quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um Vitoriano dos Trópicos


Não seria exagero começar ressaltando, numa apreciação geral do livro de Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos, seu caráter extraordinariamente renovador. A fortuna crítica de Gilberto Freyre avoluma-se em ritmo acelerado, embora de ordinário tendente à reiteração de juízos de louvor isentos de argumentação comprobatória. É decerto por isso que uma larga fração do que se publica esgota-se em escritos de circunstância cujo tom repetitivo é flagrante. Destoando da corrente geral, Maria Lúcia traz a público um estudo cuidadosamente elaborado. A documentação em que se apóia, objetivando esclarecer o processo de formação intelectual do autor, constitui modelo de biografia intelectual.

Fala-se insistentemente da anglofilia de Freyre. Também das influências que sofreu, sobretudo a de Franz Boas. Ele próprio, no exercício obsessivo de falar de si próprio, e infatigavelmente interpretar-se, chamou em demasia nossa atenção para o assunto. Em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, dissemina pistas e indicações de suas leituras gerais, notadamente inglesas. Mas tudo isso circulou durante muito tempo entre estudiosos como matéria dispersa e portanto pouco definidora das vinculações mais profundas entre suas leituras e a obra que produziu. Pouco se sabia, noutras palavras, até que ponto suas leituras atuaram efetivamente sobre a obra que meditou e escreveu depois de pesquisar e ruminar material de base.

O grande mérito do livro de Maria Lúcia consiste precisamente no fato de esclarecer de que modo determinados autores ingleses, e outros bem pouco antes devidamente considerados, forneceram a Freyre intuições, sugestões de estudos, perspectivas de interpretação que em geral demandam longa maturação intelectual. Antes de dar a público esta obra, Maria Lúcia já anunciara em ensaios preliminares as linhas gerais do trabalho enfim editado na forma deste amplo e luminoso volume. Tais ensaios – refiro-me exatamente a dois: um publicado na revista Tempo Social sob o título “Gilberto Freyre e a Inglaterra”; o outro, “Gilberto Freyre: Um Nordestino Vitoriano”, incluído no volume Gilberto Freyre em Quatro Tempos – já antecipavam com nitidez sua contribuição renovadora.

Importaria ainda ressaltar, nos limites de uma breve resenha, o sentido preciso do qualificativo vitoriano atribuído a Freyre, já que decerto causará estranheza a leitores que bem conhecem o autor e o espírito geral de sua obra e personalidade. Frisa a autora que o vitorianismo deste pernambucano celebrante da sensualidade e da miscigenação vincula-se à corrente de corte rebelde, manifestamente a contrapelo da corrente dominante que cristalizou na semântica do termo representações deformantes do vitorianismo, já que confinadas a limites demasiado parciais. Muitos dos que livremente ajuízam sobre a era vitoriana tendem a identificá-la com uma noção restritiva, quase caricatural. Fala-se então de vitoriano, e termos conexos, supondo-se tão-só repressão da experiência imaginativa e sensível, austeridade de costumes, hipocrisia social, valores e experiências sem dúvida inconciliáveis com a imagem que espontaneamente formamos de Freyre, enquanto entidade psíquica e cultural, e dos significados e representações que sua obra projeta no cenário intelectual. Ora, estudos recentes de notável relevância crítica – refiro-me precisamente a A Experiência Burguesa: da Rainha Vitória a Freud, de Peter Gay – desmentem esta imagem redutora, quase caricatural, que formamos acerca da era vitoriana. Em consonância com este espírito retificador de preconceitos arraigados contra a era vitoriana, Maria Lúcia comprova documentadamente a influência que vitorianos rebeldes exerceram sobre Freyre, como é evidente à p. 48 do livro:
“...os autores ingleses que Freyre mais apreciava eram vitorianos antivitorianos, ou românticos pós-românticos. Ruskin, Morris, Carlyle e mesmo Yeats, por exemplo, eram vitorianos que se opunham corajosamente a muito do que era consagrado em seu tempo, nisso se assemelhando a outros antivitorianos que criticavam sua própria época com uma agudeza que demorou a ser reconhecida pela posteridade”.
No amplo estudo que escreveu sobre a experiência burguesa na era vitoriana, Peter Gay declara, já na introdução, que a causa regente de sua investigação se traduz no propósito de ressaltar e corrigir as representações errôneas dominantes sobre a era vitoriana. Aliás, importa esclarecer que sua periodização ultrapassa as delimitações convencionais. Partindo de uma ou duas décadas antes da ascensão de Victoria ao trono (1837), estende o estudo até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Soma-se a esta distensão temporal uma correspondente espacial que o impele a incluir a França, A Itália, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro, além dos Estados Unidos, dentro do conceito de era vitoriana que enquadra a obra. Sem pretender contestar integralmente as forças repressivas, o puritanismo e a hipocrisia que lastreiam as representações correntes, visa Peter Gay explicitamente revisar seu objeto acentuando as linhas de um quadro real crivado de conflitos e ambiguidades. Como todo grande historiador, tem ele consciência de que a atmosfera cultural de uma determinada época não se esgota em conceituações redutoras ou cadeias totalizantes de causas e efeitos. Arriscaria dizer que a caracterização geral de uma época é tecida antes com as linhas e tintas da ambiguidade, do entretom e da contradição isenta de síntese solucionadora do que das projeções totalizantes ou redutoras. Aludindo a uma expressão feliz que ele emprega na referida introdução, a Rainha Victoria não é vitoriana, assim como Viena não é uma cidade nem Freud é freudiano.

Seguindo em clave similar o espírito renovador da obra de Peter Gay, embora inteiramente omitindo-o na ampla bibliografia relativa ao assunto, o estudo de Maria Lúcia Burke vem corrigir este erro de apreciação desenhando as linhas complexas de um processo cultural muito mais rico, questionador e inquietante.
Concentrando-se nos vitorianos rebeldes, demonstra com cuidadosa e bem fundamentada pesquisa e argumentação como eles forneceram ao sociólogo pernambucano em formação sugestões e intuições seminais espelhadas em muitas das teses e argumentos expostos particularmente em Casa-Grande & Senzala. Maria Lúcia demonstra, por exemplo, como um autor como Lafcadio Hearn trouxe contribuições seminais para que Freyre elaborasse a representação positiva da miscigenação que baliza sua interpretação da cultura e da sociedade brasileira. Outros acrescentaram a Freyre contribuições similares. É o caso de Rüdiger Bilden e do brasileiro Roquette-Pinto. O primeiro, procedente do sul dos Estados Unidos, citado como amigo e colaborador de Freyre já no famoso prefácio agregado à primeira edição de Casa-Grande & Senzala, constitui um dos pontos altos do livro de Maria Lúcia. Além das muitas referências que lhe faz ao longo da obra, ela reserva um capítulo integral à caracterização de sua importância para o apuro e amadurecimento das idéias e argumentos de Freyre espelhados nas páginas da obra que em 1933 revoluciona os estudos sobre o Brasil. A trajetória intelectual de Bilden, que resulta em deplorável fracasso, é comovente enquanto expressão de talento e promessas malogradas. Mais que isso, ela comprova a dívida intelectual imensa que Freyre contraiu no longo e fecundo exercício das reflexões e estudos compartilhados com seu amigo americano. De certo modo, ambos traduziam, nos modos individuais mais característicos elementos profundos enraizados nos mundos culturais em que se formaram: o Nordeste brasileiro de Freyre convergindo com o Sul dos Estados Unidos de Rüdiger Bilden.

Depois deste livro fundamental, muito do que antes se afirmava e repetia acerca de Freyre e sua obra à margem de documentação e análise pertinentes se acomodará nos quadros da medida merecida. Noutras palavras, nenhum estudioso sério que doravante se aventure a escrever história intelectual e sociologia genética sobre Gilberto Freyre poderá consistentemente passar ao largo desta notável contribuição crítica. Na sua obra amparada em pesquisa modelar, e escrita com clareza e competência invejáveis, a autora corrige e renova decisivamente a crítica gilbertiana e o próprio Gilberto Freyre. Astuto explicador de si próprio, esmerou-se ele no exercício reiterado e caprichoso de compor uma auto-imagem que esta obra submete a retoques e recomposição de ângulos necessários. As correções obedecem a um espírito de composição discreto, por vezes sutil, até mesmo complacente em alguns pontos de detalhe preciso, mas estão objetivamente estampadas na obra. A formação intelectual de Gilberto Freyre recebe enfim sua mais completa tradução.

Nota: Artigo publicado na revista Lucero, vol. 17, 2006, University of Berkeley, USA.

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