sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Idade através das Idades


Há poucos dias Paul McCartney estrelou um show monumental no Brasil. Dentro de um estádio de futebol, ocupado por uma massa composta por 60 mil pessoas, o ex-Beatle deslumbrou o público com a vitalidade e o talento que confirmam sua posição mítica na história da cultura de massas universal no decorrer dos últimos cinquenta anos. O fato de estar com 68 anos não aparenta afetar sua condição de ídolo cuja atuação no cenário pop se mantém inabalável, quer consideremos o caráter da sua performance, quer a receptividade delirante do público. Esse fenômeno tornou-se tão rotineiro na história da arte de massas contemporânea que ninguém mais estranha a permanência do sucesso e da atuação pública de ídolos como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros, todos bem acima dos 60 anos.

Notem que citei apenas homens. Embora a mulher também espelhe na posição social que ocupa essa extraordinária mudança atinente à noção atual de idade ou valor etário, o grande beneficiário dessa mudança é sem dúvida o homem. Pois o fenômeno que até aqui considerei em termos restritos aos ídolos da música de massas é de extensão suficiente para que o caracterize como uma modificação profunda observável na concepção da idade e dos papéis sociais a ela referentes. Basta que se pense na frequência com que homens de meia idade, para não dizer idosos, hoje se separam e logo se envolvem com mulheres jovens e bonitas, quando já não é esse próprio envolvimento a causa de muitas separações. Nesse sentido, como em tantos outros, o privilégio é antes de tudo masculino, pois bem poucas são as mulheres maduras, separadas ou não, que desfrutam das oportunidades amorosas franqueáveis ao homem.

Lembrando um exemplo de caráter contrastivo que poderia ampliar ao infinito, por volta de 1920 o escritor inglês Lytton Strachey reagiu perturbado quando a pintora Dora Carrington declarou-se apaixonada por ele. O leitor maledicente ou preconceituoso que acaso tenha alguma noção de quem foi Strachey poderia alegar que a perturbação seria apenas fruto de sua homossexualidade. Isso também importava no contexto do meu exemplo, mas o motivo que mais perturbava Strachey decorria do fato de ter 34 anos, enquanto Carrington teria por volta de 18. Em suma, declarou-se um velho e isso não era decerto um exagero para os padrões etários e culturais da época.

Bem antes, no decorrer do século 19, os padrões etários e culturais seriam ainda mais inconcebíveis se fossem cotejados com os contemporâneos. Quem leu Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, sabe como ele caracterizava o lugar da criança naquela época. Condensando este outro exemplo contrastivo, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Por isso, a cultura do tempo lhe impunha um papel que era como que uma antevisão da velhice prematura já indicada nas roupas fechadas e austeras, num comportamento em tudo inconcebível não apenas para a criança do presente, mas para o próprio adulto, para não dizer o próprio velho, se me atrevo a pensar em gente como Paul McCartney e outros ídolos da sua geração como velhos.

Se o amor muda através das idades, como leio num poema de Drummond, também a idade muda através das idades. Hoje chegamos aos 60, ultrapassamos os 60 e todavia já não somos velhos. A noção de idade mudou tão radicalmente que seria hoje ofensivo identificar alguém maior de 60, seja ou não ídolo das massas, como velho. Parece-me muito positiva essa distensão da vida ativa e mesmo hedonista para além dos limites que convencionalmente separavam a velhice e mesmo a maturidade da juventude. Se esta era vivida e concebida como a estação própria à participação ampla no mundo, sobretudo o mundo do prazer, da festa e da experiência amorosa, a maturidade e a velhice tendiam a isolar o homem e sobretudo a mulher numa esfera da vida onde não mais conviria “entregar-se aos prazeres da vida” cedendo a tentações apenas concebíveis e aceitáveis na juventude.

Se numa ponta o adolescente ingressou no território “adulto” que garante acesso à vida desatada de limites e repressões consagrados pela tradição, na outra o ser maduro ou já idoso conquistou a liberdade de continuar no mercado, como agora se diz, traduzido este termo num sentido muito amplo. Dizendo de um outro modo: o mercado do consumo novamente compreendido num sentido muito amplo. Mesclando as idades no mesmo balaio, ou no mesmo show da vida, para repisar o lugar comum difundido por um célebre e já longevo programa de televisão, as fronteiras etárias convencionais foram diluídas no reino da permissividade desencadeada pela cultura do narcisismo consumista.

Frisei acima que esse fenômeno geral é positivo, mas importa também ressaltar o que na outra dobra encerra de negativo. Apelando para um outro lugar comum, não há afinal bem que não contenha mal, assim como não há solução que não gere outro problema. O problema do adultescente - valendo-me aqui de um neologismo que já empreguei no artigo Elogio da Inutilidade, também postado neste blog - é que agora todos tem horror à velhice e por extensão à morte. Envelhecer tornou-se um processo tão degradante, tão incompatível com nossa ilusão narcisista embalada pelo mito da juventude eterna que o discurso publicitário logo cuidou de suprimir estas palavras repulsivas: velhice, idoso e todos os similares que remetem à imagem crua e iniludível do corpo castigado pela idade e o tempo. Se o discurso publicitário se encarrega de refazer a linguagem e as imagens que remetem a essa dobra detestável da realidade, nosso narcisismo soprado por mil velas incandescentes cuida do resto. É certo que, se é impensável quebrarmos todos os espelhos que nos refletem como somos, todos hoje fazemos o possível para suprimir o insuprimível: até segunda ordem da ciência, a verdadeira religião do nosso tempo, somos ainda seres mortais.

Portanto, estamos condenados a um ciclo biológico que foi sem dúvida estendido e profundamente modificado, como acima indiquei, mas continuamos envelhecendo e morrendo. Paul McCartney e nossos ídolos da sua geração expressam um inusitado sentido de vitalidade e desafio às convenções do tempo e da cultura, mas eles próprios, condenados à contingência da espécie, envelhecem e morrem. No caso deles sobrevive a obra, símbolo de uma imortalidade inexistente na vida de quem a cria. É nisso e apenas nisso que transcendem nossa humanidade comum. No mais, continuamos todos sendo mortais. Portanto, seria prudente, talvez algo sábio, encararmos na linha do espelho mais real e imperativo a sombra do nada que lá no fundo da imagem nos espreita e espera. Como sussurra a voz arrepiante da Indesejada das Gentes: busca um sentido para tua mortalidade, pois um dia não haverá mais dia...
Recife, 24 de novembro de 2010.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Budapeste




Sándor Márai viajou para o sertão baiano guiado pela mão do jagunço Euclides da Cunha. Desse encontro resultou um belo romance: Veredicto em Canudos, publicado pela Companhia das Letras em 2002. Chico Buarque viajou para Budapeste guiado talvez pela mão do escritor desconhecido cuja pena mítica repousa num parque da cidade. Ambos, Márai e Chico, viajaram puramente através da imaginação literária, como é de resto a norma, ainda quando a narrativa seja de cunho realista.

Chico Buarque já foi nossa “única unanimidade nacional”, como há muito afirmou Millôr Fernandes. Como seria de prever, Millôr foi dos primeiros a desmentir essa discutível evidência. Embora a unanimidade seja uma ficção, antes como agora, é todavia indiscutível o extraordinário prestígio de Chico Buarque, fato que entre outras coisas o torna figura altamente rentável no mercado. Sem negar mérito à sua literatura, fração considerável de sua repercussão, acrescida de muitas adaptações cinematográficas, deriva da mitologia que cerca sua persona de ídolo da música popular brasileira.

Budapeste tem méritos próprios, que portanto independem dos trunfos externos associados ao romance e ao filme. Antes de tudo, ressaltaria a singularidade do enredo dentro de uma tradição literária e cinematográfica tão subordinada ao cabresto do nacionalismo cultural, que não raro desliza para o provinciano e o exótico. Chico destoa da clave previsível ao compor uma obra que vincula o Brasil à Hungria e com certeza custou-lhe árduo trabalho de pesquisa e elaboração imaginativa.

O filme dirigido por Walter Carvalho, apoiado no roteiro de Rita Buzzar, logra transpor o romance para a tela de modo competente e isento de qualquer maneirismo exótico ou show de imagens para adular o espectador de olhar turístico, como me parece ser o grave erro de Woody Allen ao filmar Vicky Cristina Barcelona. A beleza de Budapeste, cortada pelas águas do Danúbio e por pontes imponentes é assimilada à narrativa como espaço cenográfico funcional e expressivo.

José Costa (Leonardo Medeiros) é um ghost-writer que vai acidentalmente a Budapeste. Lá se apaixona pela língua, por uma húngara chamada Kriska (Gabriella Hámori) e se embrenha num fascinante enredo fundado nas linhas confusas entre identidade e autoria ficcional. O que vive em Budapeste, desse ponto de vista crucial para o desdobramento do filme, é apenas uma extensão do que já vivia no Rio de Janeiro, onde se ocupava profissionalmente em escrever anonimamente, e mediante pagamento, discursos, cartas de amor, monografias. Quando escreve O Ginógrafo, isto é, alguém que escreve literalmente sobre o corpo de uma mulher, ele acaba envolvido numa grande encrenca amorosa.

O personagem do romance e suposto autor do livro escrito por Costa é o alemão Kaspar Krabbe. Krabbe apaixona-se por uma carioca chamada Teresa. Ele converte o corpo de Teresa num livro, já que o recobre de palavras. Quero dizer, não ele, mas Costa, o ghost-writer. Quando ela o abandona a meio da obra, ele mergulha num estado catatônico do qual somente emerge depois que desanda a procurar putas sobre cujos corpos volta a escrever. Daí passa ao corpo de colegiais deslumbradas por seus dotes literários. Assim seu livro singular disseminou-se pela vida, errante numa infinidade de corpos, peles moventes e voláteis. Por fim encontra a mulher que o ensina a escrever as palavras na ordem inversa. À noite, porém, ela apagava tudo que ele no seu corpo escrevia. Ao escrevê-la do princípio a cada dia, fez disso um ritual sempre renovado e incessante. Por fim, ela engravida do livro cujo título é O Ginógrafo.
Quando o livro é lançado, Krabbe logo se converte numa celebridade literária e seduz até Vanda (Giovanna Antonelli), mulher de Costa e famosa apresentadora de telejornal. Incapaz de suportar a paixão que Krabbe desperta em Vanda, Costa arma um escândalo em plena festa de lançamento do livro. O desfecho desastroso culmina na separação do casal.

O enredo se desdobra entre o Rio e Budapeste. Logo que chega a Budapeste Costa transita ao longo das ruas erguidas à borda do Danúbio. Atraído por uma das imagens mais fortes que o afetam em trânsito pela cidade, desce do táxi para observar esta cena insólita: a estátua gigantesca de Lênin desmembrada e transportada sobre um barco que corta as águas do Danúbio. O ângulo da câmera invertido no plano final da cena sugere a imagem do líder supremo da Revolução Russa precipitando-se para o fundo das águas. Eis o epitáfio lacônico e impiedoso do socialismo húngaro.
Outra cena marcante do filme envolve a estátua do escritor desconhecido, autor da Gesta Húngara. Segundo o relato de um guia de turistas, ele quis preservar seu anonimato indiferente à glória e à fortuna. A similaridade com a condição de Costa, escritor anônimo, é demasiado evidente, ressaltada a variante de que este não se contenta em ser instrumento anônimo e remunerado da glória alheia. Se o escritor desconhecido contentava-se em humildemente servir a humanidade através de suas palavras, Costa emerge do seu anonimato quando o falso autor se apropria da sua obra e seduz sua mulher.

Costa tanto refina seu conhecimento do húngaro que acaba compondo um livro de poemas, ele que no Brasil nunca escrevera um verso na sua língua nativa. Evidentemente a glória vai novamente para um outro, o falso poeta que compra a autoria da obra. E eis que Costa, novamente mordido pelo amor ciumento por Kriska arma um novo escândalo ao denunciar a autêntica autoria da obra.

Expulso da Hungria, Costa retorna para o Rio de Janeiro. Mas logo recebe um telefonema do consulado húngaro, que lhe fornece passagem de volta para Budapeste e visto permanente. Mal chega ao aeroporto onde Kriska o espera, desta vez é recepcionado como um gênio da literatura. Até Chico Buarque lhe pede autógrafo, uma cena absolutamente imprevisível e de grande efeito irônico no contexto da trama.

Um livro é uma expressão de amor, ou pelo menos uma experiência de profunda intimidade entre dois seres, o autor e o leitor, mais preciosa e profunda do que a maior parte das formas correntes de interação humana. O livro de Chico Buarque, mais do que um ato de amor, traduzido na relação de Costa com Vanda e Kriska, é um ato de amor passional e erótico compreendido este no seu sentido mais estrito e perturbador.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Kinsey


Bill Condon, diretor e roteirista do filme Kinsey, usa imagens e manchetes de época para explicitar o impacto extraordinário de O Relatório Kinsey (The Kinsey Report) na sociedade americana quando foi lançado em 1948. À parte o exagero inevitável das manchetes de jornal, o efeito do relatório foi semelhante a uma bomba atômica lançada sobre a mentalidade puritana da época. É preciso um considerável exercício de imaginação para que adequadamente se aprecie a repercussão de obras que irrompem na cena cultural abalando ideias feitas, preconceitos e toda sorte de convenção social. Foi o que aconteceu com a obra de Alfred Kinsey (Liam Neeson).

Conviria no entanto ressaltar que o exercício de imaginação aqui proposto, necessário de resto em toda apreciação de épocas históricas distintas do presente, não supõe a superação das barreiras e repressões acima sugeridas e bem ativas quando Kinsey publicou seu relatório. Bastaria lembrar que o filme, antes mesmo de ser lançado, provocou fortes reações típicas da época de Kinsey. A mãe de Liam Neeson, por exemplo, recebeu cartas ameaçadoras simplesmente porque este aceitou interpretar o papel de Kinsey. Lançado durante o governo ultraconservador de Bush, o filme provocou muitas outras reações que evidenciam o quanto a mentalidade puritana continua viva nos EUA. De fato, a história cultural americana é assinalada desde sua origem por duas tradições que continuamente se chocam: a puritana e a liberal. Kinsey e sua obra constituem expressão ímpar da segunda. Embora o Brasil se caracterize de modo bem diferente, não faltaria quem o dissesse oposto, também aqui se chocam não bem o puritanismo e o liberalismo, mas digamos a permissividade e o preconceito. Prefiro usar esta polaridade discutível por supor que nossa repressão sexual é mais difusa e portanto privada das âncoras institucionais mais definíveis no contexto cultural americano.

Embora a narrativa obedeça a um princípio nitidamente biográfico, convém por isso mesmo ressaltar que o roteiro é baseado no romance The Inner Circle, de T. C. Boyle. Bill Condon escreveu e dirigiu o roteiro. Outro grande filme que também dirigiu e escreveu, novamente adaptado de um romance, é Gods and Monsters, com soberbas interpretações de Ian McKellen e Lynn Redgrave, que aliás desempenha um curto e marcante papel em Kinsey. Além do artifício biográfico que estrutura a narrativa, esta se desdobra mimetizando a relação entre um pesquisador, os próprios assistentes de Kinsey, e Kinsey, que responde as questões propostas no questionário.

O Relatório Kinsey é baseado numa exaustiva e criteriosa pesquisa restrita à sexualidade masculina. Obsecado pelo assunto, cuja repercussão aguçou ainda mais sua obsessão, Kinsey logo se atirou apaixonadamente à elaboração do relatório relativo à sexualidade feminina, publicado cinco anos depois do primeiro. Sem dúvida, ambos concorreram de forma decisiva para modificar o comportamento sexual dos americanos numa época em que os costumes eram de uma rigidez puritana inconcebível para aqueles que hoje desfrutam de modo inconsciente da liberdade rotinizada pelas conquistas liberais emergentes nas últimas décadas.

Quem quer que tenha sofrido traumas decorrentes da repressão imposta à sexualidade, e acredito que todos direta ou indiretamente sofremos esse tipo de experiência, poderá melhor compreender diante desse filme impressionante o quanto devemos à ação iluminista desempenhada por Kinsey e todos que colaboraram para transformar seu projeto em realidade. Quem não viveu (na família, na escola, no seu círculo de relações íntimas) traumas associados a alguma história envolvendo práticas sexuais visadas e reprimidas pelos costumes dominantes no meio em que se formou e definiu uma biografia? Enquanto indivíduo, Kinsey é apenas uma variação singular das infinitas variações compreendidas no conjunto das nossas biografias. Seu conflito nuclear está bem caracterizado na relação com o pai (interpretado por John Lithgow), um professor puritano ao extremo da caricatura. Um analista de botequim poderia razoavelmente argumentar que seu combate obsessivo em favor da liberação sexual seria sintoma do ódio desfechado contra o pai e sua sufocante mentalidade repressiva.

Parece-me relevante chamar atenção para o fato de que Kinsey, o inventor da sexologia americana, não foi um psicólogo ou psicanalista, mas sim um zoólogo de formação. Isso importa de forma decisiva, suponho, para melhor compreendermos a forma como caracteriza o comportamento sexual na sua obra. Bill Condon traduz de forma adequada no contexto do filme a concepção comportamental de Kinsey. Ela fica evidente em algumas cenas fundamentais do filme. Por exemplo: quando se envolve numa relação homossexual com Clyde Martin (Peter Sarsgaard), seu principal assistente. Ao desvelar o caso para sua mulher (Clara McMillen, interpretada por Laura Linney), esta fica compreensivelmente chocada. Tentando justificar sua traição, ele alega que a sexualidade humana é fruto de pura convenção social. Ela então retruca, em termos diferentes dos que emprego, que sofremos quando alguém que amamos transgride as convenções que regulam nossas práticas sexuais, nossas formas de relação amorosa.

Também no final do filme Clyde pergunta a Kinsey por que ele nunca se referiu ao amor na sua obra. Porque o amor não pode ser medido, quantificado, e assim convertido em matéria de ciência. É aí que está o cerne da questão. Isso explica, noutras palavras, porque Kinsey sempre reduziu o comportamento sexual do ser humano a uma dimensão restritamente fisiológica. Como zoólogo, ele tendeu a sistematizar um método de pesquisa no qual a sexualidade humana é reduzida à dimensão animal ou biológica. Ignorou assim uma distinção elementar nos domínios da sociologia e da antropologia. Ela consiste no reconhecimento de que a espécie humana se distingue por pertencer a dois reinos que se relacionam de modo complexo: o da natureza, ou da biologia, e o da cultura. É isso o que nos singulariza enquanto espécie imprimindo à nossa condição um caráter único que pulsa na raiz da nossa natureza insolúvel. Quero dizer, não há nem acredito que um dia encontremos explicação pacificadora para nossa complexa constituição.

Retendo minha argumentação na esfera restrita que importa para a compreensão do filme, a sexualidade, parece-me evidente que nossas práticas sexuais não encontram paralelo em nenhuma outra espécie. Enquanto a sexualidade das demais é regida por disposições biológicas fixas, que poderíamos designar como instinto, a humana se distingue por sua espantosa diversidade, cada uma delas obedecendo a códigos morais igualmente diversos. Isso é uma evidência meridiana do quanto contrariamos os códigos da natureza. Kinsey parece incapaz de compreender essa distinção fundamental. Daí a facilidade, melhor diria a inconsciência, com que compara a sexualidade humana à de outras espécies com uma ignorância sócio-antropológica somente concebível num zoólogo isento da mais elementar iniciação antropológica.

Os resultados dessa sua inconsciência são previsíveis e de resto conferem grande força dramática ao filme. Eles se manifestam inicialmente no já aludido affair homossexual de Kinsey com Clyde; depois no envolvimento sexual de Clyde com Clara; depois entre os casais diretamente associados à pesquisa dirigida por Kinsey. Por essas e outras, sobretudo por força da obra explosiva que deu a público numa atmosfera moral incomparavelmente mais repressiva do que a do presente, Kinsey foi e é ainda vítima de muitas acusações chocantes, algumas comprovadamente caluniosas. Embora não o conheça o suficiente para tomar posição contra ou a favor das muitas acusações que pesam sobre sua obra e biografia, posso com certeza concluir que a calúnia sempre cercou e cercará aqueles que ousam desafiar os preconceitos e convenções dominantes no seu tempo, notadamente quando a matéria em questão é nossa sexualidade.

Apesar das restrições aqui expostas, reitero por fim em tom de franca admiração o quanto Kinsey contribuiu para reduzir o obscurantismo tacanho que envenenou nossa experiência sexual e infelizmente se mantém ainda vivo na nossa sociedade. Basta que se considere o tom obscurantista da polêmica que cerca o aborto no Brasil. Se o obscurantismo soa absurdo na atmosfera permissiva em que vivemos, chega às raias do incompreensível quando corremos a vista pela paisagem moral que desregula os costumes sexuais observáveis no Brasil, tantas vezes castigado por humoristas e críticos sociais como Brasil bordel, tantas vezes no estrangeiro reduzido a estereótipos sexuais grosseiros. Se há um terreno no qual prática e consciência drasticamente se desentendem, não há dúvida de que é o da sexualidade.

Ficha técnica:
Kinsey (EUA, 2004)
Direção e roteiro: Bill Condon
Alfred Kinsey (Liam Neeson)
Clara McMillan (Laura Linney)
Clyde Martin (Peter Sarsgaard)
Alfred Kinsey, pai (John Lithgow)
Wardell Pomeroy (Chris O´Donnell)
Paul Gebhard (Timothy Hutton)
Alan Gregg (Dylan Baker)
Lynn Redgrave.
Recife, 7 de novembro de 2010.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Impacto e Permanência de CG&S


Impacto e Permanência de Casa Grande & Senzala

Resumo: Objetivo, neste artigo, caracterizar, de um lado, o impacto causado por Casa-Grande & Senzala (doravante assim abreviada: CG&S) nos quadros da produção intelectual dos anos trinta desde o momento de sua publicação; de outro lado, acentuar a permanência desta que é, segundo o insuspeito juízo de Darcy Ribeiro, “a obra mais importante da cultura brasileira”. No que se refere ao impacto anotado no título do artigo, intento acentuar que os nomes e setores mais significativos da inteligência brasileira de imediato identificaram na obra de Gilberto Freyre sua força e originalidade. A incompreensão de que ele próprio mais tarde tantas vezes veio a se queixar derivou seja de críticos menores, seja de fatores ideológicos que serão explicitados no corpo deste artigo. Quanto à permanência de CG&S, nenhum fato contemporâneo talvez melhor a comprove do que o progressivo ressurgimento de estudos e interpretações inspirados pela ambição de acentuar a posição tanto seminal quanto clássica da obra que, compreendida na sua autonomia epistemológica e estética, transcende os rumos e posições contingentes do seu autor.
Nota: este artigo foi antes publicado na revista Estudos de Sociologia, da pós-graduação em Sociologia da UFPE, Ano 1, No. 1, Recife, janeiro/junho de 1995. Tomei a liberdade de suprimir algumas notas bibliográficas, além do parágrafo final. As notas que me pareceram necessárias à clareza do artigo foram incorporadas ao texto.

O lançamento do último livro de Harold Bloom nos Estados Unidos, The Western Canon, teve entre nós, aparentemente, uma repercussão de alcance puramente jornalístico. Inspirada na lista canônica proposta por Harold Bloom, a revista Veja convocou quinze intelectuais solicitando-lhes que compusessem listas individuais das vinte obras mais representativas da cultura brasileira (Ver Veja, 23 de novembro de 1994, pp. 108-112). Feitas as listas, delas Veja extraiu um conjunto canônico “definitivo” composto de vinte e duas obras. Embora valha aqui destacar que os intelectuais convocados a propor um cânon (note-se que não escrevo “o” cânon) da cultura brasileira figuram, salvo um ou outro nome discutível, entre os maiores da nossa inteligência, não interessa aos fins visados por este artigo discutir a consistência e legitimidade dos critérios adotados para a seleção canônica.

Se é verdade que iniciativas dessa natureza estão sempre a um passo do consumismo mais banalizador, já que é corriqueiro votarem dentro desse objetivo geral tanto os dez livros que um intelectual levaria para uma ilha deserta quanto as dez mais gostosas penduradas nas sórdidas paredes de uma oficina de automóveis, muita coisa útil pode ser discutida para além do blablablá consumista que pulveriza nosso cotidiano cultural. Se se considera, por exemplo, o contexto cultural anglo-saxão, do qual deriva o livro de Harold Bloom, há que se admitir que a polêmica em torno da definição de um cânon literário, ou mais abrangentemente cultural, encerra implicações da mais alta relevância para a redefinição e realinhamento dos quadros culturais contemporâneos. Pois o que aí está em questão não é meramente a legitimidade estético-cultural de uma obra tida como canônica, mas também, senão sobretudo, os fatores de ordem ideológica que recortam a identidade do cânon nos quadros da cultura. E se hoje tantos ventos polêmicos varrem o Olimpo onde antes mais solidamente se firmara o perfil canônico da cultura anglo-saxônica, ou mais amplamente ocidental, tal fato resulta fundamentalmente da redefinição do lugar ocupado por grupos até recentemente submetidos a uma posição de inferioridade sócio-cultural. Na medida em que agentes intelectuais procedentes desses grupos passam a intervir num espaço antes praticamente monopolizado pela cultura que, em tom francamente depreciativo, se tem caracterizado como WASP (White Anglo-Saxon Protestant), a solidez do cânon passa a ser questionada com veemência suficiente para inquietar as correntes mais elitistas e conservadoras empenhadas no debate cultural contemporâneo.

Mas meu assunto é cultura brasileira e mais especificamente o lugar ocupado por CG&S nos seus quadros gerais. Pareceu-me oportuno principiar pela menção ao livro de Harold Bloom e ao cânon da cultura brasileira precisamente porque a obra-prima de Freyre ocupa no cânon da Veja uma posição privilegiada, ficando abaixo apenas, e imediatamente, de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Seria porém efetivamente necessário recorrer à enquete da Veja para se reconhecer a magnitude da obra de Gilberto Freyre? Estou certo de que não. Desde 1933, ano em que pela primeira vez foi submetida ao escrutínio do leitor brasileiro, CG&S se impôs como uma obra-prima. E deriva essa qualidade inequívoca não da circunstância, própria de certas obras-primas, de integrar-se a uma categoria de grandes obras cujos méritos e valores predominantes estão já estabelecidos nos quadros clássicos da tradição cultural. Se parte dos seus méritos deriva dessa corrente, ou a ela se associa, outra parte, talvez a mais significativa, intervém nos quadros da cultura brasileira distinguida pela força estilística impressa à empresa de reinterpretação do passado patriarcal brasileiro. Deriva ainda dessa combinação inédita entre o tom ensaístico firmado na sólida formação sócio-antropológica do autor e o raro domínio dos instrumentos expressivos hauridos na intimidade que Freyre desde cedo sedimentara no estudo apaixonado das artes e da filosofia, das línguas e da literatura.

Uma apreciação genérica da fortuna crítica de CG&S de pronto revela que a recepção da obra tem sido quase unanimemente favorável. Se digo quase unanimemente é porque tenho em mente duas ordens de restrição que merecem ser explicitadas e discutidas. A primeira remete ao tom reprovador proveniente da crítica de feição mais conservadora. Um exemplo frisante seria o artigo publicado por Afonso Arinos de Melo Franco em 1934. Embora tenha a lucidez de identificar na obra de Freyre a marca do grande livro, repele no livro a linguagem nele adotada, que lhe soa de pouca dignidade. Nas suas palavras,
“... sua língua deve ser simples e nossa, não julgo indispensável que seja chula, impura e anedótica, tal como aparece em tantas das suas páginas. É pouco técnico esse linguajar. Pouco científico. Dá ao livro um aspecto literário que o seu assunto e as suas graves proporções não comportam”. (“Uma obra rabelaisiana”, in Edson Nery da Fonseça, ed., Casa-Grande e Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944).
Caberia ainda agregar a este item a crítica praticada por intelectuais de peso menor, quando não simplesmente nulo. Quem hoje sabe dos críticos de formação católica mais conservadora que acolheram com indignação o tratamento conferido por Gilberto Freyre ao papel desempenhado pelos jesuítas no processo da formação colonial brasileira de par com o relacionamento entre vida religiosa e sexualidade no âmbito da família patriarcal?

A segunda ordem de restrição deriva da crítica que, demasiado aderente às circunstâncias em que é produzida, tende a reduzir a obra à ideologia, tanto a ideologia nela própria identificável quanto a que exprime seu autor enquanto cidadão e indivíduo atuante no debate político e cultural. A melhor ilustração seria, neste ponto, a crítica vigorosa, lastreada em grande força argumentativa, desfechada por Dante Moreira Leite no seu admirável O Caráter Nacional Brasileiro e a de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira. Sintomaticamente, ambas as críticas, entre as mais duras e ressoantes já lançadas contra a obra de Gilberto Freyre, foram publicadas nos anos 1960 e 1970, momento em que mais se patentearam, contra o pano de fundo do regime militar, as posições mais reacionárias do autor de CG&S.

Embora consciente de que, no trato dessa matéria, já se vai banalizando a referência ao prefácio assinado por Antonio Candido em 1967 e agregado à 5ª. edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, parece-me impossível aqui omitir trechos do seu ensaio-depoimento, já que ninguém melhor que ele soube sintetizar o significado profundo que CG&S, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo, este de autoria de Caio Prado Jr., tiveram para a sua geração e para as que a sucederam.
Referindo-se aos três livros acima, cuja integridade canônica não foi ainda refutada por nenhum estudioso de mérito, assim se exprime Antonio Candido:
“São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”. (“O Significado de Raízes do Brasil, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. 8ª. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975, pp.XI-XII
)
Logo em seguida, referindo-se especificamente ao impacto causado por CG&S junto à geração de que fazia parte, externa o crítico um juízo que, deliberadamente expresso no plural, traduz não só um ponto de vista pessoal, mas um modo de leitura e apreciação compartilhado por toda uma corrente geracional:
“Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa-Grande & Senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso modo de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro”. (Idem, pp. XI-XII).
Há nesta citação um ingrediente de fundo ideológico que interessa explorar no contexto dos propósitos norteadores deste artigo. Receoso de que o leitor contemporâneo não alcançasse apreender a real importância “daquele” Gilberto, o Gilberto Freyre que no entender de Antonio Candido passara a adotar atitudes francamente identificadas com as forças mais conservadoras da sociedade brasileira, enfatiza o crítico o caráter revolucionário e impactante contidos em CG&S. Como tantos que têm intentado caracterizar ideologicamente Gilberto Freyre, me parece que aqui confunde ele as posições momentâneas tomadas por Gilberto Freyre com o que muito inapropriadamente chamarei de “caráter ideológico” do autor. Ora, parece-me um equívoco distinguir ideologicamente “este” “daquele” Gilberto. Pois se o leitor põe entre parênteses as posições políticas momentâneas do autor e lê a “ideologia” que lhe percorre de ponta a ponta o conjunto da obra produzida, sem muita dificuldade se vai dando conta de que o Gilberto mais profundo é entranhadamente um conservador. Desde os escritos da juventude até os da velhice, aqui incluídos os escritos do Gilberto que ostensivamente emprestou apoio intelectual e moral ao regime militar, nitidamente se desenha o perfil de um intelectual ostensivamente imantado ao culto da tradição, sempre resistente às forças socioculturais passíveis de transpor o Brasil para um mais avançado padrão de modernidade cultural. A questão que neste ponto me parece mais relevante, diria a questão verdadeiramente decisiva, foi proposta, embora não resolvida, por Darcy Ribeiro.

Quando Gilberto Freyre era abertamente execrado pela nossa inteligência de esquerda, atitude que de resto me pareceria acertada se restrita às contingências ideológicas que a inspiravam, generalizou-se em torno à sua obra uma situação similar àquela que na Argentina afetou a obra de Borges. Foi então que se tornou moeda corrente combatê-lo e negá-lo não a partir de uma análise efetiva da sua obra, mas sim a partir de uma atitude de negação fundada na ignorância pura e simples. Em suma, intelectuais e estudantes, estes frequentemente por aqueles inspirados no que me parece ser um dos mais deploráveis modos de intolerância, tratavam a pontapés uma obra e um autor dos quais tudo ignoravam.

Foi dentro dessa atmosfera de hostilidade iletrada movida contra Gilberto Freyre que Darcy Ribeiro escreveu um ensaio de apreciação geral incorporado, em forma de prefácio, à edição venezuelana de CG&S. (Ver “Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala”, in Darcy Ribeiro, Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979).
Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo insaciável de Freyre, cita o antropólogo alguns elogios, merecidos, a ele feitos no Brasil e no estrangeiro por figuras intelectuais de renome. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvores, não reluta entretanto em enunciar o elogio máximo: CG&S é “...a obra mais importante da cultura brasileira”.

Esboçada a apresentação desse ensaio que importa aqui comentar, retomo afinal o que acima referi como sendo a questão verdadeiramente decisiva proposta, se bem que não integralmente resolvida, por Darcy Ribeiro. Formulando-a em termos de franca perplexidade, assim a enuncia:
“Sempre me intrigou e me intriga ainda que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político – em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo – tenha podido escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo”. (Idem, p. 64)
A questão decisiva consistiria, pois, em explicar o relacionamento contraditório entre o autor e a obra. Somente a crítica primariamente ciosa de deduzir explicações positivistas simplificadoras das complexas mediações inscritas no relacionamento entre esses dois termos, o autor e a obra, ousaria presumir que a obra não passaria, no final das contas, de uma expressão necessária da ideologia abraçada pelo homem que a escreveu. Tanto a história das artes e da literatura quanto a própria história do pensamento social encerram notórios exemplos de obras revolucionárias assinadas por autores conservadores, assim como, contrariamente, obras irrelevantes inspiradas por belos e generosos propósitos de natureza político-ideológica.

Intentando decifrar o enigma imposto pela obra, algo muito além da distinção feita por Antonio Candido entre “aquele” e “este” Gilberto, reitera Darcy Ribeiro no corpo do seu ensaio a questão que confessadamente o intriga. A decifração resultante das reiterações e argumentos que desenvolve residiria num artifício metodológico peculiar à legítima investigação de base antropológica: a divisão epistemologicamente fecunda entre o familiar e o estranho, entre o movimento de empatia confundindo o investigador com o seu objeto e o movimento de estranhamento desdobrando-se na direção contrária. Melhor dar a palavra ao próprio ensaísta:
“Voltemos, porém, à nossa indagação original: o que teria permitido a GF escrever CG&S? A razão preponderante é ser ele um ambíguo. Por um lado, o senhorito fidalgo evocativo de um mundo familiar, de um mundo seu. Por outro lado, o moço formado no estrangeiro, que trazia de lá um olhar perquiridor, um olho de estranho, de estrangeiro, de inglês. Olho para quem o familiar, o trivial, o cotidiano – e como tal desprovido de graça, de interesse, de novidade – ganhava cores de coisa rara e bizarra, observável, referível. Combinando as duas perspectivas nele interiorizadas, sem fundi-las jamais, GF viveu sempre o drama, a comédia – a novela, na verdade – de ser dois: o pernambucano e o inglês”. (p. 73)
A ênfase com que Darcy Ribeiro revisa Gilberto Freyre para o pensamento de esquerda, depois de assentadas as apreciações vigorosamente negativas contidas em obras como O Caráter Nacional Brasileiro e Ideologia da Cultura Brasileira e o tom de alto louvor que imprime à sua celebração do sociólogo pernambucano aparentam haver deslocado para um plano de irrelevância as muitas e severas restrições que lança contra interpretações contidas em CG&S. Assinala, por exemplo, como o emprego de instrumentos analíticos cedidos pela psicologia à obra de Freyre presta-se, em alguns momentos, a exercer papel puramente psicologizante no plano da interpretação efetiva de fenômenos socioculturais brasileiros. Seria o caso da função explicativa atribuída ao sadomasoquismo. No entender de Darcy Ribeiro, que me parece acertado, para Gilberto Freyre o despotismo das nossas classes dominantes “não seria mais que um atavismo social”, uma evidência do masoquismo característico do brasileiro comum (conferir pp. 70 e 86). Tiradas desse tipo, apressa-se Darcy Ribeiro em o demonstrar, iluminam com inequívoca nitidez no corpo de certas interpretações de CG&S “uma tara direitista gilbertiana”.

Os guardiães provincianos da glória de Gilberto Freyre, que hoje interferem entre o leitor e a obra de modo tão negativo quanto antes interferia a identidade ideológica viva e atuante do autor, tanto aparentam deleitar-se com o tom predominantemente celebratório do ensaio de Darcy Ribeiro que as restrições nele contidas, tal como a exposta no parágrafo acima, lhes passam despercebidas, como que rebaixadas a um nível de improcedente irrelevância, repousando diluídas sob o verniz dos justos louvores firmados pela letra apaixonada do autor de Maíra.

Retomando porém a recepção crítica dos anos trinta, foi enorme o impacto causado de imediato por CG&S no ambiente intelectual brasileiro. Baseado nas evidências fornecidas pela fontes documentais que reúne e comenta em Casa-Grande & Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944, assinala Edson Nery da Fonseca a repercussão alcançada pela obra-prima de Gilberto Freyre nos círculos da crítica nacional durante esse período. A leitura dos documentos por ele reunidos comprova, sem dúvida, a consagração conferida a CG&S pelos nomes mais eminentes da inteligência brasileira. Entre as duas datas acima referidas assistiu-se à publicação de artigos e ensaios nos quais se manifesta a recepção entusiasmada da melhor crítica militante. Embora bastante diferenciados do ponto de vista da formação intelectual e ideológica, escritores como Manuel Bandeira, João Ribeiro, Roquette-Pinto, Miguel Reale, Agrippino Grieco, Nelson Werneck Sodré, Edison Carneiro, Sérgio Milliet, Álvaro Lins, Wilson Martins, entre tantos outros, convergem no tom elogioso com que aprovam a obra de Gilberto Freyre. Observa-se aqui, entretanto, uma omissão intrigante: Mário de Andrade.

Personagem central do Modernismo proveniente da Semana de Arte Moderna, estudioso e pesquisador insaciável, ávido de tudo ler, divulgar e criticar, não deixa ele, contudo, nenhum trabalho dedicado à apreciação de CG&S ou às duas outras obras de Gilberto Freyre publicadas nos anos trinta: Sobrados e Mucambos e Nordeste. Dada a centralidade do papel que desempenhou no processo cultural brasileiro entre 1922 e 1945, ano em que morreu, acrescida da excepcional amplitude de sua formação de intelectual militante, seria absurdo supor que Mário de Andrade não leu CG&S. Tanto é isso verdade que a mais notável estudiosa de sua obra, Telê Porto Ancona Lopez, anota esta observação no livro em que trata precisamente de rastrear o processo de formação intelectual e ideológico de Mário de Andrade:
“Na bibliografia, no Prefácio e nas notas para a Introdução de Na Pancada do Ganzá, cita principalmente Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Foram esses autores os que formaram a base dos conhecimentos antropológicos e sociológicos que aplicou no Brasil”. (Mário de Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1972, pp. 86-7).
Logo, fica aí comprovado que o silêncio de Mário de Andrade de modo algum se explica pelo desconhecimento da obra. É sem dúvida intrigante esse silêncio interposto entre os dois escritores que foram provavelmente os mais importantes e influentes intelectuais brasileiros nos anos trinta. Haveria aí algo mais que a discreta, sobretudo de parte de Mário, rivalidade entre dois intelectuais disputando posições de liderança? Como me confesso incapaz de satisfatoriamente responder à questão por mim próprio introduzida, deixo-a suspensa no ar ou na mente do leitor curioso.
Considerando todas as evidências disponíveis, este artigo registra apenas algumas entre as mais notórias e notáveis, me parece desnecessário insistir ainda sobre o impacto provocado por CG&S desde sua publicação em 1933 e sua intocada permanência na linha do presente. Intentei considerar, ainda que muito genericamente, dois fatores negativos interpostos entre a obra e o leitor: a tacanhice reacionária de Freyre, para valer-me aqui de uma expressão empregada por Darcy Ribeiro, e, mais recentemente, o controle intolerante da sua glória exercido por guardiães provincianos capazes da proeza de serem ainda mais gilbertianos do que o próprio Gilberto. Se contra o primeiro fator, dominante nas décadas de 1960 e 1970, investiu certa corrente crítica de esquerda fixada mais no ajuste de contas ideológico do que na apreciação isenta da obra, daí resultando erros de enfoque e atitudes de intolerância neste artigo anotados, contra o segundo se batem em especial estudiosos independentes atuantes no Recife tanto louvado e amado por Gilberto Freyre.

Mas o balanço geral que se poderia fazer, e aqui não faço, seria indiscutivelmente animador. Combatido e negado notadamente durante os anos 1960 e 1970, em larga medida devido ao deplorável apoio que ostensivamente emprestou ao regime militar, já agora se nota a emergência de estudos orientados para o objetivo de reavaliar, à margem de implicações ideológicas momentâneas, o significado mais permanente da obra de Gilberto Freyre.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O transitório e o Permanente




A história da cultura é um vasto cemitério de obras cadentes. A cada geração, senão a cada década, repontam no horizonte das humanidades uma sucessão de obras saudadas pela crítica e pela comunidade dos leitores como obras-primas ou definitivas. Logo porém o tempo, juiz último e implacável, procede a uma operação rotineira de filtragem e decantação. De umas retém valores de referência e fontes de pesquisa para o especialista; de outras, virtudes medianas que seduzem o leitor sedento de prazer gratuito e entretenimento ou saber livremente desinteressado. Uma outra categoria, a majoritória, simplesmente mergulha no esquecimento, dando assim provas cabais do seu interesse transitório. Uma última, reserva das raridades autênticas, sobrevive a todas as provas do tempo e ao capricho das circunstâncias elevando-se à categoria de obra definitiva. Casa-Grande & Senzala inscreve-se, sem dúvida, nesta categoria.

Há obras-primas que são acolhidas com hostilidade mesmo pela crítica mais qualificada. Seu teor de inovação ou ruptura é tão radical que tem o poder momentâneo de desnortear o receptor munido de códigos e instrumentos inadequados para apreender-lhes a real dimensão intelectual e estética. Talvez por isso todo grande crítico incorreu em graves erros de apreciação. Basta que se pense nos erros de gente como Virginia Woolf, Edmund Wilson, Lionel Trilling, Harold Bloom e dos brasileiros Mário de Andrade e Antonio Candido.

Casa-Grande & Senzala passou ao largo desse destino. Afora um ou outro crítico menor – ou caturra, como prezava dizer Gilberto Freyre – a melhor crítica brasileira teve a lucidez de saudar com entusiasmo o surgimento da obra. Algumas das suas qualidades mais notáveis, já tantas vezes reiteradas, traduziam-se na originalidade do estilo e da exposição da matéria, na linguagem desatada, mas de forte senso artístico, na reinvenção interpretativa do nosso passado. Desde então, Gilberto Freyre e sua obra-prima, somada a outros títulos igualmente fundamentais como Sobrados e Mucambos e Nordeste, ocuparam posição privilegiada nos quadros gerais da cultura brasileira.

O consenso que assinalava a excelência de Casa-Grande e Senzala foi porém abalado nos anos sessenta e setenta. A imposição da ditadura militar, e seu endurecimento a partir de 1968, atingiu de modo traumático as artes e a cultura brasileira num momento de intensa fermentação e atividade criadora. A perseguição movida pelo regime militar contra intelectuais, artistas e estudantes, institucionalmente concentrados na esfera acadêmica, produziu reações gerais de resistência ora ativa, ora passiva. A última forma de resistência, a passiva, ou o auto-exílio como forma de negação da intolerância e violência institucionalizadas, acentuou-se por motivos óbvios durante os chamados anos de chumbo. Dentre os intelectuais de renome e irrecusável influência crítica e institucional, Gilberto Freyre foi dos raros a apoiar a ditadura. Falta ainda um pesquisador paciente e isento interessado em revisar seus artigos publicados – na imprensa local, sobretudo - durante esse período sombrio. Em resposta, a esquerda oprimida e perseguida deu-lhe um troco de intolerância silenciando sua obra nas universidades durante cerca de duas décadas. Quando sobre ela se pronunciou, mesmo através das melhores vozes críticas, foi em tom de combate ideológico ou ajuste de contas. Esse espírito ou intenção é sensível, por exemplo, em obras de valor crítico inegável como O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Outro dado significativo para que melhor se compreenda a resistência ideológica desfechada contra a obra de Gilberto Freyre evidencia-se na relativa sobreestima concedida a seus grandes concorrentes nos estudos de interpretação do Brasil: Mário de Andrade, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido.

Passado o vendaval, e refeito o cenário da nossa precária democracia política e cultural, a obra foi gradualmente reconquistando sua autonomia abalada pelos erros ideológicos em que incorrera seu autor. O Grande marco da revisão crítica de Casa-Grande e Senzala foi certamente o ensaio-prefácio corajosamente assinado em 1979 por Darcy Ribeiro para a edição venezuelana da obra. Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo de Gilberto Freyre, cita o antropólogo alguns elogios feitos a Freyre dentro e notadamente fora do Brasil. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvadores, rende-se ele à grandeza da obra saudando-a como a mais importante da cultura brasileira. Mas o ensaio de Darcy Ribeiro não se distinguiria como a melhor síntese crítica de Casa-Grande e Senzala se se detivesse no elogio sem fundamentação interpretativa. Sendo assim, cuida em seguida de articular com clareza o problema cuja tentativa de resposta é o próprio ensaio-prefácio. Noutras palavras, pergunta-se ele como um autor tão “tacanhamente reacionário no plano político”, cito literalmente Darcy Ribeiro, foi capaz de “escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo.”

A resposta é complexa e, no meu entender, Darcy Ribeiro não a fornece integralmente. O que porém mais importa destacar no problema que nos propõe é a distinção necessária entre o autor e a obra. Como o leitor em geral, e mesmo a crítica mais qualificada, tendem com freqüência a confundi-los, há sempre quem queira julgar a obra pelas posições políticas do autor. Foi isso, em suma, o que pôs momentaneamente em questão o caráter permanente de Casa-Grande e Senzala.

Assentada a poeira das batalhas ideológicas, nota-se a crescente retomada de interesse pela obra. Estudiosos de variadas formações e objetivos voltam a ressaltar sua originalidade e permanência. O pioneirismo de muitos dos seus temas, valores, fontes e processos de apreciação, tão grosseiramente incompreendidos durante décadas, o que forçava o narcisismo de Freyre a vir a público chamar a atenção para si próprio com reiteração insistente e por vezes mesmo ridícula, é enfim reconhecido e louvado. O irônico é observar que tal reconhecimento deriva muitas vezes do prestígio atribuído à nova história nos nossos círculos intelectuais e acadêmicos. Como a historiografia européia, sobretudo a francesa, estimulou no Brasil os estudos e pesquisas orientados para a história do cotidiano, a história oral, a história das mentalidades etc., muitos dos nossos estudiosos descobrem agora com espanto que Gilberto Freyre já fazia tudo isso nos anos trinta. Isso prova, antes de tudo, a persistência da formação colonizada do intelectual brasileiro.

A fortuna crítica de Casa-Grande e Senzala e, mais amplamente, do conjunto da obra de Gilberto Freyre, é já considerável e crescente. É entretanto oportuno salientar que grande parte dela se reveste de tom fortemente celebratório e apologético. Diria, nesse sentido, que vários dos nossos autores canônicos têm sido melhor afortunados que Freyre. Tenho em mente Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Dada a singularidade que os caracteriza, seria descabido considerar o problema acomodando-os numa medida comparativa comum. O que intento acentuar nesta observação ligeira é o limitado alcance qualitativo da fortuna crítica freyreana em face da quantidade que se avoluma.

As obras permanentes são permanentes, entre outras coisas, por prescindirem da crítica apologética assinada pela corte dos epígonos e diluidores. Importa, portanto, considerar Casa-Grande & Senzala à margem de qualquer intuito oficialista ou apologético. Confesso estar enjoado de certa crítica gilbertiana diluída em variações do tema “eu e Gilberto Freyre”. O crítico, e notem que me refiro ao crítico autêntico, existe e escreve para servir à difusão das obras de excelência, para servir às obras verdadeiramente originais. Na nossa era saturada de narcisismo, entretanto, o crítico mais e mais se comporta como se ele e sua produção transitória e parasitária se sobrepusessem ao restrito universo das obras permanentes. É por constatar essa inversão de valores no mundo da cultura que me arrisco a concluir em tom desmedido ou até paradoxal. Quero dizer: esqueçamos a crítica deslocando assim nossa atenção dos valores transitórios para os permanentes. Diria mais: esqueçamos Gilberto Freyre, esqueçamos o autor, pois o que fica e por fim importa é a obra.

Nota: Artigo publicado na revista Continente Multicultural, Ano III, no. 33, Setembro de 2003.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um Vitoriano dos Trópicos


Não seria exagero começar ressaltando, numa apreciação geral do livro de Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos, seu caráter extraordinariamente renovador. A fortuna crítica de Gilberto Freyre avoluma-se em ritmo acelerado, embora de ordinário tendente à reiteração de juízos de louvor isentos de argumentação comprobatória. É decerto por isso que uma larga fração do que se publica esgota-se em escritos de circunstância cujo tom repetitivo é flagrante. Destoando da corrente geral, Maria Lúcia traz a público um estudo cuidadosamente elaborado. A documentação em que se apóia, objetivando esclarecer o processo de formação intelectual do autor, constitui modelo de biografia intelectual.

Fala-se insistentemente da anglofilia de Freyre. Também das influências que sofreu, sobretudo a de Franz Boas. Ele próprio, no exercício obsessivo de falar de si próprio, e infatigavelmente interpretar-se, chamou em demasia nossa atenção para o assunto. Em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, dissemina pistas e indicações de suas leituras gerais, notadamente inglesas. Mas tudo isso circulou durante muito tempo entre estudiosos como matéria dispersa e portanto pouco definidora das vinculações mais profundas entre suas leituras e a obra que produziu. Pouco se sabia, noutras palavras, até que ponto suas leituras atuaram efetivamente sobre a obra que meditou e escreveu depois de pesquisar e ruminar material de base.

O grande mérito do livro de Maria Lúcia consiste precisamente no fato de esclarecer de que modo determinados autores ingleses, e outros bem pouco antes devidamente considerados, forneceram a Freyre intuições, sugestões de estudos, perspectivas de interpretação que em geral demandam longa maturação intelectual. Antes de dar a público esta obra, Maria Lúcia já anunciara em ensaios preliminares as linhas gerais do trabalho enfim editado na forma deste amplo e luminoso volume. Tais ensaios – refiro-me exatamente a dois: um publicado na revista Tempo Social sob o título “Gilberto Freyre e a Inglaterra”; o outro, “Gilberto Freyre: Um Nordestino Vitoriano”, incluído no volume Gilberto Freyre em Quatro Tempos – já antecipavam com nitidez sua contribuição renovadora.

Importaria ainda ressaltar, nos limites de uma breve resenha, o sentido preciso do qualificativo vitoriano atribuído a Freyre, já que decerto causará estranheza a leitores que bem conhecem o autor e o espírito geral de sua obra e personalidade. Frisa a autora que o vitorianismo deste pernambucano celebrante da sensualidade e da miscigenação vincula-se à corrente de corte rebelde, manifestamente a contrapelo da corrente dominante que cristalizou na semântica do termo representações deformantes do vitorianismo, já que confinadas a limites demasiado parciais. Muitos dos que livremente ajuízam sobre a era vitoriana tendem a identificá-la com uma noção restritiva, quase caricatural. Fala-se então de vitoriano, e termos conexos, supondo-se tão-só repressão da experiência imaginativa e sensível, austeridade de costumes, hipocrisia social, valores e experiências sem dúvida inconciliáveis com a imagem que espontaneamente formamos de Freyre, enquanto entidade psíquica e cultural, e dos significados e representações que sua obra projeta no cenário intelectual. Ora, estudos recentes de notável relevância crítica – refiro-me precisamente a A Experiência Burguesa: da Rainha Vitória a Freud, de Peter Gay – desmentem esta imagem redutora, quase caricatural, que formamos acerca da era vitoriana. Em consonância com este espírito retificador de preconceitos arraigados contra a era vitoriana, Maria Lúcia comprova documentadamente a influência que vitorianos rebeldes exerceram sobre Freyre, como é evidente à p. 48 do livro:
“...os autores ingleses que Freyre mais apreciava eram vitorianos antivitorianos, ou românticos pós-românticos. Ruskin, Morris, Carlyle e mesmo Yeats, por exemplo, eram vitorianos que se opunham corajosamente a muito do que era consagrado em seu tempo, nisso se assemelhando a outros antivitorianos que criticavam sua própria época com uma agudeza que demorou a ser reconhecida pela posteridade”.
No amplo estudo que escreveu sobre a experiência burguesa na era vitoriana, Peter Gay declara, já na introdução, que a causa regente de sua investigação se traduz no propósito de ressaltar e corrigir as representações errôneas dominantes sobre a era vitoriana. Aliás, importa esclarecer que sua periodização ultrapassa as delimitações convencionais. Partindo de uma ou duas décadas antes da ascensão de Victoria ao trono (1837), estende o estudo até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Soma-se a esta distensão temporal uma correspondente espacial que o impele a incluir a França, A Itália, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro, além dos Estados Unidos, dentro do conceito de era vitoriana que enquadra a obra. Sem pretender contestar integralmente as forças repressivas, o puritanismo e a hipocrisia que lastreiam as representações correntes, visa Peter Gay explicitamente revisar seu objeto acentuando as linhas de um quadro real crivado de conflitos e ambiguidades. Como todo grande historiador, tem ele consciência de que a atmosfera cultural de uma determinada época não se esgota em conceituações redutoras ou cadeias totalizantes de causas e efeitos. Arriscaria dizer que a caracterização geral de uma época é tecida antes com as linhas e tintas da ambiguidade, do entretom e da contradição isenta de síntese solucionadora do que das projeções totalizantes ou redutoras. Aludindo a uma expressão feliz que ele emprega na referida introdução, a Rainha Victoria não é vitoriana, assim como Viena não é uma cidade nem Freud é freudiano.

Seguindo em clave similar o espírito renovador da obra de Peter Gay, embora inteiramente omitindo-o na ampla bibliografia relativa ao assunto, o estudo de Maria Lúcia Burke vem corrigir este erro de apreciação desenhando as linhas complexas de um processo cultural muito mais rico, questionador e inquietante.
Concentrando-se nos vitorianos rebeldes, demonstra com cuidadosa e bem fundamentada pesquisa e argumentação como eles forneceram ao sociólogo pernambucano em formação sugestões e intuições seminais espelhadas em muitas das teses e argumentos expostos particularmente em Casa-Grande & Senzala. Maria Lúcia demonstra, por exemplo, como um autor como Lafcadio Hearn trouxe contribuições seminais para que Freyre elaborasse a representação positiva da miscigenação que baliza sua interpretação da cultura e da sociedade brasileira. Outros acrescentaram a Freyre contribuições similares. É o caso de Rüdiger Bilden e do brasileiro Roquette-Pinto. O primeiro, procedente do sul dos Estados Unidos, citado como amigo e colaborador de Freyre já no famoso prefácio agregado à primeira edição de Casa-Grande & Senzala, constitui um dos pontos altos do livro de Maria Lúcia. Além das muitas referências que lhe faz ao longo da obra, ela reserva um capítulo integral à caracterização de sua importância para o apuro e amadurecimento das idéias e argumentos de Freyre espelhados nas páginas da obra que em 1933 revoluciona os estudos sobre o Brasil. A trajetória intelectual de Bilden, que resulta em deplorável fracasso, é comovente enquanto expressão de talento e promessas malogradas. Mais que isso, ela comprova a dívida intelectual imensa que Freyre contraiu no longo e fecundo exercício das reflexões e estudos compartilhados com seu amigo americano. De certo modo, ambos traduziam, nos modos individuais mais característicos elementos profundos enraizados nos mundos culturais em que se formaram: o Nordeste brasileiro de Freyre convergindo com o Sul dos Estados Unidos de Rüdiger Bilden.

Depois deste livro fundamental, muito do que antes se afirmava e repetia acerca de Freyre e sua obra à margem de documentação e análise pertinentes se acomodará nos quadros da medida merecida. Noutras palavras, nenhum estudioso sério que doravante se aventure a escrever história intelectual e sociologia genética sobre Gilberto Freyre poderá consistentemente passar ao largo desta notável contribuição crítica. Na sua obra amparada em pesquisa modelar, e escrita com clareza e competência invejáveis, a autora corrige e renova decisivamente a crítica gilbertiana e o próprio Gilberto Freyre. Astuto explicador de si próprio, esmerou-se ele no exercício reiterado e caprichoso de compor uma auto-imagem que esta obra submete a retoques e recomposição de ângulos necessários. As correções obedecem a um espírito de composição discreto, por vezes sutil, até mesmo complacente em alguns pontos de detalhe preciso, mas estão objetivamente estampadas na obra. A formação intelectual de Gilberto Freyre recebe enfim sua mais completa tradução.

Nota: Artigo publicado na revista Lucero, vol. 17, 2006, University of Berkeley, USA.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sob o Signo da Ambiguidade




Quando William Empson publicou Seven Types of Ambiguity em 1930 descortinou no horizonte da crítica literária novas possibilidades de interpretação e sentido. Entre o texto e o crítico, ele sublinha a relevância da ambigüidade enquanto figura de indeterminação semântica investida, por consegüinte, de múltiplos sentidos. O relevo que confere à conotação verbal amplifica-se no conceito extenso de ambiguidade sugerido já no título do seu livro. Se a ambigüidade, compreendida no trato corrente da língua, é quase sempre sintoma ou evidência de defeito expressivo, na linguagem artística, contrariamente, é prova de qualidade estética. Parece hoje ponto pacífico na crítica e na teoria da arte o fato de que quanto melhor é uma obra de arte, maior é sua carga de indeterminação semântica. Seria este, em suma, um fato inscrito na raiz mesma da força de revitalização e permanência observável em toda grande obra que, enquanto tal, revela-se capaz de sobreviver e adequar-se às circunstâncias mutáveis da história. Transcendendo as circunstâncias imediatas inscritas na sua gênese, a obra clássica – compreendida aqui não no seu sentido estético, mas no sentido da obra triunfante em face do tempo – é por definição a obra ambígua, a obra cujo valor de indeterminação sobrepõe-se às condições momentâneas da criação.

Foi refletindo sobre a questão acima esboçada que me ocorreu associar neste texto provisório o livro de William Empson ao problema da ambigüidade compreendido não só na obra-prima de Gilberto Freyre, mas também, e sobretudo, na personalidade complexa – e ambígua, vale a reiteração – de um sociólogo que fez da ambigüidade um modo de ser e de produzir cultura letrada. Dizendo-se um homem muito consciente de si próprio, consciência tantas vezes expressa em formas obsessivas de auto-reflexão narcisista sem paralelo nas manifestações de cultura intelectual que conheço, Gilberto Freyre definia-se como um homem mais que ambíguo; definia-se como contraditório. Assim se medindo e compreendendo, não só insistentemente falou de si próprio como ambíguo e contraditório, mas também vazou e refinou um estilo regido por nítidos traços de ambigüidade e contradição.

Tentando descrever ou demonstrar meu argumento ressaltarei agora elementos ambíguos da obra de Gilberto Freyre que ilustram a sua natureza congenial imprimindo-lhe um sentido de indeterminação epistemológica desorientador do crítico convencional ou ortodoxo. Suponho que Darcy Ribeiro tinha consciência disso ao acentuar em prefácio famoso de Casa-Grande & Senzala a temeridade que seria generalizar acerca de Gilberto Freyre.

O primeiro traço de ambigüidade que me ocorre mencionar é o par empatia e estranhamento. Gilberto Freyre louvava-se por haver introduzido na língua portuguesa a palavra empatia. Frisou tal feito ao caracterizar a sociologia que praticava, em Casa-Grande & Senzala assim como no conjunto da sua obra, como uma sociologia empática. Vejamos como traduz na apreciação da obra a qualidade empática que para ela reivindica:

“Ao escrever o estudo intitulado Casa-Grande & Senzala, procurou o seu autor (...) desdobrar-se em personalidades complementares da sua e que a auxiliassem na percepção de uma realidade múltipla e complexa. Levou esse desdobramento de personalidade ao extremo arriscado, perigoso, mesmo, de, desdobrando sua personalidade de origem étnico-cultural e de formação sócio-cultural, além de principalmente européias, principalmente senhoris, procurar sentir-se também, em seus antecedentes e no seu próprio ethos, não só senhoril como servil; não só europeu como não-europeu; ou especificamente indígena, mouro, judeu, negro, africano, e, mais do que isto: mulher, menino, escravo, oprimido, explorado, abusado, , no seu ethos e no seu status, por patriarcas e por senhores”.

Sendo o título do livro do qual extraí a longa citação acima típica expressão da ambigüidade freyreana, percorrer-lhe a matéria é defrontar, a cada página, a imagem impositiva do autor que se deleita e refina no comentário de si próprio. Voltando porém à citação, o processo psicológico que descreve é complexo o bastante para desenhar em linhas nítidas a tensão entre o familiar e o estranho, ser ao mesmo tempo eu e o outro. Empenhado em descrever e interpretar um processo sócio-cultural complexo, crivado de ambigüidade e contradição, sabe o autor da necessidade de adequar o estilo e o método expositivo à natureza da matéria. Dar forma à obra significa, no caso, saltar fora dos trilhos convencionais do discurso sociológico. Seu método e estilo convizinham, portanto, com o do romancista que faz do ato de criação literária um modo de se transfigurar nas suas personagens convertendo a invenção artística num movimento de projeção e estranhamento, de expressão e perda do eu.

Mas eis que vem o crítico parcial – fundado, por exemplo, numa concepção estreitamente classista, ou marxista, do processo sócio-cultural – e acusa o autor de escrever a história da escravidão nos trópicos confinado ao ponto de vista redutor da casa-grande. O leitor consciente, entretanto, aquele munido de olhar perspectivista, sabe do risco que é generalizar sobre Gilberto Freyre. Percorrendo-lhe a obra-prima com discernimento e rigor analítico, verifica que se aqui o colonizador português é positivamente caracterizado, mais adiante o reencontra reduzido à condição de sádico espoliador do negro; se este, de seu lado, é um escravo, portanto privado da liberdade humana mínima, é também elemento concorrente de uma experiência social complexa cuja resultante é expressão vitoriosa da civilização possível nos trópicos; se a personagem da classe senhoril é, de um ângulo, enquadrada em tons românticos, doutro se despe de tintas idealizadoras ao desfechar contra a mucama invejada no seu poder de sedução carnal seu ódio e a brutalidade do seu sadismo; se a obra de catequese jesuítica é vista como aniquiladora das fontes vitais da cultura indígena, é também considerada com apreciação compreensiva e até realisticamente justificada.

Acrescentaria, no que se refere a este último caso, que Gilberto Freyre anota e comenta traços sem dúvida mais contrários que favoráveis à ação jesuítica entre os indígenas do Brasil. Comparados aos franciscanos, que no entender do autor teriam desempenhado ação missionária muito mais adequada à integração cultural do indígena, os jesuítas exerceram papel antes de tudo aniquilador ou recalcador da cultura autóctone brasileira. Não me parece, entretanto, que este fato concorra para desmentir meu argumento geral. Consiste ele, em síntese, na afirmação de que a interpretação proposta por Gilberto Freyre se fundamenta numa visão integradora de culturas, mesmo no que encerram de traços antagônicos. Ele não se cansou de reiterar isso ao usar expressões tais como equilíbrio de antagonismos. Contrastando o colonizador português com o inglês e o espanhol, caracteriza o primeiro como um contemporizador isento de ideais absolutos e preconceitos irredutíveis . Definindo a si próprio em entrevista concedida a Leda Rivas, Gilberto Freyre se diz um “harmonizador de contrários” . O título da sua obra-prima, aliás, condensa a visão integradora aqui ressaltada. Inserida entre os substantivos casa-grande e senzala, síntese simbólica dos antagonismos dominantes na sociedade patriarcal, a aditiva e, grafada &, indicia enlace dos extremos, não supressão ou relação de conflito solúvel tão-só pela via do aniquilamento de um dos termos. Os exemplos poderiam multiplicar-se, daí ser prudente neles não me alongar. O que antes de tudo intento ressaltar é o método e o estilo compositivos que rompem com a objetividade do discurso sociológico convencional tecendo a matéria da obra segundo processos similares aos da narrativa literária. Empreguei acima a expressão olhar perspectivista visando sugerir a pluridade de focos descritivos e interpretativos do autor. Melhor ir novamente à fonte própria:

“Sou escritor (...) que nas suas tentativas de captar e interpretar aspectos situados da condição humana, em geral, através da do homem tropical, especialmente da do brasileiro, em particular, vem procurando captá-los e interpretá-los por meio de várias perspectivas, por vezes simultâneas. Daí o confuso, o desordenado, o descontínuo que têm encontrado em meus trabalhos certos críticos literários” .
Passando para outro traço ambíguo da obra freyreana, retenho aqui a relação crucial entre o dado local, a região, e a visão universalista do autor. Dizendo-se com gosto um pernambucano, e mesmo um provinciano, cujas raízes por toda a vida se cristalizaram no solar de Apipucos, com igual gosto prezava-se Gilberto Freyre de ser um intelectual de formação universalista e especificamente anglófila. Fiel à província impregnada de seus traços mais típicos à exaustão descritos, interpretados e reiterados no corpo da sua obra, nem por isso dissimulava o quanto o seduziam as viagens, o sopro movente da aventura, a demanda da investigação antropológica da realidade sempre impelindo-o para outras terras e povos e culturas. Num outro livro de título também indiciador das suas ambigüidades gravou sua condição de ser dividido na sugestiva justaposição de dois substantivos: Aventura e Rotina.
Ciosos de elevar a província à dimensão do universal, são muitos os que banalizam essa relação complexa – a província e o mundo, ou ainda o particular regional e o universal de corte antes de tudo europeu – supondo que o segundo estaria de imediato contido na expressão espontânea do primeiro. Noutras palavras: entendem que na arte, quanto na atividade criadora em geral, dizer o específico da província ou da região é também dizer o que nele se contém de universalidade. É verdade que Alberto Caeiro assim se exprimiu no VII poema de O Guardador de Rebanhos:
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo ...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...”

Convém todavia não esquecer que o tamanho de quem vê é o tamanho de Fernando Pessoa, assim como a dimensão do olhar perspectivista instalado no canto de aldeia de Apipucos é o olhar de Gilberto Freyre. Convém ainda acrescentar que o tamanho e olhar de um quanto do outro não são obra do acaso, do gênio poético ou sociológico resultantes do sopro acidental da vida. Um e outro, sabemos, conquistaram à força da experiência estudada, refletida e aprendida o poder de integrar na obra criada a ponta do particular – a aldeia ou região – à ponta alargada do universal. Importa lembrar e mesmo enfatizar esses fatos para que a gente não se acomode na visão conformista, e sempre limitadora, do provinciano que é apenas provinciano, do regional sempre exposto ao risco de dissolver-se em exotismo cultural. Como certeiramente observou o grande satírico Oswald de Andrade, outro exemplo feliz de adequação entre o particular e o universal: realizar o particular neste último sentido aqui indicado é fazer macumba para turista.

Gilberto produziu uma obra de dimensão universal a partir da sua província, ou solar, porque se formou como homem universalista. Sem o contato prematuro e fecundo com a cultura anglo-saxônica desde a infância, contato mais tarde ampliado em estudos sistemáticos no Estados Unidos sob a orientação de Franz Boas e outros notáveis intelectuais americanos e europeus, assim como outros muitos e variados meios de interação crítica com outras formas de vida e cultura, sem tudo isso simplesmente inexistiria o Gilberto Freyre autor de Casa-Grande & Senzala e outras similares expressões da nossa cultura de cunho universal. Como hoje vivemos submetidos à tirania do particular, à explosão fragmentadora dos particularismos étnico-culturais num mundo contraditoriamente mais e mais integrado por forças de extensão globalizadora, importa frisar esses sentidos contidos nas insolúveis negociações estabelecidas entre as forças da particularidade e da universalidade.
Outro par ambíguo inscrito no cerne da obra de Gilberto Freyre é aquele contido na relação entre a tradição e a modernidade. Quanta tinta, e quanta tinta obscura, já não gastamos no afã de precisar e resolver a relação entre estes dois termos ambíguos. Também aqui Gilberto se instala a seu modo e gosto e se balança entre uma e outra ponta, entre a linha da tradição, tão escavada e cultuada na sua obra e na sua vida concreta, e a da modernidade que filtrava com os instrumentos sensíveis do homem ancorado em pontos convergentes do tempo, naquelas esferas o seu tanto vagas ou fluidas do que ele veio insistentemente a chamar de tempo tríbio. Sendo tão solidamente regional e tradicional, não podia ele identificar-se com a corrente demolidora e momentaneamente irreverente e até anárquica do movimento modernista de São Paulo, a outra grande força renovadora da cultura brasileira a partir dos anos vinte, ao lado do regionalismo aqui enraizado e expandido. Decantados os excessos e equívocos em um e outro observáveis – no primeiro o deslumbramento momentâneo com o ímpeto destrutivo das vanguardas européias, no segundo a aderência reativa e por vezes provinciana aos valores específicos e irredutíveis da região – sobra a lição geral a um e outro devida: as obras definitivas do período são aquelas pautadas pela relação de equilíbrio entre a tradição e a modernidade.

Outros pares ambíguos poderiam ser aqui considerados. Se cuidasse agora de especificá-los movido pela ambição de melhor precisá-los e defini-los, talvez lograsse imprimir maior nitidez à figura compósita, ambígua e mesmo contraditória de Gilberto Freyre. Creio porém que os pares acima descritos e um tanto interpretados são já suficientes para uma compreensão provisória da personalidade do nosso autor e também da sua obra, visto que ele próprio insistiu em declarar que a obra era em muitos sentidos a projeção da personalidade que a concebera. Tendo isso em mente, procurei sugerir como no próprio estilo e método de composição da obra se traduzem os traços da ambigüidade incorporada à personalidade do autor.

Restaria ainda considerar um problema implicado no conjunto de pares ambíguos especificados neste artigo. O que parece extraordinário em Gilberto Freyre, na sua natureza confessadamente ambígua e até contraditória, é o fato de ele não materializar – seja na obra, seja na vida por ele vivida – o perfil atormentado do homem dividido. Seu confessado desajustamento cultural, decorrente de cinco anos corridos de ausência do Recife acanhado e provinciano do início dos anos vinte, poderia talvez traduzir-se em expressão machucada de divisão. Se todavia repassamos as passagens do diário em que registra esse período de reacomodação ao ambiente da sua cidade, nada encontramos de definitivamente comprobatório. É certo que alude a artigos – ou artiguetes, como pejorativamente os refere – que o tratam como se fora “...um estranho, um exótico, um meteco, um desajustado, um estrangeirado” . É certo ainda que no mesmo diário anota o medo que a morte lhe inspira. As impressões de medo e angústia são por ele registradas devido ao fato de haver participado de um almoço na companhia do pai na atmosfera mórbida da Casa Agra, conhecida funerária do Recife. O leitor todavia não surpreende na forma e no estilo do discurso nenhuma expressão viva dos sentimentos característicos de um homem atormentado.

José Lins do Rego, único amigo íntimo de Gilberto, além do irmão deste Ulisses, durante esse período de readaptação, reconstitui suas impressões acerca do amigo acentuando imagens de deslumbramento e adesão passional em face da terra amada. Por exemplo assim: “Os seus primeiros artigos eram como cartas de cronista saltando de caravela”. Ou ainda assim: “O poeta, o grande poeta, arregalava os olhos, escancarava os ouvidos, para sentir de bem perto o seu Brasil que lhe parecia, em tantas coisas, tão original, tão próprio, tão cheio de sugestões, e que para mim era como se fosse um vulgar cotidiano. (...) Fui vendo que havia o Brasil, que havia uma grandeza brasileira, com raízes sólidas plantadas pelo lusitano que tanto se desprezava. O retorno desse nativo era como o de um noivo que viesse mesmo para se casar com a terra e que se quisesse integrar inteiramente nela” . Como bem se observa, impressões distantes das duas extraídas do diário de Gilberto Freyre e impensáveis em um indivíduo dividido e atormentado. O Gilberto que nitidamente se destaca dessas imagens é o dionisíaco dos trópicos, o intérprete vitalmente otimista da cultura brasileira.

A figura do homem dividido é uma das constantes mais perturbadoras da tradição artística da modernidade. Bastaria pensar, por exemplo, nos personagens de Tolstói, Dostoievski, Tchekov, Ibsen, Pirandello, Thomas Hardy, Italo Svevo, Henry James, Joyce, T. S. Eliot... No Brasil poderíamos lembrar assim à deriva Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Drummond, Guimarães Rosa... enfim, não falta pano para as mangas. Revertendo às origens da moderna narrativa ficcional no Ocidente, mencionaria o Don Quixote, protótipo e expressão estética insuperada do ser dividido.

O que teria Gilberto Freyre de comum com os autores indicados? Releiam a primeira citação contida neste artigo e observem atentamente como ele descreve a projeção e desdobramento da sua personalidade de autor nos muitos e divergentes e até contraditórios tipos que povoam Casa-Grande & Senzala, tipos que antes se constituem segundo os modos e artifícios da criação literária do que como meros agentes sociais incorporados a uma obra convencionalmente sociológica ou histórica. Observem ainda que ele adverte para a natureza arriscada, perigosa mesmo, de tal procedimento criativo. Gilberto Freyre é o autor dividido, consciente e deliberadamente dividido, e todavia nele não surpreendo nem retenho o ranger atormentado dessas naturezas complexas e insolúveis presentes nas obras dos romancistas e poetas acima referidos.
Mário de Andrade, por exemplo – eis que novamente retomo esses paralelos sempre presentes e continuados entre ele e Gilberto Freyre -–tinha igual consciência da sua natureza dividida. Disse-o e esteticamente o exprimiu em poemas, narrativas ficcionais e na correspondência copiosa e mesmo excessiva para o gosto convencional brasileiro. Nele, o ser dividido ou ambíguo se exprime em pares tais como o tupi e o alaúde; também em metáforas poéticas como a do arlequim e derivados (cidade arlequinal, traje arlequinal, etc.), além do verso célebre: eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta. O verso seguinte (mas um dia afinal eu toparei comigo) sugere a divisão incontentada e sofrida. O homem dividido aspira àquele estado ideal de humanidade reconciliado consigo próprio. Confesso não perceber essa busca ou tormento em Gilberto Freyre. Pelo contrário, irradia ele essa energia solar própria do indivíduo integrado ao meio social em que vive. Diria mais: Gostosamente, sensualmente integrado. Traduzindo-o num outro modo de ambigüidade, diria que ele é o indivíduo dividido e todavia integrado, narcisicamente instalado no seu mundo de culto e eleição.

Ocorre-me aqui pensar num outro paralelo ligeiro, este com o crítico Walter Benjamin. Justificando grosseiramente o paralelo, fixaria já algumas afinidades de temas e de gosto entre ambos. Antes de tudo, a afinidade com a obra de Proust e o culto que a ela emprestaram. Conviria lembrar que Benjamin traduziu Proust para o alemão. Mais importante ainda, acentuavam ele e Gilberto na obra do francês uma predileção sintomática pelo exercício da memória, a memória involuntária fecundando formas de reinvenção e atualização do passado. A história da criança – eles próprios na criança que foram – ocupa lugar de eleição na obra de ambos. Também em ambos a sensibilidade para o detalhe, o dom de avivar o sentido da vida e da cultura nos objetos do cotidiano, nos traços aparentemente irrelevantes da cultura material. Mas se eram em tudo isso afins, o modo pessoalmente irredutível com que se debruçavam sobre essa matéria era inconciliável com qualquer medida comum. Pois se Gilberto era aquela expressão de energia solar acima anotada, um dionisíaco embriagado pela luz dos trópicos, sensualmente fundindo seu ser na paisagem, no mundo humano a que grudosamente se ligava, Benjamin era o ser saturnino, o melancólico tão agudamente descrito nas fotografias que são objeto da parte introdutória do ensaio Under the sign of Saturn, de Susan Sontag .

Se escrevem sobre os vencidos, o gesto dominante de Benjamin é o do melancólico, melancólico até no aceno de redenção dos vencidos. Gilberto, contrariamente, confraterniza com os vencidos quando lhes descreve a existência vencida ou malograda. E tanto confraterniza que sua propensão natural parece fixar-se na festa, na fusão dionisíaca dos diferentes, dos socialmente divididos. Gilberto age por vezes como se fosse à senzala confraternizar com a massa escrava oprimida, como se fosse gozar no corpo da negra ou da mucama e mais tarde voltasse à casa-grande saciado e integrado às correntes vitais do mundo, não obstante as divisões aberrantes que este lhe desdobrasse ante a mirada isenta de tormentos.
Outro moderno dividido e atormentado, Kafka, tão afim de Walter Benjamin, não faz muito foi admiravelmente recriado numa peça do ator e dramaturgo inglês Alan Bennett. Na cena final, composta em primoroso andamento surreal ou fantástico, Kafka participa de uma festa no céu na companhia do pai, a truculenta figura descrita em Carta a meu Pai, Carmen Miranda e, claro, Deus. E todavia sequer aí, e em meio a tais companhias – bom, esqueçamos o pai – cede ele na sua representação atormentada e catastrófica da existência. Diz assim: “I´ll tell you something. Heaven is going to be hell” Quem imaginaria o dionisíaco Gilberto anunciando o apocalipse neste ou em qualquer outro tom? Nem penando no pelourinho ou na senzala. Salve o homem alegremente dividido.

Ocorre-me admitir que talvez fosse mais apropriado e condizente com a linha interpretativa aqui sugerida substituir dividido por múltiplo. O primeiro termo, já antes o indiquei, inscreve-se no cerne da experiência da modernidade estética, e também sócio-cultural, assinalado por valores éticos e psicológicos expressos em sintomas de divisão psíquica, fragmentação, conflito intra e extra-subjetivo e, no limite, desintegração da identidade. Mário de Andrade sente-se dividido ao se multiplicar. Consideremos novamente os versos dele acima citados. Tanto é isso verdadeiro que aspira a um estado reintegrador da unidade cindida. A própria divisão implicada na radicalidade da experiência amorosa se realiza na forma de um andamento dialético insolúvel estruturado sobre o princípio da divisão: doação e perda de si no outro, comunhão e solidão amorosa . Se novamente me volto para a personalidade palpável de Gilberto Freyre, o que mais uma vez sobressai é a relação de contraste entre ele e os autores e obras aqui mencionados. Daí concluir, como no samba de Paulo Vanzolini, confiante na suposição de que me curvo à força dos fatos: salve a alegria ou integridade auto-satisfeita do homem múltiplo.

Recife, 22 de agosto de 2000.

Resumo

Este artigo intenta caracterizar alguns dos traços mais nítidos da personalidade de Gilberto Freyre associados à noção de ambigüidade compreendida enquanto conceito crítico e valor hermenêutico. O argumento baseado na ambigüidade é descrito nos pares contrastantes empatia e estranhamento, regional e universal, tradição e modernidade. Desdobra-se, por fim, nos paralelos traçados entre Gilberto Freyre e Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Walter Benjamin.

Palavras chave: Gilberto Freyre, ambigüidade, Mário de Andrade, Walter Benjamin.




Abstract

This article intends to point out some of Gilberto Freyre´s main traits of personality based upon the notion of ambiguity understood as a critical concept and a hermeneutic value. The argument develops by depicting contrasting twins as empathy and estrangement, regional and universal, tradition and modernity. At last, it ends by tracing parallels between Gilberto Freyre and Mário de Andrade, Gilberto Freyre and Walter Benjamin.

Key words: Gilberto Freyre, ambiguity, Mário de Andrade, Walter Benjamin.

Nota: Ensaio publicado na revista Ciência e Trópico, Vol. 32, No. 1, 2008. Foram suprimidas as notas de rodapé, inclusive uma longa citação extraída de um ensaio de Susan Sontag que aliás tomei como paráfrase para intitular meu ensaio.