segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Rua Imperial
Imperial Imperial...
O longo e vago som na tarde reverbera
fundindo-se ao andante da Quinta de Beethoven.
Como num sonho há tanto repelido
ou pesadelo sacudindo meus desertos geológicos
um cortejo de imagens se perfaz
turvando a luz cristal sobre a janela.
As tardes de tédio e fuligem
deslizam sobre o asfalto
enquanto o menino arquiteta aritméticas automotivas
alheio ao inferno doméstico que lhe atormenta a infância.
Absorta na contabilidade de ônibus e carros
transposta para colunas
riscadas sobre o caderno escolar
sua imaginação liberta-se da vida suja e palpável
do exílio urbano sem pontes
para a ilha e o campo.
A iniciação nos bancos da escola pública.
Tímido e precoce, vindo de ignotos canaviais,
logo foi vítima da troça de alunos citadinos.
Eram moleques boçais, em tudo menores
mas eram da cidade.
Por isso principiaram infernizando-lhe a vida.
Um dia, maior que o medo,
peitou o mais valente
mudou as regras do jogo dando provas
relutantes de uma bravura
roubada talvez à memória do avô
único ascendente lendário
em quem venerava os traços agrestes do heroísmo.
Imperial Imperial...
As casas da Imperial.
Por ironia ou sarcasmo
chamavam-na Rua Azul.
Azuis acaso seriam os sonhos do adolescente
espremido entre o asfalto e o trem de ferro.
Rua Azul e seus caminhos de terra batida e estreita
alongando-se entre a Rua Imperial
e a estrada de ferro.
Na casa escura e pequena acotovelavam-se
pai avó tios primos irmãos
gastando os dias e a vida
entre a insegurança e o medo.
Mais que um grupo sem guia
a família semelhava um acampamento
sempre às bordas da guerra civil.
Imperial Imperial...
Meninas da Imperial.
Catarina Catarina
Quando na rua passava
o mar no cais se calava
corria até à esquina
dobrava o mar das tormentas
quando na rua passava.
Era tão linda, tão loura
na porta do tintureiro
(seu pai, o italiano).
Todo o meu ser se redoura
a praça, o Recife inteiro
na vaga napolitana.
Tantas, como eram tantas
e tontas de adolescência
maliciosa e escaldante
as meninas da Imperial.
As safadezas com a prima
no muro além do quintal.
Também às vezes no quarto
mãos sob a mesa, desejos
entre paredes retidos.
Mas iam além das paredes
além da casa e da rua
desejos sem pausa ou fuga.
Enroscando-se no vão das portas
transpunham frestas e fechaduras
aqui colando-se às roupas íntimas
da tia sonsa e provocativa
ali brechando as pernas inacessíveis das vizinhas
e em tudo seguindo o balanço
da mini-saia das colegiais.
Ah, como medir cogitar a que torturas
a simples presença da mulher
condena a carne indefesa.
Faze de mim teus haveres
de mim o que bem quiseres
gozando ela gemia
e eu cego na luz do dia
sobre o sofá possuía
o quente corpo de Ceres.
Era enfermeira da tia
que um câncer já remordia
por longo tempo sofrido.
Ceres em mim se esquecia
das surras que lhe batia
em casa o bruto marido.
Minha Ceres de turvas eras
com quem ouvi Primavera
na voz de Claudete Soares.
Ela chorando deserta
pra rua de porta aberta
e os desenredos nos ares.
Mas há um grande trem de vida
que o poema omite
talvez já ressabiado do estirão.
Um dia, anos e anos mais tarde,
conheci-a numa festa em Boa Viagem.
Nem Deus nem os cronistas da terra
atinam com o que houve.
O que sei é que um grande incêndio
alastrou-se pela praia
ressecou os canais e drenou
as águas do Atlântico.
A ponte do Pina desabou
e a cidade sobressaltada delirava na avenida
confusa entre um carnaval extemporâneo
e um hiato de amor universal amordaçando
duas almas atormentadas
na orgia da carne errante.
Recife 28 e 29 de novembro 2001.
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