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domingo, 16 de julho de 2017

No Mural do Facebook XXXII


Esperança e apatia:

Esta é uma verdade óbvia: um país, sobretudo bem sucedido, é fruto da ação coletiva da maioria. No Brasil, entretanto, poucos se dão conta disso, poucos agem norteados por esta verdade. Aqui é o país da esperança. E a esperança, também é óbvio, é no geral passiva. Poucos dizem: tenho esperança num futuro melhor e por isso vou lutar para que se realize. A verdade é o oposto. Quando invocamos a esperança, é porque nos sentimos impotentes diante da realidade.
No Brasil, país da esperança, vivemos, desde Dom Sebastião, daí o famoso mito sebastianista, a espera da volta ou milagre do pai salvador, do herói redentor, do Estado provedor. Em face da natureza, dos desastres e do caos que produz, notadamente por força da nossa baderna social, invocamos a ação divina, ou a de algum santo. As chuvas juninas no Nordeste, sempre devastadoras, são obra e solução celestial.
Por isso não me canso de dizer: o Brasil é muito atrasado, um escravo da força da tradição. Quando a coisa sai dos eixos frouxos que sustentam nossa sociedade anômica (privada de ordem civilizacional efetiva), esticando a corda da insegurança e do desespero, então apelamos até para o ditador que, na nossa mentalidade de servos, é o restaurador da ordem e do progresso, um insulto que pregaram na bandeira nacional. Como alguém já disse aqui no Facebook, é deprimente ler o que escrevo. Concluindo, o problema é o meu psiquismo depressor ou deprimido, não o país incapaz de realizar um projeto de real modernidade.
(Publicado no Facebook, 1 de julho de 2017).

O mal é estrutural:
Quase sempre deixo claro que não critico os impasses políticos e econômicos brasileiros restrito à sua esfera. Nossos problemas fundamentais, que remontam à nossa origem e nunca foram efetivamente enfrentados, são de ordem estrutural. A injustiça e a violência, a desigualdade iníqua e nosso atraso crônico, são apenas sintomas de nossas irresoluções estruturais. Sem reformas profundas nas esferas essenciais da sociedade, nunca seremos uma nação verdadeira, nunca uma democracia moderna. Os males estão em tudo, inclusive na esfera das relações íntimas, a começar pela família.
Já me cansei de afirmar que, bem longe desses mitos consoladores que envaidecem nossa mentalidade nacionalista e provinciana, somos uma sociedade anômica, isto é, privada de normas que imprimam sentido à nossa existência social e individual. Com ou sem a podridão que vaza de todos os esgotos do poder político, quase nada no Brasil funciona, ou funciona segundo princípios básicos de respeito aos direitos humanos, à efetiva noção de cidadania, à interação de cidadãos de fato, não de letra vazia gravada na Constituição e nos códigos que são modelos de modernidade. Mas isso existe e sempre existiu no papel. E papel, dizia Graciliano Ramos, que sofreu a brutalidade real avessa à letra da lei, papel aceita tudo. O que não nos falta é lei para tudo, tudo bonitinho no papel. No mundo real, somos ainda um fazendão de bacharéis e doutores, de mandantes e subordinados.
É óbvio que a realidade é muito mais complexa. O fazendão tem tecnologia de ponta, medicina idem e muito do que de mais avançado proveio e prevalece nas nações modernas. Mas o que de fato importa é que essa modernidade periférica se realiza sem superar as forças retrógradas e contrárias a tudo que em princípio é símbolo dos avanços e aperfeiçoamentos da ordem social contemporânea. Aqui a arquitetura de ponta se eleva espremida entre mocambos e favelas; o carrão top, provido da tecnologia mais avançada, esbarra no carroção do catador de lixo, o luxo e o lixo são indissociáveis, atrelados numa imagem de horror surreal que dissolve todas as teorias explicativas. Nem somos atrasados nem modernos. Por isso Kafka e sua imaginação ambígua e profética estão praticamente ausentes de nossa literatura. Quem precisa de literatura kafkiana quando ela é nossa própria realidade?
(Publicado no Facebook, 6 de julho de 2017)

A sensação de morrer:
Já ouvi vários relatos relativos à visão ou sensação de morrer. Há quem tenha visto uma figuração do céu ou além; há quem tenha ressuscitado convertido a alguma fé e experiências ou visões semelhantes. A minha, de alcance bem menos místico ou extremo, foi de uma serenidade indescritível. Depois de escapar por milagre de uma violenta colisão, provocada por uma amada seduzida pelo extremo da vida e da droga, voltei a mim numa sala de hospital entre máquinas congeladas (era a minha sensação).
De repente, tive uma estranha sensação de morte. Achei que estava morrendo. Só que essa sensação não me causou nenhum medo ou pânico. Pelo contrário, foi a maior experiência de serenidade e paz que senti na minha vida. Daí, salvo do desastre e da morte, mais tarde deduzi que a morte em si nada tem de aterrorizante nem anunciador de qualquer transcendência religiosa. Isso não quer dizer que me libertei do medo da morte. Reflito sobre ela com frequência e isento de medo. A ela devo alguns dos melhores poemas e meditações que escrevi. Nada mais além disso. Epicuro dizia não haver motivo para temê-la, pois quando somos ela ainda não é e quando ela é, já não somos. A formulação metafísica é bela, mas duvido que nos reconcilie com o medo da morte. São raros os que morrem com a serena coragem de Sócrates, Montaigne, Epícuro e os grande estoicos.
(Publicado no Facebook, 15 de julho de 2017).

Um mundo enfermo:
Detesto medicalizar a sociedade, até por por reconhecer a distinção elementar entre indivíduo e sociedade. Mas não há dúvida de que estamos vivendo numa sociedade doente. Grande parte da nossa doença individual, dos sintomas patológicos que sofremos, deriva de um estado de anomia e aridez espiritual que tem raízes socioculturais. Poderia expor uma infinidade de evidências para que isso não pareça mero subjetivismo.
Antes de tudo, a história humana foi sempre mutável. Algumas das suas crises mais profundas foram fundamentais para a renovação da sociedade. Esta que vivemos, no entanto, é de uma aceleração e de uma profundidade sem precedente. No curto intervalo de uma geração ocorreram mudanças para as quais somos incapazes de nos adequar positivamente. Estamos doentes porque a sociedade está doente.
E o mais grave é constatar que não sabemos o que fazer da nossa desorientação, do nosso desgoverno, do nosso mergulho sem âncoras em direção a um país cujo abismo não tem fundo. Sei que tudo isso que escrevo é deprimente, mas é real. Estou vivendo isso todos os dias, dentro e fora de mim. Quem quiser ou precisar, que se engane. Desafio qualquer gênio ou deus a assinalar uma saída para o caos em que vivemos.
O povão, regido pela alienação do rebanho, não está nem aí. Quanto mais o abismo se abre, mais fazem festa, se drogam, desprezam a realidade. Quanto à " elite", que Evaldo Cabral de Mello, justamente chama de clientela, escava ainda mais o abismo. O mais grave é a indiferença humana que se agravou, fruto da tecnologia digital. As pessoas estão cada vez mais solitárias e desamparadas. Por isso amam gatos e cachorros. Privados biologicamente de liberdade, estes são mais dóceis e servis ao nosso egoísmo. É isso aí. Deprimente ou não, é assim que grosseiramente percebo o mundo em que vivemos.
(publicado no Facebook, 16 de julho de 2017)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Tempo e Filosofia Antiga


Viviane Campos lê meu poema “O tempo presente”, postado no meu blog, e me pergunta no Facebook: “Por que o tempo presente?” Ora, porque é o único real. Concordando com os filósofos estoicos, penso que o passado já foi e o futuro não é ainda. Aliás, sequer sabemos se será. Será que estarei vivo amanhã ou mesmo alguns minutos mais tarde? Esse pensamento, que pode ser angustioso para tantos, constitui a condição filosófica necessária para que sejamos capazes de viver integralmente dentro do presente, viver o agora como momento absoluto. O que foi, o passado, é irreversível. Pior que isso, pode ser fonte de infelicidade e sofrimento se dele não nos libertamos efetivamente. Diante dele, podemos adotar dois tipos básicos de sentimento: a nostalgia ou o ressentimento. O primeiro expressa, de forma idealizada, pois a nostalgia deforma o passado evocando-o com tintas idealizadoras, nossa dor diante da memória de algo valioso que perdemos e radica no passado; o segundo, o ressentimento, é uma paixão amarga voltada contra um passado que foi fonte de sofrimento e frustração. Ao relembrá-lo, renovamos a dor antes sofrida.

Quanto ao futuro, este não é ainda, como já frisei. Portanto, infelicitamos nosso presente quando nos preocupamos com o que ainda não veio nem de resto sabemos se virá. Também aqui podemos adotar uma dupla atitude: uma expectativa ou sonho de futuro radioso e feliz ou uma expectativa sombria orientada para o temor de que o futuro será ainda pior que o presente. Num caso ou noutro, perturbamos negativamente nossa relação com o presente, com o tempo real. Quantas vezes não deixamos de viver melhor , de fruir melhor o momento atormentados seja pelo fantasma luminoso ou sombrio do passado irreversível, seja pela expectativa positiva ou negativa de um tempo que não é ainda e provavelmente nunca será como o figuramos ou desejamos? E quantas vezes não nos preocupamos, isto é, não ocupamos antecipadamente o que não teve ainda lugar e realidade sofrendo pelo que não veio ainda e talvez nunca se converta em vida consumada? E quantas vezes, refluindo imaginariamente no tempo não moemos dores e frustrações irreversíveis na memória envenenando ou anulando possibilidades factíveis do presente?

Embora continue sendo um leitor dispersivo, incapaz de fixar-me em qualquer saber restrito ou domínio especializado, leio agora cada vez mais filosofia. Faço-o movido por muitas razões de ordem pessoal, incluída a questão do tempo acima considerada. Faço-o ainda por acreditar e precisar aprender alguns grãos de vida examinada e melhor fruída. Mas meu interesse não é a filosofia técnica, muito menos a filosofia técnica produzida pela cultura acadêmica. Além de nada importar para meus fins existenciais ou inquietações humanas, trata-se de uma filosofia dissociada da vida, da ordem prática da vida que sempre constituiu o alvo prioritário da filosofia antiga. Durante algum tempo convivi com amigos academicamente treinados em filosofia. Para além das inconsistências teóricas que captava nas suas conversas, no saber filosófico que me expunham, impressionava-me o fato de não identificar qualquer vínculo entre o que liam e ensinavam e a vida que viviam.

Esses professores de filosofia estudam, ensinam e escrevem filosofia para obedecer às normas institucionais reguladoras do desempenho intelectual e acadêmico que confere títulos e reconhecimento social, renda e poder. Para muitos, pensar e ensinar filosofia, ou produzir conhecimento de segunda ou terceira mão, é apenas cumprir metas burocráticas de desempenho acadêmico. Quero dizer, em nada traduzem o espírito da filosofia antiga. Esta, antes de ser um discurso sobre a realidade, era um modo de vida. Por isso filósofos como Sócrates e Epicteto nada escreveram. Foi graças a discípulos devotados que a filosofia de ambos foi transmitida à posteridade. Para eles, aprender a filosofar era aprender a morrer através do exercício de uma vida examinada; dizendo o mesmo de um outro modo, aprender a viver.

Marco Aurélio escreveu suas Meditações, mas escreveu-as para si próprio, não para um leitor hipotético. Epicuro constitui um caso à parte. Embora também fiel ao exercício da filosofia como uma prática de vida, escreveu muito, ainda que apenas uma fração mínima da sua obra tenha sobrevivido. No geral, o saber que esses filósofos viveram e comunicaram a seus discípulos sobrevive e ainda hoje nos ilumina graças a discípulos e compiladores que registraram parte do saber transmitido através da vida prática, da sabedoria convertida em ação. Por isso ainda esses filósofos nunca se preocuparam em sistematizar uma filosofia unitária e coerente. Tampouco sábios modernos como Montaigne e Pascal perderam tempo e sono elaborando uma filosofia sistemática. Spinoza foi o único que logrou viver como um sábio e ao mesmo tempo conceber uma filosofia sistemática.

Dentro do espírito com que muitos dos antigos reduziram a filosofia a uma prática de vida sábia, não foram poucos os que chegaram ao extremo de desprezar a ciência. Epicuro ilustra muito bem essa questão. Insistindo em que a filosofia se realiza na ação, na vida vivida, não na teoria, não dissimulava seu desprezo pela ciência. Assim se explicam estas palavras endereçadas a Pítocles: “Meu caro, foge a todo pano da ciência”. Seu desprezo pelo saber puramente teórico ou especulativo, que a seu ver nada importava para a realização da filosofia como norma ética de aprimoramento da vida vivida pelo filósofo, levou-o ao extremo de também desprezar o cultivo da arte, da poesia e da história. Negando à arte função utilitária, assim como importância à história por tratar do passado, não lhes concedeu nenhum lugar na sua concepção filosófica da realidade. Foi devido a perspectivas dessa natureza que Bertrand Russell apreciou as escolas filosóficas pós-aristotélicas com muito rigor crítico na sua A History of Western Philosophy.

É sintomático que esse ideal de filosofia se renove no mundo em que vivemos. Embora as analogias históricas sejam sempre discutíveis, ainda mais quando propostas por um amador como eu, vale a pena indicar alguns pontos de afinidade entre o declínio da cidade-Estado, fundamento político e social da Grécia clássica, e a realidade espiritual do presente abalada por processos de vertiginosa mudança cultural. Os filósofos que acima mencionei, representantes do estoicismo e do epicurismo, viveram entre o processo de desintegração da hegemonia política e cultural da Grécia e o império romano. A filosofia que declina a partir da morte de Aristóteles transita da ágora, da polis que regulava a participação do filósofo na vida pública, para a constituição de uma ética privada, em certo grau já prefigurada nos ensinamentos de Sócrates, fato que decerto explica sua adoção pelos filósofos estoicos.Vivendo durante o processo de desintegração da ordem grega, cuja hegemonia foi sucedida pela dos macedônios e depois pela dos romanos, os filósofos sucessores de Aristóteles deslocam-se da esfera política para a privada. Esse deslocamento se traduz na preeminência de uma ética baseada na virtude privada, na busca da sabedoria de viver dissociada da ação política, embora um estoico como Marco Aurélio, como sabemos, tenha sido imperador.

Que fatores do presente acaso nos religariam a esse ideal filosófico baseado numa ética privada? Penso que a desaparição da utopia no horizonte da política, seguida da despolitização hoje corrente, ou da política pragmática restrita a resultados calculáveis em termos de acumulação e riqueza material, deixaram-nos reduzidos ao hiperindividualismo árido palpável na cena cultura contemporânea. Como pensar ainda na política movida pelo ideal utópico, ou pela religião num mundo secularizado que converteu o reencantamento religioso em variante de consumo espiritual? Penso que é dentro desse quadro ideológico grosseiramente esboçado que ressurgem as filosofias epicurista e estoica, assim como o interesse pelo budismo. Privados de ideais coletivos inspiradores de autêntica significação espiritual, voltamos ao ideal ético da sabedoria contido na obra desses filósofos e neles nos inspiramos para modelar nossas subjetividades desertadas de qualquer horizonte de realização coletiva.

Ainda que demasiado grosseira, minha analogia indica algo da crise espiritual e ideológica em que vivemos. E. Joyau cita estudiosos da antiguidade grega (Droysen, J. Denys, Curtius) visando caracterizar a decadência provocada pela dissolução da cidade-Estado. Citando Curtius, Joyau anota num texto introdutório à filosofia epicurista: “Todos os nobres sentimentos que tinham florescido na Grécia tinham a sua razão de ser na ideia de Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que viu que não tinha pátria e que a própria vida municipal estava decaindo, perdeu todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto da vida de pequena cidade, eis o que a multidão se pôs a procurar. Todos os nobres instintos se foram enfraquecendo de dia para dia”.

Tenho consciência de que esboço minha analogia implicando realidades histórico-culturais profundamente distintas. Mas como fechar os olhos para as afinidades observáveis no plano moral, na crise de valores assinalável lá e aqui, na antiguidade e no presente? Por isso sugiro certa comunidade de solo moral para justificar o interesse que o epicurismo, o estoicismo e o budismo inspiram na atualidade a filósofos como André Comte-Sponville, Luc Ferry, Pierre Hadot e muitos outros. Evidência ainda mais forte radica na recepção que suas obras têm merecido por parte de um vasto público.
Recife, 04 de janeiro de 2012