domingo, 20 de outubro de 2013
Vinícius II
O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.
Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música. Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.
Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.
Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.
O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.
Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.
Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.
Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.
Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.
Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?
Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.
Recife, 16 de outubro de 2010.
Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.
Vinícius
Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.
Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.
Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.
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