sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Fatos da vida



Fatos da Vida - I

O amor nascente brincava
Alheio aos fatos da vida
E à lei da matéria fria.
Brincava e amor prometia
Tudo vertendo em poesia
Enquanto a matéria austera
Ria de lado e à vera
Se espreguiçava e dormia.

O amor criança, tão belo
Solta no ar os cabelos
E o juízo também.
E brinca da pele ao pelo
Rezando com casto zelo
Jurando em total desvelo:
Sou teu e de mais ninguém.

E ia e se repetia
E a cada jura dizia
A eternidade do bem.
Até que a matéria fria
Cônscia das regras do dia
Sorriu enquanto dizia:
O amor não dura, meu bem
Embora enquanto dure
Seja o mais alto dos bens.
Nada ou ninguém recrimine.
A culpa é de ninguém.


Fatos da Vida – II

Maravilhada e despida
Ao mudo espelho ela indaga:
Diga-me lá do mais fundo
Onde a verdade palpita:
Existirá neste mundo
Mulher mais que eu bonita?
Que criatura de Deus
Humilde, vaidosa ou rica
Na linha entre a praia e o céu
É mais que eu, mais bonita?

E o espelho calado fica
A irradiar no reflexo
Toda a cegueira do sexo
Que vê o que nunca vira.
Tão certa supõe estar
Que ela se veste e um olhar
Último lança ao partir
Pra onde a espera o amado
Que crê fiel, dedicado
Qual um espelho curvado
Para a incensar, refletir.

E entanto chega o carteiro
Que lhe traz novas do amado.
Tão ávida abre o envelope
Quão célere se põe a ler:
“Amor,
O tempo em rude galope
Num passo muda tua sorte
Teu esplendor no espelho.
Mudamos de corpo e porte
E és velha como o teu velho.
Se queres o meu conselho
Sem preço, custo ou diária
E um bom bocado de sorte:
Encomenda à funerária
Teu leito de amor com a morte.


Fatos da Vida – III

Que mais eu posso fazer
Pra minorar a pobreza
Que me enriquece e cultua
Com luxo, prazer, mulher
Quando mal anda de pé
Comendo entre o chão e a mesa
Erma no esgoto da rua?
Que afinal posso eu
Ex-delinquente e plebeu
Alçado aos tronos do céu
Só porque sei bater bola?

Façamos uma campanha,
Disse o empresário ao atleta
Para abrandar seus pruridos
De Diva casta ou poeta.
A Brahma e a Parmalat
Trarão consolo à pobreza
E outro quinhão de riqueza
À tua, que já é tanta.
Se o cão não morde nem late
Se o calouro não canta
Nem sabe a bola chutar
Melhor o teu que o deles
O rabo de Carla Perez
Bem poucos podem comprar.


Epílogo

É a vida que é brutal, não o poeta
Que fere pra sanar sua ferida
Cerzindo sob a pele lacerada
A carne mais humana e repartida.

E aspira (ou aspirava) a um outro mundo
Um outro redivivo ou recriado.
Medindo sempre o raso contra o fundo
Vê hoje o quanto estava enganado.

Se a vida afinal sempre transborda
A linha em que a retêm nossos conceitos
Falar pro enforcado em forca e corda
É insensato ou pura falta de respeito.

A vida é que é brutal, não o poeta
Que a sonha iluminada e redimida
Mas se é fato que rima com profeta
A rima é mero som, não muda a vida.

O poema é apenas um poema
E a dor me dói privada e impressentida.
O mais não vale a pena e entanto pesa
O peso que é viver sofrendo a vida.

Porto de Galinhas, 23 a 28 de junho de 1998.

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