terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor II


Um dia um adolescente gay apaixonou-se por mim. Chamava-se também Fernando. Como reza o chavão discriminador, era uma bicha louca. Aliás, sempre me perguntei por que o homossexual brasileiro é de ordinário representado nas artes (cinema, teatro, música...) e sobretudo nas comédias e programas de humor, para não falar no anedotário popular e desabrido, dessa forma caricatural e ofensiva. Mais perturbador ainda é constatar que muitos gays se comportam de modo a enquadrar-se nessas formas de representação. Identificam-se, noutros termos, com a projeção do agressor, daquele que os discrimina e rejeita. Como Sartre observou, o judeu portador de todas as deformações raciais e morais que justificam sua supressão não existe; é uma invenção do antissemita. O mais grave é que muitos judeus acabam vestindo a natureza repulsiva inventada pelo antissemita e assim fazendo negam em si próprios sua natureza essencial, que é a de todo ser humano.

O mesmo processo de redução ideológica se repete no estereótipo do homossexual, assim como no estereótipo de todos os condenados e suprimidos da esfera da “normalidade” humana. Conheci alguns desses estereótipos no mundo da minha infância: o camponês rebaixado à condição de bicho semi-escravo, a bicha louca ou lacrada dentro de armários invisíveis, a adolescente desfrutável, a mulher desonrada, a Bovary dos canaviais (como foi minha mãe), o garanhão, o corno manso, o matuto, sempre negativamente contraposto ao citadino, o coronel do latifúndio, o usineiro. A literatura, através das misteriosas veredas da imaginação mais verdadeira do que a realidade empírica mistificadora, a literatura lavou meus olhos e meu coração ao desvelar a humanidade dos seres humanos comprimidos nessa rede de estereótipos que prevalece ainda no mundo. Infelizmente, continuamos a representar o outro baseados antes na realidade da empiria mistificadora do que nas camadas humanas invisíveis que nos traduzem como modos múltiplos e complexos de ser humano. Para ser ainda mais realista, outros diriam pessimista, piso num terreno movediço demais para me pronunciar em nome de qualquer princípio de progresso iluminista. Se é fato que ultrapassamos muitos desses preconceitos e estereótipos, em compensação cunhamos outros que atendem à nossa necessidade de liberação da nossa crueldade e agressividade constitutiva. Freud tem razão. Somente os órfãos incuráveis da utopia continuam acreditando que um dia inventaremos uma humanidade reconciliada.

Quando vivi na Inglaterra, detive-me muitas vezes na consideração do problema do homossexualismo enraizado nas memórias da minha infância. Desatando a imaginação comparativa, espantou-me de início aferir a profunda diferença de representação do gay na cultura inglesa e na brasileira. O que me pareceu mais espantoso foi considerar que cultuamos ainda hoje uma ideologia de liberação sexual do brasileiro contraposta à rigidez puritana dos ingleses. No entanto, ainda que discriminada legalmente na Inglaterra até meados do século passado, a homossexualidade lá, tal como a conheci, goza de um estatuto legal e de uma tolerância e reconhecimento maiores do que o observável na nossa cultura “sem culpa”, expressão, desde os tempos coloniais, de que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Quem quiser que acredite, assim como há quem acredite que somos uma democracia racial. Ou ainda que somos um país cuja história é incruenta, pois as desigualdades e antagonismos se misturam de forma criativamente integradora. O problema nosso, nisso como em muitas outras coisas, é que as relações cordiais, no sentido usado por Sérgio Buarque de Holanda, que só para os ignorantes é uma ideologia justificadora da nossa “história incruenta”, com freqüência se sobrepõem às relações legais. Não me detenho para esclarecer esse mal-entendido relativo ao conceito de cordialidade na obra de Sérgio Buarque porque já dediquei um artigo inteiro à consideração deste problema quando no meu blog escrevi sobre Raízes do Brasil.

Voltando a Fernando, ele me amava enquanto eu o repudiava. Ele me assediava com sua delicadeza, sua carência de amor de homem, enquanto eu o humilhava e me sentia agredido pelo que me propunha ou de mim desejava. Um dia morreu num acidente de trem quando vinha para o Recife. Senti sua morte, mas não a real dimensão da culpa que veio muito mais tarde, quando minha consciência, já mais esclarecida pela alteridade escrita na literatura, revelou-me camadas humanas que eu ignorava. Para ser exato, essa mudança ocorreu quando li, na Biblioteca Pública de Afogados, no Recife, De Profundis, de Oscar Wilde. Para quem não sabe, é uma obra escrita na forma de uma longa carta para Lord Douglas, o grande amor de Wilde. Fiquei chocado ao descobrir, lendo esse opúsculo, que “o amor que não ousa dizer seu nome”, eufemismo célebre procedente do próprio Wilde, é um amor tão humano quanto as formas de amor legitimadas por nossa cultura. Foi aí que sobreveio a culpa, pois minha memória regrediu no tempo revelando-me o quanto fora preconceituoso e cruel ao rejeitar Fernando, o quanto fora cego e intolerante ao humilhar ou simplesmente rejeitar tantos homossexuais que conheci no internato onde estudei em Palmares.

Voltei a reler De Profundis quando vivi na Inglaterra. Desta feita, a versão original da obra. Aliás, de acordo com os editores do volume The Portable Oscar Wilde, a primeira edição integral e fiel ao texto original escrito por Wilde. Surpreendeu-me a decepção decorrente desta releitura, em certo sentido apenas uma leitura ou nova leitura. Julgo agora compreender melhor minha decepção, que pouco tem a ver com o texto em si. Este é até melhor, já que restaurado à forma do autor. Decepcionei-me simplesmente porque a importância maior da obra, para minha posição de leitor singular, derivava das circunstâncias biográficas e mentais demarcadoras da minha primeira leitura. É por essas e outras que toda obra é também uma criação do leitor. O leitor não lê apenas para saber que não está sozinho, frase luminosa que muitas vezes tomei de empréstimo a William Nicholson; o leitor lê para mudar sua vida ou acrescentar a obra à consciência da sua vida. É por ler desse modo que ele reinventa a obra e nesse sentido retraduz o autor.

Suponho que o leitor de hoje leia Oscar Wilde isento da imagem de autor maldito e assim confira à obra que escreveu a prioridade que deve ocupar em relação à biografia. Durante muito tempo, porém, o leitor comum foi atraído para aquela através desta. O que mais fascinava o leitor era a vida dissoluta do autor, sua perversão, sua coragem de viver “o amor que não ousa dizer seu nome”, o processo legal para o qual foi arrastado e cujo desenlace se resume na sua desgraça pública, a condenação à prisão sob o regime de trabalhos forçados e a ruína que foram seus últimos anos de vida. Hoje, suponho ainda, a obra se impõe por si própria e o estilo epigramático de Wilde, saturado de paradoxos e jogos de palavras agudamente deliciosos, o intraduzível witticism inglês, expressão do melhor decadentismo estético da época, sobrevive por força de suas virtudes literárias. Tornou-se afinal possível retratar a vida do escritor dentro das linhas de “normalidade” que o restituem à humanidade espontaneamente reconhecida num escritor heterossexual. Detendo-me apenas no exemplo do cinema, expressão da melhor cultura narrativa do século 20, bastaria comparar Os crimes de Oscar Wilde (The trials of Oscar Wilde), filmado em 1960, e Wilde, de 1997, baseado na biografia escrita por Richard Ellman e dirigido por Brian Gilbert. Para bom entendedor, sem trocadilho, os títulos das duas obras são por si sós bastante reveladores.

Apenas 37 anos separam os dois filmes. No entanto, quanta diferença entre ambos, a partir do próprio título das obras, como assinalei. Por nos conhecer bem acima do pouco que sabemos e queremos saber, Freud não se iludia acerca do progresso humano. Por isso, ao saber dos seus livros ardendo nas chamas das fogueiras da inquisição nazista, evidência ainda amena da catástrofe que se anunciava, limitou-se a dizer: “What progress we are making. In the Middle Ages they would have burnt me; nowadays they are content with burning my books”.

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