segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Budapeste




Sándor Márai viajou para o sertão baiano guiado pela mão do jagunço Euclides da Cunha. Desse encontro resultou um belo romance: Veredicto em Canudos, publicado pela Companhia das Letras em 2002. Chico Buarque viajou para Budapeste guiado talvez pela mão do escritor desconhecido cuja pena mítica repousa num parque da cidade. Ambos, Márai e Chico, viajaram puramente através da imaginação literária, como é de resto a norma, ainda quando a narrativa seja de cunho realista.

Chico Buarque já foi nossa “única unanimidade nacional”, como há muito afirmou Millôr Fernandes. Como seria de prever, Millôr foi dos primeiros a desmentir essa discutível evidência. Embora a unanimidade seja uma ficção, antes como agora, é todavia indiscutível o extraordinário prestígio de Chico Buarque, fato que entre outras coisas o torna figura altamente rentável no mercado. Sem negar mérito à sua literatura, fração considerável de sua repercussão, acrescida de muitas adaptações cinematográficas, deriva da mitologia que cerca sua persona de ídolo da música popular brasileira.

Budapeste tem méritos próprios, que portanto independem dos trunfos externos associados ao romance e ao filme. Antes de tudo, ressaltaria a singularidade do enredo dentro de uma tradição literária e cinematográfica tão subordinada ao cabresto do nacionalismo cultural, que não raro desliza para o provinciano e o exótico. Chico destoa da clave previsível ao compor uma obra que vincula o Brasil à Hungria e com certeza custou-lhe árduo trabalho de pesquisa e elaboração imaginativa.

O filme dirigido por Walter Carvalho, apoiado no roteiro de Rita Buzzar, logra transpor o romance para a tela de modo competente e isento de qualquer maneirismo exótico ou show de imagens para adular o espectador de olhar turístico, como me parece ser o grave erro de Woody Allen ao filmar Vicky Cristina Barcelona. A beleza de Budapeste, cortada pelas águas do Danúbio e por pontes imponentes é assimilada à narrativa como espaço cenográfico funcional e expressivo.

José Costa (Leonardo Medeiros) é um ghost-writer que vai acidentalmente a Budapeste. Lá se apaixona pela língua, por uma húngara chamada Kriska (Gabriella Hámori) e se embrenha num fascinante enredo fundado nas linhas confusas entre identidade e autoria ficcional. O que vive em Budapeste, desse ponto de vista crucial para o desdobramento do filme, é apenas uma extensão do que já vivia no Rio de Janeiro, onde se ocupava profissionalmente em escrever anonimamente, e mediante pagamento, discursos, cartas de amor, monografias. Quando escreve O Ginógrafo, isto é, alguém que escreve literalmente sobre o corpo de uma mulher, ele acaba envolvido numa grande encrenca amorosa.

O personagem do romance e suposto autor do livro escrito por Costa é o alemão Kaspar Krabbe. Krabbe apaixona-se por uma carioca chamada Teresa. Ele converte o corpo de Teresa num livro, já que o recobre de palavras. Quero dizer, não ele, mas Costa, o ghost-writer. Quando ela o abandona a meio da obra, ele mergulha num estado catatônico do qual somente emerge depois que desanda a procurar putas sobre cujos corpos volta a escrever. Daí passa ao corpo de colegiais deslumbradas por seus dotes literários. Assim seu livro singular disseminou-se pela vida, errante numa infinidade de corpos, peles moventes e voláteis. Por fim encontra a mulher que o ensina a escrever as palavras na ordem inversa. À noite, porém, ela apagava tudo que ele no seu corpo escrevia. Ao escrevê-la do princípio a cada dia, fez disso um ritual sempre renovado e incessante. Por fim, ela engravida do livro cujo título é O Ginógrafo.
Quando o livro é lançado, Krabbe logo se converte numa celebridade literária e seduz até Vanda (Giovanna Antonelli), mulher de Costa e famosa apresentadora de telejornal. Incapaz de suportar a paixão que Krabbe desperta em Vanda, Costa arma um escândalo em plena festa de lançamento do livro. O desfecho desastroso culmina na separação do casal.

O enredo se desdobra entre o Rio e Budapeste. Logo que chega a Budapeste Costa transita ao longo das ruas erguidas à borda do Danúbio. Atraído por uma das imagens mais fortes que o afetam em trânsito pela cidade, desce do táxi para observar esta cena insólita: a estátua gigantesca de Lênin desmembrada e transportada sobre um barco que corta as águas do Danúbio. O ângulo da câmera invertido no plano final da cena sugere a imagem do líder supremo da Revolução Russa precipitando-se para o fundo das águas. Eis o epitáfio lacônico e impiedoso do socialismo húngaro.
Outra cena marcante do filme envolve a estátua do escritor desconhecido, autor da Gesta Húngara. Segundo o relato de um guia de turistas, ele quis preservar seu anonimato indiferente à glória e à fortuna. A similaridade com a condição de Costa, escritor anônimo, é demasiado evidente, ressaltada a variante de que este não se contenta em ser instrumento anônimo e remunerado da glória alheia. Se o escritor desconhecido contentava-se em humildemente servir a humanidade através de suas palavras, Costa emerge do seu anonimato quando o falso autor se apropria da sua obra e seduz sua mulher.

Costa tanto refina seu conhecimento do húngaro que acaba compondo um livro de poemas, ele que no Brasil nunca escrevera um verso na sua língua nativa. Evidentemente a glória vai novamente para um outro, o falso poeta que compra a autoria da obra. E eis que Costa, novamente mordido pelo amor ciumento por Kriska arma um novo escândalo ao denunciar a autêntica autoria da obra.

Expulso da Hungria, Costa retorna para o Rio de Janeiro. Mas logo recebe um telefonema do consulado húngaro, que lhe fornece passagem de volta para Budapeste e visto permanente. Mal chega ao aeroporto onde Kriska o espera, desta vez é recepcionado como um gênio da literatura. Até Chico Buarque lhe pede autógrafo, uma cena absolutamente imprevisível e de grande efeito irônico no contexto da trama.

Um livro é uma expressão de amor, ou pelo menos uma experiência de profunda intimidade entre dois seres, o autor e o leitor, mais preciosa e profunda do que a maior parte das formas correntes de interação humana. O livro de Chico Buarque, mais do que um ato de amor, traduzido na relação de Costa com Vanda e Kriska, é um ato de amor passional e erótico compreendido este no seu sentido mais estrito e perturbador.

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