segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Marco teórico



Marcos, o teórico

Marcos era um verboso nato, um ser vocacionado para a fala. Se nordestino fala pelos cotovelos, no geral sem juntar coisa com coisa, Marcos falava bonito, altissonante e, milagre dos milagres no reino do discurso vazio, ainda cometia a façanha de juntar coisa com coisa. Pelo menos era o que pensava e seus ouvintes extasiados confirmavam.

Não bastasse a vocação, também sobreveio a ocasião que, como bem dizem, faz o ladrão. Além do seu talento verbal, Marcos teve a fortuna de ser aluno e afilhado do promotor Valêncio Costa. Só aqueles raros que conheceram Valêncio Costa na intimidade podem melhor ajuizar sobre seus dotes verbais, sobre o preciosismo e os primores de um discurso que vertia neve no sertão e ensolarava os invernos russos, pintava revoluções sem sangue e ensurdecia os mosteiros com sua verve carnavalesca. Valêncio Costa, dizia-me seu biógrafo César Melo, era o fenômeno supremo da arte retórica. Aliás, reza a lenda que César Melo é também afilhado do insuperável Valêncio Costa.

Marcos cresceu nos bancos escolares imitando a verve e os Alpes verbais de Valêncio Costa, que foi seu professor de português. Marcos aprendeu de cor os cantos dos Lusíadas, que afoitamente recitava nos bares e festas de amigos. Ninguém os entendia, nem o léxico nem o conteúdo épico, mas todos babavam deslumbrados diante daquela torrente sem pausa. Valêncio mirava o discípulo e vaidosamente pontuava: “esse menino vai longe”, com o semblante heroico de quem fosse o transporte que elevaria Marcos ao cume dos Alpes verbais.

Confiante no seu talento verbal, Marcos cedo aprendeu a teorizar sobre tudo. Se era Copa do Mundo e ia torcer com os amigos nos bares coloridos por bandeiras brasileiras, tingidas no delírio das celebrações por bandeiras de clubes nacionais e regionais, não resistia à tentação de teorizar sobre táticas e estratégias das seleções concorrentes, sobre futebol e identidade cultural, futebol e alienação das massas, futebol e fascismo, futebol e homossexualismo, futebol e globalização, futebol e escolha racional, futebol e religião... Ninguém o ouvia, nem ele ouvia a si próprio engolido pelo furor das massas exaltadas, mas seguia teorizando no vazio, teorizando o vazio.

Marcos precisou apenas de uma hiperbólica pirueta acadêmica para saltar dos cantos dos Lusíadas para os bancos da venerável Faculdade de Direito do Recife. Depois de tudo encarar e vencer com brilho, arrancando dos mestres os mais sonoros elogios, Marcos chegou bem mais perto dos Alpes verbais ao ingressar na pós-graduação. Lá repetiu e refinou ainda mais todas as suas façanhas verbais. Transportado pelo foguete de Valêncio Costa, quando deu por si, ou por ele deram, estava plantando sua bandeira fulgurante no cume dos Alpes. Tornou-se teórico supremo da pós-graduação durante a vigência da ditadura que ironicamente fundou e promoveu programas de excelência acadêmica votados precisamente à sua contestação.

Eis que um dia Marcos, já nomeado chefe supremo da pós-graduação nacional, defrontou-se com a noite de trevas na sua travessia épica através dos reinos da epistemologia. Ia pelo campus posto em sossego, parafusando mais um discurso que à noite proferiria em louvor do Ministro da Educação, quando ouviu os clamores dos mestres e discípulos da pós empenhados numa guerra titânica. Foi quando se apercebeu de que muitas teorias lutavam pelo exercício da hegemonia acadêmica: marxista, funcionalista, estruturalista, pós-estruturalista, positivista, estrutural-funcionalista, histórico-estrutural, estrutural-histórica, anarco-conteudista, formalista, psicanalítica, carnavalesca... Simplifiquemos tudo na infalível metáfora da Torre de Babel.

Ninguém mais se entendia nas castálias da teoria acadêmica. Múltiplas e antagônicas teorias lutavam sem trégua não apenas por fundos institucionais, legitimação epistemológica e política, mas também por questões de ordem institucional rotineira, isto é, critérios de avaliação e recrutamento dos alunos, estratégias de competição e prestígio entre pares, uma luta de ordinário estendida à composição de seitas que se entredevoravam nos rituais de exame e seleção, titulação e avaliação.

Quando a crise epistemológica contaminou toda a rede das instituições pós-graduadas, o Chefe Supremo concluiu que era necessário agir com pressa e eficácia em face da pressão crescente. Convocou então Marcos, nacionalmente aclamado por seus dotes verbais, e os três gênios supremos da publicidade brasileira. Era preciso, dizia o Chefe Supremo apreensivo, dar banho no bebê salvando ambos, a água suja e o bebê. O Chefe Supremo viera do sertão, que nunca virou mar, e portanto sabia do valor precioso da água, ainda quando suja. Traduzindo o entrevero em jargão publicitário, para entendimento de todos os néscios e gênios da academia, era preciso salvar a ninhada de teorias sem todavia suprimi-la. Afinal, estamos numa democracia, certo que à moda brasileira, mas é tudo o que temos.

Foi nesse exato momento que Marcos teve um dos seus luminosos acessos verbais. Depois de falar durante uma hora sem juntar coisa com coisa, mas tudo confundindo num foguetório de causar inveja às festas de Ano Novo na praia de Copacabana, logrou acionar as turbinas intuitivas de Lúcio Siqueira, neto do venerável major Siqueira e membro maior da tríade publicitária convocada pelo Chefe Supremo. “Eureka”!, exclamou exultante Lúcio Siqueira. “Batizemos o bebê e a água suja, com o devido respeito, inspirados na genial ejaculação verbal do grande Marcos. Quero dizer, doravante o bebê e a água suja serão universalmente conhecidos no jargão acadêmico como marco teórico. Por quê? Porque singularizando Marcos expressaremos abstratamente todas as teorias concorrentes conferindo-lhes legitimidade institucional. Assim, todas serão acolhidas e reconhecidas na usina ideológica da pós-graduação. Evidentemente são moedas de valor corrente variável, isto é, umas valem mais, outras menos. Por fim, inspirados no gênio verbal de Marcos, prestar-lhe-emos o voto de imortalidade que bem merece. Eis que Marcos, o teórico, será doravante marco teórico”.

E assim nasceu marco teórico, essa figura sagrada da academia que ninguém sabe o que é. Como diria um pragmático cínico, o que importa é a função, não o ser. Importa é saber para que serve o marco teórico, embora não se saiba o que é ou ainda se funcionalmente explica alguma coisa. Se ninguém sabe o que é marco teórico, pior para ninguém. Como observou Luciano Oliveira parafraseando Ferreira Gullar, o marco teórico não foi feito para humilhar ninguém. Foi feito para imortalizar Marcos, o teórico, e sobretudo introduzir a concórdia nas seitas teóricas da academia, que podem agora guerrear em paz.

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