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sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Freud para Paulo Medeiros


Paulo Medeiros
Dedicatória num livro sobre Freud: O Projeto de Freud

Sopro de entendimento:
eis o que ele tem sido
no cerne da irrazão.
Ele que Freud, não fode
ele me iluminou
minha medida que pode
apenas viva medir-se
no hiato entre gozo e dor.

x.x

Mais que ninguém
foi ele a luz
do entendimento
redefinindo
meu ser errático.

Fernando da Mota Lima

Recife, 30 de abril de 1996.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

No Mural do Facebook XVIII


O Brasil não existe

Antes, bem antes de ser brasileiro, eu já queria nascer no Brasil. Quem não gostaria de viver num país de povo amante da diversidade, isento de preconceitos, festivo como o carnaval, inventivo como o futebol e as escolas de samba, sensual como a mulata que passa requebrando com o pudor de quem anda nua, como disse um dos cultores das nossas virtudes?
Pensei nessas tolices porque ando relendo as memórias de Stefan Zweig, o judeu errante que disse noutras e célebres palavras o que rabisquei acima. Zweig cativou os brasileiros, sempre mais nacionalistas do que outros nacionalistas, quando ventilou profecias paradisíacas sobre o nosso futuro. Brasil, país do futuro, ou coisa parecida. Nasci, tornei-me brasileiro, estou agora bem mais perto da morte do que do futuro e no entanto o futuro paradisíaco nunca chegou. O Brasil que sonhamos, assim como o de Zweig, é sempre o Brasil de amanhã.
O problema do futuro, não importando quanto seja paradisíaco, é este: não é nunca hoje. Hoje é o único tempo real. Portanto, até quando nos consolaremos com um país que será sempre amanhã? Amanhã, já cantava o outro, que acabou cantando o pior do presente, amanhã vai ser outro dia. A frase, que nos apaixona por ser uma metáfora, é sempre uma promessa adiada, sempre uma esperança: o bem que se quer e não se tem. Nenhum país que inventou seu presente precisa consolar-se com um futuro improvável. Como não sabemos o que fazer do que somos coletivamente, conspiramos, insultamos e nos intoleramos (com perdão do dilmês) quando os males que tramamos caem sobre nossas delirantes cabeças. Como não nos sabemos, nem nos queremos como somos, penduramos a consciência na ilha de Marajó, seguindo o exemplo de Macunaíma, herói da nossa gente, e culpamos o outro. O culpado é sempre o outro.
Ah, antes que me esqueça: Stefan Zweig, coitado, não pôde viver o Brasil do futuro porque se suicidou no presente. Aliás, tudo é sempre o presente. Brasileiros, acordem para o presente. Desconfio de que não falei do exclusivismo político que colonizou a vida dos chamados brasileiros conscientes, politicamente esclarecidos e responsáveis. O que subjetivamente sei é que me sinto como Stefan Zweig isento da queda no suicídio. Quero dizer, sinto-me estrangeiro no país do amanhã, solitário no país do hoje. E com franqueza: não acredito nessas maravilhas que vemos espelhadas na imagem nacionalista que cultuamos. Será que algum dia aprenderemos a conjugar nossa realidade (este princípio imperativo, como diria Freud) no presente do indicativo?
(Postado no Facebook, 23 de maio de 2016).


Culto da personalidade:
Quem conhece a história do comunismo, em particular o stalinismo, sabe do que falo. Stálin, um dos maiores tiranos da história, foi objeto de culto, inclusive de intelectuais que se supõem a consciência da humanidade. A verdade, que o próprio PC soviético passou a admitir desde o Congresso de 1956, é ainda ignorada por alguns comunistas retardados, que não suportam o choque doloroso da verdade. Enquanto suprimia ou tiranizava a vida de milhões de soviéticos e inimigos externos, Stálin era celebrado por escritores como Jorge Amado e Pablo Neruda (cito apenas os dois comunistas latino-americanos mais célebres) como pacificador dos povos e benfeitor da humanidade.
Observando a sociedade das massas e o culto desvairado que milhões devotam a ídolos do rock e do futebol, não é difícil compreender porque serem humanos que nada fizeram de humanamente significativo ou não sabem que são poeira da história, antes de tudo por aceitarem essa condição, cultuam delirantemente esses ídolos. Freud estudou as bases psicológicas desse fenômeno cada vez mais corrente na sociedade das massas no seu ensaio "Psicologia das Massas e Análise do Ego" (entre nós erradamente traduzido como Psicologia de Grupo, etc). Embora neste parágrafo refira-me até aqui ao culto dos ídolos da cultura de massas, o fenômeno estende-se igualmente para a esfera da política, tanto que comecei aludindo a Stálin como objeto de culto da personalidade.
Sem nem de longe comparar o culto a Stálin com o culto a Chico Buarque (pois seria uma analogia infame, coisa que leio petista fazendo todos os dias), quero protestar contra blogueiros servis, embora alguns sejam comprovadamente pagos, que diariamente infiltram na minha página posts de culto a Chico Buarque. Como o que acima escrevi já deixa implícito, não cultuo nenhum ídolo. Cultuar ídolos é algo indigno de um homem que luta para ser livre, na medida em que isso é possível. Esta é minha luta e minha ambição. Tenho compromisso com minhas convicções e com a minha consciência. Logo, não cultuo Chico Buarque nem ninguém. Uma coisa é admirá-lo como nosso maior compositor, segundo apenas para Tom Jobim; outra é isso que aqui critico. Ademais, há muito deixei de ter razões objetivas para admirar ética e politicamente o Chico Buarque que já admirei. Por isso tenho removido esses intrusos e intrusas que se enfiam na minha página para cultuar Chico Buarque. Alguns trazem o timbre "Patrocinado". Por quem, é a única coisa que gostaria de saber. Afastem-se de mim todos esses que carregam no lombo de escravo mental e moral todos os santos de pés de barro da política e da cultura de massas.
(Postado no Facebook, 29 de maio de 2016).

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Política e Psicanálise


Comento tardiamente o artigo de João Rego: O político, o homem e a razão cética, publicado na revista eletrônica Será? João Rego tem com freqüência citado Freud, notadamente O mal-estar na civilização (este termo, aliás, mereceria um artigo esclarecedor), para definir sua compreensão da política e questões de fundo social discutidas nessa revista. Sua perspectiva me parece decorrer, antes de tudo, da sua qualificação como analista e portanto leitor da obra de Freud. A representação corrente da psicanálise é muito deformadora dos seus fundamentos, já que tende a restringir sua validade e exercício à relação clínica entre o analista e o paciente. Há portanto quem ignore, inclusive muitos praticantes da psicanálise, suas ambições explicativas mais amplas. Se perdemos de vista essa dimensão, não podemos sequer imaginar o impacto exercido pela psicanálise no movimento intelectual do século 20. Um verso de Auden, um dos que foram profundamente influenciados por ela, condensa em poucas palavras o que estou aqui sugerindo: Freud tornou-se um clima de opinião. Traduzo assim livremente, e sem aspas, o que ele expressa num poema em memória de Freud pouco depois de este morrer.
É certo que a formação de Freud prende-se de imediato às ciências naturais (generalizo para simplificar a exposição) num estágio de desenvolvimento dessas ciências tão acelerado que do seu bojo brotou a ideologia do cientificismo. Explicando-a grosseiramente, reduzia tudo à ciência. De acordo com essa perspectiva ideológica, a ciência era o fundamento do progresso humano e, no limite, tendia a explicar tudo. Na periferia da cultura européia, é o caso do Brasil, intelectuais como Euclides da Cunha validaram a inviabilidade racial do povo brasileiro baseados nessa ideologia espúria. Sabemos que retificou esse erro, mas não ao ponto de suprimir graves ambivalências e contradições observáveis na sua inquestionável obra-prima. Também Freud pagou tributo ao cientificismo, como é patente nos textos em que interpreta obras artísticas. Diria que o que salva Freud dos erros dessa ideologia é sua formação humanística e sua intuição profunda da natureza indomesticável das pulsões humanas. É graças a essa concepção que, sobretudo na sua obra tardia, retoma de forma explícita questões sócio-culturais como as que João Rego ressalta no seu artigo.
Acho que uma apreciação psicológica da política é fundamental. Freud é uma das matrizes modernas dessa abordagem, embora nunca tenha escrito estritamente sobre o assunto. Visando sugerir a fecundidade dessa perspectiva interpretativa, lembraria os muitos analistas e comentadores da psicanálise que a exploraram de forma explícita. Evito citar nomes, pois há uma infinidade deles. Uma das limitações sérias de muitos dos nossos estudos sobre a política, em particular a brasileira, deriva dessa omissão de uma concepção psicológica do ser humano. João Rego tem esboçado com pertinência essa dimensão interpretativa no que escreve para a revista Será?
Retomando um pouco seu argumento, ele se baseia antes de tudo em O mal-estar na civilização para expor argumentos que o leitor apressado pode simplesmente interpretar como pessimistas ou até niilistas. Um argumento que me parece central na obra de Freud acima citada consiste na ideia de que há no ser humano um cerne biológico indomesticável pela civilização. É isso o que explica o título da obra. Também explica a recusa de Freud a uma noção otimista do progresso humano, apesar de ocasionais ambivalências contidas no conjunto da sua obra. Explica por fim sua recusa a qualquer utopia. Convenhamos: se acreditava na natureza indomável do egoísmo e da agressividade humana, como validar ou propor qualquer projeto utópico?
Freud procede no livro a uma breve crítica do comunismo. Observa que este supõe a crença na propriedade como fundamento dos males humanos. Suprimida a propriedade, instituída a igualdade social na espécie, realizaríamos afinal a utópica reconciliação da humanidade. Para mim, isso não passa de substituto secular da religião. Baseado na psicanálise, Freud desqualificou esse experimento histórico em 1930, ano em que publicou O mal-estar na civilização. Bertrand Russell o precedeu nessa objeção certeira. Em 1921 foi à Rússia conhecer de perto a revolução em processo. Conheceu Lênin pessoalmente. Depois do que observou, escreveu um livro contra o comunismo que mesmo na liberal Inglaterra o deixou política e intelectualmente quase isolado. A prova de que ambos estavam certos, Freud e Russell, depois da catástrofe que foi a experiência comunista ao longo do século 20, não é mais questão de teoria, mas sim de ideologia. Os fatos históricos estão aí para quem queira avaliar os fundamentos utópicos do comunismo.
A conclusão acima que, embutida na obra de Freud, também serve para validar a razão cética contida no título do artigo de João Rego, suprime o solo de onde brotam nossas ilusões mais tenazes. Ousaria acrescentar que pode ir além validando uma concepção niilista, se como tal entendemos a insolubilidade da condição humana. Na visão de Freud, Deus está morto, como antes, com implicações distintas, também afirmaram Dostoiévski e Nietzsche. Até no âmbito terapêutico Freud assinalou que tudo que a psicanálise poderia fazer seria substituir nossa miséria psíquica por uma neurose suportável. Friso traduzir livremente de memória o que ele escreveu. Acrescentou ainda que “civilização é repressão”. Embora tenha pioneiramente lutado para promover condições culturais passíveis de aliviar o peso insuportável da repressão sexual numa época profundamente diferente da permissividade hoje reinante, nunca relutou na defesa da civilização. Nesse sentido e em muitos outros que omito num breve artigo, a substância da sua obra e de sua orientação ética são incompatíveis com o espírito do presente. Isso explica em parte a compreensão deformadora da sua obra.
Em suma, Freud foi um gênio, um conquistador (termo de sua eleição) de territórios insondáveis do nosso psiquismo. Por isso a substância da sua obra é tão indigesta para o mundo regido pelo hedonismo e a permissividade em que vivemos. É também indigesta para os que não suportam viver privados do consolo de ilusões salvadoras ou o peso da existência humana sem a consolação de uma utopia passível de dissolver a tensão insolúvel entre desejo e realidade. Também por isso o veio aberto por João Rego pode fecundar leituras mais agudas da política e da nossa retorcida natureza.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Memórias de um leitor VIII

                                                                            
Retomo o fio da narrativa lembrando que  meu assunto presente é ainda a função formadora dos livros. Diria ainda mais: sua função terapêutica, fonte de consolação nos momentos de dor e desamparo. Em determinadas circunstâncias, como algumas que eu próprio vivi, o livro pode desempenhar o papel do amigo ou da força de amparo e renovação que nos falta na realidade das relações pessoais. O socorro espiritual que nos presta, a companhia na solidão carente de voz significativa, por vezes o livro pode ser isso na nossa vida. Quando a doença grave sobrevém, por exemplo, e sem aviso se apossa do paciente que não tem nem onde cair morto. Quem não ama os livros, quem não lhes cultiva a companhia, está com certeza bem mais exposto ao desamparo que nos assalta na hora da fatalidade. É exatamente nessa hora, a da fatalidade, que mais precisamos do outro, da sua ajuda e companhia consoladora. Mas quantos têm de fato a ventura de contar com esses suportes humanos? Quem nos concede companhia significativa e desinteressada quando a doença nos priva de autonomia expondo-nos à dependência do outro?
Os livros nada sabem de medicina, salvo evidentemente os que versam sobre este assunto,  e portanto são impotentes para salvar um jovem enfermo, desempregado e sem vintém. Logo, a medicina salvadora não proveio deles. Deles proveio a companhia que suprime o tédio dos enfermos, do corpo e sobretudo da alma, a solidão que sobrevém quando o corpo adoece e o enfermo é condenado ao isolamento de uma cama e quarto. O que fazer então da vida e do tempo paralisados sobre o colchão do enfermo solitário? Os supostos amigos desaparecem e então fica claro que as amizades de farra, de festa e botequim, prevalecentes na nossa inconsciente experiência da amizade, nada valem. O enfermo precisa enfim lidar consigo próprio, com sua solidão e com o tédio das horas que se arrastam impiedosas no quarto vazio de vida e humanidade. Posso no entanto afirmar por experiência própria que o enfermo leitor está isento dessa forma de dor e desamparo. Ele tem os livros, a companhia do semelhante imaginário que ilumina e imprime sentido à sua doença, sua solidão, seu desamparo de enfermo.
Embora longe de depreciar o amor e a solidariedade de Rejane e Semadá, amiga que conquistei na hora da adversidade, uma das mais poderosas evidências da amizade verdadeira, foi na companhia dos livros que ancorei minha carência de vida significativa. A leitura que acima de tudo ilustra essa experiência é a do Dom Quixote, de Cervantes. Li-o no momento ideal, quando dispunha de todo tempo do mundo para ler, já que forçado ao repouso absoluto, atado à cama dos enfermos. Foi então que pedi a Rejane que tomasse de empréstimo à Biblioteca de Afogados a edição em cinco volumes, primorosamente ilustrada por Gustave Doré, editada pela José Olympio. Nunca um livro me transformou de forma tão radical. Estava ainda sob o efeito sombrio da doença e do medo da morte quando comecei a ler aqueles volumes pesados. Pois logo mergulhei num mundo de transfiguração imaginária da vida tão imprevisível que cheguei ao extremo de inspirar temores a Rejane. Surpreendendo-me às gargalhadas quando o livro gargalhava, tagarela quando o alucinado Dom Quixote e seu escudeiro também delirante arengavam pelas estradas da Espanha, Rejane começou a duvidar de minha sanidade. Até Ednaldo precisou prescrever-me Somalium, o Lexotan da época, para induzir-me a dormir com alguma regularidade e assim estar desperto nos horários prescritos para a medicação necessária à minha cura.  À leitura do Dom Quixote acrescentei a audição continuada das sonatas e partitas para violino solo, de Bach. O intérprete era Heifetz. Ainda hoje ouço essas gravações que me comunicam uma experiência de beleza indizível. A companhia dos livros e da música tornou-se tão preciosa nesse momento difícil de minha vida que ao cabo, tendo já como certo meu regresso à vida saudável e normal, fui muitas vezes seduzido pelo desejo de continuar doente, de não mais reatar os vínculos ordinários e previsíveis com a vida.
Nas circunstâncias acima descritas, o livro nos concede mais do que companhia ou remédio para a solidão dos enfermos. Se importasse apenas para isso, poderia ser substituído pela televisão, um filme qualquer reproduzido num aparelho de DVD, assim como outras alternativas imagináveis num mundo cuja revolução tecnológica propicia múltiplas formas de anulação do isolamento individual. Para mim, a obra de Cervantes e a de Bach representaram muito mais do que mera companhia povoadora do longo estado de enfermidade que me reteve na cama. Ambas constituíram fonte de enriquecimento espiritual, de expansão da minha consciência e sensibilidade. Embora incapaz de traduzir em palavras o sentido radical dessa experiência estética, tenho ainda consciência de que a vivi e portanto sei o que significou para a minha vida, em particular para as circunstâncias adversas que então vivia.
Observei ainda, como por certo notou o leitor atento, que fui tomado pelo desejo de continuar doente. Volto a retomar este detalhe por me parecer que remete à compreensão da obra de arte investida de dupla funcionalidade: enquanto uma funciona como via de evasão da realidade, a outra nos devolve a esta enriquecidos pela sensibilidade e a consciência renovadas graças à obra que funde princípio de prazer e princípio de realidade, para lembrar aqui uma das polaridades conceituais propostas por Freud. Impregnado pela ideologia cientificista dominante na época de sua formação, Freud não raro se contradisse ao considerar a arte psicanaliticamente. Leitor refinado da melhor tradição do humanismo clássico, que remonta aos trágicos gregos desaguando em alguns dos seus contemporâneos, Freud expressou muitas vezes a consciência de que a dupla funcionalidade da arte acima indicada não implica, nas obras de autêntico valor estético, anulação de uma pela outra. Noutras palavras, a função evasiva funde-se à função transformadora da nossa relação com a realidade.
O próprio Freud nos fornece a melhor evidência dessa verdade. Quando recebeu o Prêmio Goethe de Literatura e foi saudado como o descobridor do inconsciente, teve a humildade, rara num homem dotado de ousado e confessado orgulho de conquistador na esfera do pensamento, de afirmar que o inconsciente foi descoberto bem antes dele pelos poetas e grandes inventores da literatura. Logo, a natureza fantasiosa da arte, expressão do princípio do prazer, não anula a possibilidade de a fantasia atuar sobre a realidade e portanto transformá-la. Se Freud foi por vezes incapaz de reconhecer essa verdade, o erro decorreu da impregnação da ideologia cientificista de sua época. Embora sem recorrer à psicanálise, contrário ou favorável a ela, Mario Vargas Llosa abordou frequentemente essa questão na sua obra, notadamente em La verdad de las mentiras, livro no qual estuda com sensibilidade e penetração crítica alguns dos mais importantes e influentes romances do século 20. Os textos de abertura e fecho da obra, intitulados La verdad de las mentiras e La literatura y la vida, exploram muito bem a questão que tentei esboçar acima.
E o que dizer agora da poesia, da forma como convencionalmente a representam as pessoas ajuizadas, a maioria esmagadora dos mortais aderentes aos movimentos pragmáticos da vida, à norma imperativa que nos incita a acreditar que a educação é meramente um instrumento de ascensão social e por conseguinte importa apenas na medida em que se traduz em inserção no mercado, sucesso profissional e muito dinheiro na conta bancária?  Se o intelectual, como antes ressaltei, é um tipo subordinado a representações sociais ambíguas, o poeta é definitivamente um caso perdido na história de qualquer família, um desastre corroendo os cálculos e ambições materiais de qualquer pai que tenha a desgraça de gerar esse tipo incapaz de ajustar-se aos códigos práticos da vida. Dou um outro salto no tempo para melhor ilustrar o que um inútil dessa natureza pode fazer em benefício de um gauche como eu. Uso o termo gauche bem a propósito, pois o poeta em questão é Carlos Drummond de Andrade.
Salto para o ano de 1980. O espaço dentro do qual me movo é São Paulo, a macota cidade, como diria o moleque Macunaíma. Tudo que fiz de prático ao me mudar para São Paulo foi transpor para lá, para aquela selva de concreto que me deixou aturdido durante muitos dias, a minha vida sem rumo, minha vida de judeu errante. Estava novamente sem um vintém no bolso. Literalmente à mercê do desamparo das ruas frias e indiferentes à minha desgraça, lembrei-me providencialmente de telefonar para Cleisa Maffei. Não a conhecia. Tudo que dela sabia era o seu telefone, anotado na minha agenda e fornecido por Denis Bernardes que em Olinda, pouco antes de minha partida, falou-me um pouco de Cleisa. Conheceram-se em Paris, ambos estudantes de pós-graduação.
Liguei para Cleisa e fui generosamente acolhido. Quando lhe relatei a situação em que me encontrava, convidou-me para morar provisoriamente no seu apartamento, onde vivia sozinha. Durante meses vivemos uma relação que nos marcou muito. Levei para o seu mundo de mulher pragmática, - professora da PUC, mas sobretudo militante em defesa dos pobres e miseráveis com quem trabalhava como assistente social – a sedução transfiguradora da literatura e da música. Lembrando o título do romance hoje esquecido de Orígenes Lessa, O feijão e o sonho, enquanto ela era a provedora do feijão, eu em troca lhe dava sonho, a imaginação sedutora e vagabunda de Macunaíma, que nessa época descrevia incríveis cambalhotas na minha vida. Além dele, vivia povoado por toda a obra de Mário de Andrade, então o autor que mais intensamente lia e se infiltrou de mil modos na minha vida e na minha imaginação, até porque era o centro do meu projeto de dissertação de mestrado, a fonte irradiadora de minha vida imaginativa naquele momento.
Precisei ralar a paciência do leitor esboçando acima o contexto autobiográfico necessário para adequadamente introduzir a poesia de Drummond nas trepidações que então assaltavam minha vida. Uma noite o telefone toca. Era minha irmã Zuleide ligando do Recife. Deus sabe, já não eu, como conseguira me localizar. Ligou para me dizer que papai estava gravemente enfermo, internado num hospital e tinha provavelmente poucos dias de vida. Até aquele momento me iludira supondo que tecera e emendara em mim os fios entrançados que me prendiam a meu pai. Afinal, remoí e sofri durante anos, nas lutas surdas com a vida e minha memória de família atormentada, tudo que podia retraçar, ordenar e tecer com uma lucidez e capacidade de sofrer e decantar a experiência que tinham muito de ilusório. Os vínculos com o passado, os traumas de família ainda me pesavam tanto que de repente me vi sentado no chão, o telefone ao ouvido, e as lágrimas escorrendo dos meus olhos. O telefonema de Zai, como carinhosamente ainda costumo chamar minha irmã, foi um choque tão grande que perdi a capacidade de dormir. Durante vários dias fiquei sem pregar olho, lutando com meus fantasmas, bebendo, pois então bebia muito, e nada de me pacificar, de me reconciliar com o sono tão necessário.
E eis que de repente o milagre desce sobre mim. Tão próximo, tão íntimo naquelas noites frias e embriagadas sofridas na macota São Paulo, que nem dei por ele nas primeiras linhas do poema. A fonte do milagre foi um poema de Drummond: Os últimos dias, incluído em A rosa do povo. O poema foi gradualmente me penetrando as camadas mais profundas da sensibilidade fatigada pelo peso da insônia. Dele fluíam em ondas líricas os sentidos profundos do fim último da nossa condição, a finitude da matéria “que a terra há de comer”, como diz o verso de abertura do poema. Pela primeira vez lia este poema, Os últimos dias, não mais como um poema neutramente belo e tocante. Naquele momento intraduzível ele vibrou nas camadas mais líricas e íntimas do meu ser. E então vi meu pai, a matéria finita, desdobrando-se no tempo imaginário, atravessando o longo e tumultuoso rio do tempo para afinal dissolver-se na corrente que também a mim um dia me tragará. E uma grande serenidade, uma grande paz desceu sobre a minha noite de insônia e pude enfim, depois de ainda lutar contra a insônia de tantos dias, pude enfim dormir em paz.
Nas noites seguintes, entretanto, a insônia voltou a rondar o quarto. Uma intuição inexplicável, como tantas que irrompem na vida, salvou-me de vez das garras da insônia. Tive a luminosa ideia de gravar minha própria voz lendo uma seleção dos poemas de Drummond eleitos como meus favoritos. Comecei com Os últimos dias e assim gravei uma fita inteira de 60 minutos. Concluída a gravação, acionei a tecla play, apaguei as luzes e me deitei completamente receptivo à audição dos versos de Drummond que me foram acalmando, ajustando as peças soltas do caos interior, remendando fios rompidos, recobrindo meus desertos com a luminosidade lírica de uma beleza, uma luz pacificadora que me transportaram à sonhada e necessária morte momentânea propiciada pelo sono. Assim, graças ao poder milagroso da grande poesia lírica, reacomodei a memória do meu pai em mim, prendi minha mão na sua mão invisível e cansada, tão doce e passivamente sofrida, e no fundo da noite insondável me vi refletido no espelho das águas imaginárias onde também se desenhava a figura comovente do meu pai.  
A poesia, a inútil poesia desprezada pelo burguês sempre pragmático, mesquinhamente reduzido a seus cálculos, que vão das operações elementares da matemática ao saldo bancário acumulado durante uma vida inteira impermeável à poesia, a qualquer experiência de ordem gratuita, a poesia é sem dúvida inútil mensurada segundo esses princípios estreitos. Fazendo justiça ao burguês, que aqui reponta bem mais como uma caricatura, não é ele o único a desprezar a poesia, a simplesmente ignorar-lhe a existência inútil. A maioria das pessoas, aqui incluídos muitos intelectuais demasiado pragmáticos para perder um minuto do seu tempo lendo um soneto ou um poema curto, acha simploriamente que a poesia não tem nenhuma importância. Talvez tenha para seduzir uma mulher, ou para propiciar um momento de brilho narcisista durante um sarau literário. Restrita a essas funções mundanas, contudo, ela está ainda subordinada ao cálculo mesquinho dos pragmáticos.
O que pretendi sugerir relatando as circunstâncias que me levaram a assimilar de forma mais profunda um poema de Drummond foi algo de natureza mais decisiva para nossa condição humana. A poesia, assim como a filosofia, remete no fundo às questões últimas da nossa existência. Abstraídas as especulações mirabolantes dos técnicos, não poucos filósofos profissionais, também alguns poetas que fazem do ensino da poesia um meio de sobrevivência, a poesia e a filosofia constituem, na sua expressão mais radical, uma interrogação sobre a experiência substantiva do ser humano. E essa experiência pode ser resumida nestes termos que identificam nossa experiência essencial e inescapável: o sentido da vida, o amor, o tempo, a perda, o sofrimento e por fim a morte. É claro que poderia acrescentar mais alguns substantivos que em síntese definem nossa condição e passagem por esse mundo. Mas fiquemos com a poesia assim mal formulada. Na voz dos grandes poetas, ela diz tudo que importa.



terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor II


Um dia um adolescente gay apaixonou-se por mim. Chamava-se também Fernando. Como reza o chavão discriminador, era uma bicha louca. Aliás, sempre me perguntei por que o homossexual brasileiro é de ordinário representado nas artes (cinema, teatro, música...) e sobretudo nas comédias e programas de humor, para não falar no anedotário popular e desabrido, dessa forma caricatural e ofensiva. Mais perturbador ainda é constatar que muitos gays se comportam de modo a enquadrar-se nessas formas de representação. Identificam-se, noutros termos, com a projeção do agressor, daquele que os discrimina e rejeita. Como Sartre observou, o judeu portador de todas as deformações raciais e morais que justificam sua supressão não existe; é uma invenção do antissemita. O mais grave é que muitos judeus acabam vestindo a natureza repulsiva inventada pelo antissemita e assim fazendo negam em si próprios sua natureza essencial, que é a de todo ser humano.

O mesmo processo de redução ideológica se repete no estereótipo do homossexual, assim como no estereótipo de todos os condenados e suprimidos da esfera da “normalidade” humana. Conheci alguns desses estereótipos no mundo da minha infância: o camponês rebaixado à condição de bicho semi-escravo, a bicha louca ou lacrada dentro de armários invisíveis, a adolescente desfrutável, a mulher desonrada, a Bovary dos canaviais (como foi minha mãe), o garanhão, o corno manso, o matuto, sempre negativamente contraposto ao citadino, o coronel do latifúndio, o usineiro. A literatura, através das misteriosas veredas da imaginação mais verdadeira do que a realidade empírica mistificadora, a literatura lavou meus olhos e meu coração ao desvelar a humanidade dos seres humanos comprimidos nessa rede de estereótipos que prevalece ainda no mundo. Infelizmente, continuamos a representar o outro baseados antes na realidade da empiria mistificadora do que nas camadas humanas invisíveis que nos traduzem como modos múltiplos e complexos de ser humano. Para ser ainda mais realista, outros diriam pessimista, piso num terreno movediço demais para me pronunciar em nome de qualquer princípio de progresso iluminista. Se é fato que ultrapassamos muitos desses preconceitos e estereótipos, em compensação cunhamos outros que atendem à nossa necessidade de liberação da nossa crueldade e agressividade constitutiva. Freud tem razão. Somente os órfãos incuráveis da utopia continuam acreditando que um dia inventaremos uma humanidade reconciliada.

Quando vivi na Inglaterra, detive-me muitas vezes na consideração do problema do homossexualismo enraizado nas memórias da minha infância. Desatando a imaginação comparativa, espantou-me de início aferir a profunda diferença de representação do gay na cultura inglesa e na brasileira. O que me pareceu mais espantoso foi considerar que cultuamos ainda hoje uma ideologia de liberação sexual do brasileiro contraposta à rigidez puritana dos ingleses. No entanto, ainda que discriminada legalmente na Inglaterra até meados do século passado, a homossexualidade lá, tal como a conheci, goza de um estatuto legal e de uma tolerância e reconhecimento maiores do que o observável na nossa cultura “sem culpa”, expressão, desde os tempos coloniais, de que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Quem quiser que acredite, assim como há quem acredite que somos uma democracia racial. Ou ainda que somos um país cuja história é incruenta, pois as desigualdades e antagonismos se misturam de forma criativamente integradora. O problema nosso, nisso como em muitas outras coisas, é que as relações cordiais, no sentido usado por Sérgio Buarque de Holanda, que só para os ignorantes é uma ideologia justificadora da nossa “história incruenta”, com freqüência se sobrepõem às relações legais. Não me detenho para esclarecer esse mal-entendido relativo ao conceito de cordialidade na obra de Sérgio Buarque porque já dediquei um artigo inteiro à consideração deste problema quando no meu blog escrevi sobre Raízes do Brasil.

Voltando a Fernando, ele me amava enquanto eu o repudiava. Ele me assediava com sua delicadeza, sua carência de amor de homem, enquanto eu o humilhava e me sentia agredido pelo que me propunha ou de mim desejava. Um dia morreu num acidente de trem quando vinha para o Recife. Senti sua morte, mas não a real dimensão da culpa que veio muito mais tarde, quando minha consciência, já mais esclarecida pela alteridade escrita na literatura, revelou-me camadas humanas que eu ignorava. Para ser exato, essa mudança ocorreu quando li, na Biblioteca Pública de Afogados, no Recife, De Profundis, de Oscar Wilde. Para quem não sabe, é uma obra escrita na forma de uma longa carta para Lord Douglas, o grande amor de Wilde. Fiquei chocado ao descobrir, lendo esse opúsculo, que “o amor que não ousa dizer seu nome”, eufemismo célebre procedente do próprio Wilde, é um amor tão humano quanto as formas de amor legitimadas por nossa cultura. Foi aí que sobreveio a culpa, pois minha memória regrediu no tempo revelando-me o quanto fora preconceituoso e cruel ao rejeitar Fernando, o quanto fora cego e intolerante ao humilhar ou simplesmente rejeitar tantos homossexuais que conheci no internato onde estudei em Palmares.

Voltei a reler De Profundis quando vivi na Inglaterra. Desta feita, a versão original da obra. Aliás, de acordo com os editores do volume The Portable Oscar Wilde, a primeira edição integral e fiel ao texto original escrito por Wilde. Surpreendeu-me a decepção decorrente desta releitura, em certo sentido apenas uma leitura ou nova leitura. Julgo agora compreender melhor minha decepção, que pouco tem a ver com o texto em si. Este é até melhor, já que restaurado à forma do autor. Decepcionei-me simplesmente porque a importância maior da obra, para minha posição de leitor singular, derivava das circunstâncias biográficas e mentais demarcadoras da minha primeira leitura. É por essas e outras que toda obra é também uma criação do leitor. O leitor não lê apenas para saber que não está sozinho, frase luminosa que muitas vezes tomei de empréstimo a William Nicholson; o leitor lê para mudar sua vida ou acrescentar a obra à consciência da sua vida. É por ler desse modo que ele reinventa a obra e nesse sentido retraduz o autor.

Suponho que o leitor de hoje leia Oscar Wilde isento da imagem de autor maldito e assim confira à obra que escreveu a prioridade que deve ocupar em relação à biografia. Durante muito tempo, porém, o leitor comum foi atraído para aquela através desta. O que mais fascinava o leitor era a vida dissoluta do autor, sua perversão, sua coragem de viver “o amor que não ousa dizer seu nome”, o processo legal para o qual foi arrastado e cujo desenlace se resume na sua desgraça pública, a condenação à prisão sob o regime de trabalhos forçados e a ruína que foram seus últimos anos de vida. Hoje, suponho ainda, a obra se impõe por si própria e o estilo epigramático de Wilde, saturado de paradoxos e jogos de palavras agudamente deliciosos, o intraduzível witticism inglês, expressão do melhor decadentismo estético da época, sobrevive por força de suas virtudes literárias. Tornou-se afinal possível retratar a vida do escritor dentro das linhas de “normalidade” que o restituem à humanidade espontaneamente reconhecida num escritor heterossexual. Detendo-me apenas no exemplo do cinema, expressão da melhor cultura narrativa do século 20, bastaria comparar Os crimes de Oscar Wilde (The trials of Oscar Wilde), filmado em 1960, e Wilde, de 1997, baseado na biografia escrita por Richard Ellman e dirigido por Brian Gilbert. Para bom entendedor, sem trocadilho, os títulos das duas obras são por si sós bastante reveladores.

Apenas 37 anos separam os dois filmes. No entanto, quanta diferença entre ambos, a partir do próprio título das obras, como assinalei. Por nos conhecer bem acima do pouco que sabemos e queremos saber, Freud não se iludia acerca do progresso humano. Por isso, ao saber dos seus livros ardendo nas chamas das fogueiras da inquisição nazista, evidência ainda amena da catástrofe que se anunciava, limitou-se a dizer: “What progress we are making. In the Middle Ages they would have burnt me; nowadays they are content with burning my books”.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Freud, Além da Alma


O filme Freud, além da alma, dirigido por John Huston e escrito por Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt, foi produzido no auge da difusão da psicanálise e da glória de Freud, substancialmente ampliada nos anos 1950 e 1960 pela biografia oficial assinada por seu dileto discípulo Ernest Jones. À biografia, bem condensada numa edição em língua inglesa por Lionel Trilling e Steven Marcus, acrescenta-se parte da correspondência até então inédita fundamental para um conhecimento mais acurado do desenvolvimento das ideias do criador da psicanálise.

A ideia inicial de Huston era realizar o filme baseado num roteiro escrito por Sartre, então provavelmente o intelectual de maior prestígio no mundo. Sartre aceitou a proposta de Huston e viajou para a casa deste, na Irlanda, onde se instalou para trabalhar. Sucede que bebeu mais do que trabalhou. Isso explica o consumo total do estoque de uísque de Huston que, bem sabemos, não era de beber pouco. Desse conluio entre a pena torrencial de Sartre e sua sede insaciável resultou um roteiro infilmável, segundo o próprio diretor. Sartre trabalhou na composição de uma versão mais enxuta. Ainda assim, não satisfez Huston, que passou o trabalho para Kaufman e Reinhardt. O filme que conhecemos é, portanto, uma adaptação das versões antes escritas por Sartre, que de resto não permitiu que seu nome constasse dos créditos do filme. Melhor assim esquecer o uísque bebido ou ver o Freud de Huston e seus roteiristas bebendo no divã.

O filme começa com uma voz, supostamente do próprio John Huston, anunciando as três grandes crenças tradicionais que profundamente marcaram a compreensão da nossa humanidade e seu lugar privilegiado no universo. De acordo com a primeira, anterior a Copérnico, a Terra era o centro do universo. Antes de Darwin e de sua explosiva A Origem das Espécies, a espécie humana reinava soberana no mundo. Por fim, rematando o introito com a terceira crença, até Freud éramos senhores da nossa consciência. Ao publicar A Interpretação dos Sonhos, Freud desloca a consciência do centro da nossa subjetividade ao demonstrar com sua teoria do inconsciente o quanto é ilusória a crença de que somos senhores dentro da nossa própria casa.

O introito que acabo de expor sugere a grandeza do feito alcançado por Freud, interpretado por Montgomery Clift. O propósito do filme é dramatizar o longo, tortuoso e atormentado processo que se estende do início da carreira médica de Freud, como aluno do Prof. Meynert, neuropsiquiatra da Universidade de Viena, até o momento em que formula suas teorias fundamentais: a do inconsciente, a da neurose, da sedução, da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Antes disso, passa por estudos em Paris, sob a orientação de Charcot, pioneiro na terapia dos histéricos baseado nas técnicas da hipnose; por sua frutífera amizade com Josef Breuer (Larry Parks) e pela relação terapêutica ainda mais frutífera com Anna O. (em parte condensada na personagem Cecily, interpretada por Susannah York).

O DVD vem acrescido de um ótimo e esclarecedor comentário de Renato Mezan, um dos mais notáveis estudiosos brasileiros da obra de Freud, além de psicanalista. Dentre os muitos livros que já escreveu sobre o assunto, merece destaque Freud, Pensador da Cultura, investida única no contexto psicanalítico brasileiro. Mezan acertadamente observa a omissão de Wilhelm Fliess na trama do filme. Fliess foi a presença mais importante na vida de Freud durante os anos compreendidos pela trama do filme. Embora vivessem em cidades diferentes, Viena e Berlim, trocaram correspondência intensa expondo e discutindo ideias, notadamente a evolução do trabalho e das pesquisas empreendidas por Freud. A omissão decerto decorre de motivações dramáticas. Ao omiti-lo, John Huston e seus roteiristas concentraram em Breuer a matéria referente às projeções da figura paterna na psicologia de Freud. Também a personagem Cecily condensa não apenas conteúdos extraídos da experiência analítica de Anna O., mas também de outras pacientes analisadas por Freud ao longo do período abrangido pelo filme. Também a síntese expositiva das principais teorias de Freud, nas cenas finais, constitui uma condensação anacrônica imposta pela organização dramática do filme.

Filmes, assim como toda obra de recriação ficcional de personagens históricos, com frequência suscitam críticas baseadas num cotejo entre os fatos e personagens reais e a forma como são arbitrariamente manipulados nas obras de invenção livre. A discussão é complexa e de resto pouco pertinente no contexto em que escrevo. Chamo a atenção do leitor para essa controvérsia recorrente apenas com o propósito de explicitar um argumento banal: a obra de ficção não é nem pretende ser um equivalente da realidade, ou um substituto da realidade que se propõe recriar. É certo que este fato banal não autoriza qualquer recriação, mas o autor não pode responder pela recepção ingênua do espectador ou leitor que vê ou lê um filme ou um romance sobre Freud supondo estar vendo ou lendo sobre Freud enquanto indivíduo real. Isso é coisa de receptor de telenovela e folhetim. À parte o tom de desapreço com que despacho o assunto, reconheço ser um prato cheio para especulações estéticas e psicológicas.

É fato que Freud sofreu tenaz e áspera resistência do meio quando ousou expor suas teorias. Ele próprio emprega uma expressão, “splendid isolation”, para sugerir as pressões sociais e morais que sofreu como consequência da coragem com que investiu contra os preconceitos e ideias feitas do seu tempo. Esse é um outro fato corriqueiro na história das ideias, assim como de todo movimento de ruptura social. Os pioneiros, ou conquistadores, como se orgulhava de assim falar de si próprio, pagam às convenções sociais um preço extorsivo por se atreverem a afirmar de viva voz que o rei está nu, fiquemos no lugar comum que tudo exprime em poucas palavras. O risco a que se expõem certas obras, o filme de Huston não constitui exceção à norma, reside na romantização do herói transgressor. A cultura de massa, antes de tudo, não esqueçamos de que cinema é antes de tudo cultura de massa, investe nesse mito assim como os acumuladores de fortuna fácil investem na bolsa de valores. Portanto, convém apreciar com certa reserva a forma como a “splendid isolation” de Freud é caracterizada na tela.

O filme concentra na personagem intolerante e detestável de Meynert a resistência oposta às ideias de Freud, em particular nos círculos médicos. O próprio Breuer, médico de grande prestígio que nesse momento foi íntimo de Freud, além de com ele dividir a autoria do livro Estudos sobre a Histeria, acaba distanciando-se dele por divergir do papel que confere à sexualidade na etiologia das doenças psíquicas. Para além da colaboração mútua e fiel, Breuer é caracterizado no filme mais do que como um amigo mais velho e experiente. Ele simboliza, na verdade, uma projeção da figura paterna de Freud. Há de resto uma cena bem explícita dessa paternidade simbólica. Quando o pai real de Freud está moribundo no leito, assistido por Freud e Breuer, transfere verbalmente a este o papel de pai simbólico do filho. Mas sobrevém afinal o momento em que Freud precisa escolher entre o amigo paternal e a fidelidade às suas ideias. Ao optar por estas, ele rompe conscientemente o elo de dependência filial que o prendia a Breuer.

O melhor da tensão dramática do filme concentra-se na relação entre Freud e sua paciente Cecily. Como antes observei, sua composição condensa muito do que Freud amadureceu a partir do trabalho analítico com suas pacientes histéricas, já que Cecily não existiu enquanto tal, isto é, não passa de uma personagem ficcional. Assim como o último encontro pessoal de Freud com Breuer acentua o caráter de autonomia que ele conquista diante do amigo que simbolizara a figura ideal da paternidade, o encontro final de Freud com Cecily representa o desfecho ideal do processo de contratransferência dentro da relação analítica.

No seu conjunto, o filme destaca o que seria o estatuto científico da psicanálise traduzível, entre outras coisas, na função terapêutica da análise. Hoje, como sabemos, a psicanálise, seja enquanto suposta ciência, seja enquanto sistema de interpretação da realidade psíquica, sofre ataques e contestações de variada procedência. Sua própria função terapêutica deslocou-se do centro da atividade de muitos analistas que conheço. Adiantaria que já ouvi de alguns praticantes da psicanálise a observação segundo a qual a função dela não é curar ninguém. Não discutirei isso. Além de me faltar competência para tanto, um exame consistente da questão extrapola os limites de uma crítica inspirada antes de tudo no filme. Lembro apenas que o filme enfatiza essa função terapêutica da psicanálise, de resto aferível na própria obra do seu criador. O fato é que a evidência disponível hoje demonstra que as ideias dos dois pensadores mais influentes do século 20, ambos provenientes da atmosfera espiritual do século 19, entraram em franco recesso. Refiro-me, claro, a Karl Marx e Sigmund Freud. É muito improvável que a hegemonia de ambos seja um dia restaurada.

Créditos:
Título: Freud, Além da Alma (título original: Freud, 1962, EUA)
Direção: John Huston Roteiro: Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt
Elenco: Freud: Montgomery Clift
Cecily Koertner: Susannah York
Josef Breuer: Larry Parks
Martha Freud: Susan Kohner
Frau Ida Koertner: Eileen Herlie
Theodor Meynert: Eric Portman
Carl von Schlossen: David McCallum
Recife, 5 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Literatura e Inconformismo


A sociedade encara a literatura regida por um princípio de ambiguidade inconsciente que me parece digno de algumas reflexões. Num mundo regulado pelo princípio da utilidade, é compreensível, senão lógico, que seja encarada com suspeita, ou pura e simples rejeição. Afinal, salvo exceções facilmente assinaláveis, bem poucos vivem profissionalmente da literatura. Pensando melhor, essa não me parece uma razão suficiente para a suspeita ou rejeição que acabo de registrar. Bem antes da montagem de uma sociedade regida pelo capitalismo mais estreitamente utilitário, a literatura era já castigada pela rejeição social. Portanto, as razões não seriam apenas de fundo prioritariamente econômico. Além destas, recai sobre a literatura a rejeição movida pelo espírito pragmático compreendido numa dimensão mais ampla. Quero dizer, não é apenas o pragmatismo econômico que a ela se opõe, mas também o pragmatismo mais geral que se arrepia em face da mentira, que reivindica diante da realidade uma atitude... realista.

Outra razão adicional, igualmente fundamental, reside no inconformismo gerado pela literatura. Imaginar uma outra vida, figurar através da literatura a experiência do outro, também a de ser o outro, isso constitui uma poderosa força de inconformismo. Buscamos viver na literatura outro modo imaginário de vida, identificamo-nos com o outro nessa experiência porque a vida que vivemos não nos contenta. Viver dentro do horizonte apertado da vida real, da vida empiricamente apreensível, é algo que nos oprime. Queremos ser outro porque somos inconformados com a vida tal como é.

É precisamente aqui que se insinua a ambiguidade assinalada na abertura deste artigo. A mesma sociedade que rejeita a literatura por ser o avesso da realidade, por ser produto da imaginação ficcional, é a mesma que não suporta viver amordaçada pelo princípio exclusivo da realidade. A evidência apreensível nos estudos de sociologia e antropologia da arte demonstra como toda sociedade necessita do seu quinhão, ponhamos quinhão nesse saco, de fantasia, de reinvenção imaginária da realidade. A explicação para esse fato me parece residir na necessidade que temos de viver imaginariamente uma outra vida, na necessidade irreprimível de ser outro.
É nesse sentido que ouso afirmar a verdade seguinte: a necessidade de literatura, aqui compreendida no sentido genérico de expressão imaginária da vida, traduz o inconformismo entranhado na condição humana, o inconformismo que nos impele a viver imaginariamente uma outra vida. É isso o que move todo ser humano à busca do seu quinhão de fantasia manifesto numa infinidade de ações e formas de recepção humana. Bastaria pensarmos no consumo massivo de telenovelas, de enredos imaginários de todo tipo. A fantasia intervém de forma tão onipresente na nossa existência que somente um positivista caturra, um insuportável coletor de fatos ou mensurador de evidências palpáveis, ousaria afirmar categoricamente a distinção entre fato e ficção, entre vida factualmente vivida e vida imaginária.

É por atuar como um poderoso estímulo à imaginação transformadora da realidade que a literatura tem sido sempre perseguida, controlada, em último caso proibida. Nas sociedades reguladas por padrões repressivos da imaginação e da prática erótica, por exemplo, o Estado, a religião, a educação e todo o sistema de controle do imaginário impunham antes de tudo à mulher, pensemos nas sociedades patriarcais como as que se formaram no conjunto da América Latina, a proibição dos livros de ficção. Até às vésperas da revolução dos costumes que abalou as sociedades ocidentais na segunda metade do século passado, muitas obras perigosas, devido a seu alto teor erótico, eram vedadas aos olhos da mulher, quando não vetadas no mercado editorial. Pensemos, por exemplo, no Ulisses, de James Joyce, e n´O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence. Eu próprio, na minha juventude, assisti ao controle moral imposto às mulheres de minha geração diante das obras de Henry Miller, Anais Nin e do pernambucano Hermilo Borba Filho, seguidor confesso do veio literário aberto ou renovado por Henry Miller.

Drummond observou certa vez que, contraposta à realidade, a literatura pode ser metaforicamente compreendida como se tivesse duas portas: uma que fosse via de fuga da realidade, outra uma via de penetração mais profunda na própria realidade. Somente as pessoas bem pouco letradas figuram a literatura como sendo, em bloco, o avesso indesejável da realidade, um mal que deveria ser sempre evitado. Noutras palavras, reiterando a distinção proposta por Drummond, uma simples via de fuga ou alienação da realidade.

Drummond, aliás, ilustra de forma admirável essa representação metafórica da literatura como um percurso existencial de mão dupla. Foi provavelmente ela, a literatura, quem o salvou da acomodação alienante dentro da máquina burocrática que lhe assegurava sustento material provavelmente ao preço de muito conflito moral e ideológico. Bem o podemos imaginar como um ser duplo, como Machado de Assis e tantos outros burocratas brasileiros que fizeram da literatura sua expressão de inconformismo e fuga da vida besta, um intelectual cindido entre a repartição pública e a reinvenção imaginária do real. O homem que durante o dia despachava como chefe de gabinete do Ministro de Estado Capanema era o mesmo que à noite, ou nas folgas da rotina burocrática, escrevia as obras-primas de A Rosa do Povo e outras obras definitivas da poesia brasileira.

O exemplo famoso de Freud e da psicanálise valem como refutação veemente dessa tolice. Como sabemos, Freud estava confessadamente longe de ser um pensador modesto ou pouco ambicioso. Orgulhoso de se definir como um “conquistador”, um intelectual decidido a abrir novas sendas na história do pensamento humano, não poupou energia nem gênio criador para inscrever seu nome no Olimpo da cultura moderna. No entanto, teve a humildade de reconhecer a precedência da grande tradição literária na revelação do inconsciente humano, das nossas pulsões secretas, quando, ao lhe outorgarem o prêmio Goethe de Literatura, foi saudado como o descobridor do inconsciente. Ele bem sabia, como o sabe todo leitor crítico, que a grande tradição literária ilumina e revela as camadas mais profundas da realidade, ao invés de ocultá-las, revesti-las de consoladoras ilusões ou simplesmente evadir-se das suas verdades mais indesejáveis e dolorosas.

Também Freud incorreu em muita ambiguidade ao ler psicanaliticamente a literatura. Se de um lado reconheceu-a como fonte inspiradora de alguns dos conceitos e argumentos fundamentais que forjou para dar corpo teórico à sua criação, de outro tendeu por vezes a figurá-la como expressão pura e simples do princípio do prazer. Essa apreciação tão limitada da literatura decorria em larga medida, acredito, de sua filiação ao cientificismo que tão fortemente marcou a atmosfera intelectual dentro da qual se formou. Outro fato sintomático de sua aproximação bem parcial da literatura é a apreensão restritamente psicológica de suas análises de textos literários. A Gradiva, de Jensen, ilustra isso muito bem, assim como sua análise, em muito pontos admirável, da literatura como expressão do devaneio. Quando analisa uma obra de grande poder literário, como é o caso de Os Irmãos Karamazov, evita explicitamente abordá-la em termos estéticos ou formais. Prendendo-se à leitura de fundo analítico, ou psicológico, ressalta na obra, assim como na biografia de Dostoiévski, exclusivamente a questão do parricídio.

Retomando mais diretamente a relação entre literatura e inconformismo, parece-me que já deixei acima evidente a extensão do conceito de inconformismo aqui adotado. Quero dizer que ele vai bem além dos seus limites políticos, tão enfaticamente evidenciados na crítica e na teoria politicamente engajada. Essa perspectiva redutora encontra-se na raiz da apreciação estreita, por vezes intolerante e vesga, da obra de Machado de Assis. Ela explicaria ainda, a preferência por escritores incomparavelmente menores que Machado quando com este cotejados, ou a este deliberadamente contrapostos. Foi o caso da preferência de alguns críticos de esquerda pela obra de Lima Barreto. Aliás, o próprio Lima Barreto, indo diretamente a uma das fontes da apreciação deformadora da grande obra de Machado de Assis, valeu-se de argumentos e preconceitos semelhantes para negar a excelência única da obra do Bruxo do Cosme Velho.

Embora longe de qualquer radicalismo ou intolerância política, Mário de Andrade traduz na sua apreciação de Machado sua aproximação cindida entre a exigência de cunho participante, expressão de seu nacionalismo ideologicamente utilitário e engajado, e o reconhecimento de sua mestria estética. Sendo um grande artista, armado de fina sensibilidade estética, Mário não poderia deixar de reconhecer a grandeza da obra de Machado, ainda quando o criticasse, como de fato procede no seu ensaio famoso, por sua omissão diante do que entendia seres os deveres éticos do artista. É por isso que ressalta o Machado socialmente conformista, o Machado funcionalmente comandado pela mirada pragmática do mulato que joga o jogo certo e sem riscos para sua reputação e acolhimento privilegiado numa sociedade regida por valores escravocratas.

Ora, considerado de uma perspectiva mais complexa - ou mais dialética, diria talvez um crítico que fosse ou se desejasse dialético na apreciação dos fatores complexos que articulam o campo onde se movem e interagem formas, temas, injunções do meio e da época, aí também compreendida a biografia do autor - Machado nos desconcerta e confunde precisamente por produzir uma obra tão devastadora e corrosiva sob as vestes enganadoras da aderência às formas sociais e ideológicas consagradas no seu tempo. É de fato espantoso que um homem na aparência tão afinado com os valores dominantes no seu tempo tenha sido capaz de escrever uma obra tão impiedosamente crítica. É por isso que Machado de Assis ilustra talvez mais do que qualquer outro escritor que me ocorra lembrar, ao me propor a relação entre literatura e inconformismo, o argumento que intentei desenhar nas linhas deste artigo.
Recife, 20 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma Passagem pelo Mosteiro



Diante da imensa repercussão da Jornada Mundial da Juventude liderada pela figura carismática do papa Francisco, parece-me oportuno voltar a postar no meu blog a crônica abaixo, escrita originalmente para o blog Amálgama, editado por Daniel Lopes. O essencial do que escrevo é memória pessoal. O que sobra, e talvez mais importe, sobretudo nas circunstâncias presentes, é matéria de controvérsia. O leitor religioso, ou demasiado otimista ao sopro do extraordinário impacto da Jornada que por pouco não monopolizou a programação semanal da Rede Globo, pode de imediato contestar o que afirmo acerca da irrelevância normativa da religião no mundo em que vivemos. Admito o caráter discutível das minhas afirmações mais extremas. Nâo tenho a presunção de ser detentor de verdades, apenas portador de uma voz crítica que tem o direito de ser ouvida e discutida.

A leitura de um artigo de Christopher Hitchens – The Pope is not above the Law, conferir tradução de Daniel Lopes no blog Amálgama – lembrou-me minha remota passagem pelo mosteiro de São Bento, Olinda, no início dos anos 1970. Embora já afastado de minha formação católica, que foi de resto muito permissiva, tinha e continuei tendo grandes amigos religiosos, não apenas católicos, ao longo da vida. Dentro de minhas convicções liberais e radicalmente individualistas, procurei sempre respeitar a liberdade de religião e credo em geral, contanto que fundados em valores de tolerância e respeito pelos direitos humanos, com perdão da fórmula abstrata. A leitura de alguns iluministas, sobretudo o anticlerical Voltaire, de Bertrand Russell e da cultura marxista da época afastaram-me por completo da religião. Essas marcas do meu passado intelectual reforçam o apreço que tenho hoje pelo combate antirreligioso travado por críticos militantes da religião como Richard Dawkins e Christopher Hitchens.

Fui levado ao mosteiro de São Bento por um amigo cuja coerência religiosa muito admirava. Admitido no mosteiro para viver a semana santa em estado de voluntária reclusão e penitência, obteve junto à abadia autorização para levar-me como acompanhante (favor não confundir o termo com o sentido que os sites pornô lhe emprestam no presente). Confesso haver seguido meu amigo com altas e líricas expectativas. Tinha enorme desejo de conhecer a famosa biblioteca do mosteiro. Além disso, era então leitor apaixonado de Hermann Hesse, que me perturbou a imaginação romântica com obras como Sidarta e Narciso e Goldmund.

Fui muito bem acolhido no mosteiro. Mal cheguei, o irmão hospedeiro surpreendeu-me ao me ceder o quarto de hóspedes em caráter exclusivo, enquanto meu amigo ficou recolhido em outro bem mais modesto. E logo as coisas começaram a desandar. Encurtando a história ao ponto de suprimir todos os detalhes embaraçosos, fui tão assediado sexualmente no decorrer de algumas horas que prontamente pedi socorro a meu amigo. Quando a história chegou ao conhecimento do irmão hospedeiro, este procurou-me visivelmente constrangido, pediu-me para não considerar casos excepcionais como prática normal dentro da instituição e logo providenciou minha transferência para o quarto do meu amigo, onde afinal me senti a salvo das tentações movidas contra minha carne. Como hoje diria Severo Machado, ressoando palavras de Boris Pasternak e Luciano Oliveira, a carne é forte até dentro das santas paredes dos mosteiros.

Na manhã seguinte, reunidos no refeitório, onde me impressionaram o excesso de comida e a voracidade de alguns monges em plena semana santa, nenhum dos que me assediaram na véspera sequer ousava olhar para mim. Em paz comigo, também com a bela paisagem histórica de Olinda, então isenta do batuque e da violência hoje correntes, refugiei-me na biblioteca. Foi lá que pela primeira vez encontrei a edição integral da obra de Freud e comecei erraticamente lendo-a. O fato logo desagradou ao irmão hospedeiro, cujo generoso acolhimento acima louvado encobria uma intenção que muito me incomoda: a bondade e a suposta compreensão praticadas com propósitos de conversão. Noutras palavras, a intenção dele era converter-me, ou reconverter-me. O fato de reiteradamente surpreender-me com um volume de Freud nas mãos logo o contrariou e logo passou da contrariedade à crítica impaciente.

Conversei livremente na biblioteca e no pátio com alguns noviços durante meu retiro no mosteiro. Dois claramente sofriam dramas morais decorrentes de homossexualidade reprimida. Ambos admitiram haver optado pela conversão à ordem regular movidos antes pelo desejo de suprimir suas tendências “pecaminosas” do que pelo apelo da fé. Apesar de então agnóstico, hoje sou ateu, chocaram-me as evidências rotineiras de futilidade e fuga negativa do mundo a que assisti durante minha passagem pelo mosteiro. Jovens privados de autênticos ideais espirituais ou intelectuais dissipavam sua vida de reclusão ouvindo lixo cultural com o ouvido colado ao radinho de pilha. A biblioteca, que tanto me encantou e revelou tesouros largados à poeira do tempo, vivia entregue ao abandono. Apenas um velho monge, de origem belga, dela cuidava catalogando zelosamente milhares de volumes e documentos que aparentemente a ninguém interessavam.

Se à volta de 1970 as coisas dentro da ordem regular já eram assim, o que dizer hoje, dentro e fora dos mosteiros? Tenho um jovem amigo, um dos melhores indivíduos que conheço, que certo dia cotejou sua experiência de interno num seminário católico com minha passagem pelo mosteiro acima condensada. O que mudou para pior, em tudo que se possa conceber, salta aos olhos de quem tenha a coragem e a honestidade de mantê-los abertos.

A verdade é que a Igreja católica teima hipocritamente em vedar o sol com a peneira. Não sou cristão, muito menos teólogo ou autoridade religiosa, para propor qualquer solução. Sei apenas, no que sigo a lição de Freud, que somos movidos por pulsões incivilizáveis. Ou algo que seria nosso cerne biológico indomável pela civilização. Aludiria, mais claramente, ao sexo, ou à fortaleza da carne, que desafiou sempre com astúcia e energia irrefreáveis todas as interdições impostas pela cultura, a religião, os códigos penais etc. É perda de tempo tentar suprimi-la. Tudo que podemos, e é o melhor que podemos, é elevá-la a formas de sublimação patentes na história da arte, da literatura, da própria religião, das forças humanas mais civilizadoras compreendidas no sentido positivo do termo. Noutros termos, nossas pulsões incivilizáveis podem ser parcialmente controladas, parcialmente convertidas em força sublimadora da destrutividade humana, mas nunca suprimidas.

O problema é que as forças civilizadoras do Ocidente estão reduzidas a bandalhos. A irrelevância normativa do catolicismo, assim como da religião em geral, salta novamente aos olhos de quem tenha a coragem de abri-los. Religião tornou-se antes de tudo investimento, show business, como diria um executivo da Globo, ou um pastor bem sucedido no mercado da fé. O maior espetáculo midiático da semana santa, sediado em Nova Jerusalém, Pernambuco, neste ano contratou a atriz Suzana Vieira para interpretar Maria, mãe de Jesus, símbolo milenar da castidade e das virtudes femininas pregadas pelo catolicismo. No comments. Um ladrão roubou uma igreja em São José dos Campos e se apropriou até da cabeleira que adornava a imagem do Cristo. Não bastasse tanto, levou o sacrilégio ao extremo de roubar todo o estoque de hóstias da igreja, que assim ficou privada de meios para prestar serviços de confissão e comunhão durante a semana santa. No Maranhão, medidas adotadas contra roubo, depredação e sacrilégio reduzem igrejas a autênticas penitenciárias ou fortalezas. Deus é fiel? E nós, a que somos fiéis?

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Saramago e a Irrelevância da Literatura




Apesar da idade e da doença, José Saramago continua ativo. Quando veio ao Brasil lançar seu novo romance, valeu-se de tal circunstância como um pretexto para se pronunciar sobre questões políticas e inquietações humanas que seus leitores não têm idéia de como enfrentar. As aparições públicas de escritores de prestígio como Saramago e a natureza do discurso que desfiam para a mídia evidenciam a irrelevância da literatura no mundo contemporâneo. Mesmo escritores que vivem antes de tudo para a literatura e nela efetivamente acreditam, não dão ênfase em suas falas públicas a questões de natureza estética ou literária. Suponho que gostariam de fazê-lo, que prezariam discutir a literatura enquanto tal ou as possibilidades de esta interferir na ordem prática do mundo enquanto discurso irredutível ao da política, da economia ou ainda da pura curiosidade mundana do público e da mídia ávida de mercadoria. O fato, porém, é que se pronunciam sobre tudo, ou quase tudo, e bem pouco, senão nada, sobre literatura.

Saramago reitera o discurso previsível, tudo que acima grosseiramente esbocei. Mais uma vez critica a crueldade do capitalismo e respalda sua crítica em Marx ou numa concepção socialista de sociedade e organização dos grupos humanos. Nada a objetar quanto ao diagnóstico. Também considero o capitalismo um sistema econômico cruel, gerador de atrocidades e misérias cotidianas. O que não consigo é seguir Saramago no terreno de suas convicções terapêuticas, para valer-me aqui de mais um termo da linguagem clínica. Se é verdade que o capitalismo é portador de todos os horrores incansavelmente denunciados por Saramago, e nesse sentido a obra de Marx preserva sua atualidade substancial, não há como fugir à evidência histórica de que comunismo e possíveis variações socialistas não funcionam. Não sei se há alguma tintura de humor ou auto-ironia na justificativa que agora encontra para seu comunismo anacrônico: confessa-se ele um comunista hormonal. Gostei da designação, que leio um tanto na veia irônica ou humorística.

Penso hoje com mais clareza que o comunismo malogrou e sempre malogrará por ser incompatível com as paixões humanas mais poderosas, aquelas que ontologicamente definem nossa condição. Sei bem que a teoria comunista reivindica a natureza histórica do ser humano. Trocando em miúdos, não existe natureza humana, existem formas históricas de ser humano. Num certo sentido, isso é sem dúvida verdadeiro. Valores humanos fundamentais, concebidos por conservadores e reacionários como se fossem investidos de eternidade, são comprovadamente transitórios, ou manifestam-se mediante variações históricas, fruto de modos particulares de ser observáveis em determinadas épocas e lugares.

Entretanto, já não duvido de que ao lado, e sobretudo acima disso, persistem características humanas que autorizam falar-se de uma natureza humana compreendida enquanto entidade constante, modo substancial de ser apreensível no conjunto da história humana. Presumo que Freud tinha isso em mente ao declarar seu ceticismo diante dos experimentos sociais então em processo na União Soviética governada por Stálin quando escreveu O Mal-estar na Civilização. Atendo-me ainda a Freud, acredito haver no ser humano uma componente de agressividade indomesticável pela civilização. Igualmente acredito na nossa natureza irredutivelmente egoísta. Muito gostaria de acreditar nos ideais generosos teimosamente sustentados por Saramago. A evidência histórica, antes de tudo a evidência de minha experiência direta, provam-me o contrário.

É irrefutável a força condicionadora da sociedade ou do sistema econômico em muitas das ações humanas que traduzem o que em nós existe de bom e de ruim. O que de modo algum endosso é a convicção dos que atribuem nossa natureza a fatores puramente sociais. Querem dizer, mesmo quando assim não se pronunciam, que nossa maldade é socialmente adquirida, tem raízes puramente ambientes. Não penso assim. Seguindo Freud, penso haver um ingrediente biológico na nossa destrutividade. Portanto, um ingrediente irredutível à civilização ou a toda ideologia generosa empenhada em estabelecer neste mundo uma modalidade de organização humana fundada na solidariedade e em valores prevalentemente positivos. É uma utopia generosa, que de resto me seduziu na juventude, mas sei hoje irrealizável.

Igualmente longe de mim endossar o pessimismo daqueles que vêem o ser humano como mau, como investido de qualidades apenas negativas. Penso seguir ainda a lição de Freud quando acredito não numa natureza humana exclusivamente negativa, ou positiva, mas sim ambivalente. Em síntese, é esta a substância de minha convicção relativa à natureza humana: ela é ambivalente e as manifestações dessa ambivalência dependem tanto de fatores inatos quanto adquiridos. Sei que isso é ainda muito vago, mas não sei de nenhum iluminado ou de nenhuma teoria que consistentemente estabeleça a fronteira e a proporção que cabem a um e outro, àquilo que é inato assim como adquirido. Durma-se na companhia dessa gente. Por isso deduzo haver algo de sensato na minha cama, que nunca acolheu companhia permanente - além da minha, claro.

Catando os grãos de milho da literatura nesse terreiro onde de tudo se fala, menos dela, qual é mesmo o título do romance que Saramago veio lançar no Brasil? Não me lembro. Salvo engano, não foi mencionado na reportagem que li na Folha de S. Paulo. Sei que o título tem algo a ver com elefantes. Serão acaso companhias desejáveis? Evocando Cioran, prefiro ainda a dos misantropos. Não são lá flor que se cheire, mas têm a virtude de não gostar de seres humanos. Piores, bem piores, são os humanos que amam apenas seres de outras espécies, notadamente a dos gatos e cachorros. Tenho poucas razões para louvar a espécie humana e os estragos que ela impõe a essa terra devastada que habitamos. Mas falo afinal dos meus semelhantes. Querendo ou não, e bem pouco quero, é neles que me reconheço, neles vibram os triunfos e misérias de minha condição. Apesar do ruído pavoroso que entre nós produzimos, tudo isso faz mais sentido do que o miado dos gatos e o latido dos cachorros. Fico portanto com meus humanos.