contentam-se em queimar meus livros (omito as aspas, já que cito de memória).
Convivendo durante mais de quatro anos numa universidade inglesa com gente de todos os credos e procedências, pude constatar que mesmo o país fundador do liberalismo e das mais civilizadas formas de tolerância entre culturas lida com problemas inconcebíveis em países como o Brasil para acomodar sem conflitos extremos a sua população muçulmana. A julgar, no entanto, por quase tudo que ouço e leio entre nós, parece que nossa inconsciência etnocêntrica e o clima relativista e até niilista da nossa cultura acadêmica é incapaz de apreender a complexidade das tensões crescentes entre religiões e culturas inconciliáveis. Antes que me acusem de pregar o choque das civilizações, alinhando-me com o conservadorismo ocidental, adianto que o choque, se efetivamente ocorresse, teria consequências inimagináveis. Lembrando apenas um fato banal, a população de muçulmanos da Inglaterra, França e EUA é tão grande que não haveria como fixar fronteiras culturais e religiosas entre os grupos conflitantes. Noutras palavras, qualquer solução possível forçosamente traduzirá uma acomodação de forças dentro da realidade gerada pelo mundo globalizado que habitamos.
Aludi acima ao relativismo e ao niilismo correntes na nossa cultura acadêmica, que é de resto, como de praxe, reflexo do radicalismo intelectual servilmente adotado por nossa inteligência colonizada, porque daí procedem as críticas mais veementes contra o Ocidente e tudo que de pior este produziu na história moderna: colonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, genocídio, espoliação das massas periféricas e outros males que o leitor informado poderá acrescentar melhor do que eu. O que me incomoda é o fato de essa casta privilegiada de radicais simplesmente silenciar sobre os melhores valores da tradição ocidental que prezo com a convicção de que estão entre as defesas precárias de que dispomos para realizar um ideal mais civilizado e integrador de convívio. Lembrando Walter Benjamin, não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (novamente sem aspas).
Tenho em mente, noutras palavras, conquistas como a democracia moderna, a liberdade de opinião e credo, os direitos humanos e o reconhecimento do outro. Os radicais do Ocidente que não medem esforços para minar esses valores vêem apenas o que lhes convém denunciar. Parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam, além da sucessão de modas teóricas gestadas e diluídas na academia (estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo etc) são inconcebíveis fora do Ocidente. A evidência é simples assim: tentem imaginar um Nietzsche, um Foucault, um Edward Said, qualquer dos gurus do relativismo e do niilismo pregando suas ideias no Oriente Médio ou em qualquer país muçulmano. Tentem imaginar qualquer teórico ou adepto das minorias (aqui incluídas maiorias, pelo menos estatísticas, como o feminismo) pregando e sobretudo vivendo em ato e fato a diferença e o multiculturalismo que são moeda corrente e com freqüência falsa no vale tudo cultural do Ocidente.
Encurto o artigo sugerindo ao leitor um breve exercício de imaginação sociológica. Um terço da população de Marselha, berço do hino nacional francês, é constituído de muçulmanos. Espremendo o caldo, todos que não foram assimilados – ou aculturados, como bem ou mal dizem os antropólogos – nada têm a ver com os valores dominantes na França fundados pela tradição iluminista depois de séculos de conflitos internos e externos. Fatos extremos e inqualificáveis como os atos de terror recentes concorrem apenas para agravar tensões já por si muito complexas. Ademais, o terror não serve a ninguém, salvo àqueles que querem resolver os impasses humanos através da força e da destruição. Até nós, que gozamos do privilégio de não abrigar em território nacional esses conflitos entre culturas e religiões, até nós perdemos parte da liberdade e da segurança já precárias de que desfrutamos. No mais, é fácil para um relativista ou ressentido cultural brasileiro esbravejar contra a xenofobia francesa agravada por esses atos de terror. Queria ver como nos comportaríamos se Paris fosse a capital do Brasil.
Recife, 12 de janeiro de 2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

No Mural do Facebook II


Brasilbrás
A inconsciência e a apatia política do brasileiro não é uma coisa qualquer. É um mal entranhado na nossa formação mais remota. Por isso governantes, seja de que partido forem, usam e abusam dos nossos direitos e bens. Mesmo a minoria politizada e opinativa denuncia no geral os efeitos, pois não percebe as causas profundas do nosso atraso e problemas que se arrastam através de séculos. O Estado brasileiro, por exemplo, não mudou essencialmente desde as origens do império colonial português. É o Estado patrimonial, privatizado por uma casta que governa em benefício próprio e dos seus parentes, apadrinhados, amigos e associados. Nossa chamada elite é apenas uma clientela, como bem observou Evaldo Cabral de Melo. O Estado concentra o poder usando seu poder de agente interventor na esfera econômica para pilhar impiedosa e sistematicamente a sociedade. Segundo Eduardo Giannetti, 60% da nossa renda salarial procede do Estado. Isso evidencia o quanto a esfera do capital privado é restrita. Todos os países de comprovada eficiência econômica no capitalismo moderno funcionam exatamente de modo contrário. No país das estatais, ai de quem ousar sequer sugerir a privatização de um monstrengo como a Petrobrás.
Não falta quem denuncie a corrupção, sobretudo agora, quando assistimos à investigação de mais uma colossal pilhagem que provavelmente vai dar em nada ou em muito pouco, já que todos os partidos de maior força estão implicados. Para bom entendedor: vão se associar para impedir o avanço efetivo das investigações na esfera política. Quem paga a conta? O contribuinte, é claro. A sociedade apática e inconsciente da pilhagem sistemática a que é submetida continua dormindo nas filas e macas depredadas pela corrupção e o parasitismo público. Temos uma das mais altas cargas tributárias do mundo, com o agravante de que o Estado bem pouco retribui em serviços e deveres constitucionais o que cobra da sociedade, e agora vem por aí mais arrocho. Vamos novamente pagar as contas astronômicas da corrupção entranhada nas estatais e em todo o aparato estatal. Mas nem os críticos mais veementes ousam falar em privatização. Falar nisso é incorrer numa heresia, é coisa de neoliberal entreguista. E assim continuamos pagando contas sem resgate cada vez mais extorsivas. O que nos consola é a complacência fatalista com que nos gozamos e gozamos de tudo, sobretudo o circo que não pode parar. O carnaval já começou de costas para a crise que se agrava enquanto a classe dirigente e sua clientela continuam saqueando a sociedade inconsciente e apática. Merecemos continuar sendo um país de segunda categoria como se isso fosse uma praga ou fatalidade. E quase todos se consolam cantando o país da esperança, como se esperança fosse realidade. Nossa miséria é tão grande que sequer nos consola esperar sentado. Tem fila até para a esperança.
Facebook, 20 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

Acho que minha amiga Deborah Echeverria pisou em falso ao endossar argumentos de certos relativistas e críticos do Ocidente. Refiro-me a quem diz que não é Charlie. Para começar, o endosso à frase, ou slogan, não significa adesão irrestrita ao humor da revista Charlie Hebdo. Significa, antes de tudo, defesa da liberdade de expressão. Portanto, rejeição à barbárie destrutiva, com perdão do truísmo que se justifica como forma enfática. Lembrando a definição da liberdade proposta por Rosa Luxemburgo: Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós. Afirmar que o islamismo rejeita as grandes conquistas da modernidade, fruto da tradição iluminista cujo foco mais dinâmico foi a França do Século XVIII, não é incorrer em crime de intolerância ao islamismo, muito menos justificação do imperialismo ocidental.
É claro que há intolerância de um e de outro lado. Mas todas as conquistas democráticas, toda a tradição de reconhecimento e respeito pelo outro é obra do Ocidente. Isso é tão verdadeiro que somente no Ocidente existe relativismo cultural. Nossas universidades estão cheias de radicais de cátedra usando os sofismas do relativismo para atacar o Ocidente e defender todas as culturas diferentes ou incompatíveis com a tradição de tolerância fundada no Ocidente depois de muitos séculos de luta. A diferença é simples: tentem imaginar um Foucault ou um militante de qualquer movimento em defesa das minorias no Oriente Médio
Facebook, 10 de janeiro 2015.

P. S. – O comentário acima, postado no mural do Facebook, provocou a incompreensão previsível. Os limites do espaço já de partida me obrigam a condensar e também simplificar meus argumentos. Não bastasse tanto, a natureza polêmica do tema concorre acima de tudo para gerar todo tipo de controvérsia e apreciação impertinente. Não sou de frente ampla nem de voz unida. Nunca militei em partido político ou professei qualquer fé religiosa. Ademais, deixei claro o sentido em que endossava a frase que correu o mundo como um símbolo de resistência à intolerância e ao terror: Je suis Charlie. Pois não faltou quem me interpelasse acerca dos limites da liberdade de expressão, do meu eurocentrismo e por fim me incluísse na corrente dos conservadores intolerantes. Apesar de tudo, insisto em me explicar fiel a um princípio de respeito à opinião alheia, à opinião do leitor, seja quem for, até que me dou conta de que esbarro em paredes surdas e me calo.