Mostrando postagens com marcador Humor. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Humor. Mostrar todas as postagens

sábado, 20 de agosto de 2016

Máximas e Mínimas XV


Penso. Logo, desisto.

Quem fala mal de mim, não sabe o que penso de mim próprio.

A crítica da guilhotina: Se não poupo meu pescoço, por que deveria poupar o do semelhante?

A utopia é o melhor refúgio para os que não suportam a realidade.

O pior cego é o que está certo do que vê.

O ser humano é tão incompatível com o autocontentamento que, se acaso o alcança, logo inventa uma carência.

Se as pessoas que se declaram progressistas conhecessem os processos históricos mais elementares, desistiriam de ser o que não existe.

Era tão hipocondríaco que confundia saúde com sintoma de doença.

Era uma infiel tão compulsiva que pedia perdão quando não traía.

A liberdade sempre se evidencia e expressa enquanto liberdade individual. É por isso que as ideologias coletivistas necessariamente a suprimem. Por isso começo a correr logo que deparo com forças coletivas lutando para libertar o povo, a nação, o pobre, a mulher, o negro, o proletário ou qualquer abstração coletiva.

A alma honesta: A alma honesta jamais louva a si própria, muito menos alardeia sua virtude, já que a arrogância é inconciliável com qualquer virtude. Sua natureza consiste na ação, não na fala. A alma honesta não precisa dizer o que é.

Antipascaliana:
A razão tem razões tão ciente
Que o cego coração nem pressente.

Wittgenstein - melhorar o mundo: Certa vez um discípulo de Wittgenstein perguntou-lhe o que deveria fazer para melhorar o mundo. Melhore a si próprio, respondeu o filósofo, pois isso é tudo que você pode fazer para melhorar o mundo.

A Cultura da Incompetência:
Num mundo exaltado como o da informação e do conhecimento, somos domesticados do berço ao túmulo para a incompetência. Ser mãe, o mais difícil e irrevogável ofício humano, tornou-se uma competência exercida por uma cadeia de especialistas que ditam regras sobre tudo: da tecnologia das práticas sexuais à gestação, do parto à missa de sétimo dia, passando pela amamentação e todo o processo apropriado por instituições e especialistas alheios à família.
Pai e mãe correm ansiosos para o oráculo do terapeuta com o cartão de crédito na mão para aprender como dizer sim ou não ao filho sem lhe causar nenhum trauma. Ah, não esquecer que é prudente consultar o economista antes de usar o cartão, pois no fim do mês chega a fatura infalível com cálculo antecipado de juros.
Comer e fazer sexo, nossas necessidades e competências mais primárias, foram colonizados pela cultura geradora de incompetência. Comer já não é uma necessidade, mas uma mistura de saber técnico, aprendizagem e entretenimento. Basta observar a programação matinal da Globo. Sexo também, além de competição e ostentação de poder. Não admira que tantos passem a depender de estímulos artificiais e transponham a cama para o palco.
E ainda dizem que a revolução tecnológica nos libertou da servidão do mundo tradicional. O mais espantoso é que todos acreditam enquanto festejam a tirania do admirável mundo novo dissolvendo todas as competências que exercíamos naturalmente no passado.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Máximas e Mínimas XIV


Todos os brasileiros são honestos, salvo os políticos.
Já que sou forçado a ir às urnas, na próxima eleição votarei no candidato que tiver a franqueza de afirmar que é corrupto e canalha, se é que algum ousará tanto. Pelo menos estarei votando num político sincero.
Morro de rir do determinismo histórico quando leio sobre a Revolução Russa, a Cubana e toda a história do comunismo. Por isso não troco meu ceticismo utópico pelo socialismo científico de ninguém.
Eu, tantas vezes afagado por muita aluna que me chamava de professor feminista, acabei punido pela televisão da academia de ginástica que todas as manhãs me obriga a ver programa de mulher. Assim acabarei convertido ao machismo senil.
Há verdades que não se dizem publicamente nem mesmo para desacreditar o melhor dos amigos.
Como diria o presidente da comissão de ética do congresso nacional, quem anda na linha é trem.
Depois de examinar todos os relatórios de prestação de contas do governo, os ministros descobrem contas que nem se conta.
Afinal, o Brasil é um país emergente ou imergente?
Como explicar que um país emergente viva em estado de emergência?
Se Marx fosse brasileiro, diria que a contradição fundamental do nosso capitalismo é a que opõe o proletariado ao funcionalismo público. Traidor da sua classe, logo integraria a casta do funcionalismo público, fato que o tornaria igualzinho à maioria dos nossos revolucionários: viveria bem pago e indignado com o capitalismo e a classe dominante.
É verdade que até Jesus Cristo freqüentou más companhias e assim se contradisse ao afirmar que nossas companhias definem quem somos. Ninguém, ainda que seja Cristo, anda apenas em boa companhia. Mas isso em nada justifica quem anda sempre mal acompanhado.
Tenham paciência, vocês que tanto falam mal do Brasil. Um dia o Brasil dará certo. Não antes que eu morra, com certeza, mas talvez antes que o país afunde de vez.
Era tão bela e tão arrogante na sua beleza que ignorava minha existência. Revi-a 10 anos mais tarde e murmurei apenas para mim próprio: como a natureza é impiedosa com as mulheres. É verdade que tudo passa, mas há coisas que passam muito mais depressa.

domingo, 20 de setembro de 2015

Máximas e Mínimas XIII


Brasil: um país tão grande habitado por gente tão pequena.
Sou do tempo em que TV era te ver.
O Brasil sempre compensa uma década ganha com outra perdida. Noutras palavras, periodicamente emergimos para o fundo do poço ou ascendemos para o buraco.
Afinal, somos um país emergente ou imergente?
Os brasileiros continuam esperando que Deus resolva os problemas que eles criam. Prefiro acreditar que quem aqui faz, aqui paga. A desgraça é que uns poucos roubam para que a maioria pague a conta. Mas a maioria não é inocente. No mínimo abre a porta para o ladrão entrar. Ninguém é inocente.
O Brasil é um país de esquerda com uma realidade de direita.
Quem tem a esquerda que temos não precisa de direita.
Narcisismo é uma doença imune até à velhice, que para Narciso é apenas adolescência tardia.
Sou do tempo em que se pedia empréstimo verbal isento de qualquer garantia que não fosse a honestidade do devedor. Hoje quem deve não paga e ainda se sente com o direito de pedir mais. Já inventaram até o amor a fundo perdido.
Corrupção no Brasil tornou-se uma virtude que nenhum oportunista desperdiça. Afinal, ela rende tudo, menos punição.
Brasil, país do faturo.
O PT realizou o verdadeiro milagre brasileiro: transformou o Brasil num país pior do que era.
Só quem é muito pobre e muito ressentido acredita que o dinheiro compra tudo. O dinheiro não compra tudo, mas compra muita coisa.
Não temos a mais vaga noção do que a estrela cintilante é e no entanto acreditamos que a realidade corresponde à aparência apreendida pelos nossos sentidos.
Ame um cão:
Se você se sente solitária e infeliz no amor, ou simplesmente se desiludiu dessas máquinas caprichosas e confusas que são os seres humanos, adote um cão. Seres humanos são dotados de uma singularidade da qual derivam nossas grandezas e misérias: a liberdade. Pena que a maioria a use como uma pata de elefante querendo esmagar uma mosca numa loja de cristais. A mosca é o alvo da liberdade humana e os cristais são seres humanos perseguindo o mesmo fim. Talvez algum dia destruam totalmente a loja.
Apesar de ser o país do jeitinho, o Brasil definitivamente não tem jeito.
O Brasil é o paraíso onde em se plantando tudo dá. O que?
O Brasil é o país da diversidade. Celebra-se a diversidade com festa, claro. Só que os que não gostam da festa ou não querem freqüentá-la são privados até do direito de ficar em paz dentro de suas próprias casas. No Brasil, até a diversidade é autoritária.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Máximas e Mínimas XII


Os sonhadores sonham com a inconsciência de que há sonhos que produzem pesadelos.
Cheguei enfim à idade em que as mulheres amáveis me vêem fotografado à beira mar e dizem: “Que bela foto! Que bela paisagem marítima!”
A vaidade é uma doença incurável que se agrava com o passar dos anos.
Somente um materialista grosseiro acha que pão é necessidade e circo é apenas diversão e alienação política.
A única contribuição da Inglaterra à história do futebol foi o pontapé inicial.
Cheguei afinal à idade em que entro na fila dos idosos sem que ninguém proteste chamando-me de fura-fila.
Se os ingleses pecam por excesso de civilização, os brasileiros pecam por excesso de esculhambação.
Intercâmbio cultural:
Os melhores daqui vão para lá
Os piores de lá fogem pr`aqui.
O que caracteriza o cético autêntico é o estado de dúvida permanente inspirada pela busca da verdade decorrente da argumentação racional. Por isso seus principais inimigos são o dogmático, o crédulo e o cínico.
A saudade é uma traição da memória.
Uma das poucas virtudes da democracia é provar que não há diferença significativa entre Fernando Collor e Luís Inácio Lula da Silva. Basta elegê-los para a presidência e ver o que fazem no exercício do poder.
Não é por não acreditarem em belas abstrações como “a grandeza do futuro do Brasil” que não levo a sério os políticos brasileiros. Queria apenas que acreditassem e lutassem por um futuro melhor para os seus filhos. Essa forma salutar de egoísmo traria benefícios enormes para o país. Infelizmente, até o egoísmo deles é cego.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Máximas e Mínimas XI


Muita gente ama a vida porque não suporta a realidade. Raros os que amam a vida real.
Amo você como você é. Não se ouve frase mais banal e inconsciente na linguagem dos amantes. Por isso os amantes mentem tanto. Se eu pudesse realizar meu ideal de felicidade no amor, diria que esse ideal consiste no seguinte: amar dentro da verdade, ser feliz tendo a verdade como princípio. Infelizmente, me confesso incapaz disso e nunca conheci ninguém capaz de converter esse ideal em realidade. Portanto, convém amar nossa imperfeição tantas vezes mentirosa ou consolar-se amando gato e cachorro.
Uma relação de ódio pode consumar-se no flash de um gesto ou palavra. O amor, entretanto, precisa sempre e sempre dar provas de si: do quanto é generoso, atencioso, desprendido, quente, protetor, fiel, luz acima das meias tintas cotidianas dentro das quais movem-se nossas existências insignificantes. Ai dele se não transpirar no calor e espirrar encolhido dentro do frio. Ai dele se, depois de dez anos de estrita fidelidade, chover no verão ou menstruar em pleno desfile de moda. Ai dele se entoar uma marcha fúnebre na madrugada do segundo dia de carnaval ou dançar um frevo no velório da sogra assassinada. O ódio, por outro lado, não requer qualquer talento ou virtude. É tão fácil quanto ferver água ou dormir de olhos fechados. Por isso às vezes não resisto à recorrência do fracasso e assim me rendo desolado: "Caramba, estou cansado de amar!" (agosto de 1993).
O Brasil passou de colonial a subdesenvolvido, em seguida a país em desenvolvimento, daí a país emergente. Subimos tanto e todavia continuamos atolados no mesmo buraco.
A política denuncia como uma fratura exposta o pior da nossa natureza. É por isso que corro dela. Não é que me suponha apolítico, já que ninguém o é. Simplesmente admito ter o nariz delicado demais para suportar a cru meu próprio cheiro.
Ideologia é a fé secular de quem é incapaz de andar sem a muleta de uma religião.
O otimista é um pessimista mal informado.
Otimista é quem despreza os fatos que desmentem sua expectativa.
O pessimista não é quem vê e espera o pior da realidade; é simplesmente quem aceita a realidade como ela é.
Tanto buscamos o amor, por certo o sentimento e a experiência suprema da nossa vida, e todavia como tão mal e erradamente o vivemos. Juramos amar aceitando o outro como ele é. No entanto, contradizemos essa promessa generosa, pois somos incapazes de transcender o egoísmo que rege nossa natureza. Se amar é um ato de doação, sair de si para se dar ao outro, por que tantos amantes não saem de si próprios?
Se houvesse no ser humano um grão de sabedoria, ele adotaria como princípio ser fiel à sua natureza. Somos, contudo, tão inconscientes do que somos que confundimos a função do papel higiênico com a do guardanapo.
Os céticos antigos diziam que a vida não era para ser levada a sério. Mas no Brasil, convenhamos, a gente exagera.
Inconsciência, teu nome é Brasil!
A vaidade é uma variação ruidosa da estupidez.
As pessoas não suportam o silêncio porque temem ouvir a sua voz irredutível.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Máximas e mínimas X


 Sabedoria
A luz da sabedoria
fulgiu no retrovisor
mas logo de mim fugiu
e antes de ser já passou.

            Meteorologia
Dizem que a curitibana
é mais fria que a inglesa.
O Vampiro Trevisan
no entanto logo revida:
Não existe mulher fria
apenas mal aquecida.

Silêncio vs. Ruído
O silêncio é ausência que fala
contanto que o ruído silencie.
O silêncio é presença que se ausenta
negando no seu ser o que é ruído.

“Equilíbrio de antagonismos” é uma frase que Gilberto Freyre assimilou da obra de Carlyle. Mais que adotá-la, usou-a como um dos suportes explicativos da sua interpretação do Brasil. É fato que os ingleses são mestres na arte de equilibrar  antagonismos. No entanto, precisaram impor limites constitucionais à monarquia e, no caso extremo, decapitaram um rei. No Brasil continuamos equilibrando muitos antagonismos, mas os benefícios vão sempre para a conta do dono da balança. Quanto às cabeças, as que até hoje cortaram foram sempre as do povo.

Quem tem a esquerda que temos não precisa de direita.

No Brasil, o único rio que não seca nem transborda é o de Janeiro.

Está bem reconhecer que nossa bagunça é insolúvel. Mas os que a convertem em virtude cultural confundem fato com justificação ideológica. Bagunça pode ser virtude enquanto estado carnavalesco, não enquanto estado permanente de ser. Quando a bagunça ameaça escapar a qualquer controle, seus próprios apologistas convocam as forças armadas para botar ordem na casa. Através da força, naturalmente.

Bola de cristal:
Se eu tivesse uma bola de cristal, ou me chamasse Tirésias, desenharia o seguinte cenário político para 2014: Lula será novamente candidato a presidente da República e será eleito pela maioria silenciosa, constituída sobretudo pelos beneficiários do Bolsa Família. Num país onde a maioria vive ainda no século XIX, ou foi barrada diante dos portões da modernidade, como estranhar que o propagador desse colossal programa assistencialista seja cultuado como um pai provedor? Muita coisa vai mudar e já está mudando desde que o povo ocupou as ruas, mas o Brasil continuará sendo uma mescla surreal de capitalismo globalizado e Estado patrimonial tangido pelas rédeas pré-modernas de uma classe dirigente cuja mentalidade é ainda patriarcal e escravista. (26 de junho de 2013).

domingo, 6 de abril de 2014

Aforismos e Cia.

               
                   
            Impermanência
Tudo é impermanência:
Eis tudo que é permanente.
Mas nossa humana demência
Sonha o eterno presente.
            Vaticínio realista
Ame e viva o presente
Porque o futuro será muito pior.
            Confissão
A confissão migrou do confessionário para o divã, que é interminável e caro. Confiei sempre, até por ser pobre, na confidência da amizade, relação de reciprocidade isenta de guichê e outros interesses escusos. Como esta, a amizade, dissolveu-se em relação de mercado, restou-me a literatura, que converte a confissão em ficção. Não sei de analista melhor. Não cura nada, como a psicanálise, mas pelo menos não custa nada.
            Alfabetização
No meu tempo, Ivo se alfabetizava vendo a uva. Hoje Ivo come a uva, depois a viúva, mata a aposentada e fica com a pensão.
            Democracia
Quem diz que a democracia é o governo do povo, não conhece o povo, muito menos o poder.
            Verdade política
Se um político lhe disser a verdade, ainda que baseado em provas, não acredite. Há sempre o risco improvável de as provas serem verdadeiras.
            Fidelidade
Era tão fiel que traía duas vezes antes de falar.
            Ambição
Sou tão ambicioso que me iludo com a ilusão de me contentar com o que sou e tenho.
            Dinheiro e felicidade
Se o dinheiro não traz felicidade, como juram os que têm demais e os que não têm nenhum, preferiria ser infeliz com muito dinheiro.
            O criador e a criatura
Se Deus existe, como explicar que tenha criado uma espécie tão imperfeita quanto a espécie humana?
            Morrer
Morrer é provavelmente nosso medo extremo. Mas tem uma vantagem: só acontece uma vez. A não ser que você se chame Lázaro e tenha um amigo chamado Jesus.
            Imitação da vida
A maioria dos seres humanos não é socializada para ser livre, mas para imitar a maioria. Conheço raros indivíduos fiéis à radicalidade libertadora do individualismo.
            Acaso e azar
O brasileiro é tão fatalista que confunde o acaso com o azar.

Recife, 4 de abril 2014.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Máximas e Mínimas IX

            
            Consolação niilista:
            De tanto nada esperar
            eu nunca desesperei.
            Sendo incapaz de contar
            nunca dos três eu passei.
            E assim no nada meu nada
            calmo mergulha e até nada
            no tudo em que me afoguei.


Mas eis que na noite, quando pacificado respiro dentro da minha infelicidade confortável, assomam os rumores de uma voz proveniente da catástrofe: "O que sabe a mão que escreve catástrofes da catástrofe real do mundo?" Foi apenas um breve rumor, nota errante logo tragada por sons e ruídos circundantes. Que sei eu de fato sobre a catástrofe?

            Afora as formas correntes de corrupção, o mais seguro investimento brasileiro é ingressar numa família de bens.  Dependendo da escolha feita, pode-se automaticamente gozar do privilégio de ter casa na praia, no campo e na cidade, emprego no Estado e médico privado com absoluta isenção de custos. Perde-se, claro, a liberdade de ser solteiro, indivíduo dono de si próprio e do seu destino controlável. Mas não encontrará essa liberdade, para tantos um fardo intolerável, em si própria seu desejo de perder-se?

            Cindida entre o superego protestante e a carne aberta aos eróticos calores dos trópicos, refugiou-se na mentira como se esta fosse uma âncora boiando em meio ao naufrágio da psique. Mentindo por teimosia, mais tarde por convicção, acabou tomando por verdadeira toda a vida de mentiras com que presumira enganar-me. Se entretanto os fatos com frequência a desmentiam, pior para os fatos e meus ouvidos traídos. Por fim, nua na própria mentira vestida, nada mais restou-lhe, salvo atribuir traições de fato às maquinações projetivas do meu ciúme doentio. Como discernir, diluída neste oceano de irrazão, a gota de minha razão caindo caindo caindo...

            Assim canta a voz da solidão amorosa nas vozes de Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan: "In my solitude, you haunt me / with revêries of days gone by... " Na companhia de Antonella, entretanto, corpos latinos ludicamente movendo-se dentro do fog e da austeridade cravada sobre cada pedra das ruas de Colchester, "Solitude", esta mesma de Duke Ellington cantada em tons de dilaceramento pelas vozes negras citadas, convertia-se em matéria de fantasia e charme. "Solitude" era entre nós continuamente retraduzida, recontextualizada, reescrita ao sabor e humor das nossas fantasias e circunstâncias. Como sonhar essa virtude latina aclimatada às regulamentações ordinárias de uma cultura puritana? Alheia a barreiras impostas por espaço e tempo, minha imaginação salta da noite tropical nordestina para as ruas de Florença onde o corpo latino de Antonella dança os sombrios compassos de "Solitude" em ritmo de tango ou carnaval veneziano.

Quando no Hamlet uma personagem diz que "something is rotten in the state of Denmark", a podridão é de imediato denunciada pelo fantasma do rei assassinado pelo próprio irmão, usurpador do trono e novo senhor da rainha, mãe de Hamlet. "Frailty, thy name is woman". Mas este é já um outro tema. O meu, comprimido nas magras linhas deste parágrafo, é a podridão gerada pela ambição humana inscrita no cerne dos regimes de opressão e poder. Dado o avançado estado de degradação da coisa pública no Brasil, quem teria ainda o cinismo ou a inocência de assinalar a podridão do Estado brasileiro? O odor pestilento tanto corrói os ares e as almas, tanto frequenta o noticiário do dia, onde reportagem política há muito se confunde com livro de ocorrências policiais, que ghost já soa como se fosse gosto. E como dizem que gosto não se discute, resta apenas indagar: "What's your rotten taste?"

            Se virgindade fosse virtude
            eunuco seria santo
            teu gozo meu casto espanto
            a tua coca meu luto.

            Se falta fosse virtude
            pobreza casta nudez
            se este sol que me ilude
            iluminasse vocês
            elegeria o Nordeste
            céu, meu bordel português.

Meu país ideal seria um entre-lugar acima das fronteiras culturais que opõem Brasil e Inglaterra. Exemplos: Entre a baderna do primeiro e a rigidez codificada do segundo, um erotismo plasticamente civilizado, um "eros, builder of cities", como o cantou Auden no admirável poema "In Memory of Sigmund Freud". Entre a aridez vitoriana da inglesa e o corpo carne em vitrine da brasileira, uma medida ilustrada capaz de temperar nudez e ocultamento ativador dos sentidos já um tanto indiferentes diante do excesso de exibição e oferta. Entre o silêncio tumular das ruas britânicas e a barbárie reinante nas brasileiras, um ideal de convívio harmoniosamente dosando instâncias pública e privada. Como porém sei que meu país ideal não existe e nunca poderá existir, luto para conservar os vulneráveis limites da minha casa à margem do Brasil celebrado pela tradição antropológica proveniente de Gilberto Freyre e prolongada em Roberto da Matta. Matta que não é mata nem mata, thanks God.

            Nos anos 70 o arrogante triunfalismo da ditadura militar deu livre curso a dois lemas: um restaurado do nosso filão de mitos ("Brasil, país do futuro") e outro importado da matriz americana ("Brasil: ame-o ou deixe-o"). O primeiro atolou nos roteiros da transamazônica, estrada faraônica que partia do Piauí para nenhum lugar, e outras equívocas vias e acabou roído na letra de calendários celeremente envelhecidos. O segundo, nas origens brandido contra uma minoria empolgada pelo sonho delirante de promover uma revolução socialista neste país de capitalismo perversamente estatizado, tornou-se tão obsoleto quanto o país do futuro. A derrocada é tal que até quem antes o amava e batia continência para a tecnocracia militarizada agora anseia por deixá-lo. Se o fluxo de deserção não é massivo, a causa não radica na sobrevivência do amor pela pátria arruinada, mas no fato de que lá fora o sol declina em algumas latitudes alvejadas pelo sonho do desertor potencial e muitas fronteiras estão fechadas.
Recife, agosto de 1993.



quinta-feira, 14 de março de 2013

Aforismos e desaforos V


A mulher será muito superior ao homem se um dia descobrir que a cabeça é a parte mais importante do corpo humano.

A mulher é a melhor coisa já inventada para o homem. As mais devotadas se extremam nessa função ao ponto de cuidar do homem do berço ao túmulo. Só que o misógino acrescenta: ai do santo que paga o preço de tal devoção.

Pascal é o avesso de Montaigne. É por isso que tanto se assemelham.

Uma das expectativas mais insensatas do ser humano é depositar no que não é ele o que somente ele pode ser.

Se a finalidade do aforismo fosse fazer rir, o aforista seria apenas um palhaço de picadeiro.

Aforismo pode ser até desaforo para quem o lê ao pé da letra.

Tem gente que vive como se a principal função da cabeça fosse bater contra a parede.
Grande parte da estupidez contemporânea deriva da cisão entre a mente e o corpo. Se é verdade que o ideal é ter um corpo saudável e uma mente sã, é fácil compreender por que há tanta mente insana. Basta começarem a falar ou a cantar.

Atenção, patrulha politicamente correta: a boceta da obra de Machado de Assis é outra coisa.

O mito de que o dinheiro compra tudo é uma invenção de quem nunca o teve ou então por ele tudo vendeu.

Livros tediosos matam. É por isso que o intelectual acadêmico típico não passa de um assassino arrogante.

O governo culpa a sociedade pelo desgoverno das nossas cidades, enquanto a sociedade culpa o governo pelo desgoverno dos governantes. A solução é simples: basta suprimir ambos.

Variando o aforismo precedente, no Brasil o culpado é sempre o outro. Isso explica nossa irresponsabilidade até em face do imperdoável.

A fama se tornou tão barata que me espanta o anonimato de tantos cultuados por nada serem. Que obra produziram, que feitos os distinguem? É por isso que relembro sempre as palavras de Chesterton: quando deixamos de acreditar em Deus, passamos a acreditar em qualquer coisa.

Aforismo e aforista
São coisas tão deste mundo
Que por mais que lave a vista
Mais vejo o mundo imundo.

Quem disse que o catolicismo retomou suas origens universalistas ao eleger um papa argentino? A Argentina é a Itália da América Latina.

O novo papa adotou o nome de Francisco e, segundo dizem, é homem de hábitos dignos de um franciscano. Isso bastou para que os apressados começassem a alimentar expectativas improcedentes. Se você é católico partidário da liberdade sexual, do aborto, da igualdade de gênero e da canonização de Pelé, tire o andor da chuva. Melhor dizendo, adote uma religião secular como o consumismo, que é de resto a mais popular e poderosa religião do mundo em que vivemos.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Aforismos e desaforos IV


Quem lê aforismo ao pé da letra deve mudar de letra para não atirar no próprio pé. Aforismo, assim como poesia, é metáfora ultracondensada. Nenhum aforista perde letra atirando no pé do leitor. Aforista que se preza é como a polícia brasileira: só atira na cabeça.
A mulher tem muito mais aquilo na cabeça do que o homem. O problema é que ela chama amor o que o homem chama sexo.
Existem muitos tipos de progresso, mas apenas um é absolutamente previsível e inescapável: nosso progresso em direção à morte.
A psicanálise é uma terapia tão ineficaz que culpa o paciente pelas doenças que ela inventa.
O único benefício comprovado que o divã do psicanalista propicia é repousar por alguns minutos o corpo fatigado do paciente. Tanto é verdade que sei de um que adormeceu durante uma sessão.
A solidão me tornou pior do que fui. Se entretanto escolhesse ficar com as companhias que tive, seria muito pior.
O único cristão que existiu foi Cristo. Marx, que leu a si próprio, disse que não era marxista.
Quem precisaria dos ensinamentos de Cristo para ser um Judas ou atirar pedra em pecadores? Acreditaria no cristianismo se os cristãos seguissem pelo menos o exemplo do bom samaritano.
Não me leia quem supõe que falo apenas de mim. Que importância tem meu ego mesquinho para que eu fale apenas de mim? Tudo que escrevo contém pelo menos um grão de sentido que prescinde do meu ego.
Falando francamente, nunca fui flor que se cheirasse, mas o jardim cheira muito pior.
A única nostalgia que me dói é a da bondade que está além da minha banalidade.
Andava sempre com um peso irreparável no lado do coração: era a culpa de não ser na amada o que somente ela poderia ser.
Não sou eu que complico a vida; as pessoas é que me complicam.
Nada como sonhar alto. Quando era criança, sonhava fazer-me grandioso e acabei ultrapassando todas as minhas expectativas: tornei-me tão anônimo que nem a mim próprio me reconheço.
Alcoólatra ao ponto de beber até água, contanto que com muitas doses antes e as saideiras depois.
Eu era ruim, mas as más companhias me tornaram muito pior.

Um defeito anulava suas virtudes: ressentia-se com a ingratidão daqueles a quem fazia o bem. Ora, o bem é um fim em si próprio. Além disso, quem pratica o bem aspirando a qualquer sorte de reconhecimento, nada sabe da ingratidão humana.
Nunca faça o bem sem cobrar adiantado. Invertendo o dito popular, nunca faça o bem sem antes olhar a quem.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Aforismos e desaforos III


Não recomendaria a ninguém um deus que me fizesse à sua imagem e semelhança.
Se compaixão matasse, Cristo não teria morrido na cruz. Há porém compaixão que pesa como uma cruz.
Ninguém herda nem adota caráter, assim como não se herda nem adota gênio. Caráter é uma conquista; no Brasil, um castigo que não aconselho a ninguém.
O sujeito que ousa dizer que é neoliberal é capaz de vender qualquer coisa.
O crime mais hediondo para o capitalismo é não ter renda.
Comunismo não é ideologia inventada e adotada pelo pobre. O que o pobre inventa é a nobreza das fantasias de carnaval.
É fácil explicar o triunfo universal do capitalismo: sua matéria prima ou fator redutor do seu funcionamento é o egoísmo. Somos tão egoístas que consumimos o primeiro terço da nossa vida sugando a renda dos nossos pais. Nos dois restantes sugamos a renda e o trabalho dos outros próximos.
Piada de velório: tão insignificante que passava despercebido bem antes de morrer.
Imortais de academia são tão mortais que confundem vaidade com imortalidade.
Quando perguntaram ao canalha por que ele era canalha, respondeu com a candidez somente concebível num canalha: a gente tem que ser alguma coisa na vida.
Ecos de García Morente: minha vida que não é minha, já que não a fiz eu, é contudo minha, pois somente eu posso vivê-la. Portanto, depois de uma certa idade, não importando as circunstâncias, não posso culpar ninguém pelas misérias que são minhas.
Livre arbítrio é uma ilusão mais poderosa do que o mito do Super-homem na imaginação infantil.
O único amor que fica é o que frutifica. O que o vento leva é o que mortifica, pois morre e fica, vai mas fica.
Se você ainda vê filme de Hollywood em busca de um final feliz, melhor migrar para a ilha de Caras, que é aliás minha leitura compulsória na cadeira da minha cabeleireira. Minha única alternativa é folhear Caras ou ficar me namorando no espelho. Como já envelheci me vendo, melhor o final feliz de Caras. Meu consolo é saber que um dia ficarei completamente careca.
Como diria um folião que ainda não voltou para casa, deixe o carnaval passar. Depois disso voltarei a ser o que mais tento ser: um homem tão reconciliado com o mundo como o folião com o seu carnaval.
O cerne do affair Yoani Sánchez não é a liberdade de opinião e derivados (a quem serve? Quem a financia? Quais os seus interesses etc.). O cerne da questão é a inviabilidade de um modelo de socialismo que se petrificou em tirania passada de irmão a irmão durante mais de meio século. Cito indiretamente duas fontes insuspeitas, pelo menos para a esquerda: socialismo em país pobre socializa apenas a pobreza. Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.
Por fim, o que responder a um dogmático que denuncia o embargo imposto pelos EUA como a causa do fracasso do socialismo cubano? O que dizer então do outro, isto é, o soviético que alimentava este e caiu de podre?
Se você não ajusta as contas com o seu passado, acaba apedrejando Yoani Sánchez por crimes que você cometeu.

Recife, fevereiro 2013.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Aforismos e desaforos II


A mulher que jura fazer tudo por amor é capaz de fazer qualquer coisa.

Os únicos erros imperdoáveis são os que escolhemos.
Os erros mais dolorosos são os irreversíveis.

Ela infernizou minha vida com o amor mais inocente e dependente concebíveis. Por isso já não duvido de que há formas de amor piores do que o inferno.

Só uma pessoa absolutamente inocente acreditaria que a inocência é inofensiva.
A maior vítima da inocência é a compaixão.

Seduzi Maria Inocência com um colar e ainda hoje ela me cobra as perdas e danos que me causa.

Antagonismo genético: a gravidez que pode ser o sonho de uma mulher pode igualmente ser o pesadelo definitivo do homem que a fecunda.

Sexo virtual é o meio mais seguro de controle da superpopulação.
Sexo virtual é mais estéril do que encíclica papal.

Batata, fundador do Bacalhau do Batata, é um dos mais celebrados heróis populares do Brasil. Gregório Bezerra é um dos heróis populares mais ignorados do Brasil. Não falta, contudo, popular indignado denunciando os políticos que temos.

Somente no Brasil promovem festa, carnaval e futebol como se fossem formadores de cidadãos. Depois ainda se espantam com as tempestades que colhem.

A supremacia universal do futebol é a evidência de que nossa razão foi transplantada do cérebro para o pé.

O Recife é sem dúvida a cidade mais musical do Brasil. De domingo a domingo, ouço serra elétrica, martelo, buzina, cachorro latindo e gente conversando aos berros, inclusive no celular. Nossa incivilidade despreza até a tecnologia digital. O recifense não trabalha, desacata a ordem pública; não conversa, bate boca.

De acordo com estudo realizado pela ONU, o parlamentar brasileiro é o segundo mais caro do mundo. Fazendo o que faz, se ele nos pagasse ainda sairia muito caro.

Somos tão inconscientemente egocêntricos que atribuímos nossa ferocidade às feras, nossa rapacidade aos ratos, nossa agressividade ao leão e ao galo, nossa grosseria ao cavalo, nossa lascívia ao gavião. Por fim, já que em toda a natureza não há espécie comparável à nossa maldade, tivemos que inventar a figura mítica do Demônio cuja sinonímia e provas do crime são fartas nos boletins de ocorrência, no instituto médico-legal, no código penal e nos necrológios.

Foi por ser francês que Sartre disse: o inferno são os outros. Se fosse brasileiro, mandaria os outros para o inferno. Se fosse pernambucano, iria sozinho.

O Brasil não existe. O Brasil é apenas a mais grandiosa obra de ficção da literatura universal. Por isso nossa literatura é tão insignificante. Que gênio da imaginação poderia competir com esse gigante feito de símbolos insubstanciais? Ouçam a tempestade fantasiada que sopra nos sambódromos e nos estádios de futebol: ficção pura.
Recife, fevereiro de 2013.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Aforismos e desaforos


O Brasil já teve um Ministério da Desburocratização. Realizou a obra que alguns brasileiros ajuizados previram: burocratizou ainda mais o país. Por que não renovamos essa experiência extraordinária fundando agora o Ministério do Funcionamento? Tenho certeza de que faria o país parar de vez.
O Brasil é ruim, mas comigo é pior.
O Brasil deu à incivilidade moderna duas grandes contribuições: o carnaval e o futebol. Um povo capaz de tal façanha não precisa ser governado a pão e circo. O circo é suficiente.
Carnaval é regressão tribal. Como suportar o peso, a responsabilidade suposta na condição do indivíduo moderno? As massas precisam refugiar-se em algum abrigo tribal, que tanto pode ser o carnaval quanto a adesão ao nazismo. Ruim por pior, antes o carnaval.
Sou do tempo em que paralelepípedo era palavrão.
Sou do tempo em que o trânsito transitava e carro era meio de transporte. Agora, levando a regência verbal ao pé da letra, o trânsito tornou-se intransitivo.
Sou do tempo em que engarrafamento era uma grande quantidade de garrafas, geralmente esvaziadas durante o carnaval.
Sou do tempo em que masturbação era doença.
Masturbação é a prática sexual mais universal que existe, inclusive na velhice. Até os impotentes vingam-se com a masturbação imaginária.
Sou do tempo em que as pessoas tinham pudor e as mulheres enrubesciam. Hoje constrangimento moral é pó de ruge.
Sou do tempo em que gala era outra coisa. Não era o que se vestia, mas o que se vertia.
Sou do tempo em que a lança-perfume era liberada e o carnaval acabava na Quarta-feira de Cinzas. Agora, traduzindo apropriadamente a propaganda oficial do governo de Pernambuco, vivemos em estado de permanente anarquia.
O Brasil vive num estado de violência que beira a guerra civil. Por isso ninguém mais o percebe. A guerra no trânsito, a violência endêmica, rebeliões de todos os tipos, a começar pelas da polícia, banalizaram os conflitos ao ponto de torná-los imperceptíveis. Como estranhar que nos vejamos como um povo amável e cordato?
Sou do tempo em que a mulher não gozava, apenas submetia-se aos ditames cristãos da preservação da espécie.
Sou do tempo em que jogador de futebol era apenas jogador de futebol e fazia o que sabe fazer com um par de chuteiras. Agora inventaram de fazê-lo falar, entre outras impropriedades, e assim a chuteira lhe subiu à cabeça.
Já há quem faça na televisão o que não fui capaz de fazer nem no bordel.
A televisão é o único eletrodoméstico que emburrece e corrompe.
Se eu acreditasse em reencarnação, gostaria de voltar ao mundo como cachorro, ainda que vira-lata. Além de muito complicado, o ser humano se tornou demasiado dispendioso. É tão descaradamente traidor que transferiu o peso da fidelidade para Deus.
O etnocentrismo é uma doença tão incurável quanto a rinite alérgica.
Para o bairrista, qualquer acampamento urbano é a melhor cidade do mundo, contanto que seja a sua.
Amor é a mercadoria que mais vende, embora jamais ouse declarar o seu preço. Aliás, sequer admite sua redução ao fetiche da mercadoria.
Como ter polícia com a polícia que temos?
Não é fácil ser adulto. Sei de muita gente que não apenas vive da nostalgia da infância, mas também nunca saiu dela.
Misericórdia pelo outro e por mim próprio. Somos pequenos e vulneráveis demais para merecer algo melhor.
Recife, fevereiro de 2013.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Máximas e Mínimas VIII


A revolução tecnológica tornou a mentira factualmente inviável. No entanto, nunca se mentiu tanto, assim como nunca houve tanto crédulo imbecil. Definitivamente, o ser humano não suporta a verdade.
A renúncia do papa, em pleno carnaval, não teve o poder de silenciar um só tamborim, um só grito de folião, uma nota de frevo nas ruas. O país de maior população católica do mundo deu livre curso ao seu carnaval indiferente à renúncia da autoridade suprema do catolicismo. O fato é excepcional, mas os exemplos da irrelevância normativa da religião no mundo secularizado são apenas uma banalidade. Embora não falte especialista que fale em reencantamento do mundo, fico com minha convicção de ignorante: o que há é desencantamento do reencantamento. Trocando em miúdos, Deus continua sendo objeto de fé, mas de uma fé semelhante à que temos num protetor secularizado e rebaixado à nossa medida humana. Deus se tornou menos normativo do que o guarda de trânsito.
O pernambucano não é solidário nem no carnaval.
Há pessoas mesquinhas até no gozo da nossa maior orgia coletiva, o carnaval. Precisam suprimir o prazer do outro para viver a ilusão narcisista do prazer exclusivo e absoluto.
Não posso definitivamente levar a sério um país que sopra aos quatro ventos do universo, com absoluta razão, que faz e é o melhor carnaval do mundo.
Somos tão vulneráveis que em princípio qualquer coisa pode nos matar. Podemos morrer de amor. Podemos morrer por falta de amor, causa provavelmente mais frequente. Mais frequente ainda é morrermos de fome. Portanto, antes um prato cheio do que um coração amante e amado.
Se tivesse ainda alguma ilusão acerca da humanidade, sentaria durante dez minutos diante de uma televisão ligada.
Tive compaixão do homem arrastado pela corrente ruidosa do carnaval. Sequer gostava do carnaval; sequer ensaiava um passo de frevo ou entoava uma marchinha. Debateu-se na corrente, que o empurrou à deriva da massa, simplesmente por já não saber de si, de sua solidão, de sua carência de amor. No delírio que o possuía, acreditou que o amor, produzido por um feliz acaso, o abraçaria em plena folia. Seria uma mulher de linhas e traços opacos, mas belos, sensuais e inconfundíveis. Tudo que sabia era que desceria sobre ele como um milagre, um marco zero refundando sua vida árida e vil.
Na Quarta-feira de Cinzas, mais exausto que a massa ébria, mais esvaído do que o carnaval, cujos últimos clarins vibravam no ar tórrido do asfalto, tombou na sarjeta e perdeu os sentidos. Dizem uns que foi recolhido por uma ambulância do Samu; outros, que seu corpo afundou nas águas sujas do Capibaribe. Por fim, um louco ou visionário, que há muito vaga pelas ruas, jura que o viu ascender aos céus de braço dado com a Virgem Maria, que doravante será apenas Maria.
Qual é o prato mais servido na mesa do pobre? O vazio.
Qual é o melhor carnaval do mundo? O que acabou.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Máximas e Mínimas VII


Quanto de auto-ironia, quanto de estoica resignação neste verso do mais belo poema de Elizabeth Bishop: "The art of losing isn't hard to master"? Os raros que na vida lograram dominar essa dolorosa arte, a da perda, em parte o fizeram constrangidos pela necessidade de sobreviver depois que tudo ou quase tudo lhes faltou dissolvido no ar sem esperança: modelos primários, amores, empregos, utopias, o próprio e irreparável desejo de felicidade condenado a errar num mundo onde quase tudo contra ele conspira. Assim, à parte o mérito estético do verso e, por extensão, do poema de Elizabeth Bishop, apenas num registro irônico ou estoico poderia alguém, qualquer perdedor humano, justificadamente afirmar que a arte de perder não é difícil.
Inteirado de episódios que de modo decisivo marcaram a vida dessa poeta tão longamente vinculada ao Brasil, vastidão e porto que comunicaram beleza e amor a um legado puritano perfilando sua identidade sempre movente, senão deliberadamente despatriada, custa-me ler este poema,"One Art", sem a ele agregar essa componente de fundo biográfico. Ademais, como em tantos aspectos episódios também decisivos da minha vida se cruzam com os dela, minha leitura mais espontânea finda por ser mesmo a empática, dimensão sutil onde a voz lírica ou crítica do autor se funde à do leitor. É de resto tão recorrente e fecunda a relação de identidade intervindo na combinatória autor e leitor, mediados pela obra, que somente essa verdadeira praga teórica chamada estruturalismo, além das leituras positivistas a ela nesse aspecto associadas, poderia explicar o desapreço, quando não franco desprezo, com que passou a tratá-la o leitor especializado.

Tão inconsciente que era incapaz de distinguir id de ide.

Por que entregar-me à hipotética corrente de um amor sem medidas, se já na carne aprendi a desmedida com que me puniu?

Se o amor é cego, não duvido de que anda de bengala.

Se a justiça é impossível, como pretendê-la provável?

Se a fidelidade é o teu critério, por que o demonstras traindo-me?

E como para sempre me amarias, se somos apenas mortais?

Não duvido de que sempre penses em mim. Mas não é verdade que pensamos enredados em contradições na rede do pensamento mesclando o amante ao marido, o oprimido ao opressor, o lucro ao que já perdemos?

Bons tempos aqueles em que o brasileiro podia consolar-se com o provérbio que o aconselhava a esperar sentado.

Tanta gente ávida por desnudar sua intimidade diante de refletores, câmeras e microfones. Transitam da festa à cama, da vida ao vídeo, do corpo ao coito, da coca à foda como se o que são e dizem tivesse alguma importância.

Beckett compara em tom de piada, ou nonsense, a criação do mundo, obra apressadamente concluída por Deus em apenas seis dias, à confecção de um par de calças indefinidamente adiada pelo alfaiate. O cliente, já fatigado de ir e voltar, afinal se impacienta e compara as duas ordens de criação intentando desqualificar a do alfaiate. Este suspira imperturbável e observa: "But look at the state of the world, my dear sir, and look at my trousers".

Quando tantos descaradamente negociam posições e princípios, resisto do alto desta montanha sustentado por forças morais que me elevam acima de todas as corrupções e virtudes mercenárias. Como todavia não sou obstinado, obstinação nunca foi virtude nem em tempos virtuosos, confesso que estou disposto a negociar meus fundos de integridade ética. Afinal, aprendi com o exemplo de homens mais virtuosos que o meu xará Fernando Collor que não há virtude inegociável.

Se falta de amor matasse, o mundo seria quase um cemitério. Não lastime, portanto, sua sorte. Como escreveu Auden, que jamais bebeu a sede dos sertões nordestinos, "Thousands have lived without love / No-one without water".
Cuide assim de se preocupar menos com o pote vazio do seu coração e mais com o reservatório de água do seu condomínio. Como uma discreta dose de realismo previne desastres perfeitamente controláveis, sobretudo neste país de fantasia, antes racionamento de amor que de água.

E tudo para que?, às vezes liberto me pergunto. Toda essa trepidação cardíaca, corrida sem mapas dentro da noite, a atormentada busca de mim no outro, noites lutadas em claro contra fantasmas que ora atendem por amor, ora por ciúme, ora por privação da carne. Para que tudo isso, eu me repito, se de tudo nada fica, se a própria ruga se dissolve na poeira que és e o vento no ar pulveriza?

São Paulo, fevereiro de 1995.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Máximas e Mínimas VI


Maturidade é a calculada medida entre o galho, de onde tememos cair, e o chão, onde quiséramos solidamente assentar os pés. Como a medida aplicada é sempre muito inexata, não importando o rigor no cálculo suposto, o homem maduro prudentemente desce da árvore, deita sobre a relva e se perde na contemplação do galho que lá do alto o atrai, tangido pelos ventos trepidantes da vida. Maturidade é assim essa sutil carência medida entre a relva e o galho. Noutras palavras, é tudo que sobra do que não poupamos. Logo, não será melhor perdê-la na queda entre o galho e a relva, no voo errante movido ao impulso dos ventos trepidantes da vida? Sobe e salta, desafia o aventureiro indiferente à flor cinza da razão maturada; desce e contempla, retruca esta no metro do olhar medindo toda a vertigem da queda.

No país da cordialidade, não falta quem confunda grosseria com franqueza, assim como não falta quem confunda hipocrisia com civilidade.

Na medida em que é condição de convívio civilizado, a hipocrisia é o preço que a tolerância paga ao consenso.

Se fosse uma casa de tolerância, o Brasil seria um modelo de civilização.

Num país onde a delinquência veste a máscara da espontaneidade, o crime banal é tolerado e até louvado como jeitinho.

Fracassados acadêmicos, como eu, sabem que o currículo Lattes, mas não morde.

Desejar a mulher dos amigos é uma tentação que sempre mascaramos, sobretudo quando a realizamos.

O Código Penal brasileiro depena o criminoso pobre enquanto tem pena do rico.

A realidade é de direita. É por isso que quando a esquerda se apossa do poder logo se confunde com a direita. É também por isso que nunca confio em esquerda vencedora. A única esquerda confiável é a vencida ou fracassada.

Vou fundar a metaesquerda. Seu único objetivo será o de civilizar a política, não o de conquistar o poder.

Na Vara da Família: O amor começa com meu bem e acaba com meus bens.

Na dúvida, duvido.

Numa de suas boutades famosas, Paulo Francis disse que foi torturado pela ditadura, pois o carcereiro do quartel onde ficou preso ouvia Vanderléa no radinho de pilha. Sorte dele. Hoje sou torturado todos os dias, sem sair de casa e sem ditadura imposta pelo poder político, por coisa inclassificável. Perto dela, dessa coisa inclassificável, Vanderléa seria um luxo, canto de sereia nos meus ouvidos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Anovelhoariando


Leio nesses olhares ávidos de triunfo a expectativa da confirmação de uma verdade evidente e indisfarçável. Portanto, o que me resta é reconhecer o meu crime: sou velho, sim. Melhor dizendo, tornei-me velho. Mas estejam certos, vocês que vieram depois de mim, vocês também chegarão lá, ou aqui. Meu consolo é refugiar-me na linguagem publicitária do nosso tempo. Sendo assim, não sou nem me tornei velho, sou apenas um membro tardio e descuidado da terceira idade. Aliás, a única terceira do meu tempo era a terceira via, expressão com que se procurava tornar palatável a abominável socialdemocracia. Se tentasse ainda melhor sugerir os abismos que se cavaram entre gerações vizinhas, entre tempos que em eras remotas eram vividos como uniformes, ou quase inalteráveis, anotaria distinções do tipo das que seguem:
Sou do tempo em que sexo era pecado.
Sou do tempo em que cachorro era cachorro e gente era gente.
Virgindade era virtude. Perdê-la era perder-se, mancha indelével de desonra. Refiro-me evidentemente à virgindade feminina.
O Brasil parecia ter jeito, ou pelo menos a gente acreditava. Hoje a gente sabe que é insolúvel, mas finge acreditar que ainda dará certo.
Todas as pessoas de bem, ou supostamente de, tinham orgulho de ser de esquerda. Quem não era comunista era com certeza simpatizante ou companheiro de viagem.
Sou do tempo em que meus amigos brigavam por ideias, ainda que tortas e dogmáticas. Hoje brigamos apenas por cargos e escalas de renda e consumo.
Sou do tempo em que Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues eram reacionários e liberalismo era um insulto ideológico. George Orwell era agente do imperialismo americano e Stálin era o grande benfeitor da humanidade. Che Guevara simbolizava um fuzil varrendo a América Latina com múltiplos focos revolucionários. Hoje, como o compram, é um mito romântico domesticado pelo consumo que o converteu em pura dureza enternecida. Vestir o mito de Che tornou-se tão inofensivo quanto beber Coca-cola.
Sou do tempo em que acadêmicos de esquerda iam fazer pós-graduação nos EUA e retornavam a suas universidades de origem para dissertar sobre paradigma histórico-estrutural com ares de quem estivesse fermentando uma revolução comunista nos minúsculos círculos elitistas da pós-degradação que se tornou uma fábrica de diplomas para doutores iletrados.
Sou do tempo em que pessoas de direita mascaravam seu direitismo alegando ser de esquerda. Com a derrocada fragorosa dos regimes supostamente comunistas, somada à ascensão da esquerda em países do tipo do Brasil, esquerda e direita foram ficando semelhantes ao ponto de em termos práticos se confundirem. Sendo assim, não é de espantar que esquerdistas se orgulhem agora de ser de direita e direitistas se orgulhem de ser de direita. Enfim, parece que agora todos chegaram ao consenso tardio de que a realidade é de direita. Digo isso porque Freud – também eu, imodestamente – há muito sabia disso, fato que de resto não o torna necessariamente de direita. A propósito, quem sabe mesmo o que é ser de direita ou de esquerda?
A classe média ouvia bossa nova, Chico e Caetano, Edu Lobo e Gilberto Gil. Por isso olhava de cima, com patente desprezo, para bregas e bolerões como Waldick Soriano e Benito de Paula. Hoje, pasmem, Waldick, Benito e Ivete Seugalo são clássicos da MPB.
Filme de arte era atestado de identidade intelectual e ideológica. A gente morria de tédio, mas o tédio pagava os créditos do reconhecimento, nosso orgulho mimético de pertencer a uma casta privilegiada.
Nosso sonho de uma sociedade sexualmente liberada, fundada na livre escolha do sexo e do prazer, deu nisso que hoje vemos: sexo tornou-se a mercadoria mais universal e barata do capitalismo de consumo.
Sou do tempo em que havia barulho no ar, nossa cultura foi sempre ruidosa, mas em algum remoto lugar era ainda possível captar no silêncio miraculoso da madrugada as ondas sutis de um acorde dissonante. Hoje, até dentro de minha casa, último e vulnerável reduto de minha liberdade, sou forçado a ouvir tudo que rejeito e odeio: o vendedor de gás, o traficante de cd pirata, o alarme dos carros, a febre trepidante da construção civil, o buzinaço dos torcedores de futebol eufóricos e toda a boçalidade repetitiva que designam como música popular contemporânea. A tortura mais inescapável e corrente do nosso tempo é a auditiva. Isso explica o paradoxo seguinte: num país orgulhoso de ser tão musical, bem poucos fazem e ouvem música. Ninguém precisa da idiossincrasia de João Gilberto, nem do recolhimento dos monges, para constatar o quanto fomos privados da liberdade de ouvir o silêncio.
Fumar era um ato de ingresso e afirmação dentro do mundo adulto. Era sobretudo sedutor e por trás da névoa de fumo a gente dissimulava a timidez e insegurança diante da mulher desejada. Hoje o fumante é o equivalente do comunista na década de 1970.
Ah, o cinema ia morrer. Somente o livro, na crônica dos vaticínios catastróficos, teve e tem fôlego de sete gatos para morrer e ressuscitar mais que o cinema.
Como veem, sou velho. Sou tão velho que nasci num outro século, num tempo em que palavrão era palavrão. Hoje é apenas refrão do vocabulário infantil.
Sou do tempo em que todo mundo era contra o mercado, tinha horror ao mercado. O mercado que reconhecíamos, e amávamos com tinturas de lírico esquerdismo populista, era o mercado popular com sua sujeira, seu tradicionalismo insalubre, sua inércia mercantil. Shopping, invenção posterior agora convertida em templo do consumo, shopping era apenas chope.
Sou de tempo em que honestidade era virtude. Meu pai, já falido, vendeu os cacos sobrantes para pagar a seus credores, não para antes investir num outro meio de vida. Bem, acho que ele confundiu honestidade com imprevidência. A prova é que durante anos vivemos apertados pela pobreza. Subi tanto, pasmem novamente, que hoje até pareço rico.
Sou do tempo em que havia apenas um marco teórico: o marxismo. Os outros estavam condenados ao paredão da justiça pós-graduada. O mundo deu voltas tão alucinantes que até eu fui elevado à gloriosa categoria de marco teórico. O autor desta façanha, provável candidato ao Bobel das Ciências Humanas, é meu delirante amigo Flávio Brayner.
Por volta de 1915, Lytton Strachey, constrangido, declarava-se um velho à sua jovem amada Carrington. Tinha então 36 anos. Pouco mais tarde, aí por 1942, Drummond gravou este verso num poema: “há muito pressenti o velho em mim”. Tinha 40 anos. Não recuo ao século XIX porque então as diferenças eram ainda mais extremas. Basta lembrar que as pessoas já nasciam velhas. De lá para cá, sobretudo hoje, essas medidas de idade sofreram uma autêntica revolução. Hoje os menores de 15 anos, incluídas as crianças, querem ser adultos apenas para terem acesso a prazeres inacessíveis à criança e ao adolescente. Os adultos, maduros e velhos (perdão, quis dizer terceira idade) querem apenas ser adultescentes, isto é, aduladores dos delinquentes. No futuro, não muito remoto, a cultura narcisista abolirá a velhice e a morte e então seremos todos eternos. Aviso que já sou.
Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de tolerância da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?
Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino.
Espanta-me ainda toda a cantilena que desenhamos em nome da felicidade. Dela falamos sempre e desejosos a evocamos como se ser feliz fosse um fim, quando não é sequer uma possibilidade. A felicidade é apenas um delírio obsessivo que inventamos, pois seres feitos de nossa insensata matéria não podem nunca alcançá-la. Os afortunados, poucos mas reais, poucos mas empiricamente assinaláveis, provam-na enquanto estado, enquanto deleitação momentânea, não enquanto expressão de permanência. Se fôssemos capazes de ajustar a medida do que desejamos à medida do que efetivamente somos, regularíamos nossos desejos e fantasias imantados na medida da felicidade momentânea. Noutras palavras, não estamos no mundo para ser felizes.
Uma das mais graves e difundidas moléstias do nosso tempo é a compulsão de ostentar felicidade e otimismo. Pessoas visivelmente infelizes falam de si próprias como se fossem clipes publicitários ambulantes. O cúmulo dessa estranha forma de alienação é o slogan “sem medo de ser feliz”. Se bem o entendo, ele sugere que a única razão de nossa infelicidade radica no medo que sofremos de conquistá-la.
A mulher? Sei que é a grande ausência aparente deste delírio em que racionalmente me meço e me repasso. Como falar da mulher num texto em que ironicamente me cotejo no tempo neste acentuando as linhas indisfarçáveis de sua passagem e ação? Se de algum modo somos vítimas do tempo, ninguém o é mais que a mulher. Daí tantas vezes lembrar a amigos, em nossa correspondência mais íntima e livre, as formas mais cruéis de manifestação da mãe natura. A mulher não se espelha nas linhas deste discurso porque temo de algum modo feri-la aludindo aos estragos que o tempo risca sobre sua pele, sobre sua inefável beleza que é objeto de meu culto mais lírico e secreto. É preciso que num homem se combinem a privação de uma mãe e a fatalidade da poesia antes vivida que realizada para que bem se compreenda a razão do meu objeto de culto. A mulher é tudo e tudo é apenas a mulher. Por que então precisaria eu iluminá-la nas linhas tortas de minha noturna e encantada navegação?
Mas acreditem: meu tempo é hoje, como na canção de Paulinho da Viola.
A música é a arte do tempo. No entanto, sou eu que passo. Ela fica. Até os gênios da música passam, pois são matéria humana como eu. O que fica é a música que os imortaliza.
Em suma, sou culpado do crime de ser velho, pois somente um velho evocaria no dia do seu aniversário tanto passado ido, irreversível e consumado. Fugindo ainda e sempre das convenções sociais que me oprimem, vivo o dia do meu aniversário como se fosse um segredo, um pacto de sangue entre mim e minha solidão. Ou ainda um pacto somente comunicado a dois ou três amigos. Mas eles próprios já o esqueceram, pois a memória humana é compreensivelmente curta e logo apaga o que não importa. Por que não admitir que no fundo o aniversário importa apenas para o aniversariante? Parabéns pra vocês.

03 de outubro de 2012.


quarta-feira, 4 de julho de 2012

Máximas e Mínimas V


A justiça é um descuido da lei.

Todo militante precisa de um belo ideal para justificar a supressão do seu objeto de ódio.

Política solidária: uma mão suja a outra.

Viver é apenas a ilusão de ser.

A morte é apenas o nada no avesso do outro nada: a vida.

Vivo; logo, morro.

Ser é doer.

Nado na correnteza, mas também no rio. As águas fluem, mas são ainda o rio.

Vivo no gerúndio sabendo no entanto que algo persiste. Que tempo verbal traduziria essa verdade movente do ser? Soussendo? Souidorei?

Se o Brasil é o país da esperança, então somos o que não somos. Somos o que nunca seremos.

Para o enfermo da esperança, esta é a penúltima que morre.

Quanta gente confunde passividade com bondade. A bondade é uma virtude ativa.

Fruto da conjunção fortuita entre o óvulo e o espermatozoide, a vida é uma doença que herdamos. A morte é sua cura.

O caminho mais curto para afastar-se dos amigos é ir morar perto deles.

Como explicar um país que piora até quando melhora?


Ser simples como a poesia
Que rima luz e verdade
Despida ao meio-dia.

Podemos identificar dois tipos nas relações humanas: o egoísta e o altruísta. Como se mesclam, são portanto tipos impuros, nunca exclusivos. O segundo preza dar, o primeiro vive de receber. Mas estão sempre em luta, sempre se desavindo, pois quem dá quer por egoísmo também receber, enquanto quem recebe quer apenas receber, já que o egoísmo é a força humana mais poderosa.

O amor é de ordinário uma ilusão necessária. Nossa imaginação o inventa para injetar ânimo e sentido em relações enganosas e passageiras. Mas não duvido de que existe. Sei porque amei e fui amado.

O sorriso da razão
Iluminando Voltaire
Derrama em meu coração
O senso que ninguém quer.

O amor veio uma vez
Outra, depois muitas mais.
Mas tudo resumo em três
Que o resto morra em paz.

Está em paz com a vida quem se sabe investido do poder de escolher sua própria morte.

I am in peace with my life because I have eventually the power of choosing my death.

Amar os filhos é apenas uma variante altruísta de egoísmo.

Evito jantar com pessoas que facilmente envenenariam meu prato. Não o fariam por qualquer razão pessoal, apenas por serem de natureza maldosa e destrutiva. Já que algumas são inevitáveis, evito a comida que me oferecem e temo o mero fato de existirem.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Máximas e Mínimas IV


Eu é outro. Eu também
Sou tantos que nem me sei
Que até no outro ninguém
Sou o outro que em mim neguei.

O insucesso sempre me sobe à cabeça, sobretudo quando ouço os vencedores ostentando as excelências de suas glórias.

Inscrição lida no retrovisor de um táxi: “Todos falam mal de Joca. O difícil é ser Joca”. E lá se foi Joca atropelando sinal vermelho e bloqueando faixa de pedestre. Se Joca nada sabe do código de trânsito, o que dizer da estupidez humana?

Acho que foi Chesterton quem observou que quando as pessoas deixam de acreditar em Deus passam a acreditar em qualquer coisa. Nada mais verdadeiro. Basta ligar a televisão ou simplesmente atentar para a vida corrente.

Se eu saísse pelas ruas do Recife gritando que sou o maior folião do mundo, prontamente me tornaria alvo de gozação e ridículo. Talvez os mais exaltados recomendassem meu internamento imediato num manicômio. Se no entanto um publicitário produzisse um videoclipe alardeando que o carnaval do Recife é o melhor do mundo, isso seria prontamente endossado como pura expressão da verdade e fonte de orgulho para a maioria dos pernambucanos.

Inteligência é o que sobra do que se esgota em vaidade.

Se o voto é um direito, como então conceber que seja obrigatório? Somente na democracia à brasileira os legisladores entendem que o titular de um direito é forçado a exercê-lo.

Há muito o Big Brother, compreendido como símbolo de uma sociedade totalitária, instalou-se na nossa subjetividade. Mas não ao modo da distopia concebida por George Orwell. Nesta, a teletela e outros dispositivos de controle acionados pelo poder totalitário nos são impostos. Hoje somos nós que servilmente renunciamos à nossa liberdade mais radical e privada e tudo entregamos ou vendemos ao poder abstrato e onipresente do Big Brother.

A renúncia à privacidade, último baluarte da liberdade individual contra a tirania exercida pelo Estado e pelo mercado, chegou a tal ponto que já confundimos invasão da privacidade com evasão da privacidade.

Há quem viaje apenas pelo prazer de voltar para casa.

Minha casa é o único mundo que possuo e todavia nem nela posso livremente exercer minha soberania.

O Brasil registra uma rica e comovente linhagem de romantização da nossa pobreza – não raro acrescida de outro tanto de pura e simples miséria. Sintomaticamente, é obra de pessoas bem nutridas, com presente e futuro imunes à necessidade dos que raspam o fundo de panelas vazias, quando não pura e simplesmente o esgoto das ruas. Em suma, como reza o dito popular, é fácil romantizar a fome de barriga cheia.

O brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o preconceito de não ter preconceito.

O sonho do brasileiro típico é tornar-se funcionário público mediante concurso que se tornou lotérico. Por nepotismo é ainda melhor. Depois disso terá a vida inteira para viver de parasitismo estatal.

Millôr Fernandes desmente liminarmente a ideia generosa segundo a qual todo cínico ou cético foi antes um grande idealista. Aos nove anos, quando caiu na vida, Millôr era já um homem liberto das nossas ilusões correntes.

Leia também
Máximas e Mínimas I
Máximas e Mínimas II
Máximas e Mínimas III

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Máximas e Mínimas II




Um dia visitei Antonio Candido supondo que ele me abriria as portas da imortalidade. Abriu-me apenas um guarda-chuva, que foi providencial, pois chovia. Abriu-me o guarda-chuva, insistiu em que eu o levasse de presente e lá fui eu rua afora, já noite, mortal como antes chegara, mas a salvo da chuva. Essa é uma das verdades (estoicas?) que a vida me ensinou: se você saiu em busca da imortalidade e encontrou apenas um guarda-chuva presenteado por um estranho generoso, então você é um homem de sorte. Quantos expostos à chuva e a outras intempéries podem dizer o mesmo?

Genealogia – alguns dos meus amigos mais cultos já me perguntaram se eu acaso seria parente de Pedro Mota Lima. Sinceramente não sei, embora no fundo o desejasse. Afinal, dizem que ele foi o melhor amigo de Graciliano Ramos, além de jornalista de valor e militante comunista. Admirei e continuo admirando muitos comunistas vencidos, isto é, comunistas que nunca chegaram ao poder. Mas nem a vaga admiração que nutro por Pedro Mota Lima me tenta a escavar minha árvore genealógica. Algum pressentimento obscuro me diz que lá encontraria traficantes de escravos, exterminadores de índios ou ainda escravos remotos, ou índios assimilados. Já me basta ser o que sou.

Eis uma pérola da educação universitária brasileira: O professor propõe aos alunos, como exercício de avaliação, uma dissertação sobre o tema Hobbes e a Violência. Resposta de uma aluna : Depende do hobbes. Tem gente que tem o hobbes de colecionar selo. Tem gente que tem o hobbes de colecionar figurinha, revista de sacanagem, álbum de fotografia. O problema é quando a pessoa gosta de colecionar armas. Aí o hobbes se transforma em violência.

Ninguém ainda escreveu, que eu saiba, a história dos movimentos revolucionários e pseudorrevolucionários enfatizando devidamente uma categoria analítica chamada ressentimento social. Quando um dia alguém o fizer, saberemos afinal que muito do que na história passa por revolução ou desejo de revolução é apenas ressentimento social. Trocando em miúdos: quero revolucionar o mundo não para abolir a opressão ou a injustiça, mas para me apropriar daquilo que invejo. Sem desmentir o fato de que houve na história muitos revolucionários autênticos inspirados por verdadeiro desejo de amor e justiça, a maior parte da horda revolucionária é movida pelo ódio contra o que não pode ter.

Nostalgia é um sintoma de mal-estar no presente. Logo, a suposta felicidade da infância ou da juventude reencantada pela memória é apenas um mecanismo de consolação para os tormentos sofridos no presente.

Solidão não é isolamento, mas irredutibilidade. Sou sempre eu, não importando o quanto ame ou queira ser o outro. Perder-me em quem amo, ao mesmo tempo desejo e temor de quem ama, é uma impossibilidade sempre desejada e temida. Nascemos e morremos sozinhos. Entre estes extremos, estamos igualmente sozinhos, pois o que no outro amamos é o que não somos. Por isso estamos sozinhos; por isso Narciso está isolado.

A brevidade poupa o leitor.

Às vezes é fácil ser profeta: basta prever o pior.

No Brasil é fácil ser profeta: basta sempre prever o pior.

O que o Brasil tem de pior são os brasileiros.

Sou eterno quando sou: presente do indicativo.

Tem gente que recorre à citação apenas para confundir cultura com impostura.

Publicitários, marqueteiros, relações públicas, porta-vozes e ideólogos tout court são os oráculos que produzem perólas da liberdade de mercado como as que abaixo transcrevo:
Sorria! Você está sendo filmado.
Seu filho morreu. Tudo por causa de uma bala perdida.
Seja livre, seja você mesmo: beba Coca-cola.
Beba a lourinha geladinha que desce redonda na praia, na festa, na cama, na estrada, no futebol, no carnaval, no trânsito... beba com moderação.
Você pode ser tudo que quiser.
Sem medo de ser feliz.
Deus é fiel.
Brasilbrás ou Utopia: um país de todos.
Amar é dar presente.
O amor é como uma prateleira do shopping. Você ama o quiser. Basta pagar no caixa.