Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Sabedoria de Montaigne III


Pena que a mera leitura não seja transmissora de sabedoria, como de resto observei já na entrada deste ensaio improvisado num fim de semana que me privou voluntariamente de gente para me propiciar mais uma vez horas de serena acomodação do meu eu insolúvel com minha natureza desencontrada dos mais altos ideais a que aspiro. Mas sei que escolher a companhia de Montaigne e costurar palavras confusas num ensaio inspirado pela sua leitura é marchar na contracorrente do tempo, colidir com a realidade que cegamente flui para além da paisagem da minha janela. Há um abismo tão grande entre este ensaio e o que ele demanda da minha vida para o compor que encerro me interrogando inquieto sobre o lugar que Montaigne e sua sabedoria podem ainda ocupar nesse insensato mundo em que vivemos.
Homem da biblioteca e da estrada, insulado na sua torre e ator político num tempo de turbulências inusitadas, cultor da sabedoria dos antigos e prefeito mediando com sua sabedoria cética e prática facções contaminadas pelo fanatismo religioso, Montaigne foi e se sabia um tecido esgarçado de contradições. Por isso o gênero que criou, o ensaio, parece amoldar-se na sua forma como uma luva à mão cuja natureza é mover-se e contradizer-se a cada movimento da vida. Já assinalei a sabedoria com que foi capaz de converter a dúvida em virtude tolerante e sempre receptiva à fluidez da vida que a tantos transtorna. Por isso o comum da nossa humanidade, já antes também ressaltei, se refugia em certezas isentas de exame e não raro de fundamento aferível na ordem da verdade assimilável pela experiência refletida.
Montaigne viajou como um homem de espírito livre. Num tempo em que ninguém sonhava com a antropologia, comportou-se com curiosidade insaciável e tolerante em meio a uma realidade regida por valores opostos aos seus. Mesmo em tempos banais, quero dizer, isentos de conflitos e guerras provocadas pela intolerância religiosa e política, viajamos no geral com olhos cegos, olhos impermeáveis à desconcertante diversidade e até franca oposição entre culturas e modos humanos de ser. A diversidade humana é tão inesgotável, como bem sabia ele, que demanda uma renúncia consciente e esclarecida ao etnocentrismo, se acaso queremos efetivamente nos compreender melhor, fundar num mundo globalizado modos renovados e mais universalistas de convívio entre culturas tão divergentes.
Saltando francamente do tempo em que Montaigne viveu para o presente, acredito que ele poderia servir de fonte inspiradora para uma humanidade que hoje introduz na nossa experiência condições históricas sem precedente. A revolução digital, a globalização irreversível do capitalismo, a redução drástica das fronteiras nacionais e culturais, tudo isso criou condições absolutamente originais de relação entre nações e povos, entre culturas e formas políticas de reordenamento do mundo. Nunca como no presente o mundo se tornou tão pequeno e palpável no sentido em que agora todas as nações e povos afetam uns aos outros graças à revolução sem precedente desencadeada pela tecnologia e à globalização do capitalismo cuja soberania, queiramos ou não, é inquestionável.
Diante da realidade acima esquematicamente esboçada, me pergunto que respostas culturais e mentais temos dado a esse mundo novo? No meu entender, continuamos tão prisioneiros da nossa natureza pequena, aquém das conquistas espantosas que a inteligência humana produziu no plano da invenção científica e material, que me sinto incapaz de antever o futuro com olhar otimista. Se de um lado o mundo encolheu a realidade, no sentido acima sugerido, de outro seguimos confinados nos limites da nossa percepção etnocêntrica da realidade.
O turista é um tipo que ilustra muito bem o que intento sugerir nestas linhas. Hoje milhões de pessoas cruzam fronteiras nacionais e mergulham como cegos de muleta em países e culturas cuja diversidade poderia induzir-nos a refletir melhor sobre a natureza das relações que estabelecemos dentro de uma espécie que, não obstante sua estonteante pluralidade, habita o mesmo planeta e compartilha um substrato humano comum. No entanto, a evidência disponível, apreendida nos relatos mais comezinhos dos turistas que cruzam fronteiras a toda hora, parece indicar que nada aprendemos. À diferença de Montaigne, cuja sabedoria partia de sua singularidade subjetiva para compreender e conviver com a humanidade compreendida na sua dimensão universal, vivemos como prisioneiros da caverna regida pela nossa nação, nossa cidade, nosso bairro e, no limite, nossa subjetividade tacanha, enclausurada no nosso egoísmo ferrenho, na nossa incapacidade de abrirmos as fronteiras do nosso ego narcísico para modos mais tolerantes e altruístas de convívio. Esse cerne psíquico aqui sugerido, que é antes de tudo biológico, está na raiz da nossa infelicidade, na nossa incapacidade de convívio mais harmonioso que nos aprisiona na nossa solidão ou desloca nossa carência de convívio e amor para espécies como as do gato e do cachorro. Estas nos propiciam pelo menos um tipo de segurança e certeza: amam privadas de liberdade.
Nossa espécie não é geneticamente determinada. Isso me parece distingui-la ou afirmar sua singularidade no reino da natureza que Montaigne teve a sabedoria de identificar como o fundamento último da nossa condição. A liberdade da espécie que nos diferencia e separa do reino da natureza é a mesma que ameaça a nossa sobrevivência enquanto espécie. O que faremos dessa liberdade? Que mundo imprevisível brotará dessa interrogação angustiante e sem resposta? É claro que a obra de Montaigne não tem resposta para a pergunta nem nunca se propôs respondê-la. Não obstante, ela continua piscando na escuridão da nossa natureza insolúvel vias céticas que iluminam nosso caminho cujo fim se desdobra em direção a uma única certeza: a da nossa morte. Seu ceticismo, a dúvida com que interroga a realidade com disposição acolhedora, já que o sábio é aquele que diz sim ao real, libertou-o de todas as certezas que nos fecham as fronteiras do mundo e nos transformam em dogmáticos possuídos pela intolerância e o medo destrutivos.
Um dia, num castelo remoto, um homem de 37 ou 38 anos recolheu-se à solidão da sua torre depois de perdas dolorosas: a do seu pai, que tanto amava e lhe concedeu uma educação excepcionalmente refinada, a de um irmão e sobretudo a do seu amigo Étienne de La Boétie. Este suportou uma morte lenta e dolorosa assistido até o fim pelo amigo que mais tarde lhe dedicou um ensaio comovente: Da amizade. Na biblioteca da sua torre, cercado pelos livros de filosofia e história dos antigos sábios gregos e romanos, Montaigne um dia começou a escrever os seus ensaios. De início não passavam de peças curtas vazadas em estilo convencional e versando temas que se acumulavam e com freqüência traíam nos títulos enganadores as expectativas do leitor. A composição dos ensaios, compreendida a totalidade da qual resultou a obra definitiva, estendeu-se por certa de 20 anos. O homem que os compôs voltou ao mundo, do qual nunca verdadeiramente se isolou, mais livre para viver e ensinar a viver, embora nunca se propusesse isso como diretriz. Se de início acreditava que filosofar é aprender a morrer, título que conferiu a um dos ensaios, a experiência refletida findou por persuadi-lo de que é vivendo que se aprende a morrer, se é que de fato aprendemos. Tudo indica que aprendeu. Quanto à obra que legou à posteridade, ela prossegue iluminando a busca tateante de leitores que, como eu, reconhecem nas suas páginas a voz singular de um amigo inspirador. Seu nome, repito, é Montaigne.
E por aí, falam as más línguas, vai Montaigne trotando estrada a fora. Passam os séculos, nós com eles, e todavia ele nos comunica ainda e sempre o sopro de uma voz cuja humanidade poucos alcançam articular. Ele pega a estrada em tempos de turbulência arriscando perder o que não perdem os que ficam sensatamente em casa, mas recolhendo no trânsito da viagem bens e prazeres somente concebíveis em quem corre os riscos de viver. Se na estrada os salteadores o tomam de assalto, ameaçando sua própria vida, ele é capaz de desarmá-los não com as armas mortíferas dos assaltantes e outros inimigos da vida, mas com a energia serena do seu caráter impressivo, o caráter daqueles cuja natureza superior se revela na fisionomia e nos atos banais da vida. Assim desarma os que contra ele se armam sem disparar um tiro; assim por vezes nos persuade da força desarmada dos sábios e justos.
Como não sou Montaigne, viajo na sua companhia puxado pela sedução dos seus ensaios que me empurram pelas estradas sem que eu precise mover um pé. Viajo ao trote seguro do seu livro como noutros tempos e circunstâncias viajei gargalhando com Dom Quixote e Sancho através dos caminhos delirantes que aquele me descortinava afrouxando a andadura à sombra de pousadas de beira de estrada, sonhando moinhos de vento que nunca vi nesse mundão de Brasil que já percorri de carro com meu sempre presente amigo Daniel Lima, um Quixote de província tão real quanto eu. Esses amigos, imaginários e reais, deixaram na estrada vivida, assim como na memória com que hoje os atualizo, uma inefável sensação de vida belamente fruída. Essa sensação é da ordem da gratuidade das coisas humanas que somente os seres dotados de generoso acolhimento da vida conhecem. Esses raros que acabo de rememorar existem na vida imaginária da literatura e também na realidade sensível. É por vivê-los que, para além do meu ceticismo por vezes desolado, posso dizer que vale a pena. Viver. Nós que tanto medimos o tempo vivido, até o que nem sabemos ainda se o viveremos; nós que trocamos o tempo por dinheiro, o gosto de viver pelo abuso perdulário dos que simplesmente se gastam e gastam a vida, nós pouco sabemos dessa gente e temos o coração aleijado demais pelas práticas perversas da utilidade, do cálculo, do interesse frio que rege o movimento de nossas vidas.
Montaigne é um mundo sem preço. Ele nos atrai para os caminhos através dos quais viaja e quando nos damos conta do tempo a cidade é já outra, outro o mundo viajado. Ele nos engana matreiro sugerindo nos títulos dos ensaios que lemos trilhas equívocas, roteiros que nos confundem. Mas o encanto da viagem é tanto, tão singular o fio de sabedoria que nos puxa pelas curvas do caminho que nos deixamos docilmente levar através das digressões infinitas que ele vai abrindo à direita e à esquerda. Ele nos promete falar dos coxos, das fisionomias, de uma ilha remota, promete mundos e fundos, mas ao cabo o que nos comunica é algo muito além de tudo que acaso tenhamos previsto ou desejado: ele nos comunica a experiência de um homem que nos descreve a sabedoria cuja substância podemos extrair da nossa humana e pequena condição. Ele nos lembra simplesmente isto:
“Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer. Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo” (Obra citada, Vol. II, Da Experiência, p. 397).
Trocando o citado em miúdos, tudo que precisamos é dizer sim ao real, outro sim humilde à nossa condição, cuja natureza falível está expressa no traseiro sobre o qual sempre nos sentamos, sejamos reis ou plebeus, poderosos ou humildes lavradores como os que lavravam as terras do nobre Montaigne. No mais, o que nos resta é viver e isso é muito, ou tudo que podemos. Viver simplesmente. Mas quem sabe fazê-lo com a sabedoria deste que dissolve toda a poeira transcendental da experiência humana ao nos lembrar de que isso é muito, senão tudo?

quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Sabedoria de Montaigne II


Montaigne afirma e reitera sem meias medidas que é a si próprio que toma como medida da natureza inapreensível do sujeito. Até às bordas do Renascimento, assinalado no conjunto das mudanças que desencadeou como um verdadeiro abalo sísmico na história da humanidade, o mundo era ainda concebido como um cosmos, um todo ordenado em cujo centro pairava soberana a ordem teológica instituída pelo catolicismo. Quando a ciência se desprende da teologia e a Europa dilata os horizontes geográficos do mapa estendendo-os até à América, uma realidade absolutamente nova irrompe na realidade pensada pelos filósofos e governada pela nobreza e o clero. Esse abalo tremendo, apesar das temíveis forças de reação desencadeadas pela religião católica e por todas as instituições conservadoras do velho mundo, repercutiu inevitavelmente no âmbito da filosofia e demais campos de saber. Os ensaios de Montaigne são um sintoma e uma evidência dessas turbulências que na esfera religiosa se traduzem numa prolongada e devastadora guerra civil. Por pouco esta não provocou a desintegração da unidade nacional da França.
Montaigne viveu e pensou no centro desse furacão. Depois dele, um outro francês, Descartes, revisou radicalmente todos os fundamentos da filosofia que o precedeu para enfim propor um sistema de explicação racionalista do mundo fundado na evidência inabalável do eu pensante. Assaltado por tantas forças destrutivas da velha ordem, o edifício precário da filosofia por pouco não desmoronou escorado por crenças dogmáticas que a própria tentativa de reforma liderada por Lutero, Calvino e outros radicais concorreu para periclitar ainda mais. É dentro desse contexto de profunda crise histórica que Descartes postula o eu pensante como fundamento primário de certeza para daí deduzir todo um sistema de reconstrução da filosofia. Mas Montaigne veio antes, quando a crise, pelo menos no terreno religioso, era bem mais aguda. Além disso, como também antes observei, Montaigne nunca teve a pretensão de elaborar um sistema filosófico passível de reordenar o mundo sacudido pelas mudanças desencadeadas ao longo de dois séculos de mudanças observáveis no desenvolvimento da ciência, da religião e da arte. A irrupção devastadora da Reforma Protestante, instituindo a liberdade de interpretação dos textos sagrados, representou, entre outros conflitos, a pulverização de qualquer unidade de sentido no âmbito da hermenêutica filosófica e religiosa. Essas disputas logo transbordaram das abstrações semânticas e interpretativas para o solo cruento da história onde distintas seitas religiosas se entredevoraram em nome de Deus e de verdades absolutas que céticos como Montaigne reconhecem como relativas.
Foi dentro desse contexto turbulento acima esboçado que Montaigne viveu ao longo de quase toda a segunda metade do século 16. Uma das evidências de sua sabedoria consiste na liberdade subjetiva que preservou vivendo no centro do turbilhão que foi a guerra civil cujas sucessivas explosões impuseram à França estados de violência e divisão extrema. Embora católico confesso, Montaigne nunca se deixou contaminar pelo fanatismo religioso. Se na esfera pública declarava sua fidelidade à tradição católica, no pacto subjetivo que forjou para o exercício da sua subjetividade privada prevaleciam as práticas da liberdade tolerante e cética, tanto quanto as evidências disponíveis me autorizam deduzir. Eleito prefeito de Bordeaux, à revelia de sua vontade ou ambição, esteve à frente do poder na região onde era mais radical o conflito entre católicos e huguenotes, ou protestantes. A sabedoria com que se conduziu em meio a conflitos extremos evidencia-se no predomínio da tolerância que alcança articular entre facções belicosas. Apesar de as facções extremas – huguenotes versus a Liga católica – ameaçarem durante anos deflagrar mais uma vez na região uma guerra que entre tréguas precárias estendeu-se ao longo de toda a segunda metade do século, Montaigne e Matignon, chefe militar das forças reais na região, valeram-se astutamente da diplomacia e do poder intimidante, quando necessário, para manter a paz. Assim procedendo, asseguraram uma paz tensa, mas efetiva, em meio aos anos mais ferozes da guerra civil. Esse feito é ainda mais extraordinário se lembramos que teve como cenário a região onde os conflitos religiosos eram mais extremos.
Os fatos acima são suficientes para demonstrar que Montaigne não foi um filósofo contemplativo insulado na torre do seu castelo. Sua personalidade complexa e contraditória acomodava sem desequilíbrio sensível o homem recluso, voluntariamente recolhido à sua biblioteca, e o homem de ação cuja biografia registra não apenas uma relevante carreira militar, mas também o prazer de a viver, o prazer do convívio viril entre homens votados ao exercício da guerra e do combate armado. É certo, contudo, a julgar por suas próprias palavras, que nele prevalecia o homem tendente ao cultivo das letras e da filosofia. Afinal, não foi apenas por força da grande dor advinda da morte do seu amigo Étienne de La Boétie que aos 38 anos retirou-se da vida pública para devotar-se à solidão entre os livros. Este fato crucial, a perda do amigo que foi o bem mais valioso de sua vida, agravou os sintomas de melancolia que confessa num dos ensaios.
Parece-me importante salientar os fatos acima para que o leitor desprevenido não conclua indevidamente que Montaigne viveu a partir de então insulado na sua torre de marfim. Apesar de essas condições e o ambiente privado da torre e do castelo prevalecerem a partir de então; apesar de com o decorrer do tempo agravar-se a doença genética que por fim o matou, cálculo renal, Montaigne manteve intacto o elo substancial entre o estudo continuado dos sábios antigos que inspiraram sua sabedoria e a vida vivida orientada por seus princípios filosóficos. Estes ele os assimilou, num primeiro momento, imantado à tradição estoica. Esta, como bem ressaltou Pierre Villey num amplo e esclarecedor ensaio sobre a obra de Montaigne, Os ensaios de Montaigne, é mais perceptível nos primeiros ensaios. Segundo Villey, o estoicismo abraçado por Montaigne é fruto antes de sua imaginação de leitor do que propriamente de sua experiência e convicção profunda. Suponho que as exigências extremas do estoicismo, demandando da vontade uma energia e tenacidade em face da privação e da dor de existir raramente factíveis na nossa condição tão vulnerável e inconstante, contrariava as disposições temperamentais mais profundas de Montaigne.
Se de um lado esmerou-se no exercício da vontade, demonstrando diante da dor e da adversidade coragem e resistência dignas de um estoico, de outro tendia para o prazer de viver, para certa propensão hedonista inconciliável com o rigor austero do estoicismo. Isso por certo explica, retomando as ponderações de Pierre Villey, sua transição para a filosofia cética inspirada na leitura de Plutarco e sobretudo de Sexto Empírico. O que estes propõem a Montaigne como ideal de vida, e aqui confesso basear-me diretamente em Villey, é uma filosofia que corresponda às tendências predominantes do ser humano, não uma exigência de austeridade que no limite compromete o que há de saudavelmente humano em nós. O espírito de extrema austeridade dos estoicos é evidente, por exemplo, quando partindo do reconhecimento da realidade humana como uma experiência de sofrimento e transitoriedade postulam a indiferença em face da morte dos próprios filhos, dos que mais intimamente amamos. Como pregava um deles, abraça todos os dias o teu filho como se o fizesses pela última vez. Lembra-te de que ele e tudo são votados para a morte. Dessa compreensão da condição humana baseada numa negatividade extrema decorre a necessidade da constituição de uma vontade tenaz, uma vontade forjada com uma matéria que me parece exceder a medida humana razoável. Diria mais. Diria que essa filosofia tecida com preceitos tão extremos ultrapassa a fronteira de um pensamento heróico convertendo-se em arrogância e insensibilidade. É contra esses extremos da filosofia estoica que Plutarco se bate e aproxima Montaigne da sua obra, logo em seguida da de Sexto Empírico.
Foi dentro da moldura acima canhestramente esboçada que Montaigne produziu seus ensaios mais maduros e definitivos, isto é, afastando-se da vontade férrea do estoicismo ou de outro modo temperando-o com as virtudes mais amenas e humanas do ceticismo e do hedonismo. Caberia ainda realçar o papel que a filosofia cética desempenhou na sua vida e obra. No seu tempo, que foi de mudanças avassaladoras, como antes frisei, a Europa descortinou horizontes humanos e naturais até então desconhecidos. Noções secularmente estabelecidas são sacudidas pela revelação de outros modos de cultura, outros costumes, línguas e modos até antagônicos de ser. Essa realidade é patente, por exemplo, no ensaio sobre o canibalismo, fruto do contato de Montaigne com índios brasileiros conduzidos à França. A composição do ensaio, é também evidente, não decorreu apenas do contato ocasional que manteve com os índios e da conversa conduzida por um tradutor. Movido por sua curiosidade insaciável em face do outro, do estranho, até do intolerável para tantos que se sentem ameaçados pela irrupção do inusitado ou imaginariamente inconcebível, Montaigne leu a bibliografia disponível sobre a América colonizada pelos europeus. Dentre as leituras que fez, destacam-se as obras do protestante Jean de Léry e a do católico André Thevet. Segundo Sarah Bakewell, autora de How to Live, uma biografia acessível e muito bem escrita e documentada de Montaigne, preferiu a do protestante Léry: Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil.
O detalhe acima, integrado ao contexto de intolerância religiosa e cultural da época, constitui mais uma evidência da liberdade subjetiva de Montaigne. A esse propósito, importaria mencionar uma longa viagem que empreendeu, apesar da sua doença renal e das condições precárias da época, através da Suiça, Itália e Alemanha. Além de extrair da viagem o melhor que pôde, seguia fiel os passos de sua curiosidade isenta de intolerância e de muitos dos preconceitos correntes no seu tempo. Na Alemanha conversou com protestantes movido pelo desejo de melhor conhecer e compreender aqueles que eram em princípio seus inimigos religiosos. Conversou ainda com judeus, assim como assistiu a rituais judaicos em uma sinagoga e conversou com prostitutas – não como se fossem objeto de prazer mercantil, sublinho. Sua curiosidade admirável e incansável está muito próxima do que hoje reconhecemos como sendo o trabalho de campo de um etnógrafo. Em suma, conduziu-se dentro do espírito de humanismo radical contido na frase de Terêncio que tantos já citaram através dos tempos: nada do que é humano me é estranho.
Montaigne foi um sábio, um dos raros filósofos que leio persuadido de estar lendo um sábio cuja sabedoria é pautada pelo bom senso, a compreensão profunda de nossa natureza tão retorcida e fascinante, tão complexa e perturbadora. Foi ainda um homem consciente do lugar que ocupamos na ordem da natureza. Por isso educou-se inspirado pelo humilde e resignado acolhimento do que na vida e no seu próprio corpo é natureza. Aliás, suponho que um dos mais sérios obstáculos para que alcancemos seguir-lhe o exemplo reside no profundo afastamento, senão mesmo divórcio, que o desenvolvimento da ciência e da técnica introduziram entre o ser humano e a natureza. Além disso, passamos a habitar formigueiros humanos onde se empilham milhões de pessoas imersas da luz da aurora ao fim do dia em ambientes artificiais. Essa realidade nos privou, por exemplo, do contato espontâneo e até inconsciente não apenas com o mundo da natureza, mas com a própria natureza que somos e nos habita. Espero que o leitor não leia essas breves impressões como uma queixa de nostalgia, mas como a constatação sumária de transformações profundas que, sem exagero, modificaram nossa natureza cavando um abismo entre natureza e cultura, as duas metades que nos constituem e todavia hoje se movem dentro de nós como se fossem metades cindidas. Por isso chegamos a extremos insensatos como a supressão da consciência e acolhimento da velhice, da nossa gradual impotência em face do curso irreversível da natureza e por fim em face da nossa morte.
Esse vínculo substancial entre o homem e a natureza é constantemente exposto nos Ensaios. Melhor dizendo, constitui o próprio fundamento da sabedoria assimilada e vivida por Montaigne. Diante do fantasma da morte, por certo a fonte mais renitente de medo que provamos na nossa existência, confessava confiar à natureza e sua fatalidade o curso e resolução de um processo que só nos cabe acolher e serenamente esperar. Deixava que a natureza cuidasse do que estava além do seu comando e desejo. Como assimilar essa sabedoria em face da nossa mortalidade, em face do medo que nos induz a tramar mil formas de protelação e refúgio, de ilusão e recalque, contanto que evitemos pensar o inevitável, suprimir da corrente da consciência nosso fim último?
III

domingo, 4 de maio de 2014

A sabedoria de Montaigne I


A sabedoria é um ideal ao qual muitos aspiram e raros efetivamente alcançam realizá-lo. Esses a quem me refiro não incluem por certo o grosso da nossa humanidade. Por isso tenho em mente os que se determinam a viver uma vida examinada, os que buscam para ela um sentido no geral enraizado em fontes filosóficas ou religiosas. Mas me parece certo que mesmo os que vivem e seguem vivendo indiferentes às águas turvas da metafísica e da transcendência, onde flui uma ordem de sentido existencial que bem poucos identificam e retêm, em determinadas circunstâncias se interrogam sobre o que são e o que é a vida. Embora nesse grau elástico aqui vagamente sugerido todos compartilhemos uma busca de sentido para a vida, parece-me certo que bem poucos convertem o exame da própria vida num modo refletido de ser, como se ser e pensar o ser fossem um modo singular e irredutível de se situar no mundo. Penso que isso é verdade, por exemplo, para homens como Buda, Sócrates e Montaigne, de quem me ocuparei neste ensaio.
Montaigne chegou mesmo a desqualificar o conhecimento teórico como fonte de sabedoria. Além disso, depreciava a filosofia acadêmica do seu tempo, ou mais exatamente a tradição escolástica. Também Descartes e Pascal, dois dos seus leitores com os quais compartilhava muitas afinidades, depreciaram ironicamente a filosofia. Tinham em comum o fato de imprimirem ênfase à experiência como fonte de sabedoria. Era raro no tempo de Montaigne um nobre enfatizar, como o fez, a sabedoria espontânea do camponês, do homem que lavrava as terras de sua propriedade. Observando o modo de vida do camponês, rente à linha da necessidade e por isso aderente ao movimento da natureza, Montaigne afirmou encontrar mais sabedoria neste do que nos filósofos que tanto refletiam sobre a morte sem todavia a acolherem com a sábia e resignada aceitação do camponês.
Acentuando talvez em demasia o papel da experiência, Montaigne incorreu em uma de suas muitas e reconhecidas contradições. Afinal, por mais que nos convença do quanto a experiência é decisiva na determinação do que somos e nos tornamos, não há como negar o fato de que foi um leitor apaixonado. Por mais que valorizasse a experiência e nela se refizesse e corrigisse, é patente na sua obra a correlação fecunda entre leitura e experiência, teoria e prática. Muito do tempo que viveu, desde a infância, foi devotado ao âmbito privado da sua biblioteca e mais tarde da sua torre onde, partindo de si próprio e de sua experiência, captava a passagem do ser, seu movimento incessante e as fontes de sabedoria que disso extraiu. Como deixar de reconhecer que no cerne dessas fontes estão os sábios antigos que tanto impregnaram sua experiência de leitor? O que ele alcança de modo singular, me parece, é o sábio equilíbrio entre vida pensada e vida vivida. Noutras palavras, dependendo de como pensamos e do que fazemos do que pensamos, pensar pode ser um modo de experiência.
Longe de mim a presunção de definir o que seja a sabedoria de viver. Penso apenas que é possível apreender a forma como teoricamente foi formulada e sobretudo vivida pelos poucos reconhecidos como sábios, como é o caso dos que acima mencionei. Seria todavia enganoso supor que a sabedoria vivida por Sócrates, tal como a expõe seu discípulo Platão, ou a de Montaigne, que se espelha no modelo do primeiro, seja transmissível através da mera leitura e reflexão. Supor isso seria confundir sabedoria com conhecimento. Alguém pode conhecer profundamente a obra de Montaigne e no entanto negá-la no exercício de viver. Quantos não vivem o avesso do que conhecem ou mesmo pregam, não raro inconscientes da contradição observável entre teoria e fato, entre conhecimento e vivência? Bastaria lembrar o lugar comum que irônica e certeiramente desmascara os que pregam indiferentes ao que vivem, quando não incorrem na ação desonesta consistente em empregar a teoria sedutora como instrumento de exploração dos incautos. Não é isso o que subjaz ao lugar comum: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço?
Sócrates afirmou saber que nada sabia. Montaigne, fiel a seu ceticismo, limitou-se a interrogar: que sei eu? Sabia que repetir Sócrates, em cuja sabedoria tanto confessadamente se inspirou, seria já afirmar uma certeza. Fiel a esse postulado, o da incerteza de tudo, nada ensina ou prega na sua obra. Por isso seus ensaios constituem um exemplo vivo da impossibilidade de se ensinar a sabedoria. Ela não é ensinável simplesmente porque cada um precisa traçar o seu próprio caminho. O viajante, para não errar cego pelo caminho e se perder nas veredas e encruzilhadas que o atravessam, pode valer-se de um guia ou mapa. Este pode ser os Ensaios de Montaigne, digamos, sob a condição de que não incorra na insensatez de confundir a viagem com o mapa, a caminhada com o guia cuja obra ou expressão de sabedoria é fruto da viagem singularmente vivida, aquela que por ser única é irrepetível. Portanto, se se pode afirmar algo acerca da sabedoria, esse algo consiste no reconhecimento dessa singularidade da experiência que somente Montaigne pôde viver.
O ceticismo de Montaigne, condensado na interrogação acima citada, que sei eu?, sugere-me algumas reflexões sobre a dúvida como fundamento do conhecimento e da experiência de viver. A dúvida adotada por Montaigne, no plano das ideias procedente de sua leitura de Pirro e Sexto Empírico, é a dúvida que diria liberadora, antídoto eficaz para nos defender de toda forma de dogmatismo, do fanatismo religioso que sacudiu a França durante a maior parte do tempo em que ele viveu. As pessoas tendem correntemente a apreciar de forma negativa quem de tudo duvida, quem não adere a nenhum grupo ou corrente de fé e pensamento. A intolerância ou incompreensão impaciente com que repelem o cético é com certeza um sintoma da insegurança em que vivem, da incapacidade de suportar o peso da vida e da liberdade sem a escora consoladora de uma fé ou convicção inabaláveis e no geral inquestionáveis. Não as questionam, nem suportam quem o faça, porque temem o desamparo dos que não sabem viver sem tutela e mentor, sem um governo exterior à sua determinação e vontade. Rios de sangue e horrores de toda a natureza atravessam a história humana decorrentes da sede intolerante de dobrar e exterminar o outro que nos nega, que afirma convicções ou crenças opostas ou divergentes dos escravos da certeza. A dúvida de Montaigne é de natureza absolutamente contrária. Duvidou sempre para sobre a dúvida fundar um ideal de liberdade subjetiva passível de preservá-lo de qualquer movimento inspirado pela intolerância.
Embora tanto leia e releia Montaigne movido pelo desejo de assimilar alguns grãos de sabedoria, admito o fracasso de todos os esforços que tenho nesse sentido empreendido. Talvez a causa consista simplesmente no fato de que a sabedoria, se acaso logramos alcançá-la em algum grau, não é transmissível pela leitura dos poucos sábios que já existiram, ainda que o leitor a exercite, a leitura, com humildade concentrada, inteligência sensível e reflexão continuada. Assim como não se aprende filosofia lendo os filósofos, pois cada um precisa aprender filosofia filosofando ancorado nas condições singulares de sua experiência, menos ainda se assimila alguma sabedoria tomando-a de empréstimo a quem foi capaz de forjá-la para si próprio.
Se tomamos por filósofo aquele que é portador de um diploma de filosofia, ou ensina filosofia, o mundo está cheio de filósofos, pois a proliferação das universidades, em particular dos cursos de filosofia, verte aos milhares esse tipo de profissional no mercado dos saberes e ofícios. Se todavia queremos ser fieis ao sentido originário e etimológico da filosofia, há e sempre houve bem poucos filósofos no mundo. Se a filosofia, como ensina a origem do termo, consiste no amor à sabedoria, como tomar por filósofos os autores de dissertações, teses, livros e produtos similares despejados no mercado portando o rótulo de obra filosófica? Essa enxurrada de obras, procedente antes de tudo da demanda do mercado de reprodução institucionalizada do saber, pouco tem a ver com filosofia no sentido aqui explicitado.
Voltando a Montaigne, não é de estranhar que sua obra seja omitida nos currículos de filosofia no seu próprio país de origem, aliás um dos que ostentam mais longa e sólida tradição filosófica. Os Ensaios, segundo André Comte-Sponville, integram o currículo de história da literatura francesa, sendo portanto ministrados nos cursos de letras. Sendo mais preciso, no nível escolar correspondente ao que é hoje no Brasil o nível secundário. Deixando à parte os critérios arbitrários que regem a institucionalização dos campos de saber, a singularidade filosófica da obra de Montaigne é de fato demasiado indigesta para amoldar-se à normatização acadêmica da filosofia. Dentro dos parâmetros aqui implicados, é fácil remover Montaigne do cânone filosófico. Melhor dizendo, dentro desses critérios ele seria barrado na porta de acesso à universidade por qualquer aprendiz de Kant ou Hegel. Até Bertrand Russell, filósofo inquestionável em qualquer sentido concebível, praticamente o omite na sua A History of Western Philosophy.
O irônico, na omissão de Russell, reside no fato de que, apesar de se inscreverem em tradições filosóficas muito distintas, compartilham muita coisa. Depois de se afastar da aridez da filosofia técnica e mais especificamente matemática, passando o bastão para seu discípulo Wittgenstein, sobretudo depois de ser por este superado, Russell derivou para a filosofia moral. Nesse plano de sua obra me parece nítida a convergência com a orientação temática e mesmo estilística característica da tradição francesa, mescla de filosofia e literatura, procedente dos Ensaios. A imensa popularidade de que desfrutou, rara para um filósofo, derivou não apenas de sua militância política, mas também de obras aparentadas à tradição fundada por Montaigne. Lembraria, entre outras, A conquista da felicidade, O casamento e a moral, Elogio do lazer, Por que não sou cristão. Além disso, os ensaios que reuniu em volumes como Retratos de memória são vertidos numa prosa fluida e transparente como a de Montaigne. Acrescentaria ainda ser temperada por um senso de humor e ironia digno da melhor literatura cética que conheço. Essa prosa cativou milhares de leitores, leigos fascinados pela filosofia, como eu, e é também nítida na sua história da filosofia que acabo de citar. Indo além de Montaigne no fecundo acasalamento entre filosofia e literatura, Russell aventurou-se pelo campo da ficção. Se logo desistiu, muito pesou para isso a reserva crítica de Conrad, a quem tomou como modelo inspirador. Por fim, foi agraciado com o Nobel de Literatura, reconhecimento inegável tributado a um filósofo cuja obra, sobretudo a vertente que acima designei como filosofia moral, é uma refinada expressão da prosa literária.
Falando por mim, resigno-me à minha ignorância filosófica e dou as costas a todos esses gênios da história da filosofia que não apenas são de leitura obrigatória na academia, mas também imortalizaram-se como fundadores de sistemas filosóficos. Confesso presumir que de nada me serviria assimilar sistemas tão complexos, quando não impenetráveis e controversos. Se ao cabo lograsse efetivamente assimilá-los, hipótese bem improvável, não percebo o sentido que teriam para ajustar-se às demandas existenciais que me movem para a filosofia. O que em síntese procuro como leigo apaixonado pela filosofia é um suporte de sentido para a minha vida, uma fonte de saber que ilumine minha ignorância orientando de forma mais adequada e serena o curso incerto da minha vida. É isso o que encontro na leitura dos Ensaios de Montaigne. Como sabemos, ele não propõe sistema nenhum. Por isso, também por ignorar a ambição dos formalizadores de sistemas filosóficos, elaborou uma obra absolutamente singular na forma compositiva, assim como no conteúdo. Ao escrevê-la, Montaigne fundou conscientemente um gênero: o ensaio.
O ensaio é uma roupa de medidas tão frouxas, para não dizer descosidas, que é capaz de vestir qualquer corpo. Este, depois de bem acomodado, pode não apenas sentar-se à vontade, mas também elastecer os músculos, flexioná-los segundo os caprichos do organismo carente de movimento e daí erguer-se, andar, correr na direção que mais lhe aprouver. Em trânsito ou sentado, pode dar-se ao luxo de deitar sobre o papel qualquer assunto. Não é isso o que faz seu fundador? Montaigne espichou e refinou a forma. Tanto acomodou-a à sua subjetividade arbitrária que o leitor ávido de aprender, como é o meu caso, de tudo encontra nos ensaios. A subjetividade arbitrária que acabo de mencionar fica evidente quando Montaigne afirma pintar a passagem, não o ser. Isso é por certo um choque, ou heresia filosófica para quem durante séculos acreditou, seguindo a matriz metafísica de Parmênides, nas categorias absolutas que regem a existência do ser.
A passagem do ser, que Montaigne limitou-se a descrever consciente da impossibilidade de espetá-lo no papel ou imobilizá-lo na corrente da vida, explica a natureza do ensaio, que é antes expressão formal do ser inapreensível por qualquer sistema de pensamento do que capricho da subjetividade arbitrária do ensaísta. Nesse e em muitos outros sentidos, penso não ser exagero afirmar que Montaigne foi um dos fundadores da subjetividade moderna. Perseguindo o fio descosido do ser fluente que apreende fluindo nas mesmas águas em que navegam o ser e o sujeito que o pensa, sinto-me também transportado para as páginas do narrador caprichoso, aparentemente errático, que alguns séculos mais tarde brota da pena de Machado de Assis. Restringindo a alusão a alguns gênios fundadores da moderna tradição literária, lembraria ainda predecessores de Machado como Shakespeare, Cervantes e Diderot.
O ser homem, esse ser que somos e tão mal sabemos, tão mal intentamos definir ou explicar, é tão diverso e mutável que nos escapa tão logo tentamos apreendê-lo paralisando-o na sua fluidez contínua quando em vão o retemos nas linhas esgarçadas de uma definição. Montaigne tinha absoluta ciência disso, como bem o demonstra nas palavras que cito:
“Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias idéias possivelmente já não seriam as mesmas”. (Ensaios, Do Arrependimento, vol. II, Editora Abril Cultural, p. 153).
II

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Princípios de sabedoria


Se eu fosse um homem sábio, minha vida seria regida pelos princípios que abaixo especifico:
1 – O sentido da minha vida seria fundado no meu eu. Um dos erros mais insensatos em que incorremos é o de fundar esse sentido em algo fora de nós. Com o perdão da terminologia pedante, traduziria este princípio como o da autonomia ontológica.
2 – O ser deve realizar-se regido antes pela vontade do que pelo desejo ou o prazer. O desejo privado de potência é a via mais curta para a nossa infelicidade.
3 – Nunca aprisionar a realização do ser em um ideal absoluto, seja ele o amor, o poder, a família, a riqueza material, a utopia política, a religião...
Comentando livremente os princípios acima, arrisco-me a dizer que os únicos homens que os realizaram foram Sócrates, Montaigne e Spinoza. Embora fosse cristão, Montaigne elegeu Sócrates como seu modelo, não Cristo. Aliás, acho que Sócrates está para a tradição filosófica ocidental assim como Cristo está para a tradição cristã.
Transpondo o comentário para o mundo em que vivemos, penso que as tendências culturais dominantes desdobram-se no lado avesso dos princípios acima expostos. Se estou certo e os princípios que postulo têm validade, resta logicamente concluir que estamos vivendo na contracorrente de qualquer possibilidade de uma vida sábia. Traduzindo de um modo mais corrente, cavamos nossa infelicidade enquanto nos iludimos supondo viver em conformidade com “qualidade de vida” e outros clichês publicitários. Embora tanto falemos em autonomia e liberdade individual, em liberdade de escolha e outros belos ideais, pouco notamos o quanto vivemos regidos pela heteronomia ontológica, para dizer o avesso do que acima designei como autonomia ontológica.
Quanto à relação entre a vontade e o desejo, friso nada ter contra este. Pelo contrário, seria ótimo vivermos em conformidade com nossos desejos, ou realizar nossos desejos mais importantes. O problema é que a cultura hedonista dominante no presente promove a ilusão sistemática da realização do desejo, não importando qual seja. Num mundo reduzido ao império da mercadoria, realizar nosso desejo significa, trocando em miúdos, ter o poder de comprar. No caso, não só confundimos o ter com o ser, mas vivemos como se o princípio da nossa potência de realização do desejo, qualquer desejo, residisse no nosso poder de compra.
Em suma, ter é ser e ter é deter a potência de comprar. Esta me parece ser a fonte primacial da nossa infelicidade, da nossa insatisfação que se nutre do consumo insaciável. Somos infelizes e permanentemente insatisfeitos porque somos prisioneiros de uma ordem de funcionamento da realidade fundada na busca insaciável do desejo. O desejo não pode nunca alcançar sua satisfação, pois assim o funcionamento do sistema de consumo se esgotaria. Esta lógica, expressa em termos de mercado, é extensiva à totalidade da nossa experiência subjetiva, já que ela foi aprisionada pelas regras universais do mercado. Num mundo onde tudo tem preço, perdemos a noção do nosso valor não monetário. Não é portanto à toa que nosso valor passou a ser mensurado pelas leis do mercado. Tudo aparenta reduzir-se a duas perguntas que governariam nossas vidas: qual é o seu preço? Por quanto você se vende?

Recife, 24 de abril de 2013.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Lições sobre Hannah Arendt


As coleções ideadas pelos editores para servirem de pórtico ou introdução didática à obra de grandes escritores e pensadores são uma faca de dois gumes. O gume cego tende a embalar a inércia mental do leitor. Nos casos mais graves, quando este é também intelectualmente desonesto, corta o corpo da obra com gume alheio escondendo a arma do crime. O gume afiado, pelo contrário, ilumina a ignorância do leitor motivando-o a ir do comentador à obra comentada. Este é o mérito que antes de tudo destaco ao resenhar o livro 10 Lições sobre Hannah Arendt. Luciano Oliveira, o autor, condensa em dez lúcidas e transparentes lições o conjunto da obra de Hannah Arendt.

Ele começa ressaltando um fato animador: a trajetória ascendente da obra de Hannah Arendt no contexto da cultura brasileira, intra e extra acadêmica. De fato, como apropriadamente informa o leitor, o essencial da obra de Hannah Arendt é correntemente acessível ao leitor interessado. Leigos como eu, por exemplo, já leram Hannah Arendt, além de possuírem pelo menos parte significativa da sua obra. Além de desconcertar o leitor, não raro também indigná-lo, ela o ilumina, termo que Luciano Oliveira faz questão de sublinhar em certa passagem do seu livro.

Por que Hannah Arendt tanto desconcerta o leitor não relutando em afrontar suas convicções e pressupostos mais enraizados, também as verdades cômodas dentro das quais nos instalamos e assim aliviamos nossa consciência do fardo das interrogações éticas e humanas mais inquietantes? É por essas e outras, de resto bem esmiuçadas no seu livro, que Luciano, de mangas de camisa no convívio com os amigos e até inimigos mais cordiais, costuma brincar com Hannah Arendt chamando-a de “velhinha irritante”. Como todo humorista usa e abusa da hipérbole como figura de retórica, Luciano, sendo dos bons, não foge à regra. No caso de Hannah Arendt, porém, ele errou de figura retórica. Isso sugere o quanto ela, intransigente no exercício de pensar, excedeu as medidas convencionais da polêmica. Pois o fato é que mais de uma vez jogou contra o leitor tomada pela paixão de pensar isenta de qualquer tipo de concessão. E ao jogar, expondo-se a todos os riscos e reações éticas, políticas e epistemológicas, ela provocou algo que vai muito além da irritação do leitor contrariado ou contestado dentro dos limites que com frequência opõem o autor e o leitor, os sentidos ambíguos da obra e a recepção equívoca que no geral suscita.

No sentido acima indicado, o melhor do livro de Luciano concentra-se na sétima e na oitava lições, respectivamente dedicadas a Eichmann em Jerusalém e a “Reflexões sobre Little Rock”, incluído no volume Responsabilidade e Julgamento. Outras controvérsias em que Hannah Arendt se meteu são também consideradas pelo comentador. Estas, porém, notadamente a que envolve Eichmann e questões conexas, se inscrevem em contextos bem mais momentosos, para não dizer politicamente explosivos. Quando se ofereceu ao famoso periódico The New Yorker para cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt escolheu mergulhar no olho do furacão. Luciano contextualiza e critica nos termos devidos esse episódio comparável ao Caso Dreyfus, que sacudiu a opinião pública francesa entre fins do século 19 e início do século 20 fixando de forma indelével na história da cultura a função pública do intelectual.

Não vou evidentemente reconstituir nesta resenha o processo que Luciano tão bem delineia e aprecia no seu livro. Minha intenção é tão-só recortar algumas questões mais relevantes contidas na obra e atadas ao contexto de que é fruto e efeito. Talvez a celebridade conquistada por Hannah Arendt graças à coragem radical do seu pensamento possa ser sintetizada na expressão que cunhou para traduzir seu juízo acerca do carrasco nazista Eichmann: a banalidade do mal. Esta expressão ganhou curso, provocou reações exaltadas e foi a extremos de ruptura de grandes amizades, como a que existia entre Hannah Arendt e Gershom Scholem. Friso, para o leitor apressado, não afirmar que a ruptura se deva apenas à expressão que anoto, mas ao fato de ela encapsular as reações extremas desencadeadas pela intervenção de Hannah Arendt no processo, que por certo vai muito além da pura qualificação jurídica.

Luciano escolheu com senso de propriedade impecável as epígrafes que encabeçam cada um dos capítulos do seu livro. No que tem por título “A banalidade do mal – Eichmann em Jerusalém”, ele recorta uma penetrante passagem de uma carta de Hannah Arendt endereçada a Gershom Scholem. Nela Hannah nega a radicalidade do mal. Noutras palavras, o mal é apenas “banal”, pois se manifesta na epiderme do mundo. O mal não teria o poder de se entranhar nas profundezas do mundo, apenas o bem. Portanto, só este é radical. Transpondo seu juízo para a personagem que desencadeou todo esse tumulto que ocupa Luciano e o leitor em geral, Hannah se põe literalmente diante de Eichmann, enjaulado sob a proteção de paredes de vidro transparente, e talvez chocada tenha constatado não estar diante de um ser demoníaco, um monstro inqualificável. Aliás, monstro é um substantivo que prescinde de qualificação.

Hannah Arendt mira, escrutina e devassa as linhas apreensíveis do carrasco e nada encontra além de um homem banal, um homem normal, um burocrata eficiente que se esmerou no exercício da sua função com zelo exemplar. Não é chocante ler isso quando ponderamos que o burocrata em questão coordenava a mais terrível operação de extermínio de um povo? Não é chocante pensar que Hannah Arendt, judia como o seu povo aniquilado em campos de concentração, escreve sobre um dos mais terríveis carrascos do nazismo qualificando-o apenas como um ser banal, um burocrata eficiente, decerto pai de família modelar? A propósito, George Steiner, outro intelectual judeu que estica ao limite a coragem de pensar, escreveu algo semelhante no seu livro Linguagem e Silêncio. Neste livro, assim como em muitas entrevistas e depoimentos, ele reitera esta verdade desnorteante: o oficial nazista que comandava os campos de concentração era um homem como eu e você. Enquanto durante o dia, servidor zeloso do regime a que servia, coordenava as operações de extermínio dos judeus, à noite, cercado pela família, lia Shakespeare e Goethe, ouvia Bach e Mozart, cultivava, em suma, a mais alta tradição da cultura humanista europeia. Logo, o humanismo sublime que tanto cultuamos não constitui nenhuma garantia contra a barbárie. Ponto.

Espremendo o sumo da verdade, ou antes da coragem de pensar o que poucos ousam, foi isso o que Hannah Arendt ousou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Mas Luciano nos lembra de que ela foi além disso, pois também introduziu na polêmica a colaboração dos judeus com os nazistas no processo de gradual extermínio do seu próprio povo. Esta variante do livro polêmico está bem documentada na introdução sumária de Luciano, que naturalmente não se estende além do devido. Durma-se com o barulho que essa “velhinha irritante” provocou no mundo e entre seu próprio povo. Gershom Scholem, assim como outros judeus indignados, não dormiu, mas com certeza perturbou o sono da velhinha irritantemente ousada. Como não imaginar que ela não tenha sofrido durante essas batalhas ideológicas tão momentosas? Afinal, ela sabia da radicalidade do amor, tanto sabia que foi capaz de continuar amando seu mestre, herói filosófico e amante: Martin Heidegger, nazista confesso que nunca se retratou. Amou ainda mais Heinrich Blüchner, seu marido devotado, com quem compôs, como dizia o amigo comum Randall Jarrell, uma monarquia dual. Ela amou a amizade com a integridade com que poucos o fazem. Bastaria lembrarmos o amor que devotou a Karl Jaspers, Hermann Broch e Mary McCarthy. Esta, a propósito, incluiu em Occasional Prose um belo e comovente obituário intitulado “Saying Good-bye to Hannah (1907-1975)”.

Como todos que ousam pensar o pensamento na sua radicalidade, ainda quando sabendo que não existe verdade absoluta, Hannah Arendt pagou a essa convicção o tributo que outros, antes e depois, pagaram e continuarão pagando. Penso, por exemplo, em Sócrates, epítome do pensador radical, Émile Zola e, entre os contemporâneos de Hannah, Bertrand Russell e George Orwell. Foram todos de algum modo punidos, além de transtornarem o léxico ideológico corrente. Talvez por isso Luciano inaugure sua série de epígrafes extraindo de uma entrevista a interrogação incontornável: onde situar Hannah Arendt ideologicamente? Conservadora ou liberal (no sentido americano do termo, conviria frisar)? Ela responde sem aparentar maior inquietação a respeito do assunto. Tanto que alega não acreditar que as questões do século em que viveu tivessem relação relevante com essas qualificações. Parece-me significativo registrar que, no obituário acima mencionado, Mary McCarthy a identifica como “conservationist”, termo que remete antes à ecologia do que à ideologia. Intentando ser fiel a McCarthy, esclareço que ela usa o termo no sentido seguinte: Hannah Arendt acreditava que devemos conservar tudo que já foi pensado.

Voltando à lição que dedica ao “Caso de Little Rock” , Luciano descreve com brevidade suficiente o que me parece sugerir o processo de pensar de Hannah Arendt, processo que acabava lançando-a no olho do furacão. Visando conferir precisão ao que segue, preciso acentuar brevemente que “O Caso de Little Rock” foi um episódio crucial na luta contra a segregação racial nos EUA. De que modo Hannah Arendt interveio? Ela simplesmente se perguntou o que faria se fosse a mãe de uma menina branca. Em seguida, o que faria se fosse a mãe de uma menina negra atirada - esta literalmente, a outra em termos hipotéticos - no cerne da batalha racial.

Ora, deixando de parte as respostas que propõe, e é aí que ela se encrenca com todos os bem e mal pensantes do mundo, o que ressalto é o fato de Hannah pensar o real com empatia. Esta é a forma mais radical de pensar, se podemos concentrá-la numa única palavra. Pois o que é o pensamento empático, senão esse procedimento com que ela própria ilustra sua atitude mental e política diante da realidade da segregação racial? O procedimento pode ser transposto para sua interpretação do totalitarismo, do nazista Eichmann, do comprometimento do seu mestre e amante Heidegger com o nazismo etc. Hannah pensava colocando-se imaginariamente no lugar do que pensava. É daí que me parece proceder a radicalidade do seu pensamento que projetou luz e entendimento no mundo, mas também irritação e ódio, fúria e rejeição. Pensar aderindo à perspectiva do outro, sobretudo quando este é o nosso avesso, é manifestação raríssima de liberdade e generosidade espiritual. É daí, suponho, que procede a radicalidade do pensamento de Hannah Arendt.

Não posso concluir esta resenha sem antes lhe acrescentar uma nota de frustração pessoal. Deploro o fato de Luciano simplesmente ignorar no seu estudo do conjunto da obra de Hannah Arendt o livro dela que é o meu favorito. Refiro-me a Homens em tempos sombrios. Conhecendo tão bem o autor, e portanto sabendo o quanto aprecia a literatura, causa-me certa estranheza o silêncio que aqui deploro. Afinal, ele também compartilha com Hannah Arendt um profundo apreço pela literatura, apreço que de resto se espelha na sua escrita tão avessa à padronização instituída pela cultura acadêmica. Espelha-se ainda na sua admiração de leitor fiel de Machado de Assis e Graciliano Ramos, que dele mereceram um volume de ensaios críticos. (Ver O Bruxo e o Rabugento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010).

Em Homens em tempos sombrios, como sabemos, Hannah Arendt reúne um grupo de grandes intelectuais marcados em circunstâncias variáveis pelos horrores do século em que viveram. A exceção é Lessing, poeta, dramaturgo e filósofo do século 18. Sua inclusão deve-se ao fato de merecer no ensaio de abertura do volume um tratamento equivalente ao de um contemporâneo dos demais estudados em seguida. Esse livro sobre o qual Luciano Oliveira infelizmente silencia revela os dotes extraordinários de Hannah Arendt como ensaísta consagrada ao ofício da biografia intelectual sintética. Retenho ainda na memória de minhas leituras desse livro as belas e comoventes páginas que escreveu sobre o caráter melancólico de Walter Benjamin. Não bastasse isso, e os horrores do século em que viveu, teve a infelicidade de estar sempre nos lugares errados.

Embora o título do livro seja extraído de um poema de Brecht, um dos artistas nele estudados, e o título bem a propósito condense a relação crucial entre o intelectual e o contexto histórico, a ensaísta é sensível aos traços distintivos que individualizam seus personagens (Abro parênteses, literalmente, para lembrar que o livro inclui dois capítulos sobre personalidades de natureza distinta: o papa João XXIII e Waldemar Gurian). Afinal, como ela própria ressalta, deles emana a luz, ainda que tênue, que nos anima a continuar vivendo e lutando quando a escuridão desce sobre as nossas vidas. É antes dessas obras e dos espíritos criadores excepcionais que lavramos um sentido para nossas vidas e para o mundo, bem mais neles do que em teorias e conceitos procedentes de outras fontes de saber e representação da realidade humana.
10 Lições sobre Hannah Arendt.
Autor: Luciano Oliveira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O peso da liberdade


Segundo a voz corrente, ser livre é fazer o que quiser. É uma concepção infantil da liberdade, mas como espantar-se diante do fato de ter largo curso, de ser a voz corrente? Afinal, a cultura hedonista que hoje rege nossa realidade baseia-se na infantilização das pessoas. Dizendo o mesmo de um outro modo, a cultura publicitária, presente até no nosso sono, para não dizer nos nossos sonhos acordados, repisa esse refrão para tudo vender. Repetindo o refrão, ser livre é fazer o que quiser, é realizar nosso desejo. Ora, essa concepção infantil da liberdade não resiste ao teste de realidade mais elementar, à prova mais corriqueira da realidade.

A liberdade é um bem precioso, mas é também um peso. Por que um peso, interroga perplexo o leitor infantilizado pela fumaça publicitária que permeia nossas vidas. Ora, porque ser livre é ser livre para escolher. Nossa vida, na medida em que é livre, supõe sempre o exercício de escolhas. Estamos sempre fazendo escolhas. E é precisamente dessa circunstância entranhada no ser e no exercício da liberdade que decorre seu peso sobre nossas vidas.

Vamos a alguns exemplos práticos. Somos livres para amar. Num mundo de tantas possibilidades, tantas tentações e encontros, a liberdade de amar é bem maior do que a observável em outros tempos e culturas regidas por códigos mais repressivos. Hoje um jovem de classe média urbana, por exemplo, é livre para transar com a namorada, em muitos casos dormir com ela na casa dos pais graças ao consentimento destes. É uma forma de liberdade desejável e fácil, já que consentida. Quando eu era jovem, precisei sair de casa, lutar arduamente para ter um lugar meu onde pudesse dormir com minha namorada, ou com quem mais desejasse. Ninguém me deu essa liberdade. Precisei conquistá-la e portanto sei o quanto me custou. Hoje o jovem de classe média para cima não apenas leva a namorada para a casa dos pais, mas também com frequência a engravida e os pais financiam também essa liberdade. Como estranhar que esse tipo de jovem, cuja liberdade é financiada pelos pais, diga irrefletidamente que ser livre é fazer o que quiser e quando quiser?

A digressão acima desviou-me do curso de meu argumento. Meu propósito, ao acentuar o peso da liberdade, era ir ao cerne do que compreendo como liberdade. O exemplo que dei é secundário, já que deriva do que agora deixarei claro. Ser livre é ser livre para escolher e escolher envolve sempre a exclusão de tudo que fica à margem da minha escolha. Quando escolho amar uma mulher, excluo automaticamente todas as demais possíveis. Quando escolho ficar em casa sexta-feira à noite lendo um livro ou escrevendo, excluo todas as possibilidades de vida que estão fora do meu apartamento. Quando escolho minha solidão, para nela realizar possibilidades impensáveis em qualquer forma de convívio, escolho-a porque ela importa para mim mais do que qualquer companhia disponível.

A condição fundamental para que me realize no exercício da minha liberdade de escolher consiste na adequação entre meu desejo e o objeto que escolho. Quantas pessoas escolhem em conformidade com esse princípio? Receio que bem poucas. Ademais, ainda que na minha escolha obedeça a este princípio, o objeto que escolho, se é humano, pode contrariar ou mesmo contradizer minha liberdade. Para que minha escolha me faça bem, idealmente me torne feliz, é preciso que eu queira verdadeiramente o que escolho, tão verdadeira e profundamente que a exclusão de tudo mais não me cause frustração ou arrependimento, suspensão relutante entre o que escolho e o que em consequência deixei de escolher.

Como conciliar a realidade efetiva da liberdade com a noção infantil acima indicada? De acordo com esta, faço o que quero como se isso significasse fazer tudo o que quero. Ora, ninguém faz tudo o que quer. Mesmo no estado idealmente mais livre, somos livres porque fazemos escolhas. É aí que muitas vezes sofremos entre o desejo e a possibilidade, entre a realidade da escolha e a realidade das possibilidades em princípio infinitas. É impossível escolher tudo que queremos e aquilo que mais queremos. A liberdade ideal, portanto, consiste na escolha daquilo que mais importa para a realização da nossa vida. Convém ainda acrescentar que não há nenhuma linha reta, nenhuma relação de necessidade entre minha escolha e meu desejo de felicidade. Não raro, o que mais desejo e escolho logo se converte em fonte de desastre e sofrimento. A liberdade não se dá, a liberdade se conquista, reza um lugar comum, no caso verdadeiro. Mas a liberdade que se conquista não é garantia de nada, muito menos de felicidade.

O fato é que a liberdade, como já frisei, é um bem precioso, mas também um peso. É por tanto pesar que a ela frequentemente renunciamos, não raro em nome dela. É por isso que nos deixamos docilmente governar por líderes baratos, reles políticos que apenas ambicionam o poder, o pior do poder. Curvamo-nos não apenas a esse tipo de governo, mas também ao governo do tirano cujo poder se sustenta apenas na nossa servidão voluntária, como há muito demonstrou Étienne de La Boétie.

“Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Esta citação, longe de ser um lugar comum, como a que acima introduzi, é de Madame Roland, que a pronunciou no auge do terror desencadeado pela revolução cujo ideal era esta santíssima trindade: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Madame Roland perdeu literalmente a cabeça, cortada pela guilhotina que suprimiu muitas outras cabeças gloriosas. Matamos pela liberdade, assim como também matamos em nome dela. Por ser tão imperiosa, dela frequentemente nos valemos para mascarar muitos dos nossos piores crimes. E quantas vezes, tendo-a a nosso alcance, não a rebaixamos à sarjeta das paixões humanas? Será que somos verdadeiramente capazes de realizar a liberdade nesse mundo humano tão imperfeito? Se o leitor acredita nesse mito, o da liberdade universal ou absoluta, convém começar a afiar a lâmina da guilhotina. Ou o fio da navalha, no caso de ser barbeiro.
Recife, 15 de junho de 2012.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Cioran (fragmento de um diário)



Releio Cioran: Exercícios de Admiração. Esse romeno de formação francesa, que muito à vontade declara a ambição de escrever em francês melhor do que os próprios franceses, é sem dúvida um filósofo escritor. O traço talvez mais saliente dos ensaios curtos e textos de circunstância que compõem este volume – salvo o longo capítulo inicial dedicado a Joseph de Maistre – é o pessimismo dissolvente com que encara a condição humana. O curioso é que essa sua peculiaridade, com freqüência expressa em termos desabusados, não deprime o leitor. Pelo menos posso dizer que não me deprime, antes pelo contrário.

Cioran é um homem governado por excessos, presa fácil das paixões infrenes. Como ele próprio reconhece, é pouco afeito à nuança. Escrevendo sobre Otto Weininger, frisa as qualidades deste que mais o seduziam: o exagero desmedido, a negação extrema, a aversão ao bom senso, a busca intransigente do absoluto. Em suma, tudo que não sou nem me apetece. Weininger foi uma referência crucial na juventude de Wittgenstein. É este um dos argumentos mais fortes de Ray Monk, o biógrafo que mais profundamente me marcou. Sua biografia de Bertrand Russell em dois magníficos volumes (The Ghost of Madness e The Spirit of Solitude) é provavelmente a melhor que já li em toda a minha vida. A que dedica a Wittgenstein, The Duty of Genius, é também excelente, mas não tanto quanto a de Russell. Monk é um wittgensteiniano e coerentemente toma o partido de Wittgenstein contra Russell em ambas as biografias. Isso entretanto não basta para que a biografia do primeiro seja melhor que a do segundo. Sendo mais preciso, Monk toma o partido de Wittgenstein por nele identificar uma integridade ética e intelectual superior à de Russell.

Voltando a Weininger, ele é tão central para a compreensão da vida de Wittgenstein proposta por Monk que a epígrafe que este escolheu para The Duty of Genius é extraída de Sexo e Caráter, o livro fundamental de Weininger: “Lógica e ética são fundamentalmente idênticas; não são mais do que dever para consigo mesmo”. A epígrafe evidentemente é a pista que conduz ao título da biografia, portanto do seu sentido substancial. Cito a epígrafe em português por não dispor do meu exemplar da biografia em inglês. Alguém o levou ou roubou, não sei. Tenho adotado como norma neste diário registrar primeiramente uma obra no original sempre que a tenha lido primária ou exclusivamente no original. No caso de The Duty of Genius, cito a epígrafe em português por dispor apenas da edição publicada pela Companhia das Letras.

Cioran é autor de boutades deliciosas. Referindo-se à misantropia, escreve estas palavras que não resisto à tentação de citar: “Não receie encontrá-lo: de todas as criaturas, as menos insuportáveis são as que odeiam os homens. Não se deve nunca fugir de um misantropo” (p. 120). A propósito dos benefícios catárticos da função da escrita, revela haver sobrevivido graças a ela. Julgo compreender o que escreve acerca da função liberadora da escrita por experimentar corriqueiramente esse fato de raiz psicológica. Considero-o de resto tão saudável que viso antes de tudo a função expressiva da escrita, até porque não sou um escritor profissional e quase nada publiquei dos meus escritos erráticos e dispersos, além de no geral circunstanciais. Cioran é evidentemente um escritor profissional. Como tal, pode melhor apreciar os benefícios catárticos da escrita. Observa assim que “Quando detestamos alguém a ponto de querer liquidá-lo, o melhor é pegar uma folha de papel e escrever várias vezes que X é um canalha, um crápula, e imediatamente percebemos que o odiamos menos e que quase não pensamos mais em vingança (...) Suportei-me melhor assim, como suportei melhor a vida. Cada um se cuida como pode” (pp. 127-8).

Registrando um pouco de minha experiência pessoal a esse propósito, com freqüência noto que o mero fato de escrever no diário páginas duras contra determinadas pessoas ou situações funciona efetivamente como um dispositivo descompressor, um liberador de energia agressiva reprimida. Talvez o caso mais facilmente observável no meu diário seja o referente a tudo que na realidade social brasileira inspira-me revolta e aversão. Escrevo reiteradamente acerca dessas coisas e sinceramente gostaria de suprimi-las de um diário que estimaria menos pesado e menos negativo. Sucede, no entanto, que sou rotineiramente vítima de abusos e agressões a meus direitos elementares de cidadania numa realidade regida pela anomia; sou vítima da desonestidade ou descaso de pessoas e instituições que burlam minha boa fé, quando não simplesmente me ignoram. E não consigo nem quero adaptar-me a esses horrores grandes e pequenos inscritos no nosso cotidiano cultural, embora saiba de minha impotência, o que naturalmente acentua minha revolta. Diante disso, transporto muitas vezes intencionalmente parte dessas irresoluções para as páginas do meu diário. Aqui me pronuncio contra a grosseria dos recifenses, sua incivilidade crônica, sua inconsciência social que em verdade define um padrão de convívio. Noto então que o mero registro da crítica, da denúncia irrefreável, da indignação impotente, tudo isso como que se quebranta, cede na força opressiva que tanto me perturba. É esse, em substância, o processo psíquico que Cioran assinala na sua própria escrita.

Escrevendo sobre Scott Fitzgerald, indica Cioran dois modos de lucidez verificáveis nos seres humanos. O primeiro ele o caracteriza como um privilégio ou dádiva. Seria próprio dos que vivem a vida ou a experiência do mundo como algo transparente e assim sentem-se como que libertos do sofrimento de sabê-la transparente, já que ela assim os define. Ainda que a vivam como um estado de crise permanente, não sofrem nem se queixam do que afinal é inerente à sua condição. O outro modo de lucidez é sempre uma revelação tardia sobrevindo como um acidente, “uma rachadura interior que ocorre em dado momento”(p. 108). Este é o modo de lucidez característico de Scott Fitzgerald. Sua expressão mais plena e transparente está documentada num dos textos literários mais dilacerantes, verdadeiros e impiedosos que já li: The Crack-up. É a rachadura a que alude Cioran quando emprega a expressão “rachadura interior”.

Passo a palavra ao romeno da catástrofe, que sintetiza com felicidade o essencial do que escreve Scott Fitzgerald no seu dilacerante texto autobiográfico: “Até então, fechados numa agradável opacidade (refere-se aos que se identificam com o segundo modo de lucidez acima caracterizado, nota minha) aceitavam suas evidências sem avaliá-las nem lhes pressentir o vazio. Ei-los desiludidos e como que involuntariamente engajados no caminho do conhecimento. Ei-los tropeçando entre verdades irrespiráveis, para as quais nada os preparara. Por isso, experimentam sua nova condição não como um dom, mas como um ´golpe`. Nada preparara Scott Fitzgerald para enfrentar ou suportar essas verdades irrespiráveis. O esforço que fez para se acomodar a elas não deixa, contudo, de ser patético” (p. 108).

The Crack-up é o relato pungente de uma experiência de desintegração, expressão lúcida e dolorosa da ruína de um homem que antes viveu mimado pela glória literária e a dissipação de sua fortuna e talentos num estado de orgia inconsciente e infrene. Algo dessa atmosfera, ambientada nos círculos mundanos da Paris dos anos 20, foi recriado em The Sun also Rises, de Hemingway, mas sobretudo na obra de Scott Fitzgerald. Diria que antes de tudo nos seus contos. Meu favorito é Babylon Revisited, que já contém muito do que Fitzgerald expressará em nome próprio, isento de qualquer artifício ficcional, na sua lúcida, atordoantemente lúcida escavação autobiográfica. The Crack-up é o relato de uma ruína, a lúcida descrição do desmoronamento de uma mente brilhante e de um escritor emblemático da dissipação enlouquecida de uma geração, the lost generation, espremida entre duas guerras devastadoras.

Scott Fitzgerald morreu pouco depois dos quarenta. Não resistiu à experiência devastadora documentada na sua excepcional peça autobiográfica. Sua mulher, Zelda, parceira lendária de mergulho esgotante nos labirintos sedutores da vida, entrou em pane e acabou internada numa clínica psiquiátrica, onde morreu num incêndio. Otto Weininger, acima mencionado, suicidou-se com pouco mais de vinte anos. Seu suicídio foi cercado por circunstâncias patéticas, pois escolheu matar-se na casa onde Beethoven morreu. O fato não é de modo algum acidental, já que cultuava Beethoven como o gênio supremo. Weininger legou à inteligência do seu tempo um livro crucial para Wittgenstein e outras mentes poderosas: Sexo e Caráter. Como observa Cioran, pretexto para estas páginas pouco animadoras, cada um cuida ou precisa cuidar de suportar a vida como pode. Não consigo seguir à vontade, nem de fato, o espírito do seu pessimismo. Acredito ainda que a vida encerra outros valores e possibilidades além da mera e desoladora experiência da suportação. Sem a intenção de pregar ânimo demasiado para o exercício da vida, sei que ela representa bem mais que isso.

Diário - Recife, 30 de novembro 2008.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Tempo e Filosofia Antiga


Viviane Campos lê meu poema “O tempo presente”, postado no meu blog, e me pergunta no Facebook: “Por que o tempo presente?” Ora, porque é o único real. Concordando com os filósofos estoicos, penso que o passado já foi e o futuro não é ainda. Aliás, sequer sabemos se será. Será que estarei vivo amanhã ou mesmo alguns minutos mais tarde? Esse pensamento, que pode ser angustioso para tantos, constitui a condição filosófica necessária para que sejamos capazes de viver integralmente dentro do presente, viver o agora como momento absoluto. O que foi, o passado, é irreversível. Pior que isso, pode ser fonte de infelicidade e sofrimento se dele não nos libertamos efetivamente. Diante dele, podemos adotar dois tipos básicos de sentimento: a nostalgia ou o ressentimento. O primeiro expressa, de forma idealizada, pois a nostalgia deforma o passado evocando-o com tintas idealizadoras, nossa dor diante da memória de algo valioso que perdemos e radica no passado; o segundo, o ressentimento, é uma paixão amarga voltada contra um passado que foi fonte de sofrimento e frustração. Ao relembrá-lo, renovamos a dor antes sofrida.

Quanto ao futuro, este não é ainda, como já frisei. Portanto, infelicitamos nosso presente quando nos preocupamos com o que ainda não veio nem de resto sabemos se virá. Também aqui podemos adotar uma dupla atitude: uma expectativa ou sonho de futuro radioso e feliz ou uma expectativa sombria orientada para o temor de que o futuro será ainda pior que o presente. Num caso ou noutro, perturbamos negativamente nossa relação com o presente, com o tempo real. Quantas vezes não deixamos de viver melhor , de fruir melhor o momento atormentados seja pelo fantasma luminoso ou sombrio do passado irreversível, seja pela expectativa positiva ou negativa de um tempo que não é ainda e provavelmente nunca será como o figuramos ou desejamos? E quantas vezes não nos preocupamos, isto é, não ocupamos antecipadamente o que não teve ainda lugar e realidade sofrendo pelo que não veio ainda e talvez nunca se converta em vida consumada? E quantas vezes, refluindo imaginariamente no tempo não moemos dores e frustrações irreversíveis na memória envenenando ou anulando possibilidades factíveis do presente?

Embora continue sendo um leitor dispersivo, incapaz de fixar-me em qualquer saber restrito ou domínio especializado, leio agora cada vez mais filosofia. Faço-o movido por muitas razões de ordem pessoal, incluída a questão do tempo acima considerada. Faço-o ainda por acreditar e precisar aprender alguns grãos de vida examinada e melhor fruída. Mas meu interesse não é a filosofia técnica, muito menos a filosofia técnica produzida pela cultura acadêmica. Além de nada importar para meus fins existenciais ou inquietações humanas, trata-se de uma filosofia dissociada da vida, da ordem prática da vida que sempre constituiu o alvo prioritário da filosofia antiga. Durante algum tempo convivi com amigos academicamente treinados em filosofia. Para além das inconsistências teóricas que captava nas suas conversas, no saber filosófico que me expunham, impressionava-me o fato de não identificar qualquer vínculo entre o que liam e ensinavam e a vida que viviam.

Esses professores de filosofia estudam, ensinam e escrevem filosofia para obedecer às normas institucionais reguladoras do desempenho intelectual e acadêmico que confere títulos e reconhecimento social, renda e poder. Para muitos, pensar e ensinar filosofia, ou produzir conhecimento de segunda ou terceira mão, é apenas cumprir metas burocráticas de desempenho acadêmico. Quero dizer, em nada traduzem o espírito da filosofia antiga. Esta, antes de ser um discurso sobre a realidade, era um modo de vida. Por isso filósofos como Sócrates e Epicteto nada escreveram. Foi graças a discípulos devotados que a filosofia de ambos foi transmitida à posteridade. Para eles, aprender a filosofar era aprender a morrer através do exercício de uma vida examinada; dizendo o mesmo de um outro modo, aprender a viver.

Marco Aurélio escreveu suas Meditações, mas escreveu-as para si próprio, não para um leitor hipotético. Epicuro constitui um caso à parte. Embora também fiel ao exercício da filosofia como uma prática de vida, escreveu muito, ainda que apenas uma fração mínima da sua obra tenha sobrevivido. No geral, o saber que esses filósofos viveram e comunicaram a seus discípulos sobrevive e ainda hoje nos ilumina graças a discípulos e compiladores que registraram parte do saber transmitido através da vida prática, da sabedoria convertida em ação. Por isso ainda esses filósofos nunca se preocuparam em sistematizar uma filosofia unitária e coerente. Tampouco sábios modernos como Montaigne e Pascal perderam tempo e sono elaborando uma filosofia sistemática. Spinoza foi o único que logrou viver como um sábio e ao mesmo tempo conceber uma filosofia sistemática.

Dentro do espírito com que muitos dos antigos reduziram a filosofia a uma prática de vida sábia, não foram poucos os que chegaram ao extremo de desprezar a ciência. Epicuro ilustra muito bem essa questão. Insistindo em que a filosofia se realiza na ação, na vida vivida, não na teoria, não dissimulava seu desprezo pela ciência. Assim se explicam estas palavras endereçadas a Pítocles: “Meu caro, foge a todo pano da ciência”. Seu desprezo pelo saber puramente teórico ou especulativo, que a seu ver nada importava para a realização da filosofia como norma ética de aprimoramento da vida vivida pelo filósofo, levou-o ao extremo de também desprezar o cultivo da arte, da poesia e da história. Negando à arte função utilitária, assim como importância à história por tratar do passado, não lhes concedeu nenhum lugar na sua concepção filosófica da realidade. Foi devido a perspectivas dessa natureza que Bertrand Russell apreciou as escolas filosóficas pós-aristotélicas com muito rigor crítico na sua A History of Western Philosophy.

É sintomático que esse ideal de filosofia se renove no mundo em que vivemos. Embora as analogias históricas sejam sempre discutíveis, ainda mais quando propostas por um amador como eu, vale a pena indicar alguns pontos de afinidade entre o declínio da cidade-Estado, fundamento político e social da Grécia clássica, e a realidade espiritual do presente abalada por processos de vertiginosa mudança cultural. Os filósofos que acima mencionei, representantes do estoicismo e do epicurismo, viveram entre o processo de desintegração da hegemonia política e cultural da Grécia e o império romano. A filosofia que declina a partir da morte de Aristóteles transita da ágora, da polis que regulava a participação do filósofo na vida pública, para a constituição de uma ética privada, em certo grau já prefigurada nos ensinamentos de Sócrates, fato que decerto explica sua adoção pelos filósofos estoicos.Vivendo durante o processo de desintegração da ordem grega, cuja hegemonia foi sucedida pela dos macedônios e depois pela dos romanos, os filósofos sucessores de Aristóteles deslocam-se da esfera política para a privada. Esse deslocamento se traduz na preeminência de uma ética baseada na virtude privada, na busca da sabedoria de viver dissociada da ação política, embora um estoico como Marco Aurélio, como sabemos, tenha sido imperador.

Que fatores do presente acaso nos religariam a esse ideal filosófico baseado numa ética privada? Penso que a desaparição da utopia no horizonte da política, seguida da despolitização hoje corrente, ou da política pragmática restrita a resultados calculáveis em termos de acumulação e riqueza material, deixaram-nos reduzidos ao hiperindividualismo árido palpável na cena cultura contemporânea. Como pensar ainda na política movida pelo ideal utópico, ou pela religião num mundo secularizado que converteu o reencantamento religioso em variante de consumo espiritual? Penso que é dentro desse quadro ideológico grosseiramente esboçado que ressurgem as filosofias epicurista e estoica, assim como o interesse pelo budismo. Privados de ideais coletivos inspiradores de autêntica significação espiritual, voltamos ao ideal ético da sabedoria contido na obra desses filósofos e neles nos inspiramos para modelar nossas subjetividades desertadas de qualquer horizonte de realização coletiva.

Ainda que demasiado grosseira, minha analogia indica algo da crise espiritual e ideológica em que vivemos. E. Joyau cita estudiosos da antiguidade grega (Droysen, J. Denys, Curtius) visando caracterizar a decadência provocada pela dissolução da cidade-Estado. Citando Curtius, Joyau anota num texto introdutório à filosofia epicurista: “Todos os nobres sentimentos que tinham florescido na Grécia tinham a sua razão de ser na ideia de Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que viu que não tinha pátria e que a própria vida municipal estava decaindo, perdeu todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto da vida de pequena cidade, eis o que a multidão se pôs a procurar. Todos os nobres instintos se foram enfraquecendo de dia para dia”.

Tenho consciência de que esboço minha analogia implicando realidades histórico-culturais profundamente distintas. Mas como fechar os olhos para as afinidades observáveis no plano moral, na crise de valores assinalável lá e aqui, na antiguidade e no presente? Por isso sugiro certa comunidade de solo moral para justificar o interesse que o epicurismo, o estoicismo e o budismo inspiram na atualidade a filósofos como André Comte-Sponville, Luc Ferry, Pierre Hadot e muitos outros. Evidência ainda mais forte radica na recepção que suas obras têm merecido por parte de um vasto público.
Recife, 04 de janeiro de 2012

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Alain Finkielkraut


Um coração inteligente

Alain Finkielkraut, de origem polonesa, é um ensaísta e professor que se distingue na França por ser o que noutros tempos se conhecia como intelectual público. Atualizando a expressão, diríamos que é hoje um intelectual midiático, assim como no Brasil são ou foram Paulo Francis, Marilena Chauí (entre parêntesis: onde andará a grande profetisa da ética petista na polícia? Perdão, quis dizer política. Lula explica. Se o mensalão tem uma vítima, e mais que merecida, diria ser ela.) Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris, Marcelo Coelho e tantos outros. Finkielkraut é também um dos rebentos da geração conhecida como os novos filósofos, um grupo barulhento de jovens pós-sartreanos que fez muito barulho, como é de praxe na inteligência francesa, e bem pouca filosofia que sobreviva.

Finkielkraut reaparece na cena intelectual brasileira com um livro surpreendentemente consagrado à literatura. Começo pelo melhor, pelo que de pronto me atraiu no livro: o título. Eis um belo título: Um coração inteligente. Finkielkraut introduz seu título e a devida obra evocando a súplica que o rei Salomão fez a Deus: que Deus lhe desse um coração inteligente. A julgar pela tradição bíblica, Deus lhe deu, sim, um coração inteligente. Como há muito já não existe rei ou governante do feitio de Salomão, até porque o Deus e a política da modernidade são definitivamente entidades de ordem secular, é compreensível e até sábio o fato de Finkielkraut debruçar-se sobre as fontes da literatura tocado pela esperança de fazer do seu um coração inteligente, além de intentar comunicá-lo ao coração dividido do leitor.

Por que afirmei eu que o coração do leitor, o nosso, é um coração dividido? Porque penso que essa bela unidade expressa no titulo da obra foi cindida por forças e movimentos de ideias típicos da modernidade. Rousseau, pai fundador da filosofia e da literatura romântica, elevou a sensibilidade (isto é, o coração) à condição de ideal supremo. No outro lado do canal, na Inglaterra, Jeremy Bentham e sobretudo James Mill e seu filho John Stuart Mill expulsaram o coração do reino da inteligência ao consagrarem o princípio da utilidade como fundamento da filosofia utilitarista. Claro que simplifico a história moderna das relações entre o coração e a inteligência na modernidade. Mas o enredo geral bem pode ser assim esboçado. Esta é a cisão que percorre o espírito do livro de Finkielkraut e portanto cuidarei de a retomar mais abaixo.

Entendo que o coração inteligente é aquele que conjuga a emoção e a inteligência, a sensibilidade e o intelecto. Se é possível imaginar uma razão absolutamente fria e um coração puramente cego, temos aí o primeiro motor ou a fonte suprema da catástrofe, seja num extremo, seja no outro. É essa a consequência da cisão entre os pares complementares que são a sensibilidade e a inteligência. Como ressalta Finkielkraut, o possesso e o burocrata são perversões atuais desses pares complementares. Pervertem-nos não apenas porque os dividem, mas sobretudo porque, assim procedendo, dão um passo adiante e convertem um dos polos em ideal absoluto ou norma suprema de vida.

O possesso, sabe o leitor, é uma alusão implícita ao romance Os possessos (também traduzido como Os demônios), de Dostoiévski. Estes convertem a paixão revolucionária, ou o coração fanatizado, no absoluto que, na história política, produziu insanidades como o reinado do terror, durante a revolução francesa, o stalinismo e o nazismo. O burocrata, esse funcionário sem alma, é o carcereiro da modernidade, daquilo que Max Weber, teórico supremo da burocracia e dos processos de racionalização da modernidade, designou como a jaula de aço (iron cage) do mundo em que vivemos. Se querem um exemplo extremo desse burocrata sem alma, lembrem-se de Eichmann, julgado e condenado em Jerusalém e objeto de um livro momentoso e definitivo da filosofia política do século vinte escrito pela grande Hannah Arendt.

Penso que o eixo do livro de Finkielkraut consiste nas linhas de força e tensão que procurei esboçar nos parágrafos precedentes. Mas saiba o leitor que ele não o expõe, o eixo a que me refiro, com a clareza que intentei verter sobre esta resenha. Ele acredita, assim como eu, que é na literatura que tecemos o coração inteligente. Não em Deus, como acreditava Salomão, pois Deus, imerso no seu silêncio, é indiferente à nossa súplica. De resto, introduzindo aqui um travo de mordacidade, quem hoje suplica a Deus um coração inteligente? Os fiéis suplicantes que de ordinário encontro e ocasionalmente ouço suplicam a Deus as benesses do bezerro de ouro que é a nossa sociedade de consumo. Portanto, dou razão a Finkielkraut: é na literatura que podemos talvez identificar essa unidade rompida entre a sensibilidade e a inteligência.

Guiado pelo princípio acima exposto, Finkielkraut seleciona algumas obras da literatura escritas entre os séculos 19 e 20 para ilustrar seu argumento. Dentre os autores que estuda, há dois que desconheço completamente e, até onde sei, são praticamente desconhecidos no Brasil. Refiro-me a Vassili Grossman e Sebastian Haffner. Os demais são autores canônicos da literatura moderna: Dostoiévski, Joseph Conrad, Henry James, Karen Blixen (também conhecida como Isak Dinesen, seu pseudônimo literário), Albert Camus, Milan Kundera e Philip Roth. De cada um desses autores, Finkielkraut seleciona uma obra específica e daí se empenha antes em descrever do que demonstrar o coração inteligente que esses grandes ficcionistas narram.

A insuficiência do livro me parece consistir precisamente nisso: na prevalência da descrição sobre a demonstração. Quero noutras palavras dizer que Finkielkraut, ao estudar uma obra determinada de cada um dos ficcionistas acima mencionados, limita-se quase sempre a parafrasear ou transpor em estilo próprio as narrativas que no seu entender justamente traduzem no plano do imaginário ficcional a experiência do coração inteligente. O livro seria com certeza bem melhor se ele se aventurasse a melhor demonstrar seu argumento em defesa da literatura contra a filosofia e as ciências sociais.

Na página de abertura do capítulo dedicado a um conto de Karen Blixen, A festa de Babette, Finkielkraut opõe francamente a literatura à filosofia e às ciências sociais tomando o partido da primeira. Ele acredita que o sentido do conto de Karen Blixen consiste em nos revelar na forma de uma narrativa, ou de uma história, o que significam grandes valores humanos como a civilização, a arte, o ideal e a graça. Quando se propõem questões dessa natureza, o filósofo e o cientista social recorrem ao pensamento especulativo, no caso do primeiro, e aos métodos indutivo e comparativo, no caso do segundo. O narrador ficcional, por sua vez, simplesmente inventa uma história, traduz na forma de uma narrativa as abstrações mentais do filósofo e do cientista social. Assim procedendo, e essa é na verdade a natureza do seu ofício, ele reconcilia a sensibilidade e a razão.
Traduzindo no plano do imaginário ficcional as questões fundamentais da experiência humana, o narrador converte a atividade especulativa e os conceitos abstratos em ação humana reinventada num enredo vivido por personagens portadores das qualidades sensíveis características de todo ser humano. Assim procedendo, ele reconcilia na obra de arte o coração e a inteligência, a sensibilidade e a razão. Em suma, ousaria afirmar que ser um grande criador literário, assim como ser um grande leitor, é ter o privilégio de possuir um coração esclarecido.

Alain Finkielkraut. Um coração inteligente.
Tradução: Marcos de Castro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

sábado, 1 de outubro de 2011

Bertrand Russell



Leitor viciado em releitura, como prazerosamente me confesso, volto a incorrer em mais uma: Retratos de Memória e outros ensaios, de Bertrand Russell. Acho que é a terceira ou quarta vez que o releio. Gosto imensamente deste livro de Russell, notadamente dos retratos de memória que dão título à obra. Nestes se evidenciam traços fundamentais da sua personalidade, como é de resto comum na escrita ensaística. A pretexto de falar de outros, ou de matéria alheia, o ensaísta se denuncia e se analisa, ainda quando não o declare. Mas voltarei mais adiante a esses retratos. Quero antes ressaltar outros aspectos da obra. O primeiro que me ocorre é na verdade uma frustração: gostaria de ler esse conjunto de ensaios e artigos na língua nativa do autor. Infelizmente, nunca consegui encontrar esses retratos em edição inglesa. Admirador do estilo penetrante, espirituoso e não raro mordente de Russell, preferiria ler esses escritos liberto da mediação importuna, embora inevitável, de Brenno Silveira, o tradutor. Já que me refiro às qualidades estilísticas de Russell, o melhor é dar a palavra ao próprio, que numa breve passagem, modelo de economia e precisão, exprime de modo incomparável o que não alcanço adequadamente parafrasear. Dando um exemplo de como escrever bem, eis o que diz:
“Tomemos uma frase como a seguinte, que poderia ocorrer numa obra de sociologia: ´As criaturas humanas só se acham completamente isentas de certos padrões de comportamento indesejáveis quando determinados pré-requisitos, não satisfeitos salvo numa pequena porcentagem de casos concretos, se combinam, mediante o concurso fortuito de circunstâncias favoráveis, congênitas ou ambientais, para produzir um indivíduo em quem muitos fatores se afastam, de maneira socialmente vantajosa, da norma geral`. Vejamos se podemos verter essa sentença para a nossa língua. Sugiro a seguinte tradução: ´Todos os homens são patifes, ou pelo menos quase todos. Os homens que não o são devem ter tido uma sorte pouco comum, tanto em seu nascimento quanto em sua educação`.” (p. 192).

A primeira versão, vertida em estilo abominável, é a dominante, quando não imperativa, na produção acadêmica que conheço. Se nossas universidades educassem de fato, deveriam submeter os estudantes, tantos já diplomados como mestres, doutores e outros enfeites, a um treinamento estilístico baseado em textos de Russell, Lewis Coser, Edmund Wilson, Shaw, Isaiah Berlin, Machado de Assis, Mário de Andrade, Gilberto Freyre (estes, Mário e Gilberto, com reservas) Antonio Candido, gente desse calibre. O resto é poeira acadêmica.

Vários ensaios de Russell, sobretudo os de tom mais autobiográfico, acentuam a solidão e isolamento que viveu em momentos cruciais de sua longa e admirável existência. A julgar por certas indicações que fornece – ora implícita, ora explicitamente – a infância e boa parte da juventude foram etapas de solidão atormentada. Na raiz de tudo pulsa surdamente um ambiente familiar de corte puritano e austero. O metro de tais opressões, puritanismo e austeridade, pareceria hoje absolutamente inconcebível se ligeiramente ponderasse o abismo que opõe a infância vitoriana de um rebento da alta aristocracia inglesa à permissividade narcisista do presente.

No ensaio de abertura, intitulado “Adaptação – uma síntese autobiográfica”, ele começa precisamente ressaltando a profunda diferença de valores observável entre o mundo anterior à Primeira Guerra, do qual fazia parte, e o posterior. Se já então era flagrante o abismo entre uma época e outra, o que dizer da vitoriana confrontada com a atual? A eclosão da Guerra, ponto de ruptura entre dois séculos e expressões de vida e mentalidade, impele Russell a uma decisão ética e política de grande risco e coragem: a militância pacifista dentro do país que era então a maior potência mundial. Isso lhe custou não apenas provações excepcionais, como o risco de linchamento e prisão efetiva, mas também um novo mergulho na solidão e isolamento. Como em toda guerra, seja justa ou injusta, a audácia de se pronunciar publicamente como pacifista forçou-o à perda de grandes amizades feitas durante seus anos de formação filosófica e científica em Cambridge.
É de fato extraordinário considerar que interveio dramaticamente na cena política numa idade, próxima dos quarenta, em que muitos estão já se recolhendo ao cultivo de seus jardins. Pois importa salientar que até então sua vida ativa, para não dizer mental, se concentrara em estudos de alta abstração lógica e matemática. Noutras palavras, Russell vivia numa espécie de mundo à parte, imerso numa atmosfera que se rompe bruscamente ao impacto brutal da Primeira Guerra.

Contrariando a experiência corrente, o esgotamento histórico do mundo em que se formou não o converteu em um nostálgico paralisado em face da hostilidade do presente. Sua personalidade combativa e generosa moveu-o para dentro do mundo que tanto o horrorizava numa sucessão de tumultos destrutivos sem paralelo. Mas é de se notar o quanto a apreciação nua e profunda da realidade humana tingiu sua perspectiva com linhas de sombra que ora beiram o desespero, ora a futilidade da condição humana.

Russell empenha-se na ação coletiva produzindo a partir daí uma obra de inspiração social, ou de filosofia social, distanciando-se assim das pesquisas e estudos abstratos que definiram a orientação fundamental da primeira etapa de sua obra. Não penso porém que seu alinhamento militante tenha abolido sua solidão, sequer afetado substancialmente seu individualismo irredutível. Sendo um produto intelectual do liberalismo inglês da era vitoriana, portanto de uma expressão de liberalismo jamais imaginável no Brasil, antes como ainda hoje, e por isso de ordinário incompreendido, Russell encarnou os valores fundamentais do indivíduo. Tal filiação e coerência, levadas ao extremo de suas consequências, concorreu para que se tornasse um dos primeiros e mais impenitentes críticos de Marx e do comunismo numa época em que o conjunto da intelligentsia ocidental era no mínimo simpatizante ou companheira de viagem desta ideologia que tão poderosamente marcou o século vinte.

Isso novamente custou-lhe muito combate, incompreensão e antipatia. Lembro-me de que quando morreu em 1970, plenamente lúcido e militante, apesar dos 98 anos de idade, Luiz Carlos Maciel, então guru supremo da contracultura tupiniquim, saudou-o como o último liberal. O tom do necrológio era de confessada admiração. Não obstante, valia supostamente como um atestado de óbito do liberalismo e da mais alta tradição racionalista. Argumentos ideológicos à parte, basta apreciar superficialmente onde acabaram a contracultura e seu guru tropicalista supremo.
Penso que não seria inexato condensar a obra de filosofia social de Russell no binômio racionalismo e liberalismo. Fiel a essa orientação substancial, procedeu como crítico impenitente e destemido das diversas ideologias e movimentos que tingiram de luta e sangue seu longo processo de vida. Já observei acima sua condição de crítico pioneiro de Marx – além de Hegel, inspirador idealista do materialismo marxista – e do comunismo.

Embora reformador libertário no campo da pedagogia, teve sempre a lucidez de se opor a delírios românticos direta ou indiretamente vinculados ao ideário de Rousseau. Como reformador pedagógico, Russell também amargou muita incompreensão repressiva. Opondo-se à tradição puritana em que se formou, pois sentiu na própria pele os danos que os excessos repressivos produzem, abraçou de início ideais libertários extremos na escola que fundou em parceria com sua segunda mulher. A experiência, todavia, logo lhe revelou o quanto se enganara acerca das virtudes humanas espelhadas no comportamento das crianças que educava. O resultado prático de tal experiência consistiu na adoção de normas pedagógicas baseadas no reconhecimento da necessidade de autoridade e disciplina ou, noutras palavras, na prescrição de limites ao exercício da liberdade. Que pedagogia atual postula e aplica de fato os princípios da autoridade e da disciplina? O que hoje prevalece é a pedagogia orientada para a formação de consumidores servilmente atados aos padrões narcisistas e hedonistas correntes. O mais grave é que essa pedagogia desastrosa é inoculada nas crianças e adolescentes em nome da liberdade e de uma aprendizagem baseada nos métodos do prazer e do mínimo esforço. Olhem dentro e fora das escolas o mundo que estamos criando.

Quanto à sua convicção racionalista, importa antes de tudo sublinhar que jamais concebeu o racionalista como um indivíduo isento de ou avesso à paixão. Circula por aí uma compreensão estreita e deformante do racionalista como um ser sem sangue e paixão. O racionalismo professado por Russell, assim como por todo racionalista autêntico, nada tem a ver com essa representação grosseira. Razão e paixão não são termos excludentes, mas complementares porque integram a substância do humanismo verdadeiro. O diferenciador racionalista desta combinação consiste na prioridade ontológica e cognitiva conferida à razão. A ela cabe a função reitora e esclarecedora da realidade e da experiência humana, que é indissociável da nossa natureza afetiva.

Um aspecto do racionalismo de Russell que no entanto me parece inconsistente, ou inviável, radica na sua presunção, ou convicção, de que seres humanos podem ser reformados mediante artifícios lógico-racionais. Para ser mais exato, há aí antes de tudo uma contradição flagrante, se se considera que ele é um homem muito cético sobre os limites positivos da nossa natureza. Essa contradição recorre em muitos dos seus ensaios, particularmente naqueles de intenção reformadora de nossos hábitos e costumes vinculados a questões como a felicidade, o casamento e a moral, as normas de condução da nossa existência rotineira. Friso esse dado contraditório por observar a frequência de uma argumentação redutível aos termos seguintes: somos infelizes e cruéis porque nos conduzimos de modo irracional, porque somos incapazes de aplicar meios lógicos à desordem da nossa vida afetiva. Depois de diagnosticar esses males humanos aparentemente insanáveis, prescreve normas de conduta baseadas na presunção de que seria possível induzir um quinhão ponderável de lógica à nossa irracionalidade que me parece lamentavelmente constitutiva. Quanto a isso, confesso concordar bem mais com pessimistas como Schopenhauer e Machado de Assis, com céticos como Montaigne, ou pessimistas reformadores como Freud.

Volto à questão do estilo, ou às normas regentes da boa escrita, porque escapou-me um dado que muito prezo ser de concordância com suas indicações. Aludindo à influência que quando muito jovem sofreu de Logan Pearsall Smith, frisa que o conselho mais enérgico deste consistia na recomendação de que sempre reescrevesse seus textos. Embora procurasse obedientemente segui-lo, logo a experiência alertou-o para o fato de que sua primeira redação era sempre a melhor. Sorte dele, que assim foi poupado dos tormentos de uma escrita laboriosa, como o reconhecem e confessam escritores de composição pautada pela letra atribulada. Sorte igualmente minha, que também me contento com a primeira redação. Embora privado de conselho alheio na idade em que precisei de modelos, cedo constatei que digo o que quero ou preciso já na primeira redação. Pena que seja tão preguiçoso, ou tão pouco dotado para produzir obra de real qualidade.

Outro aspecto da obra de Russell com o qual integralmente me identifico é o atinente a sua crítica do nacionalismo. Contemporâneo combatente e horrorizado das duas mais terríveis guerras da história, ambas deflagradas em nome de uma concepção insana de nacionalismo, tinha motivos ideológicos suficientes para hostilizá-lo. Preciso admitir que outros homens tão lúcidos quanto ele os tiveram e todavia adotaram argumentos opostos. Russell acreditava, com absoluta razão, que o nacionalismo constituía uma ideologia insidiosa de hostilidade e luta constante entre os povos. Na medida em que funciona como agente legitimador da agressividade humana, atua como uma força ideológica poderosa demais para ser ignorada por um autêntico aspirante à paz entre as nações, ou como o reformador pedagógico que foi.

Em Retratos de Memória, assim como em outras obras, ele afronta o inimigo. A esse propósito, expõe um argumento lógico e ideológico que adapto para uso de um exemplo próprio. Se alguém afirma que o Brasil tem oito milhões e meio de área territorial, está apenas enunciando um fato objetivo, portanto isento de implicação ideológica. Se todavia altera o enunciado, declarando que a área territorial brasileira é a quinta maior do mundo, salta do terreno dos fatos para o dos enunciados ideológicos. Infelizmente, no tempo em que lutou por reformas pedagógicas e políticas, talvez ainda mais no presente, somos desde crianças treinados pela mídia e pelo sistema educacional a apreender a realidade de acordo com o segundo enunciado, não com o primeiro. Como razoavelmente pretender que as nações do mundo se relacionem de acordo com os ideais pacíficos que contraditoriamente alegamos desejar?

Ideólogos do nacionalismo, atuantes em países periféricos como o Brasil, tendem a nele acentuar traços de uma ideologia positiva, e mesmo necessária para que tais países realizem sua integral autonomia econômica e cultural contra a hegemonia dos países centrais. Este aspecto do nacionalismo não é de fato contemplado por Russell, que aparenta concebê-lo exclusivamente como uma força a serviço da agressão entre os povos. Foi por isso que coerentemente empenhou-se pela criação de organismos reguladores, como a ONU, de composição e funcionamento internacional, ou transcendentes aos limites e interesses de cada nação individualmente considerada. Organismos de natureza semelhante foram efetivamente criados. Mas sabemos que neles prevalecem os argumentos de poder, não raro de força, acionados pelas nações hegemônicas. Em suma, dando um salto para dentro do presente, pouco progredimos no que se refere à condução das disputas e conflitos entre as nações. Talvez o problema tenha de fato se agravado, já que é irrecusável o imenso avanço objetivo dos processos globalizantes, sobretudo na esfera das relações econômicas e comunicacionais. Noutras palavras, enquanto de um lado assistimos à aceleração irreversível de tais processos, de outro persistimos no cultivo de ideais particulares, e especificamente nacionalistas, nos modos de compreender e conceituar as relações entre povos e culturas.

Arremato estas notas improvisadas com um comentário referente aos retratos de memória que emprestam título à obra. Antes de tudo, são o ponto alto deste variado e instrutivo conjunto de ensaios e artigos . Ocupando a parte central do volume, compreendem nove capítulos onde se perfilam intelectuais acadêmicos de Cambridge, com farta matéria ilustrativa da legendária excentricidade britânica, e grandes personalidades do mundo cultural como Shaw, H. G. Wells, George Santayana, Whitehead, Sidney e Beatrice Webb, Joseph Conrad e D. H. Lawrence. Embora sejam todos merecedores de um registro crítico acurado, o que não o é caso destas notas, seleciono o que julgo mais condizente com os limites do meu interesse e a relevância da matéria considerada pelo ensaísta: Conrad. As páginas que Russell lhe dedica são de admiração comovida. Apesar de se confessar admirador da obra de Conrad - da cabeça aos pés um gentleman polonês, nas palavras do próprio Russell, ou um gentleman anglo-polaco, no dizer mais preciso de outros – Russell veio a conhecê-lo tardiamente graças à intermediação de Lady Ottoline Morrell, amiga de ambos.

Abro parêntese oportuno para dedicar algumas palavras a essa dama ilustre das letras inglesas famosa não por dotes literários, mas por privar do convívio privilegiado dos contemporâneos londrinos mais ilustres. Em suma, importa não como autora de uma obra, mas como expressão de uma personalidade. A julgar pelo testemunho de Stephen Spender e Michael Holroyd – biógrafo de Lytton Strachey, do Grupo de Bloomsbury e por conseguinte dos contemporâneos aqui considerados – distinguia-se por ser mais excêntrica que a média da excentricidade inglesa. Mais que amiga de Russell, corrigindo a discreta identificação a que procede no ensaio que comento, foi sua amante. E não uma qualquer, mas aquela que lhe transformou a vida.

Viveram uma relação amorosa tão intensa que Russell, no auge da paixão, lhe escrevia diariamente. Lady Morrell figura como personagem de certo destaque no belo e pungente filme que Christopher Hampton escreveu e dirigiu sobre Carrington, que dá título ao filme, e Lytton Strachey. Numa cena imperdível, de típico humor inglês, ela, interpretada por Penelope Wilton, empenha-se de todos os modos em persuadir Carrington a ceder ao tenaz assédio sexual do pintor Mark Gertler renunciando assim à virgindade. Sendo, ela e Lytton, bem mais velhos que Carrington, este sensatamente observa que ambos viveram drama semelhante quando mais jovens. Lady Morrell retruca (com palavras minhas, pois cito de memória gasta): But that is precisely my point. One must believe in some progress. Num outro filme, Tom and Viv, sobre as relações atormentadas entre T. S. Eliot e sua primeira esposa, Vivienne Haigh-Wood, agravadas pela participação do sedutor Bertrand Russell, Lady Morrell participa discretamente do enredo.
Mas concluo voltando a Conrad. Além de ressaltar o moralismo severo e o conservadorismo político de Conrad, Russell observa que a maioria das suas opiniões eram divergentes. Concordavam porém acerca de um ponto fundamental, que se refere à concepção da vida e do destino humanos. Foi isso o que produziu um vínculo profundo entre ambos. Aqui é o momento em que sei que pela segunda vez devo passar a palavra a Russell, pois não saberia parafraseá-lo à altura do que escreve:
“Senti, embora não saiba se ele teria aceitado tal imagem, que ele achava a vida humana tolerável moralmente como sendo uma caminhada perigosa sobre fina crosta de lava recém arrefecida que poderia, a qualquer momento, partir-se e fazer com que os descuidados mergulhassem em abismos incandescentes. Tinha plena consciência das várias formas de ardente loucura a que os homens estão sujeitos, e era isso que lhe dava uma crença tão profunda na importância da disciplina. Talvez se pudesse dizer que o seu ponto de vista era a antítese do de Rousseau: O homem nasce acorrentado, mas pode libertar-se. Libertar-se, como creio que Conrad o teria dito, não por dar rédeas aos seus impulsos, não por ser casual e descontrolado, mas subjugando seus impulsos exteriores e dirigindo-os para um propósito predominante” (p. 76).

Poucos escritores mergulharam tão profundamente quanto Conrad nos abismos humanos para deles retornarem com essa visão atormentada e estoicamente vivida e refletida. Quem conhece sua obra, notadamente O coração das trevas, sabe o que aqui vai apenas sugerido. Russell com certeza o sabia, pois a experiência apaixonada, mas isenta de complacência, com certeza iluminou também na sua consciência verdades penosas semelhantes àquelas espelhadas na biografia e na obra de Conrad.