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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sarau para Vinícius


Para Betania e Sandra

Vinícius, teus tantos vícios
São nossos, também são meus.
Se o amor é também suplícios
A lua ilumina os céus.

Por isso na lua cheia
Que paira sobre o Recife
Tuas canções ensaiamos.
E entre o passo e a meia
Não falta quem retifique
O frevo que não cantamos.

Hoje a noite é imensa
E dentro dela invocamos
Teus tantos modos de amor.
No peito que chora e pensa
Na voz que mal afinamos
Brota a beleza da flor.

Além, muito além dos vícios
Da lua, vasta candeia
Hoje cantamos Vinícius
Na noite de lua cheia.

Recife, 16 de novembro de 2013.

domingo, 20 de outubro de 2013

Vinícius II


O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.

Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música. Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.

Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.

Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.

O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.

Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.

Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.
Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.

Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.

Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?

Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.
Recife, 16 de outubro de 2010.

Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.
Vinícius
Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.

Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.

Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Samba em Prelúdio

Luciano (voz) e Fernando (voz e violão) cantando Samba em Prelúdio, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Vídeo gravado, sem ensaio, no apto. de Mariângela Ribeiro e Giulia. Recife, novembro de 2012.


sábado, 28 de julho de 2012

A Vida Mesquinha


Alguém disse, com razão, que a vida é curta demais para ser mesquinha. Suponho que todos concordariam com isso. No entanto, a maioria das pessoas tende para a mesquinharia e assim vivendo concorre, claro, para tornar a vida geral mais mesquinha. Vivemos pouco e mal. Friso que o advérbio não remete à medida quantitativa corrente na nossa mentalidade estatística, mas sim à medida da qualidade, também já corrompida pela força onipresente e corruptora do mercado.

Longe de mim a presunção de definir plenamente o que seria a vida mesquinha, menos ainda ditar regras sobre o seu avesso, a vida generosa, a vida vivida com a plenitude que conferisse sentido à vida curta. Aliás, como dizê-la curta sem antes precisar um sentido de medida? Entendo que o autor da frase – suspeito tenha sido Shakespeare, embora lembre agora que um amigo costumava atribuí-la a Disraeli – usa o termo curta no sentido temporal, mas sobretudo qualitativo, fixando assim uma relação simetricamente oposta entre o ser curta e o ser mesquinha. Já que é temporalmente curta, deduzo, cuidemos de vivê-la com espírito avesso à mesquinharia do avarento, do ressentido, de todos que vivem envenenados por sentimentos, intenções e atos que apequenam a vida.

Até onde percebo, a maioria das pessoas tende a associar automaticamente a vida mesquinha à avareza. Sem dúvida, há um vínculo semântico forte entre o ser mesquinho e o avarento. Mas penso ser enganosa a identificação redutora entre os termos. Conheço muitas pessoas generosas no trato com as coisas materiais que, não obstante, são pessoas mesquinhas. São ressentidas, invejosas, incapazes de atos morais generosos. Além disso, usam a generosidade material não raro com fins espúrios: a ostentação, o comércio pequeno dos interesses e relações, o exercício inconfessado de poder sobre o outro. Quantos políticos corruptos não são generosos com o dinheiro que roubam? Quantos pais tirânicos ou indiferentes às práticas básicas da paternidade e do amor não enchem seus filhos de excessos materiais? Quanto não vemos de consumo conspícuo nas famílias infelizes e hostis? O generoso avarento é inconcebível, mas não o perdulário mesquinho, aquele que reduz as relações humanas ao fácil comércio e ao desperdício dos bens materiais tão corrente na sociedade de consumo.

Penso que somente a inconsciência com que vivemos, a inconsciência do que somos, pode justificar a justaposição banal do discurso romântico com o comércio mesquinho das relações humanas. Vivemos docilmente subjugados às pressões onipresentes do mercado e todavia continuamos falando de amor como relação de gratuidade, avesso dos cruéis interesses mercantis, com a mais completa inconsciência do mundo. O exemplo emblemático poderia ser esta frase: amar é dar presente, refrão socializador de toda criança.

A colonização mercadológica das relações íntimas, das relações afetivas em geral, é também patente no reboliço com que a mídia e toda a rede complexa do mercado orquestram o consumo delirante em datas fabricadas para vender o amor e sentimentos correlatos: dia das mães, dia dos pais, dia da criança, dia dos namorados e não sei mais quantos. Ah, também já inventaram o dia dos amigos. Enfim, nada escapa à força voraz do consumo. Tudo é mercadoria, ou pelo menos veste o corpo sedutor do mercado. Consumir, vender e vender-se tornaram-se tão onipresentes que se converteram numa espécie de segunda natureza humana, a que recobre a propriamente natural. Como entretanto acima observei, nada disso afeta a inconsciência com que continuamos reiterando um discurso amoroso completamente corroído pelo mercado.

O contexto acima explica por que alguém pode sem contradição ser mesquinho e perdulário, cobrir filhos e parceiro, conjugal ou não, de presentes e todavia ser mesquinho ao extremo da incapacidade amorosa. Esses fenômenos de dissociação estão presentes numa infinidade de situações humanas. Também na literatura, claro, que talvez nos traduza melhor que qualquer outro discurso. Bastaria considerar dois curtos contos de Rubem Fonseca. Refiro-me a “Passeio noturno (Parte I)” e “Passeio noturno (Parte II)”, incluídos no livro Feliz ano novo. Talvez precise ressaltar, para quem conhece os contos citados, que o exemplo dos contos de Rubem Fonseca vai a um extremo confundível com o mal imotivado. Ademais, como toda obra literária de qualidade, encerra múltiplos significados, entre os quais o que ressalto em benefício do meu argumento não é com certeza o mais importante.

Descendo a expressões mais pedestres da vida mesquinha, ocorre-me lembrar a matéria das nossas conversas correntes, também de muito do que se fala no convívio entre amigos íntimos, entre pessoas ligadas por vínculos afetivos profundos. Custa-me ainda compreender nossa fixação nos aspectos mesquinhos da vida. Por isso não me conformo com a conversa dominante no nosso convívio corrente. Falamos invariavelmente do que a vida encerra de pior, quando não simplesmente brutal. Falamos da violência em suas infindáveis e chocantes formas de manifestação. Falamos do outro mordidos pelo veneno da fofoca, da hostilidade e do ressentimento confessos ou latentes. Falamos de amor e sexo como experiências banais reduzidas a suas materializações mais mesquinhas, traduzível na moeda universal do mercado.

Não bastasse tanto, amesquinhamos ainda mais a vida domesticados pelo sentido de duração fabricado pela publicidade farmacêutica. Segundo esta, o que importa perseguir é o ideal da vida longa e saudável. Novamente, não importa aqui a vida que vivemos, mas sua duração. O que nos prescrevem - da proscrição do cigarro à infinita obsessão preventiva confinante com a paranoia e a hipocondria – é a utopia da sociedade terapêutica que lembra a assepsia totalitária de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Ora, o mero bom senso, que portanto prescinde das lições pretensiosas ditadas pelos especialistas de todo tipo, basta para que a gente se dê conta desta verdade elementar: não se vive sem risco; não se vive uma vida digna de ser vivida, se possível bem e prazerosamente vivida, sem uma margem necessária de exposição ao risco. Melhor dizendo, isenta dos danos que fatalmente causamos ao outro e a nós próprios quando nos aventuramos a amar, perseguir nossos desejos, sonhos, ideais e nossas melhores ambições. Somente um covarde paralisado pelo medo à vida pode seguir ao pé da letra as prescrições de vida saudável hoje impostas pela sociedade terapêutica em que passamos a viver.

Essas considerações acima me fazem lembrar uma anedota envolvendo dos farristas incorrigíveis: Vinícius de Moraes e Antônio Maria. Segundo lembro, voltavam bêbados, para variar, de mais uma noitada. Era já manhã clara na praia de Ipanema. De repente, vislumbraram um corpo correndo, um corpo fiel ao ideal da vida saudável correndo areia e praia afora à primeira luz do dia. A simples visão daquele corpo atlético e disciplinado era o avesso do que faziam com o próprio corpo, a negação do que viviam como relação entre a vida intensamente vivida, a vida votada ao prazer, e o corpo. Por isso ali mesmo, estarrecidos diante daquele sacrilégio, prometeram solenemente nunca ceder àquela tentação intolerável.

Friso que o relato da anedota não supõe adesão ao modo de vida de pessoas como Vinícius e Antônio Maria, cujos excessos, familiares a quem sabe da vida de personalidades tão célebres, são o oposto simétrico dos excessos que caracterizam a sociedade terapêutica alvo da minha crítica. Quando circunstancialmente vivi durante alguns anos excessos semelhantes aos que constituíam marca distintiva desses artistas, errei através de bares, festas, badalações infindáveis, droga e sexo movente e sem aderência não bem por escolha, menos ainda ideal de vida, mas por força de circunstâncias pouco subordinadas à minha consciência e vontade.

Retomando o plano das relações íntimas, do cotidiano que compartilho com os amigos, quando ainda os vejo e converso, perdi a memória de quando compartilhei momentos de pura epifania. Não exagero ao escrever este termo que entrou no meu vocabulário através de minha leitura da obra de James Joyce. Aludo a um estado de revelação espiritual, de sensação momentânea e inefável no convívio com o outro. O móvel desse estado de epifania pode emergir subitamente de um momento de intensa intimidade amorosa, sexual, ou simplesmente de uma conversa singular, dessas apenas concebíveis na companhia de alguém a quem nos prendem elos profundos de afinidade, de compreensão não raro isenta de palavras.

Por que esses momentos de epifania há muito não se renovam na minha vida? Por que no próprio convívio íntimo, na companhia dos que mais amo e me dão prazer, fecharam-se as vias iluminadas por esses estados supremos de convívio e intimidade humana? Não encontro resposta satisfatória para minha interrogação. Sei porém que ela remete à prevalência da vida mesquinha no horizonte espiritualmente árido que habitamos.

Recife, 26 de julho de 2012.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Chico Buarque do Brasil


Chico Buarque do Brasil, volume publicado em 2004 e organizado por Rinaldo de Fernandes, é um dentre muitos títulos que celebram em tom consensual a trajetória artística e biográfica de Chico Buarque. Se ligeiramente consideramos a importância extraordinária de Chico Buarque na cultura brasileira desde meados dos anos 1960, torna-se dispensável reconhecer o significado de obras dessa natureza. Começo no entanto por ressaltar esse aspecto dominante da obra precisamente por acreditar que a atividade crítica deve ser sempre crítica, mesmo quando sua função é apreciar artistas em torno dos quais se articula a rede consensual apreensível na fortuna crítica de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso e outras raras e definitivas expressões da música e da cultura brasileira.

Embora contenha pouca documentação original, o volume tem o mérito de reunir dados biográficos e críticos relevantes e talvez ainda desconhecidos dos que pouco leem sobre música brasileira. É muito interessante, por exemplo, a documentação reunida na Cronologia. Penso em particular na matéria de uma entrevista que Chico concedeu a Augusto Massi. Nela ele revela fontes preciosas para que melhor se aprecie sua iniciação literária. De início, lê exclusivamente autores franceses sob sugestão do próprio pai, Sérgio Buarque. Pelo que se sabe, a partir de declarações do próprio Chico, Sérgio era um estudioso incansável e metódico. Certamente a mais forte evidência disso está contida na obra de historiografia que produziu, talvez a melhor que temos, também na sua fina erudição crítica espelhada na produção jornalística reunida em livro por Antonio Arnoni Prado. Embora tivesse família numerosa, sua biblioteca era pouco acessível à intrusão dos filhos, provavelmente controlados pela sombra eficazmente protetora de Maria Amélia, sua mulher.

O próprio Chico confessa que sua iniciação literária foi uma tentativa de encontrar uma via de aproximação com o pai demasiado imerso no seu mundo de livros e símbolos. É de certo modo curioso, ou mesmo incompreensível, o fato de Chico aportar afinal na literatura brasileira não através do pai, fonte capital de conhecimento histórico e cultural sobre o Brasil, mas através de um amigo que o reprovou por viver discutindo literatura... em francês. Diante do que sei de Sérgio Buarque através de sua própria obra, causa-me estranheza saber que ele afastou o filho da literatura brasileira, quando o mais razoável seria aproximá-lo. Afinal, ele foi um dos grandes participantes do mais importante movimento literário que já tivemos na história da nossa literatura. O modernismo, dando nome ao boi, teve abrangência infinitamente maior que a literária, ainda que compreendida aqui em sentido elástico. Sérgio confirma de resto, quando consideramos sua trajetória intelectual, este fato que vai aqui brevemente mencionado e melhor expus num artigo já postado no meu blog: Modernismo e Ciências Sociais.

A opção de artistas literariamente privilegiados como Chico Buarque e Caetano Veloso pela música constitui evidência do status intelectual que nossa música popular conquista a partir da bossa nova e sobretudo da contribuição estética e intelectual fundamentais que Vinícius de Moraes e Tom Jobim transportaram para o seu curso tão admiravelmente renovado e elevado a partir de meados dos anos 1950. O primeiro, como se sabe, procedia da tradição poética canônica, portanto restrita a um público altamente letrado, enquanto o segundo era portador de uma sofisticada formação musical erudita, embora vivesse catando moeda como pianista nos inferninhos da noite carioca para sobreviver. Além disso, o pai de Tom, assim como o de Vinícius, era poeta, ainda que retardatariamente parnasiano. Este fato sugere o quanto é lenta a difusão dos grandes movimentos de renovação literária, mesmo no círculo das camadas letradas do qual ambos faziam parte.

Não fosse a mutação profunda sofrida pela música popular a partir desse período, jovens de formação privilegiada como Chico e Caetano teriam provavelmente derivado para outros campos de expressão cultural. O próprio Caetano sublinha bem essa circunstância. Como Chico, embora de extrato social inferior e preso na adolescência ao ambiente provinciano de Santo Amaro da Purificação, ele já lia autores literários de importância, já manifestava interesse pela filosofia e também já esboçara alguns passos de iniciação na crítica de cinema. Como ele próprio reconhece, foi a descoberta da bossa nova, antes de tudo da revolução estética introduzida por João Gilberto no cenário musical brasileiro, o que o atraiu para a música. A tudo isso se soma um fator de ordem sociológica importante, a expansão dos meios de comunicação de massa no momento em que a geração de Chico e Caetano ingressa no território musical.

Chico e Caetano tornaram-se amigos no início de suas carreiras. Mas logo a amizade foi estremecida pela própria turbulência estética e política que tão profundamente caracterizou a década de 1960, talvez a mais rica do século 20 brasileiro. É provável que somente a de 1920, desdobrada na década seguinte, lhe possa fazer páreo. A amizade foi abalada quando o tropicalismo irrompeu na cena musical em meio a uma extraordinária atmosfera de turbulência e radicalismo ideológico. A corrente dominante nos movimentos de esquerda era o nacionalismo cultural. Sua radicalização foi tão notável que mesmo representantes da bossa nova como Vinícius de Moraes e Carlos Lyra acabaram atraídos pela música engajada, pela regressão a temas que punham a música e a arte em geral na linha de frente do combate político à realidade social sustentada pelo regime militar. À parte Tom Jobim e João Gilberto, praticamente todos aderem a um movimento de regressão às fontes tradicionais da música e da cultura brasileira afastando-se assim da sofisticação camerística e liricamente apolítica da bossa nova. A pesquisa das fontes folclóricas e nordestinas, de braço dado com o sentido de engajamento político, prevalece na atmosfera agitada dos festivais de música que irrompem somando a celebração coletiva ao embate ideológico nas salas de espetáculo.

O tropicalismo provocou um autêntico curto circuito nas esquerdas, notadamente, por razões óbvias, na esfera musical. Como movimento que alimentou ambições muito amplas, é difícil traçar num artigo ligeiro suas linhas fundamentais. Ressalto aqui, tendo em vista minhas intenções específicas, sua associação com a vanguarda erudita identificável no movimento da arte concreta, liderado pelos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e por Décio Pignatari. Augusto, o mais afinado com a música, tanto a de vanguarda erudita quanto a popular, escreveu naquele momento uma série de artigos polêmicos, de alta tensão crítica, em defesa do tropicalismo. Esses artigos, acrescidos de outros assinados por Júlio Medaglia e Gilberto Mendes, seus companheiros de armas dentro da vanguarda erudita, visavam a defesa radical das mudanças introduzidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Os artigos, que compreendem ainda uma ótima apreciação geral da bossa nova escrita por Brasil Rocha Brito e entrevistas com Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram mais tarde reunidos no volume Balanço da Bossa. Este volume foi mais tarde ampliado e reeditado com o acréscimo de um subtítulo “e outras bossas”. Mesmo o leitor que dele em muitos pontos discorda, é o meu caso, curva-se à força dos fatos para reconhecer que é a melhor avaliação crítica da música à época produzida. Falando da minha experiência de leitor e amante da música brasileira, friso que muito aprendi com esse livro, decisivo para modificar e aprimorar um pouco minha percepção da música popular e das íntimas conexões que a atavam à realidade política e social daquele momento extraordinariamente turbulento e criativo.

Como é típico das vanguardas, o elogio da ruptura estética era indissociável do ataque às correntes opostas. Foi nesse contexto que Augusto de Campos identificou na música de Chico Buarque uma expressão conservadora que precisaria ser criticada sem complacência. Sendo assim, propõe uma relação de antagonismo personalizada em Caetano e Chico. Ampliando o elo das relações antagônicas para melhor definir as linhas de força da cultura brasileira a partir do modernismo, opõe Oswald de Andrade a Mário de Andrade. Estes constituíram as matrizes de um embate renovado na década de 1960 no tropicalismo liderado por Caetano em oposição ao nacionalismo conservador apreensível na música de Chico povoada por bandas, Carolinas e ecos nostálgicos do passado brasileiro.

Oswald de Andrade, que ficara confinado ao quase esquecimento durante duas décadas, é reposto na linha de frente dos movimentos artísticos que agitam a cena cultural nos anos 1960. Além do papel decisivo desempenhado pelos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, outros focos de radicalização estética desencavam sua obra para acirrar o clima de irreverência, rebeldia e ruptura anárquica dos códigos dominantes. É o caso do Teatro Oficina, liderado por José Celso Correa, de Glauber Rocha na esfera do cinema novo, sobretudo do tropicalismo capitaneado por Caetano Veloso, que num certo sentido articula todas essas correntes contestadoras não apenas da cultura oficial guarnecida pela ditadura militar, mas também do nacionalismo de esquerda.

Os representantes da arte concreta, adestrados na polêmica e no combate agressivo a tudo que lhes parecesse conservador, reiteravam assim o sentido mais definidor da vanguarda. Na sua obsessão pelo novo sempre contraposto ao velho, da ruptura no avesso da rotina ou da repetição, viam novidade até onde ela não existia. Apostando no caráter potencialmente renovador dos meios de massa, que poderiam ser agenciados em defesa da ruptura estética e política, associaram-se não apenas ao tropicalismo, mas também à jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos, também de Vanderléa. Eles, os concretistas, que tanto combateram em prol da radicalidade da arte contemporânea, acabaram fabricando aliados inexistentes quando festivamente se integraram à corrente da arte de consumo promovida pelos novos meios de massa. E o fizeram batendo de frente contra o nacionalismo cultural de esquerda e de direita, aí incluída a figura consensual de Chico Buarque e sua música que, sem dúvida, soava conservadora se apreciada pelo metro formal e temático da tropicália.

Outro artifício de que Augusto de Campos se valeu foi o de adotar a tipologia procedente de Ezra Pound, que opõe os inventores, ou a radicalidade vanguardista, aos mestres e por fim aos diluidores. É fácil concluir que identifica Caetano e Gilberto Gil com a invenção, deprecia Chico como um mestre e silencia sobre os diluidores, salvo se os identifica com o grupo impreciso que repisa e dilui os clichês do nacionalismo cultural. Augusto de Campos tem certa margem de razão, mas muito do que combate, assim como muito do que prega, transborda da sua receita polarizadora e intransigente. Em suma, o senso de mediação crítica sai bastante chamuscado pelo ardor vanguardista que singulariza sua ação no âmbito da crítica da música popular.

Dando provas de grande vitalidade criativa, Chico se renovou de forma extraordinária sem abrir mão de sua coerência e fidelidade substancial à melhor e mais viva tradição cultural do Brasil. Quando isso se tornou evidente, o próprio Augusto de Campos voltou à cena do crime em tom mais contemporizador observando que Chico “é ainda um mestre mas se contaminou de invenção” Como seria previsível, atribui o ingrediente de invenção à influência saudavelmente contaminadora de Caetano Veloso. O artifício crítico constitui apenas uma variação da leitura que ele e seu irmão Haroldo fazem de Macunaíma quando subordinam a obra inventiva de Mário de Andrade ao espírito da antropofagia ideado por Oswald de Andrade.

Assentada a poeira da polêmica, logo ficou claro que a aposta dos vanguardistas no caráter de radicalidade da música integrada ao circuito do consumo de massa não passava de canoa furada. É certo que a jovem guarda continha elementos de inegável renovação cultural, à revelia da consciência ingênua dos seus líderes. O exemplo dos Beatles, repetidas vezes invocado por Augusto de Campos, é ainda mais forte. Eles sem dúvida renovaram a música de massa, o pop internacional de modo extraordinário. Mas tudo não passou de um episódio isolado no cerne de um sistema de produção e consumo de massa cuja dominante é a repetição, a diluição que tanta hostilidade inspira àqueles identificados com a vanguarda.

Quanto a Chico e Caetano, felizmente se reencontraram em termos pessoais acima dessas polarizações artificiais propostas por Augusto de Campos. A evidência maior da inconsistência desses antagonismos infundados, tão frequentemente promovidos pelos que personificam a rebeldia estética e a radicalidade das vanguardas, está inscrita antes de tudo na própria qualidade da obra musical que produziram dos anos 1960 ao presente. Um dos grandes méritos do tropicalismo consistiu precisamente no combate que moveu contra a intolerância estética e política traduzida em preconceitos contra a jovem guarda, o baião simbolizado em Luiz Gonzaga e até a nossa tradição brega, o mau gosto em geral, para usar aqui uma expressão bem vaga. Como todavia não vivemos isentos de preconceitos e apreciações duvidosas, o próprio tropicalismo entronizou na cena cultural um outro modo de preconceito, o que visa o nacionalismo cultural sem as discriminações devidas, o que opõe arbitrariamente a tradição à ruptura. Felizmente há muito foi superada a necessidade de os grupos de criação e recepção musical oporem esquematicamente Chico Buarque a Caetano Veloso.

domingo, 24 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes II




O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.

Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música.Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.

Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.

Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.

O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.

Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.

Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.

Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.

Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.

Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?

Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.

Recife, 16 de outubro de 2010.

Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.

Vinícius

Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.

Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.

Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes




Vinícius é um documentário que encanta, diverte e sobretudo comove o espectador. Esses efeitos decorrem antes de tudo do personagem que se move no centro da trama. Se a tradição romântica, datemo-la a partir de Rousseau e Herder, elevou o artista à condição de polo da realização estética, tão ou até mais importante do que a própria obra de arte, Vinícius cedo se destacou como um poeta cuja força narcisista converteu a obra que produziu numa derivação ou projeção da sua personalidade. Mário de Andrade, valendo-se de outras palavras, acentua esta verdade ao criticar em 1939 a poesia de Vinícius num artigo mais tarde enfeixado no volume O Empalhador de Passarinho. E logo comprova seu argumento citando estes versos exemplares:
“Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas”.

Os versos acima são extraídos do “Poema para todas as mulheres”. Não bastasse o tom afoito, ou até arrogante, ele demonstra, como romântico impenitente que sempre foi, o quanto a obra é antes de tudo uma expressão da sua individualidade soberana. E o fato é que isso é ainda bem pouco, se consideramos, no desdobramento da sua vida e obra, o quanto espraiou esse tom afoito em tudo que viveu e poeticamente realizou, uma coisa sendo na verdade indissociável da outra. O documentário que doravante acompanho constitui prova cabal do que acabo de afirmar.

O documentário começa nos bastidores do teatro que serve de palco para a encenação da vida e da obra de Vinícius. Os atores que o interpretam, Camila Morgado e Ricardo Blat, mesclam ao longo da obra a leitura de fragmentos de poemas de Vinícius, infelizmente vários carecem de identificação, e matéria de cunho biográfico e histórico alternada com a interpretação de canções compostas pelo próprio Vinícius e seus parceiros mais frequentes: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho.

Não bastasse a excelência dessa amostra da história recente da música brasileira, comparecem ainda, como depoentes e comentadores, nomes definitivos da nossa cultura como Antonio Candido, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Maria Bethânia e vários outros. Dentre os poemas cujos fragmentos são declamados sem a devida identificação, menciono três que de resto figuram entre os melhores que escreveu: “Poema de Natal”, “O haver” e o também longo e comovente “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”. Aproveito a deixa para aqui enfiar uma nota de espanto e protesto diante do fato de que o segundo poema citado, “O haver”, não consta da minha edição da Poesia Completa & Prosa de Vinícius de Moraes, editora Aguilar. Friso que minha edição é de 1986, lançada portanto 6 anos depois da morte do poeta.

Da infância à idade tardia, apesar das muitas ausências impostas pela vida de diplomata e outras circunstâncias, Vinícius acompanhou as transformações do século que profundamente alteraram a paisagem urbana do Rio de Janeiro, além de ser personagem de muitas delas. Nascido ainda quando as luzes da belle époque já se apagavam no horizonte de modo catastrófico, cedo impregnou-se da cultura francesa que tão nitidamente desenhou o perfil de várias gerações da elite carioca. Mas esse processo de impregnação foi sempre impuro, notadamente no seu caso. Quero noutros termos ressaltar o caráter da mestiçagem que no conjunto da nossa história cultural sempre entreteceu a tradição cultural de corte europeu, antes de tudo francês, com os ingredientes africanos e indígenas que tão singularmente nos diferenciam da Europa e do conjunto da tradição ocidental.

O pai de Vinícius, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, a quem dedicou o poema acima mencionado, foi poeta anônimo de extração erudita, enquanto a família da mãe era muito achegada à boêmia e à música popular de tão viva presença no universo social do Rio de Janeiro. Já aí se nota como o ambiente que enquadrou a sua infância livremente conciliou na origem dos seus próprios ancestrais traços culturais divergentes. A isso importaria acrescentar seus estudos, desde pequeno, no Santo Inácio, colégio jesuíta intimamente associado à formação da elite carioca.

Sua poesia da primeira fase, de nítido viés metafísico, transpira a atmosfera mística assimilada no contexto católico que vincou a maior parte da sua juventude. A isso se soma a poderosa influência que sofreu de Octávio de Faria, notável romancista católico politicamente reacionário, o que quase soava como truísmo no clima ideológico e cultural do Brasil da década de 1930. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, aproximou-se do integralismo, a ideologia de corte direitista hegemônica à época. Evidentemente sua íntima ligação com Octávio de Faria tinha muito a ver com esses traços ideológicos dos quais mais tarde se dissociará.

Ferreira Gullar observa com irreprimível humor que Vinícius traçou na vida uma trajetória singular. Poeta de marcada aprendizagem erudita e francesa na juventude - mais tarde acrescida da literatura inglesa, antes de tudo romântica, assimilada durante seus estudos em Oxford - à medida que amadurece vai progressivamente se despojando de toda essa herança pesada e asfixiante. O peso maior, em termos de tradição opressiva e conservadorismo político, procede de sua já referida formação católica. Entretanto, mesmo quando católico confesso e praticante já vivia uma vida dupla, aliás comum à religiosidade tingida de tradição patriarcal, que tendia a isolar e comprimir a mulher no recesso da casa enquanto tecia com rédea frouxa, para não dizer desatada, uma ética masculina no geral pontuada pelo desmando e a duplicidade hipócrita. Como era de conveniência corrente para os homens, Vinícius pagou farto tributo a essa divisão injusta atribuível aos gêneros bem característica das culturas de raiz patriarcal.

Depois dos livros ancorados na metafísica de intensa impregnação católica, reponta na poesia de Vinícius a influência de Manuel Bandeira. Também da sua primeira mulher, Tati, de ideias políticas e estéticas avançadas. Ele próprio reconhecia o quanto foi transformado pela intimidade amorosa com Tati. Sua amizade com o socialista americano Waldo Frank, lavada na água suja da miséria nordestina que vieram conhecer de perto, também decisivamente concorreu para mudar sua visão da realidade. Isso se traduzirá na sua poesia que, sobretudo a partir de A Saudade do Cotidiano e O Encontro do Cotidiano, ata as matrizes eruditas à matéria impura e até sórdida da vida tal como já expressa nos títulos que acabo de indicar. É a partir daí que dominam na sua poesia a matéria carnal do cotidiano, os bordéis sórdidos da Lapa, a paixão erótica elevada a expressões de lirismo saturadas pela realidade sem máscaras e isentas de transfigurações religiosamente idealizadas. Assim grosseiramente descrevo o processo através do qual Vinícius se desprende das amarras conservadoras do catolicismo e dos vínculos tradicionais que lhe abafaram a infância e a juventude.

Antonio Candido, sempre agudo e preciso, projeta mais alguma luz sobre as linhas incertas desse quadro quando ressalta que Vinícius soube, mais que qualquer outro poeta modernista, harmonizar sua fidelidade às formas poéticas da tradição com o mergulho no cotidiano, a imersão na corrente da vida isenta dos artificialismos que tanto recobrem a tradição erudita. Vinícius consolidou, em suma, a ponte entre a tradição erudita e a matéria do cotidiano postulada e também largamente praticada desde os primeiros ecos do modernismo por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e nossos poetas mais sólidos e renovadores. Mas ninguém avançou tanto nessa linha quanto Vinícius, notadamente a partir do momento em que definitivamente se desgarra da poesia canônica e impressa e todo se entrega à poesia posta a serviço da música popular num momento de extraordinária inflexão qualitativa no veio fecundo e democratizante da cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960.
Drummond confessou com tocante franqueza e generosidade a inveja que a vida de Vinícius lhe inspirava. Segundo ele, Vinícius foi o único poeta que viveu integralmente como poeta, aquele que teve a coragem de converter a paixão antes em matéria de vida do que de poesia. Sem dúvida, um personagem desse porte constitui um prato cheio, ou já feito, para um bom documentário ou uma boa biografia, como é a que José Castello escreveu.

A vida passionalmente vivida se traduz antes de tudo na sua fome infrene de amor, na sua determinação de viver desgovernado pelo princípio da paixão. Daí resultaram nove casamentos, reviravoltas mirabolantes e loucuras que raros ousariam cometer em nome da paixão carnal e do amor incendiado por uma intensidade romântica que requeima de inveja os românticos frustrados e inspira estranheza ou reserva ao racionalista regulado por seu senso de conveniência e medida. Vinícius casou tanto quanto Oswald de Andrade, outra figura lendária que, como tal, também sobrepôs a vida vivida à obra realizada, que, também como é de praxe, resultou muito imperfeita.

No que se refere a esse ponto, há quem tenda a depreciar essa verdade na obra de Vinícius. É um fato marcante no documentário. Todos que se pronunciam sobre a obra, antes de tudo sobre o autor, silenciam ou são incapazes de reconhecer o quanto há de imperfeição e fragilidade no romantismo exaltado que sustenta e move a poesia de Vinícius. O erro de apreciação é parcialmente compreensível, se se considera que o documentário objetiva antes de tudo realçar em tom de encantamento e paixão a grandeza singularmente humana do personagem. Mas cabe ao crítico consistente e isento também assinalar o quanto a obra de Vinícius está complacentemente saturada de lugares comuns típicos do romantismo desregrado, que privilegia antes a expressão da subjetividade criadora do que a realização formal da ideia ou daquilo que Mário de Andrade, também contaminado pelo fascínio das forças líricas inconscientes, louvava enquanto impulso desgovernado da criação poética.

Vinícius era passional demais para se contentar em reter a vida ardentemente consumida nos limites convencionais do amor conjugal e da família. Viveu sempre possuído por uma sede de presença, de vida passionalmente movente que o impelia a abrir literalmente as portas de sua casa para a festa e a música e a farra sem hora ou medida. Daí o cortejo de amigos que foi arrebanhando ao longo da vida. Daí a paixão pelo cinema e pelo jazz, em especial durante os anos em que viveu em Los Angeles como diplomata. Daí as viagens que se repetiam e renovavam devido à profissão de diplomata, mas também à margem dela. A vida em trânsito contínuo levou-o do Rio a Oxford, de Paris a Los Angeles, de algum lugar a Montevidéu, daí aos candomblés da Bahia, da Itália à Argentina, de São Paulo ao deus dará... Toda essa viagem trepidante dentro da vida era acelerada pelo álcool, do qual se tornou dependente e ao qual foi fiel até a morte. Se foi fiel a alguma coisa, digamos que o foi ao uísque. Como disse numa de suas definições definitivas, o uísque é o cachorro engarrafado, isto é, o verdadeiro amigo do homem. Sem deixar de acrescentar que nunca viu amizade nenhuma germinar em leiteria.

Tudo isso visto e sorvido num documentário é belo, sedutor e estonteante. Os amigos celebram Vinícius, sua vida de desgoverno e paixão, e se rendem deliciados a seu narcisismo generoso e absorvente. As mulheres imagino, e o invejo, o quanto não se entregaram enlouquecidas à sua fome de carne e amor, carícias, gozo e outros inefáveis da intimidade amorosa. E o que dizer das incontáveis que antes e ainda no presente e por tempos improváveis se abandonaram, ouvindo seus poemas musicados, às fantasias mais indizíveis e extremas? Evocando os versos modelares de Chico Buarque: “O que não tem governo / nem nunca terá / o que não tem vergonha / nem nunca terá / o que não tem juízo”.

Mas o documentário abafa os danos decorrentes da paixão infrene, silencia ainda sobre o que meu amigo Luciano Oliveira chama de os anexos do amor ou ainda as agruras do amor casado e atado a filhos que, como escreveu o próprio Vinícius, é bem melhor não tê-los. E complementa: sem tê-los, como sabê-los? Ora, não é preciso ir a tanto para avaliar o quanto nos custam e o quanto lhes custamos. O que intento melhor salientar é que o filme compõe um retrato puramente sedutor e deslumbrante de Vinícius, um retrato que nos faz espontaneamente cair de riso enlevados diante da própria loucura inconsequente, diante da porra louquice que com certeza muito vincou a vida aventurosa e passional de Vinícius. Noutras palavras, ao silenciar sobre os danos e anexos da vida passionalmente desgovernada, o documentário suprime a dimensão ética da nossa experiência amorosa. Essa dimensão poderia ser menos vagamente sugerida se formulasse a seguinte questão: até onde posso ir na minha fome de amor e sexo, de desejo e realização do desejo?

Todos sabemos, salvo os ingênuos e omissos diante da vida, que é impossível amar sem causar algum dano ao outro. Mas isso não nos isenta desta interrogação angustiante: até onde posso em nome do meu desejo e do meu amor causar dano ao outro que me ama e sobretudo amo? Ninguém pode em sã consciência legislar sobre isso, determinar a priori o limite arbitrário entre a busca do amor e as consequências dessa busca. Mas a questão de fundo ético é real, ainda quando, por pura cegueira egoísta ou compreensível prevalência do princípio do prazer, convenha empurrá-la para debaixo do tapete e entregar-se ao impulso do gozo imediato da vida. Como afirmei, esse problema ético é central na vida aventurosa de um homem como Vinícius e não penso que propô-lo consista em incorrer em simples interpelação moralista.

Como todo grande sedutor, como todo romântico que escolheu viver a vida para além das convenções que nem sempre podem ser descartadas como artificialismos atravancadores da liberdade humana, do empenho em realizar uma vida autêntica, como tanto prezavam sustentar os existencialistas sartreanos, Vinícius aparentemente nunca perdeu o sono atormentado por esses obstáculos éticos inscritos na esfera da intimidade amorosa. Que me lembre, nenhum grande sedutor relutou entre a mulher desejada, não importa a que preço, e os limites éticos da realização do desejo. Tônia Carrero, que foi grande amiga de Vinícius desde o primeiro casamento deste, afirma sem nenhuma reprovação moral aparente que ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher.

De Casanova a Vinícius, traçando um limite temporal arbitrário, não sei de nenhum grande sedutor que tenha refreado sua sede de conquista cerceado pela questão ética que aqui proponho. Portanto, fechando ou abrindo as pernas, a alternativa fica a critério ético de quem me leia, é fato que a sedução colide com a ética, quando não simplesmente a ignora. Esticando ainda mais a corda, para que essa digressão não se exceda em ponderações morais que de ordinário descambam para o leito apertado do moralismo, convenhamos que o desapreço pelo limite ético convém tanto ao sedutor quanto ao seduzido, tanto a quem vive e realiza a vida na linha do excesso descrito pela biografia de Vinícius quanto ao sedutor comprimido malgré-lui que foi, por exemplo, Drummond. O fato é que a ética, em assuntos dessa natureza, constitui sempre um constrangimento ou impedimento que agride nossa natureza indomavelmente egoísta. É por isso que tantas vezes adoecemos quando renunciamos a desejos e tentações demasiado desejáveis. Ninguém precisaria ler Freud ou deitar num divã para ter consciência dessa banalidade recorrente na nossa economia erótica e moral.

O fato é que, reitero e amplio, caímos no laço da sedução que pontua a trajetória biográfica de Vinícius. É isso o que pulsa no cerne da recepção encantatória e deleitosa com que viajamos deslumbrados no bojo dessa cadeia de imagens e sons, de fantasias e pulsões que compõem a tessitura do documentário. O receptor generoso, na linha de Drummond, admira ou inveja Vinícius no melhor sentido da inveja ao reconhecer que ele foi o único poeta investido do desejo e da coragem de fazer de sua vida um largo e absorvente poema passional. O invejoso, pelo contrário, vê o filme roendo a corda de suas frustrações e na inveja ressentida com que abarca a vida e a obra do poeta projeta no que ele viveu tudo o que gostaria de ter vivido. É uma prova variável, convenhamos, do desejo de ser Vinícius.

Saindo um pouco das ponderações éticas insolúveis que acima esbocei, salvo em alguma medida a ética e Vinícius ao introduzir neste ponto um outro comentário de Ferreira Gullar. Rememorando Vinícius, afirma não conseguir lembrá-lo senão rindo, senão entregue ao prazer do riso, da atitude afirmativa e gozosa diante da vida. O próprio Gullar se ilumina na moldura de um riso espontâneo ao exprimir o sentimento com que evoca o amigo morto. Vislumbra-o sempre no avesso do desespero, sempre na faixa iluminada da vida. Indo adiante, afirma que esta é uma invenção, isto é, depende da atitude positiva ou negativa com que a encaramos e vivemos. Por conseguinte, é inútil e mesmo indesejável procurar no fundo da nossa experiência o sentido de uma verdade objetiva e universal relativa à vida. Isso é coisa de chatos como Beckett, citado literalmente por Gullar, ou intelectuais sombrios que se enredam e se atormentam – pior ainda, nos atormentam – buscando ou mesmo traçando na obra que criam um hipotético e de resto improvável sentido para a vida. Somos nós que a cavaleiro de nossa subjetividade arbitrária propomos um sentido para a vida e vivemos movidos pela determinação de realizá-lo. Vinícius teria feito isso ao decidir-se pela vida que viveu comunicando aos amigos e a todos tocados por sua vida um sentido de vida alegre e prazerosa.

Não que tenha sido feliz, como Chico Buarque certeiramente observa. Afinal, reiterando o óbvio, Vinícius foi romântico por temperamento, convicção e diria até determinação. Ora, um dos traços definitivos do romântico radica precisamente na busca intransigente do ideal: a mulher ideal, o amor ideal e outros ideais que são por definição inalcançáveis na vida. É isso, em suma, o que me assegura na convicção de que Vinícius não foi nunca feliz. De resto, felicidade é sempre um estado provisório, nunca uma fortuna confundível com a duração que seria permanência. A propósito, ele inventa a quadratura do círculo ao conciliar a duração provisória e o infinito nos dois versos que são talvez os melhores que escreveu e fecham seu mais belo e mais citado soneto: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.
Ficha técnica:
Direção: Miguel Faria Jr.
Elenco: Camila Morgado e Ricardo Blat.
Roteiro: Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcelos
Colaboração de Eucanaã Ferraz.
Texto final: Eric Nepomuceno.
Fotografia: Lauro Escorel.
Direção musical: Luiz Cláudio Ramos
Direção de arte: Marcos Flaksman
Montagem: Diana Vasconcelos.
Recife, 14 de outubro de 2010.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Último Humanista


Fui mordido por um cachorro quando tinha três anos de idade. É uma das mais remotas e traumáticas memórias de minha vida. Talvez por isso costume lembrar com prazer a definição do uísque proposta por Vinícius de Moraes, uma das maiores autoridades no assunto: o uísque é o cachorro engarrafado. Traduzindo-a a meu modo, não gosto de cachorro, não confio em cachorro. O único cachorro que tenho como amigo é o uísque. Indo adiante, sou um humanista impenitente. Olhando à minha volta, todos os dias, começo a desconfiar de que sou o último. Meus semelhantes, decerto desiludidos do convívio humano, preferem cada vez mais a companhia dos cachorros.
Quem lembra ainda uma canção de Waldick Soriano, o rei do brega, num tempo em que a classe média letrada tinha o pudor de ser confundida com esse tipo de música, e antes de tudo padrão de comportamento, na qual ele orgulhosamente se distinguia do cachorro? “Eu não sou cachorro não”, gemia o cantor magoado com o sofrimento que a amada cruel lhe impunha. Hoje uma canção dessas seria inconcebível. Não por ser brega. Bem pelo contrário, a julgar pela qualidade corrente do que se ouve, a canção de Waldick seria hoje louvada como um clássico da canção popular. A canção seria inconcebível porque o cachorro foi elevado a uma condição de privilégio amoroso invejável. Falando por mim (por quem mais poderia falar?) passei a invejar caninamente os cachorros. Todas as tardes saio para caminhar no calçadão da praia e assisto sempre, de coração cortado, a esse espetáculo invariável: meus semelhantes, sobretudo mulheres, passeiam exibindo orgulhosamente seus cachorros. Muitos saem enfeitados com coleiras coloridas, penteados caprichosos, todos talvez zombando da indiferença com que nós humanos nos tratamos.
Outro dia fui visitar um amigo internado na UTI (U Teu Inferno, segundo minha tradução). Diluído num círculo de parentes e amigos do enfermo, fiquei sem assunto durante mais de uma hora. Afinal, fui sem cachorro na coleira, sem cachorro no coração, sem misantropia na ponta da língua. Todos os presentes falavam amorosamente dos seus cachorros: de salão de beleza para cachorro, comida para cachorro, clínica idem, toda uma rede de serviços para cachorro. Ninguém mencionou sequer (juro!) o nome do meu amigo enfermo, que aliás morreu poucos dias mais tarde.
Mudo de cenário. O condomínio onde moro. Quase ninguém se cumprimenta, quase ninguém se conhece ou manifesta interesse em conhecer o vizinho, literalmente o próximo. Descobri, no entanto, um meio infalível de me darem atenção. Entro no elevador e esbarro na vizinha atada à coleira do seu cão. Observo casualmente: como é lindo o seu cão... Ela muda automaticamente. Graças ao cão amado (por ela, claro) recolho dois grãos de atenção ou dois dedos de conversa de alguém que me ignorava e continuaria a fazê-lo, não fosse a dissimulada atenção que concedi a seu objeto de amor.
Não há dúvida de que está em processo uma experiência de deslocamento afetivo na cultura hiperindividualista em que vivemos. A isso se soma uma noção generalizada de hedonismo que agrava ainda mais relações humanas já por si difíceis. Embora não duvide do amor que meus semelhantes devotam a seus cães, acredito antes de tudo que a devoção é sintoma de indiferença pelo próximo, sintoma de uma crescente dificuldade de convívio com o outro humano. Longe de mim idealizar esse outro humano no qual me reconheço. Sei dos horrores de que somos capazes. Mas sei também da grandeza, de uma gama de expressões humanas que nos salvam ou atenuam o avesso cruel da nossa condição. Bem ou mal, é com meu semelhante que me entendo e desentendo, já que compartilhamos uma língua comum, um código de sentido opaco e instável, mas sempre reconhecível. Além disso, já não tenho idade para aprender a latir e sujar de cocô as calçadas da cidade. Não bastasse tanto, sinto ainda na orelha os dentes do cão que me mordeu quando eu não passava de uma inofensiva criança de três anos. Em suma, fico com o cão engarrafado de Vinícius de Moraes.