sábado, 1 de outubro de 2011

Bertrand Russell



Leitor viciado em releitura, como prazerosamente me confesso, volto a incorrer em mais uma: Retratos de Memória e outros ensaios, de Bertrand Russell. Acho que é a terceira ou quarta vez que o releio. Gosto imensamente deste livro de Russell, notadamente dos retratos de memória que dão título à obra. Nestes se evidenciam traços fundamentais da sua personalidade, como é de resto comum na escrita ensaística. A pretexto de falar de outros, ou de matéria alheia, o ensaísta se denuncia e se analisa, ainda quando não o declare. Mas voltarei mais adiante a esses retratos. Quero antes ressaltar outros aspectos da obra. O primeiro que me ocorre é na verdade uma frustração: gostaria de ler esse conjunto de ensaios e artigos na língua nativa do autor. Infelizmente, nunca consegui encontrar esses retratos em edição inglesa. Admirador do estilo penetrante, espirituoso e não raro mordente de Russell, preferiria ler esses escritos liberto da mediação importuna, embora inevitável, de Brenno Silveira, o tradutor. Já que me refiro às qualidades estilísticas de Russell, o melhor é dar a palavra ao próprio, que numa breve passagem, modelo de economia e precisão, exprime de modo incomparável o que não alcanço adequadamente parafrasear. Dando um exemplo de como escrever bem, eis o que diz:
“Tomemos uma frase como a seguinte, que poderia ocorrer numa obra de sociologia: ´As criaturas humanas só se acham completamente isentas de certos padrões de comportamento indesejáveis quando determinados pré-requisitos, não satisfeitos salvo numa pequena porcentagem de casos concretos, se combinam, mediante o concurso fortuito de circunstâncias favoráveis, congênitas ou ambientais, para produzir um indivíduo em quem muitos fatores se afastam, de maneira socialmente vantajosa, da norma geral`. Vejamos se podemos verter essa sentença para a nossa língua. Sugiro a seguinte tradução: ´Todos os homens são patifes, ou pelo menos quase todos. Os homens que não o são devem ter tido uma sorte pouco comum, tanto em seu nascimento quanto em sua educação`.” (p. 192).

A primeira versão, vertida em estilo abominável, é a dominante, quando não imperativa, na produção acadêmica que conheço. Se nossas universidades educassem de fato, deveriam submeter os estudantes, tantos já diplomados como mestres, doutores e outros enfeites, a um treinamento estilístico baseado em textos de Russell, Lewis Coser, Edmund Wilson, Shaw, Isaiah Berlin, Machado de Assis, Mário de Andrade, Gilberto Freyre (estes, Mário e Gilberto, com reservas) Antonio Candido, gente desse calibre. O resto é poeira acadêmica.

Vários ensaios de Russell, sobretudo os de tom mais autobiográfico, acentuam a solidão e isolamento que viveu em momentos cruciais de sua longa e admirável existência. A julgar por certas indicações que fornece – ora implícita, ora explicitamente – a infância e boa parte da juventude foram etapas de solidão atormentada. Na raiz de tudo pulsa surdamente um ambiente familiar de corte puritano e austero. O metro de tais opressões, puritanismo e austeridade, pareceria hoje absolutamente inconcebível se ligeiramente ponderasse o abismo que opõe a infância vitoriana de um rebento da alta aristocracia inglesa à permissividade narcisista do presente.

No ensaio de abertura, intitulado “Adaptação – uma síntese autobiográfica”, ele começa precisamente ressaltando a profunda diferença de valores observável entre o mundo anterior à Primeira Guerra, do qual fazia parte, e o posterior. Se já então era flagrante o abismo entre uma época e outra, o que dizer da vitoriana confrontada com a atual? A eclosão da Guerra, ponto de ruptura entre dois séculos e expressões de vida e mentalidade, impele Russell a uma decisão ética e política de grande risco e coragem: a militância pacifista dentro do país que era então a maior potência mundial. Isso lhe custou não apenas provações excepcionais, como o risco de linchamento e prisão efetiva, mas também um novo mergulho na solidão e isolamento. Como em toda guerra, seja justa ou injusta, a audácia de se pronunciar publicamente como pacifista forçou-o à perda de grandes amizades feitas durante seus anos de formação filosófica e científica em Cambridge.
É de fato extraordinário considerar que interveio dramaticamente na cena política numa idade, próxima dos quarenta, em que muitos estão já se recolhendo ao cultivo de seus jardins. Pois importa salientar que até então sua vida ativa, para não dizer mental, se concentrara em estudos de alta abstração lógica e matemática. Noutras palavras, Russell vivia numa espécie de mundo à parte, imerso numa atmosfera que se rompe bruscamente ao impacto brutal da Primeira Guerra.

Contrariando a experiência corrente, o esgotamento histórico do mundo em que se formou não o converteu em um nostálgico paralisado em face da hostilidade do presente. Sua personalidade combativa e generosa moveu-o para dentro do mundo que tanto o horrorizava numa sucessão de tumultos destrutivos sem paralelo. Mas é de se notar o quanto a apreciação nua e profunda da realidade humana tingiu sua perspectiva com linhas de sombra que ora beiram o desespero, ora a futilidade da condição humana.

Russell empenha-se na ação coletiva produzindo a partir daí uma obra de inspiração social, ou de filosofia social, distanciando-se assim das pesquisas e estudos abstratos que definiram a orientação fundamental da primeira etapa de sua obra. Não penso porém que seu alinhamento militante tenha abolido sua solidão, sequer afetado substancialmente seu individualismo irredutível. Sendo um produto intelectual do liberalismo inglês da era vitoriana, portanto de uma expressão de liberalismo jamais imaginável no Brasil, antes como ainda hoje, e por isso de ordinário incompreendido, Russell encarnou os valores fundamentais do indivíduo. Tal filiação e coerência, levadas ao extremo de suas consequências, concorreu para que se tornasse um dos primeiros e mais impenitentes críticos de Marx e do comunismo numa época em que o conjunto da intelligentsia ocidental era no mínimo simpatizante ou companheira de viagem desta ideologia que tão poderosamente marcou o século vinte.

Isso novamente custou-lhe muito combate, incompreensão e antipatia. Lembro-me de que quando morreu em 1970, plenamente lúcido e militante, apesar dos 98 anos de idade, Luiz Carlos Maciel, então guru supremo da contracultura tupiniquim, saudou-o como o último liberal. O tom do necrológio era de confessada admiração. Não obstante, valia supostamente como um atestado de óbito do liberalismo e da mais alta tradição racionalista. Argumentos ideológicos à parte, basta apreciar superficialmente onde acabaram a contracultura e seu guru tropicalista supremo.
Penso que não seria inexato condensar a obra de filosofia social de Russell no binômio racionalismo e liberalismo. Fiel a essa orientação substancial, procedeu como crítico impenitente e destemido das diversas ideologias e movimentos que tingiram de luta e sangue seu longo processo de vida. Já observei acima sua condição de crítico pioneiro de Marx – além de Hegel, inspirador idealista do materialismo marxista – e do comunismo.

Embora reformador libertário no campo da pedagogia, teve sempre a lucidez de se opor a delírios românticos direta ou indiretamente vinculados ao ideário de Rousseau. Como reformador pedagógico, Russell também amargou muita incompreensão repressiva. Opondo-se à tradição puritana em que se formou, pois sentiu na própria pele os danos que os excessos repressivos produzem, abraçou de início ideais libertários extremos na escola que fundou em parceria com sua segunda mulher. A experiência, todavia, logo lhe revelou o quanto se enganara acerca das virtudes humanas espelhadas no comportamento das crianças que educava. O resultado prático de tal experiência consistiu na adoção de normas pedagógicas baseadas no reconhecimento da necessidade de autoridade e disciplina ou, noutras palavras, na prescrição de limites ao exercício da liberdade. Que pedagogia atual postula e aplica de fato os princípios da autoridade e da disciplina? O que hoje prevalece é a pedagogia orientada para a formação de consumidores servilmente atados aos padrões narcisistas e hedonistas correntes. O mais grave é que essa pedagogia desastrosa é inoculada nas crianças e adolescentes em nome da liberdade e de uma aprendizagem baseada nos métodos do prazer e do mínimo esforço. Olhem dentro e fora das escolas o mundo que estamos criando.

Quanto à sua convicção racionalista, importa antes de tudo sublinhar que jamais concebeu o racionalista como um indivíduo isento de ou avesso à paixão. Circula por aí uma compreensão estreita e deformante do racionalista como um ser sem sangue e paixão. O racionalismo professado por Russell, assim como por todo racionalista autêntico, nada tem a ver com essa representação grosseira. Razão e paixão não são termos excludentes, mas complementares porque integram a substância do humanismo verdadeiro. O diferenciador racionalista desta combinação consiste na prioridade ontológica e cognitiva conferida à razão. A ela cabe a função reitora e esclarecedora da realidade e da experiência humana, que é indissociável da nossa natureza afetiva.

Um aspecto do racionalismo de Russell que no entanto me parece inconsistente, ou inviável, radica na sua presunção, ou convicção, de que seres humanos podem ser reformados mediante artifícios lógico-racionais. Para ser mais exato, há aí antes de tudo uma contradição flagrante, se se considera que ele é um homem muito cético sobre os limites positivos da nossa natureza. Essa contradição recorre em muitos dos seus ensaios, particularmente naqueles de intenção reformadora de nossos hábitos e costumes vinculados a questões como a felicidade, o casamento e a moral, as normas de condução da nossa existência rotineira. Friso esse dado contraditório por observar a frequência de uma argumentação redutível aos termos seguintes: somos infelizes e cruéis porque nos conduzimos de modo irracional, porque somos incapazes de aplicar meios lógicos à desordem da nossa vida afetiva. Depois de diagnosticar esses males humanos aparentemente insanáveis, prescreve normas de conduta baseadas na presunção de que seria possível induzir um quinhão ponderável de lógica à nossa irracionalidade que me parece lamentavelmente constitutiva. Quanto a isso, confesso concordar bem mais com pessimistas como Schopenhauer e Machado de Assis, com céticos como Montaigne, ou pessimistas reformadores como Freud.

Volto à questão do estilo, ou às normas regentes da boa escrita, porque escapou-me um dado que muito prezo ser de concordância com suas indicações. Aludindo à influência que quando muito jovem sofreu de Logan Pearsall Smith, frisa que o conselho mais enérgico deste consistia na recomendação de que sempre reescrevesse seus textos. Embora procurasse obedientemente segui-lo, logo a experiência alertou-o para o fato de que sua primeira redação era sempre a melhor. Sorte dele, que assim foi poupado dos tormentos de uma escrita laboriosa, como o reconhecem e confessam escritores de composição pautada pela letra atribulada. Sorte igualmente minha, que também me contento com a primeira redação. Embora privado de conselho alheio na idade em que precisei de modelos, cedo constatei que digo o que quero ou preciso já na primeira redação. Pena que seja tão preguiçoso, ou tão pouco dotado para produzir obra de real qualidade.

Outro aspecto da obra de Russell com o qual integralmente me identifico é o atinente a sua crítica do nacionalismo. Contemporâneo combatente e horrorizado das duas mais terríveis guerras da história, ambas deflagradas em nome de uma concepção insana de nacionalismo, tinha motivos ideológicos suficientes para hostilizá-lo. Preciso admitir que outros homens tão lúcidos quanto ele os tiveram e todavia adotaram argumentos opostos. Russell acreditava, com absoluta razão, que o nacionalismo constituía uma ideologia insidiosa de hostilidade e luta constante entre os povos. Na medida em que funciona como agente legitimador da agressividade humana, atua como uma força ideológica poderosa demais para ser ignorada por um autêntico aspirante à paz entre as nações, ou como o reformador pedagógico que foi.

Em Retratos de Memória, assim como em outras obras, ele afronta o inimigo. A esse propósito, expõe um argumento lógico e ideológico que adapto para uso de um exemplo próprio. Se alguém afirma que o Brasil tem oito milhões e meio de área territorial, está apenas enunciando um fato objetivo, portanto isento de implicação ideológica. Se todavia altera o enunciado, declarando que a área territorial brasileira é a quinta maior do mundo, salta do terreno dos fatos para o dos enunciados ideológicos. Infelizmente, no tempo em que lutou por reformas pedagógicas e políticas, talvez ainda mais no presente, somos desde crianças treinados pela mídia e pelo sistema educacional a apreender a realidade de acordo com o segundo enunciado, não com o primeiro. Como razoavelmente pretender que as nações do mundo se relacionem de acordo com os ideais pacíficos que contraditoriamente alegamos desejar?

Ideólogos do nacionalismo, atuantes em países periféricos como o Brasil, tendem a nele acentuar traços de uma ideologia positiva, e mesmo necessária para que tais países realizem sua integral autonomia econômica e cultural contra a hegemonia dos países centrais. Este aspecto do nacionalismo não é de fato contemplado por Russell, que aparenta concebê-lo exclusivamente como uma força a serviço da agressão entre os povos. Foi por isso que coerentemente empenhou-se pela criação de organismos reguladores, como a ONU, de composição e funcionamento internacional, ou transcendentes aos limites e interesses de cada nação individualmente considerada. Organismos de natureza semelhante foram efetivamente criados. Mas sabemos que neles prevalecem os argumentos de poder, não raro de força, acionados pelas nações hegemônicas. Em suma, dando um salto para dentro do presente, pouco progredimos no que se refere à condução das disputas e conflitos entre as nações. Talvez o problema tenha de fato se agravado, já que é irrecusável o imenso avanço objetivo dos processos globalizantes, sobretudo na esfera das relações econômicas e comunicacionais. Noutras palavras, enquanto de um lado assistimos à aceleração irreversível de tais processos, de outro persistimos no cultivo de ideais particulares, e especificamente nacionalistas, nos modos de compreender e conceituar as relações entre povos e culturas.

Arremato estas notas improvisadas com um comentário referente aos retratos de memória que emprestam título à obra. Antes de tudo, são o ponto alto deste variado e instrutivo conjunto de ensaios e artigos . Ocupando a parte central do volume, compreendem nove capítulos onde se perfilam intelectuais acadêmicos de Cambridge, com farta matéria ilustrativa da legendária excentricidade britânica, e grandes personalidades do mundo cultural como Shaw, H. G. Wells, George Santayana, Whitehead, Sidney e Beatrice Webb, Joseph Conrad e D. H. Lawrence. Embora sejam todos merecedores de um registro crítico acurado, o que não o é caso destas notas, seleciono o que julgo mais condizente com os limites do meu interesse e a relevância da matéria considerada pelo ensaísta: Conrad. As páginas que Russell lhe dedica são de admiração comovida. Apesar de se confessar admirador da obra de Conrad - da cabeça aos pés um gentleman polonês, nas palavras do próprio Russell, ou um gentleman anglo-polaco, no dizer mais preciso de outros – Russell veio a conhecê-lo tardiamente graças à intermediação de Lady Ottoline Morrell, amiga de ambos.

Abro parêntese oportuno para dedicar algumas palavras a essa dama ilustre das letras inglesas famosa não por dotes literários, mas por privar do convívio privilegiado dos contemporâneos londrinos mais ilustres. Em suma, importa não como autora de uma obra, mas como expressão de uma personalidade. A julgar pelo testemunho de Stephen Spender e Michael Holroyd – biógrafo de Lytton Strachey, do Grupo de Bloomsbury e por conseguinte dos contemporâneos aqui considerados – distinguia-se por ser mais excêntrica que a média da excentricidade inglesa. Mais que amiga de Russell, corrigindo a discreta identificação a que procede no ensaio que comento, foi sua amante. E não uma qualquer, mas aquela que lhe transformou a vida.

Viveram uma relação amorosa tão intensa que Russell, no auge da paixão, lhe escrevia diariamente. Lady Morrell figura como personagem de certo destaque no belo e pungente filme que Christopher Hampton escreveu e dirigiu sobre Carrington, que dá título ao filme, e Lytton Strachey. Numa cena imperdível, de típico humor inglês, ela, interpretada por Penelope Wilton, empenha-se de todos os modos em persuadir Carrington a ceder ao tenaz assédio sexual do pintor Mark Gertler renunciando assim à virgindade. Sendo, ela e Lytton, bem mais velhos que Carrington, este sensatamente observa que ambos viveram drama semelhante quando mais jovens. Lady Morrell retruca (com palavras minhas, pois cito de memória gasta): But that is precisely my point. One must believe in some progress. Num outro filme, Tom and Viv, sobre as relações atormentadas entre T. S. Eliot e sua primeira esposa, Vivienne Haigh-Wood, agravadas pela participação do sedutor Bertrand Russell, Lady Morrell participa discretamente do enredo.
Mas concluo voltando a Conrad. Além de ressaltar o moralismo severo e o conservadorismo político de Conrad, Russell observa que a maioria das suas opiniões eram divergentes. Concordavam porém acerca de um ponto fundamental, que se refere à concepção da vida e do destino humanos. Foi isso o que produziu um vínculo profundo entre ambos. Aqui é o momento em que sei que pela segunda vez devo passar a palavra a Russell, pois não saberia parafraseá-lo à altura do que escreve:
“Senti, embora não saiba se ele teria aceitado tal imagem, que ele achava a vida humana tolerável moralmente como sendo uma caminhada perigosa sobre fina crosta de lava recém arrefecida que poderia, a qualquer momento, partir-se e fazer com que os descuidados mergulhassem em abismos incandescentes. Tinha plena consciência das várias formas de ardente loucura a que os homens estão sujeitos, e era isso que lhe dava uma crença tão profunda na importância da disciplina. Talvez se pudesse dizer que o seu ponto de vista era a antítese do de Rousseau: O homem nasce acorrentado, mas pode libertar-se. Libertar-se, como creio que Conrad o teria dito, não por dar rédeas aos seus impulsos, não por ser casual e descontrolado, mas subjugando seus impulsos exteriores e dirigindo-os para um propósito predominante” (p. 76).

Poucos escritores mergulharam tão profundamente quanto Conrad nos abismos humanos para deles retornarem com essa visão atormentada e estoicamente vivida e refletida. Quem conhece sua obra, notadamente O coração das trevas, sabe o que aqui vai apenas sugerido. Russell com certeza o sabia, pois a experiência apaixonada, mas isenta de complacência, com certeza iluminou também na sua consciência verdades penosas semelhantes àquelas espelhadas na biografia e na obra de Conrad.

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