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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Islamismo no Ocidente


É difícil para um brasileiro alheio à realidade concreta das relações culturais em países como a França e a Inglaterra opinar adequadamente sobre os atos de terrorismo ocorridos há poucos dias em Paris. Além de detentor de um vasto território, o Brasil goza do privilégio de ter uma cultura nacional integrada e nunca sofreu pressões imigratórias semelhantes às que ocorrem na Europa e nos EUA. Nossas pressões imigratórias são internas, basicamente no sentido campo-cidade e Nordeste-Sudeste. Apesar de se processarem entre compatriotas, sabemos os problemas que geraram e ainda geram. Tomo a liberdade de mencionar brevemente minha própria experiência como estudante brasileiro vivendo na Inglaterra. Assim poupo o leitor de abstrações teóricas mais complicadas.
O célebre affair Salman Rushdie eclodiu pouco depois que cheguei à Inglaterra. Para quem tem memória curta, Rushdie é um paquistanês de nacionalidade inglesa. Quando publicou Os Versos Satânicos, seu explosivo romance abordando o islamismo através de mecanismos literários correntes no Ocidente, desencadeou um clima de revolta e intolerância que me deixou simplesmente chocado. Quando vi na BBC multidões de imigrantes muçulmanos manifestando-se agressivamente nas ruas, sobretudo em Bradford, no Norte da Inglaterra, onde o livro foi queimado publicamente, logo me vieram à memória imagens do nazismo e uma amostra do humor mordente de Freud. Quando estudantes nazistas queimaram obras de escritores judeus e antinazistas, Freud fez a seguinte observação ao saber que livros seus foram também para a fogueira: Como estamos progredindo... Na Idade Média eles me queimariam; hoje contentam-se em queimar meus livros (omito as aspas, já que cito de memória).
Convivendo durante mais de quatro anos numa universidade inglesa com gente de todos os credos e procedências, pude constatar que mesmo o país fundador do liberalismo e das mais civilizadas formas de tolerância entre culturas lida com problemas inconcebíveis em países como o Brasil para acomodar sem conflitos extremos a sua população muçulmana. A julgar, no entanto, por quase tudo que ouço e leio entre nós, parece que nossa inconsciência etnocêntrica e o clima relativista e até niilista da nossa cultura acadêmica é incapaz de apreender a complexidade das tensões crescentes entre religiões e culturas inconciliáveis. Antes que me acusem de pregar o choque das civilizações, alinhando-me com o conservadorismo ocidental, adianto que o choque, se efetivamente ocorresse, teria consequências inimagináveis. Lembrando apenas um fato banal, a população de muçulmanos da Inglaterra, França e EUA é tão grande que não haveria como fixar fronteiras culturais e religiosas entre os grupos conflitantes. Noutras palavras, qualquer solução possível forçosamente traduzirá uma acomodação de forças dentro da realidade gerada pelo mundo globalizado que habitamos.
Aludi acima ao relativismo e ao niilismo correntes na nossa cultura acadêmica, que é de resto, como de praxe, reflexo do radicalismo intelectual servilmente adotado por nossa inteligência colonizada, porque daí procedem as críticas mais veementes contra o Ocidente e tudo que de pior este produziu na história moderna: colonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, genocídio, espoliação das massas periféricas e outros males que o leitor informado poderá acrescentar melhor do que eu. O que me incomoda é o fato de essa casta privilegiada de radicais simplesmente silenciar sobre os melhores valores da tradição ocidental que prezo com a convicção de que estão entre as defesas precárias de que dispomos para realizar um ideal mais civilizado e integrador de convívio. Lembrando Walter Benjamin, não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (novamente sem aspas).
Tenho em mente, noutras palavras, conquistas como a democracia moderna, a liberdade de opinião e credo, os direitos humanos e o reconhecimento do outro. Os radicais do Ocidente que não medem esforços para minar esses valores vêem apenas o que lhes convém denunciar. Parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam, além da sucessão de modas teóricas gestadas e diluídas na academia (estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo etc) são inconcebíveis fora do Ocidente. A evidência é simples assim: tentem imaginar um Nietzsche, um Foucault, um Edward Said, qualquer dos gurus do relativismo e do niilismo pregando suas ideias no Oriente Médio ou em qualquer país muçulmano. Tentem imaginar qualquer teórico ou adepto das minorias (aqui incluídas maiorias, pelo menos estatísticas, como o feminismo) pregando e sobretudo vivendo em ato e fato a diferença e o multiculturalismo que são moeda corrente e com freqüência falsa no vale tudo cultural do Ocidente.
Encurto o artigo sugerindo ao leitor um breve exercício de imaginação sociológica. Um terço da população de Marselha, berço do hino nacional francês, é constituído de muçulmanos. Espremendo o caldo, todos que não foram assimilados – ou aculturados, como bem ou mal dizem os antropólogos – nada têm a ver com os valores dominantes na França fundados pela tradição iluminista depois de séculos de conflitos internos e externos. Fatos extremos e inqualificáveis como os atos de terror recentes concorrem apenas para agravar tensões já por si muito complexas. Ademais, o terror não serve a ninguém, salvo àqueles que querem resolver os impasses humanos através da força e da destruição. Até nós, que gozamos do privilégio de não abrigar em território nacional esses conflitos entre culturas e religiões, até nós perdemos parte da liberdade e da segurança já precárias de que desfrutamos. No mais, é fácil para um relativista ou ressentido cultural brasileiro esbravejar contra a xenofobia francesa agravada por esses atos de terror. Queria ver como nos comportaríamos se Paris fosse a capital do Brasil.
Recife, 12 de janeiro de 2015

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Preconceito do Preconceito


Já houve quem observasse, não sem razão, que o brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o de acreditar que não tem preconceito. Por que é o pior? Porque a consciência do que somos, a consciência do que pensamos e sentimos é o primeiro passo necessário para que mudemos o que temos de pior. O preconceito – de raça, de gênero, de classe, de região e nacionalidade – está entre o que temos de pior. Ele alimenta, nas condições sociais rotineiras, as atitudes de discriminação e intolerância contra o outro objeto do preconceito. Nos tempos de crise, ele é instrumento pernicioso a serviço de ideologias e grupos sociais intolerantes e violentos.
Um exemplo da inconsciência do nosso preconceito extraído do balaio onde ajuntei uma infinidade: a senhora recifense, mãe de duas adolescentes louras e lindas, orgulhosa de dizer que não tinha preconceito racial. Um acaso feliz – ou infeliz, depende do ponto de vista – fez com que um dia as filhas se apaixonassem por dois negros. O mundo caiu sobre a consciência perplexa da mãe, que mobilizou todas as suas forças e recursos para suprimir a paixão inter-racial. Não obstante, continuou afirmando de pés juntos que não alimentava nenhum preconceito de cor, apenas não tolerava que suas filhas se apaixonassem por negros.
O nordestino é o judeu brasileiro na história dos nossos preconceitos. Sei que a analogia é um tanto forçada, mas quase todas o são. Não faltam explicações históricas e sociológicas, também psicológicas, para a frequência desse tipo de preconceito. A educação e o esclarecimento, que supõem a assimilação do saber necessário à compreensão racional desse tipo de preconceito, sem dúvida muito importam para que modifiquemos nossas disposições preconceituosas. Como acima observei, a consciência é o primeiro passo necessário para a correção dessas distorções que intervêm na nossa apreensão racional da realidade. O problema é que preconceitos e estereótipos alimentam-se de paixões correntemente manipuladas por grupos sociais interessados em assegurar na sociedade posições de poder econômico e político. Mais grave ainda é considerar que são sintomas da agressividade constitutiva da nossa natureza.
Se a educação e o esclarecimento fossem suficientes para abolir o preconceito, como explicar que ele exista em toda sociedade conhecida, não importando o grau de difusão dos processos educativos nela observável? O exemplo histórico mais conhecido, também o mais terrível, é fornecido pelo advento do nazismo na Alemanha. Sabemos que oficiais de alta cultura, educados na tradição do mais alto humanismo germânico, oprimiam judeus nos campos de concentração enquanto à noite se comoviam em casa ouvindo Bach e Mozart, lendo Goethe e mirando-se como modelo de uma supremacia racial e civilizacional destinada a imperar sobre o mundo. Sei que o termo que acabo de empregar, “oprimiam”, soa como um eufemismo, como uma expressão amena para sugerir os horrores produzidos nos campos de concentração. O fato sugere a complexidade espantosa do ser humano capaz de habitar essas duas ordens de realidade em princípio antagônicas. O mesmo valeria para as sociedades escravocratas. O Nordeste brasileiro constituiu um dos mais completos exemplos dessa história. Bem poucos se davam conta do antagonismo entre a escravização do negro e a instituição da religião católica, que prega a igualdade universal dos seres humanos.
Se no Brasil a polaridade corrente, em termos de preconceito regional, compreende o Sul, notadamente São Paulo, e o Nordeste, nos EUA a relação se inverte, pois lá o Sul é objeto de preconceito dos nortistas. Convém frisar que me refiro a inversão em termos de poder. A raiz histórica dessa polaridade procede do fato de que nos EUA a escravidão e a economia de base agrária concentraram-se no Sul, enquanto a economia industrial e moderna desenvolveu-se sobretudo no Norte do país.
Como o nordestino é vítima corrente do preconceito sulista, antes de tudo paulista, é compreensível que reaja enquanto vítima denunciando a violência do mais forte. Se no entanto queremos ir mais fundo na consideração do preconceito, precisaremos reconhecer que, numa outra perspectiva, o nordestino sai da posição de vítima para se converter em agente do preconceito ou agressor. O preconceito de gênero, por exemplo, é provavelmente mais forte no Nordeste, onde o patriarcalismo fincou raízes muito mais profundas e duradouras. Esse tipo de preconceito, como sabemos, visa a mulher, vítima sobretudo de violência doméstica e da misoginia comum nos círculos machistas. Sabemos ainda que esse tipo de preconceito, estendido na forma de preconceito sexual no sentido amplo, envolve também homofobia, ou a intolerância investida contra o homossexual. Outra forma corrente de preconceito, ainda na ordem das diferenças regionais ou espaciais, remete à discriminação imposta pelo elemento citadino ou urbano ao rural. O termo matuto, muito corrente no Nordeste, está impregnado de discriminação. O matuto simboliza o oposto de todos os valores culturais positivos atribuídos ao habitante da cidade grande.
Como todo país de largo passado colonial, de resto ainda bem vivo no presente, o Brasil sofre de uma angústia de reconhecimento e identidade diante do estrangeiro, sobretudo o estrangeiro norte-americano e europeu. É fato que nossa imagem nesses países não passa de estereótipo grosseiro. Há até quem pense, refiro-me a gente que estuda nas melhores universidades do mundo, que o espanhol é a língua oficial do Brasil, que somos um país africano, que temos apenas futebol, carnaval e mulher submissa e gostosa e desfrutável. Seria injusto atribuir a persistência de preconceitos tão ofensivos e infundados apenas ao etnocentrismo estúpido dos países cultural e economicamente dominantes. Nós próprios, sejamos honestos, concorremos para a difusão e persistência desses preconceitos quando, em nome da afirmação de uma discutível identidade cultural, projetamos de nós próprios uma imagem exótica baseada em tradições e elementos diferenciais pré-modernos. Um único exemplo: a publicidade oficial brasileira já espalhou pelo mundo fotos de mulheres mulatas, rabudas e desfrutáveis como atrativo turístico.
Teresa Sales discordou de mim ao ler acima o adjetivo “rabudas”. Entre outros argumentos ponderáveis, salientou o fato de que destoava do meu estilo. Dei-lhe pronta razão, que aqui explicito, embora omita os detalhes do que discutimos receoso de alongar desnecessariamente o ensaio. Importa no entanto frisar que, embora concordando com ela, insisto em manter o adjetivo. Usei-o de forma deliberada, acrescentaria expressivamente necessária, pois o adjetivo traduz o sentido preciso do cartaz da publicidade oficial mencionada no parágrafo acima. Sendo mais exato, vi-o no próprio consulado do Brasil em Londres, por volta de 1990. Difundido internacionalmente pela extinta Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), enquadrava num close that speaks volumes (abuso agora do eufemismo) o traseiro de uma mulata. O sentido da foto, ou propaganda, está de tal modo impregnado no imaginário erótico brasileiro e estrangeiro que me dispenso de esmiuçá-lo, já que é de fato um estereótipo cultural vivíssimo da sexualidade brasileira, ou da docilidade desfrutável da mulher brasileira.
Como conversa puxa conversa, e memória puxa memória, minha discussão com Teresa me fez lembrar um outro fato que reforça a linha do argumento desfiada nos parágrafos precedentes. Na década de 1990, quando cresceu a afluência de turistas europeus para o Nordeste, um dos principais periódicos nordestinos (o Diário de Pernambuco ou o Jornal do Commercio) estampou na primeira página da sua edição de domingo: “A Europa se curva ao Nordeste”. Sabe o leitor atento que a manchete é uma variação do nosso orgulho ressentido de país colonizado quando algum triunfo ou virtude brasileira imposta ao europeu vinga nosso passado. O mais significativo, no entanto, é que o texto da reportagem tratava explícita e prioritariamente de turismo sexual. Um dos turistas entrevistados (italiano ou alemão) louvava (era o tom da reportagem, não minha memória nem o estilo com que a reproduzo) a sensualidade submissa e quente da mulher pernambucana.
A última campanha presidencial deu margem a conflitos que expressam antes de tudo interesses momentâneos dos grupos em luta pelo poder. Apesar de todo o barulho eleitoreiro e marqueteiro dos militantes e profissionais da política, há bem pouca diferença ideológica entre o PT e o PSDB, entre Dilma Roussef e José Serra. Em meio a tanta disputa contaminada e antes de tudo dirigida por interesses políticos e econômicos, o caldo transbordou sobre o solo de antigas e enraizadas disputas regionais saturadas de preconceito. É nesse contexto que a polêmica entre São Paulo e o Nordeste, tendo o preconceito como cerne da disputa, é periodicamente retomada. Há quem assim esqueça de que a própria propaganda política alimentou nossos preconceitos correntes. Os dois candidatos concorrentes à presidência, inspirados pelo pragmatismo desonesto, diluíram o debate em torno da questão do aborto, outra deplorável evidência dos nossos preconceitos inconscientes e não raro hipócritas.
Sou absolutamente favorável à luta contra o preconceito, contra todo tipo de preconceito, que deve ser denunciado e desmascarado. A educação e a opinião esclarecida são parte crucial dessas formas de participação e luta nos conflitos sociais. Sendo ainda mais preciso, argumento baseado na perspectiva do racionalismo universalista. Sei que essa perspectiva está em baixa, obstruída e combatida por toda forma de particularismo nacional, regional, religioso, racial, de gênero etc. Sei ainda que é ilusório acreditar na instituição de uma ordem humana universal isenta de preconceito e dominação. Não obstante, continuo fiel a meu racionalismo universalista. Por quê? Ora, porque estou convencido de que conceitos como os de humanidade, nação, identidade etc, são antes de tudo construções míticas ou pelo menos abstrações inevitáveis, isto é, não têm existência empírica ou factual. O que é o brasileiro, por exemplo? Qual a sua identidade? O brasileiro que mentalizamos ou conceituamos é produto de projeções imaginárias, o que não quer dizer que seja puramente fictício. Já que estamos no terreno das ilusões necessárias, dado que não podemos viver sem elas, fico com a ilusão do racionalismo universalista.
Mito por mito, como já escrevi num outro contexto argumentativo, prefiro o do universalismo. Ele se baseia na unidade biopsíquica do ser humano, não na pluralidade inegável das culturas. Cada uma tem seus modos próprios de expressão e linguagem, de relação com os universos da natureza e da cultura. Uma coisa é reconhecer essa pluralidade efetiva, outra, bem distinta, é propor uma teoria relativista segundo a qual cada cultura é única e portanto intraduzível em qualquer outro código. Reconheço a singularidade de cada cultura, mas isso não me impede de conferir prioridade àquilo que identifica em escala universal a espécie humana. Somente dentro desse quadro argumentativo podemos coerente e efetivamente defender valores humanos transcendentes a cada cultura. Se o critério é este, o de cada cultura particular, como argumenta o relativista, então ficamos de mãos atadas para defender qualquer valor prescrito, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos.
O mito universalista tende a produzir políticas e formas de relação entre culturas baseadas na tolerância e no respeito a valores universais que nos facultam tomar posição efetiva contra valores particularistas que em termos práticos agridem os direitos do indivíduo. A questão momentosa envolvendo a iraniana Sakineh, à qual dediquei um artigo intitulado Universalismo versus Relativismo, ilustra muito bem essa questão. O mito universalista, se não quer se confundir com o humanismo ingênuo, compreende a natureza agressiva do ser humano, raiz psicológica do preconceito.
Reiterando uma frase que se tornou lugar comum, o mundo em que vivemos é uma aldeia global. A universalização dos meios de comunicação de massa, assim como dos processos de produção econômica e circulação da mercadoria, dissolveu as fronteiras tradicionais entre culturas e nações. Este fato impõe cada vez mais a necessidade do intercâmbio entre culturas, a necessidade de formas de consciência distintas daquelas forjadas pela ideologia nacionalista, assim como por qualquer outra ideologia particularista. Sei que os processos universalizantes acima indicados de modo algum suprimem relações de dominação e poder entre as nações. O que me parece evidente é que precisamos propor novas formas de relação e consciência opostas à opressão que nunca se baseou puramente em relações de dominação colonial ou imperialista, como os nacionalistas supõem e não raro usam esse argumento para justificar ou mascarar relações internas de dominação.
Quanto ao preconceito, ele continuará vivo. Seria ilusório acreditar que o simples aperfeiçoamento dos meios de educação e esclarecimento são suficientes para suprimi-lo. Como acima ressaltei, nem isso é suficiente para suprimi-lo nem é suficiente a perspectiva racional e universalista. O preconceito alimenta-se antes de tudo de paixões humanas postas a serviço de interesses políticos e econômicos. O que nesse ponto destaco de positivo é o fato de que hoje nenhuma nação do Ocidente, aqui compreendidas suas extensões periféricas, adota políticas de Estado baseadas no preconceito ou qualquer outro tipo de intolerância. Essa é uma conquista que credito ao mito baseado numa perspectiva universalista, também à difusão do saber sócio-antropológico na sociedade contemporânea.
Por mais que avancem, e felizmente têm avançado, as políticas de tolerância e respeito pela diferença são insuficientes para suprimir o preconceito. Portanto, precisamos realisticamente aceitar que ele é parte da nossa natureza agressiva, que precisa de justificação ideológica para impor a dominação violenta contra o outro. É dessa energia psíquica do ser humano que os grupos políticos se valem para promover conflitos sociais que por sua vez revertem em benefício dos que mandam, dos que exercem o poder na sociedade.

domingo, 11 de novembro de 2012

Nós e os índios


César Melo (professor de literatura luso-brasileira, Universidade de Chicago)

1.
Em nenhum lugar do Brasil, a invisibilidade do índio talvez seja tão visível quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. É ali, em frente ao Parque Trianon, dando de cara com o MASP, no meio de pessoas apressadas falando ao celular, buzinas de carros, barulho de motor e poluições de vários tipos, que fica localizada a estátua de Bartolomeu Bueno Dias, também conhecido como Diabo Velho (Anhanguera). Bartolomeu foi um bandeirante, conhecido matador de índio e saqueador de tribo. No entanto, se formos ao Houaiss e procurarmos o verbete “bandeirante”, nenhum desses significados estará lá – o que diz muito também de nosso silêncio e indiferença em relações aos índios. No dicionário, você descobrirá que “bandeirante” é sinônimo de “paulista”, além de significar “aquele que abre caminho; desbravador; precursor; pioneiro”. Os bandeirantes seriam uma espécie de “vanguarda” da colonização, o que casa bem com um lugar como São Paulo, cujos políticos ainda hoje se utilizam da infeliz metáfora da “locomotiva do Brasil” para definir o estado.
Vanguarda, desbravamento, locomotiva, non ducor duco (que está na bandeira da cidade de São Paulo e quer dizer “não sou conduzido, conduzo”) são signos que fazem parte de um mesmo campo discursivo: o do progresso arrojado. Se houve algum progresso no Brasil, esse foi o progresso da colonização, ou melhor, a progressão bandeirante lenta e contínua para o oeste, escravizando indígenas, apropriando-se dos recursos de sua terra, aniquilando sua cultura. Avançamos na terra e na cultura dos outros. Progresso, progressão, invasão. E continuamos fazendo isso: seja com os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; seja com os desalojados das construções da Copa do Mundo; seja com os índios da bacia Xingu que serão desterrados pela Usina de Belo Monte. As elites brasileiras continuam progredindo em cima de terras, pessoas e direitos.
Não nos enganemos. Nosso imaginário desenvolvimentista – essa necessidade e desejo de crescer e expandir em moto-contínuo – está calcado no espírito do bandeirantismo, que nada mais é a lógica do colonizador. Bartolomeu Bueno da Silva nos representa mais do que gostaríamos.
2.
Como aprendemos na escola secundária, os romances Iracema (1865) e O Guarani (1857) de José de Alencar são considerados ficções fundacionais da nação. Embora sejam textos fortemente ideológicos – uma vez que deliberadamente escamoteiam a violência genocida do encontro colonial para narrar tal encontro numa moldura conciliatória –, carregam em si um núcleo de verdade: o desejo do letrado brasileiro – o narrador dessa história dos vencedores – de moer qualquer traço de alteridade cultural no moinho da ocidentalização. Nas palavras certeiras de Alfredo Bosi, o indianismo alencarino não passava de um mito sacrificial dos índios, no qual estes só atingiriam a nobreza quando fossem capazes de se auto-imolar. Os índios Peri, de O Guarani, e Iracema, personagem central do romance homônimo, se tornam heróis na medida em que se anulam e se sacrificam em gesto de servidão aos colonizadores portugueses. Peri se converte ao cristianismo para se unir à portuguesa Cecília e, com ela, formar o povo brasileiro. Iracema trai o seu povo tabajara para ficar com o lusitano Martim. Do fruto desse encontro, nasce Moacir, o primeiro brasileiro. Depois de cumprida sua missão no processo civilizatório brasileiro, Iracema morre. O indianismo alencarino foi assim um elogio à submissão do indígena à sabedoria europeia. Bom índio é aquele que se ocidentaliza. Que muda de lado. Que nega seu povo. Que está disposto a aniquilar a sua cultura, e até a vida, para contribuir com a nação.
Um pouco mais de cem anos depois, João Guimarães Rosa, no conto “Meu tio o iauaretê”, se propõe a questionar essa relação colonial, evocando uma outra lógica. Se os mestiços “alencarinos” são cristianizados e ocidentalizados, o que aconteceria se o mestiço escolhesse o outro lado da mistura que o compõe?
“Meu tio o iauaretê” conta a história de Tonho Tigreiro, caçador de onças, contratado por um fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para desonçar um certo território. Em outras palavras, o caçador é chamado para livrar o terreno das onças, permitindo que aquele pedaço de terra possa ganhar uma utilidade econômica. Desonçar a terra faz parte de uma operação bandeirante (sem trocadilhos). No entanto, de tanto viver isolado dos homens, o caçador começa a ter mais simpatia pelas onças do que por gente, e passa a defendê-las. O caçador escolhe claramente um lado: o das onças, da natureza, dos animais, enfim, o lado da terra onde vive. É o mesmo “lado” que os índios defendem no seu esforço de resistência aos (neo)bandeirantes que invadem sua terra. Daí a conclusão da leitura que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro faz do conto rosiano:
Não é um texto sobre o devir-animal, é um texto sobre o devir-índio. Ele descreve como é que um mestiço revira índio, e como é que todo mestiço, quando vira índio – isto é, quando se desmestiça– o branco mata. Essa é que é a moral da história. Muito cuidado quando você inverter a marcha inexorável do progresso que vai do índio ao branco passando pelo mestiço. Quando você procura voltar de mestiço para índio como faz o onceiro do conto, você termina morto por uma bala disparada por um revólver de branco.
Tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração, é eliminado. Brasileiro gosta de mistura, desde que ninguém ameace a nossa cosmovisão e epistemologia ocidentais.
3.
Em Tristes trópicos, Claude Levi-Strauss lembra de uma conversa que teve com o embaixador do Brasil na França, Luís de Sousa Dantas, ocorrida em 1934, na qual o diplomata brasileiro havia comunicado a Levi-Strauss que não existiam mais índios no Brasil. Haviam sido todos eles dizimados pelos portugueses, lamentava Sousa Dantas. E assim concluía: o Brasil seria interessante para um sociólogo, mas não para um antropólogo, pois Levi-Strauss não encontraria em nosso país um índio sequer. Nós não sabemos se Sousa Dantas nega a existência dos índios por ignorância, ou simplesmente para ocultar um aspecto do país que o diplomata brasileiro certamente considerava “arcaico”, uma vez que a existência de “primitivos” não bendizia os padrões civilizatórios da nação diante de um estudioso europeu.
Mas quem de nós nunca agiu como Sousa Dantas? Qual foi o brasileiro que, no exterior, nunca se indignou com uma pergunta de um gringo mal-informado que sugeria que nós tivéssemos hábitos próximos ao dos índios? Eis o motivo de nossa indignação: como podem nos confundir com tupiniquins (palavra usada pejorativamente por nós brasileiros para nos definirmos como povo atrasado), se nós somos industrializados, urbanizados, temos carros, trânsito infernal, sofremos com poluição e tomamos Prozac para resolver nossos problemas emocionais? Em outras palavras, como podem nos acusar de “primitivos” se desfrutamos de todas estas maravilhas da civilização moderna?
Se por um lado, hoje, os brasileiros sabemos da existência empírica dos índios, por outro lado, negamos sua existência como nossos contemporâneos, e essa é a raíz da indignação diante de uma possível confusão entre nós, brasileiros, e um povo que, na cabeça de tantos, ainda não evoluiu. Ora, de todos os esforços pedagógicos para descolonizar o imaginário brasileiro, talvez esse seja o mais importante: de mostrar como nós precisamos urgentemente do diálogo com os índios. Devemos abandonar a ótica paternalista (do Estado brasileiro) que infantiliza o índio, enxergando-o como artefato do antiquário nacional, que para alguns deve ser incorporado à nação, enquanto para outros deve ser preservado tal como está. Esse é um falso dilema, pois reifica o índio. Devemos, sim, estabelecer com os índios uma relação de interlocução, com a qual temos muito que aprender.
Nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade. Emporcalhamos nossas cidades; poluímos nosso mar, nossos rios, nosso ar; destruímos nossa natureza; criamos necessidades que nunca serão preenchidas a contento, gerando inúmeras frustrações, tamanha é a roda-viva do consumismo que determina nosso estilo de vida. Segundo Celso Furtado (que hoje, graças a Dilma Rousseff, dá nome a um petroleiro), no seu O mito do desenvolvimento econômico, “[o] custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.” Quanto mais universalizamos nosso consumismo predador, mais rápido destruímos nosso ambiente e planeta. O que teríamos a aprender, afinal, com os índios?
O que dizer de um povo que vive há milênios em co-adaptação com o ecossistema amazônico, tirando da floresta o sustento da vida, em vez de tirar a floresta de sua vida (uso aqui o jogo de palavras do próprio texto de Viveiros de Castro)? Os índios são radicalmente cosmopolitas. A palavra “cosmopolita” quer dizer “cidadão do mundo”. Cosmos, na filosofia grega significa “universo organizado de maneira regular e integrada”. Se permanecermos fiéis à etimologia da palavra, cosmopolita seria então o cidadão de um universo harmonioso (cosmo é o antônimo de caos). Por anos, filósofos antigos e modernos têm pensado o termo “cosmopolitismo” como uma técnica de convivência entre povos. O cosmopolitismo radical dos índios nada mais é que uma técnica de convivência e co-adaptação com o cosmo – o universo, o ambiente, o planeta. A destruição do planeta hoje parece mais plausível em decorrência da falta do cosmopolitismo radical dos índios do que do cosmopolitismo dos filósofos. O que teríamos a aprender com os índios? Algo muito simples e complexo: aprender a habitar o planeta.
4.
Pensar o índio no Brasil é particularmente difícil, pois as representações que temos do índio o colocam além da alteridade. O “outro” da cultura brasileira – narrada, claro, da posição do letrado urbano euro-brasileiro – é, com o perdão da redundância, outro. Ou melhor, são outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.
Investigando sobre os motivos que levaram a esquerda brasileira a negligenciar o índio, Pádua Fernandes lembra que a esquerda revolucionária dos anos 70 – de onde saiu boa parte do Partido dos Trabalhadores – discutia a relação entre cidade e campo, mas era incapaz de pensar a floresta. Em parte, isso se deve à importação direta das categorias euromarxistas (e, claro, graças ao abismo das Tordesilhas, que separa o Brasil da América Hispânica; a esquerda brasileira nunca deu muita bola para o indo-socialismo do peruano José Carlos Mariátegui). No entanto, mais do que ser um problema de cegueira por parte de segmentos da esquerda, a invisibilidade do índio talvez remeta à maneira como pensamos o “povo” brasileiro, dentro do paradigma nacional-popular.
De acordo com esse paradigma, que estruturou a imaginação brasileira durante o século 20, o povo é o sertanejo de Os sertões, “rocha da nacionalidade”; o negro de Casa-grande & senzala e da vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; os retirantes desesperados Manuel e Rosa de Deus e o diabo na terra do sol; o ingênuo Fabiano de Vidas Secas; a comovente Macabéa de A hora da estrela, além de tantos outros personagens e temas das nossas produções culturais. A consciência social do letrado urbano brasileiro foi construída a partir da ideia de que o povo brasileiro – na sua imensa maioria pobre, desassistido, negromestiço – necessita ser integrado à modernidade, à cidadania plena, a um sistema educacional justo e ao conforto material.
A eleição do presidente Lula em 2002 talvez tenha sido o evento mais importante de nossa democracia exatamente porque mexeu profundamente com nossa imaginação nacional-popular: pela primeira vez, o povo assumia o poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estavam todos representados na figura carismática de Lula. E não se pode negar que o governo Lula muito melhorou a vida do “povo brasileiro”, garantindo acesso a bens e direitos antes impensáveis. O progresso finalmente havia chegado ao andar de baixo, que agora podia comprar televisão, andar de avião e até passear de cruzeiro. Nunca antes na história desse país, o povo esteve mais integrado aos padrões de consumo do mundo civilizado.
O mesmo governo que tanto fez para tanta gente (e atuou como uma força descolonizadora no tocante às ações afirmativas e na introdução de história africana no ensino médio), é aquele que age como um poder colonizador na Amazônia, e aliado objetivo dos fazendeiros do agronegócio no Mato Grosso do Sul. Desse modo, o Estado e seus sócios ocupam a terra com prerrogativa desenvolvimentista, como se fosse um território vazio, pronto para o usufruto dos agentes econômicos. Nada muito diferente dos bandeirantes. O que antes vinha coberto com retórica de missão civilizatória cristã, agora é celebrado como a chegada do progresso. Nos dois tipos de bandeirantismo, a destruição vem justificada por um discurso de salvação. O índio que habita nessas terras é tratado simplesmente como obstáculo que deve ser removido em nome do progresso da nação (progresso no caso representa: carne de gado no Mato Grosso e energia elétrica para indústrias do alumínio na Amazônia).
O índio apresenta um desafio para o pensamento da esquerda no Brasil. Um desafio que ainda não foi pensado como desafio, pois a esquerda ainda enxerga a “questão indígena” como um problema que deve ser resolvido. O desafio, ao contrário do problema, não exige uma resolução, mas uma autorreflexão. Os índios nos fazem repensar nosso modo de vida, e até mesmo o conceito de nação. Como salientei, o índio não se insere na matriz nacional-popular que mobiliza tanto a nossa imaginação. E não se insere nela pois, ao contrário do retirante, do favelado, do pobre, do negro, o índio não está buscando integração à modernidade (a grande promessa do lulismo às massas). Os índios parecem querer reconhecimento do seu modo de vida (como se pode ver nessa entrevista de Davi Kopenawa). E, para viver do jeito que sabem viver, é necessário garantir as condições mínimas de possibilidade para sua vida: terra e rios que não sejam dizimados pela usina de Belo Monte, nem pelo garimpo; segurança e tranquilidade para não serem acossados pelos capangas do agronegócio, como no Mato Grosso do Sul. Essas são as grandes lutas hoje.
A luta pelos direitos indígenas vai muito além de uma quitação da nossa dívida histórica. Mais do que um acerto de contas com nosso passado, a garantia dos direitos constitucionais dos índios é imprescindível para o nosso futuro. Precisamos cada dia mais da sabedoria desses cosmopolitas radicais, se quisermos repensar e refundar os pressupostos de nossa existência planetária.

sábado, 4 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher


Começo com uma confissão estarrecedora: desejei ser mulher quando era adolescente. Por isso invejei minha irmã mais velha, muito parecida comigo. Antes que pensem mal de mim (ou bem, já não se sabe), narro abaixo as devidas e indevidas explicações. Esse desejo repontou na minha consciência quando me tornei medroso da vida. Contei mais de vinte cicatrizes no meu corpo. Era a consequência de ser um diabinho solto nos campos, embora fosse ao mesmo tempo um garoto introvertido e sensível, tão recolhido dentro de mim em certos momentos que hoje bem poderiam pregar-me o diagnóstico banal de depressivo.

Solto no mundo, sem mãe ou rédea para me prender, vivia acumulando acidentes e desastres: queda de cavalo, de trem, pois vivia danado pulando de trem em movimento, fuga de boi brabo, três pedradas na cabeça, riscos de afogamento nas águas do rio que vazavam nas enchentes de inverno. No futebol, paixão obsessiva, levava muita pancada, pois jogava bem e era leal ao extremo do descuido. Queda de bicicleta guiada às loucas, de carrossel e outros brinquedos perigosos instalados na rua durante as festas de fim de ano. Várias mordidas de cachorro. Fragmento de bala alojado na minha perna quando assistia à disputa de tiro ao alvo dos homens embriagados em um piquenique. O pior foi a queda de uma árvore que por pouco não me arrebentou e ainda me despachou para o hospital. Enfim, vivia com o corpo marcado por todos os excessos e traquinadas da minha infância e adolescência sem governo.

Ainda pior foi o vaticínio supersticioso de minha avó. Alarmada diante de tantos acidentes, vendo-me sangrar e sofrer em todo tipo de circunstância, minha avó acabou acreditando que eu nascera para ser mártir. Pior que tudo foi o fato de eu próprio acreditar na sua superstição reforçada pelo coro de todos os crentes que me cercavam: parentes, amigos, vizinhos, um sombrio coro de cassandras selando minha desgraça. Daí brotou meu medo da vida, a premonição de que tudo sempre acabaria mal para mim. Ninguém imagina o quanto precisei lutar comigo para me libertar desses fantasmas que me encolheram a coragem e me privaram de arriscar caminhos e aventuras que teriam feito minha adolescência ainda mais conturbada, porém com certeza mais triunfante e forte.

Em contraste com a triste sina acima lambuzada com palavras que palidamente a exprimem, minha irmã me parecia protegida da vida como uma donzela de castelo: nenhuma das minhas cicatrizes, nenhum dos meus medos em face da adversidade e dos acasos desastrosos. Fechada na segurança da casa, fechada dentro dos muros do colégio de freiras, minha irmã simbolizava a segurança de que eu tanto carecia, a proteção sonhada contra os perigos do mundo. Daí (compreendem agora minhas razões?) meu desejo de ser mulher como ela. Ah, comigo fantasiava, como seria bom viver a segurança de ser mulher num mundo tão violento!

Talvez precise ainda acrescentar, para melhor descrever o mundo da minha infância, que no mundo rural pernambucano não havia fronteira entre o menino, o adolescente e o homem. Isso quer dizer que muito cedo mergulhei nos prazeres e riscos característicos do mundo adulto. Muito cedo me vi às voltas com o mundo de homens brutos, crus no trato com a sexualidade e sempre às bordas da violência. Era portanto previsível que assistisse a cenas de briga, socos, facada, toda sorte de violência. Aos dez anos fumava. Meu primeiro porre, grande trauma da minha infância, tomei-o com sete anos de idade. Ainda menino, vivia metido com jogos de azar, aprendendo putaria, fugindo de casa para as noites de serenata, me espojando na poeira do mundo baixo que é objeto de desejo e fantasia de toda criança mordida pela serpente da curiosidade. Não precisamos de Freud para saber, pelo menos depois dele, que o sexo é a matriz dessa curiosidade.

Eis que um dia, já não lembro quando nem precisamente como, penetrei na singularidade do mundo feminino o suficiente para me dizer aliviado por ser homem: Deus me livre de ser mulher! Esta conclusão logicamente decorreu da experiência acumulada o suficiente para que revisse minha equivocada noção de segurança distinguindo os gêneros, as possibilidades e escolhas de vida abertas ou fechadas na trajetória genérica traçada pela mulher e pelo homem na vida. Como afirmei, não lembro quando nem como respirei aliviado por ser homem. Mais que aliviado, descobri que ser homem era um privilégio, uma superioridade injusta, mas de qualquer modo uma superioridade, aferível no reino da natureza e da sociedade.

A essa altura ouço as pedras repicando no meu telhado de vidro. Um frio me corre a espinha ao ouvir o alarido das minhas amigas, da leitora ocasional que talvez nem conheça. Como ouso - eu que parecia tão normal, até delicado, dizem algumas amigas mais generosas – repisar com tamanha desfaçatez os chavões grosseiros urdidos e encardidos por nossa violenta e deplorável tradição patriarcal e machista? “La femme est l´avenir de l´homme”, como escreveu o poeta francês Louis Aragon. Na França o futuro pode ser mulher, mas o passado e o presente, pelo menos no Brasil, estão ainda longe do ideal feminino que, sem demagogia, desejaria real. Bem, para não me expor ao risco de deslizar na demagogia fácil do feminismo de academia e outras modas equívocas, conviria precisar melhor o que seria ou será esse futuro mulher, ou futuro feminino. Espero que o que virá abaixo torne minha perspectiva mais apreensível e compreensível – ou até perdoável, sei lá!

Começarei por revisar minha percepção míope do lugar ocupado pela minha irmã no mundo da minha infância e adolescência, também no que veio em seguida. Descobri que minhas cicatrizes, as pancadas que sofri, físicas e psíquicas, eram o preço cobrado pela liberdade que a vida lhe suprimia. Minha irmã não levou as pancadas que levei simplesmente porque o sistema de opressão secular em que vivia, nosso velho patriarcalismo, lhe impôs os muros do internato de freiras, a mordaça da religião - ministrada por mulheres, convém lembrar - e as formas de repressão interna correspondentes já denunciadas pelas mulheres – também pelos homens, convém não esquecer – conscientes da opressão social imposta à mulher. Suportei as pancadas parcialmente explícitas acima para ter acesso a uma forma de liberdade incogitável para minha irmã.

Também friso que muitas das pancadas foram fruto do azar, é o que ainda penso. Afinal, por que as pedras caíam exatamente sobre a minha cabeça, quando havia tantas à minha volta? Por que o trem descarrilhou para atrair minha curiosidade insaciável montada num cavalo em disparada dentro da noite, suas estradas desertas, o risco do atropelamento nas curvas imprevistas? Por que os vira-latas mordiam precisamente minha perna ou até minha orelha? Por que a sede do rio ameaçando tragar-me, afogar a mim quando havia tantos mais insensatos e imprestáveis? Por que o azar elegeu-me sua vítima preferencial, era isso o que me perguntava aflito e a superstição de minha avó e das cassandras dos canaviais replicavam mirando pesarosas meu corpo de mártir.
Minha irmã cresceu num mundo vedado à participação ativa da mulher. Enquanto eu desfrutava da liberdade de ser um diabinho solto na capoeira, levantando poeira na estrada e praticando o mal e a injustiça embalado pela santa inconsciência da infância e da adolescência, minha irmã vivia fechada por trás de sete chaves. Seu mundo era o da casa regida pela repressão, a virgindade compulsória, os horizontes mesquinhos de uma vida sem riscos, possibilidades e aventuras de qualquer natureza. E ai da louca ou rebelde que ousasse pular o muro, derrubar a cerca, invadir o mundo dos homens, que era a rua compreendida no sentido literal e sobretudo figurado. O mundo, o grande mundo era invenção e propriedade dos homens. Se alguma mulher ousasse saltar a fronteira nítida que separava os gêneros injustamente divididos, o preço cobrado era quase sempre a desonra, a exclusão social, no mínimo o preconceito implacável e a polícia impiedosa da vizinhança e da religião impondo cadeias à carne da mulher e tolerância hipócrita e complacente diante dos desmandos do homem.

Hoje, claro, a realidade é outra. O século vinte foi sem dúvida o século da mulher. Quero dizer, foi no seu decorrer que a mulher gradualmente desaferrolhou as portas, rompeu cadeias, aboliu a fronteira secular entre a rua e a casa, desatou muitos dos nós materiais e simbólicos da sua servidão. Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores contemporâneos, afirmou que o fenômeno histórico mais positivo do século vinte foi a mudança radical da condição social da mulher. Num século de tantos horrores e catástrofes sem precedente histórico – como guerras, revoluções, genocídios, destruição praticada em escala assombrosa – o grande sopro de renovação da história consistiu na ascensão da mulher a praticamente todas as esferas significativas da sociedade, à conquista de uma liberdade que mudou radicalmente a face do mundo, as relações de gênero, o ordenamento ético e afetivo da família, o lugar do corpo e da sexualidade na esfera dos costumes.

Ora, se tanto reconheço, como então justificar o título do meu artigo? Será acaso propaganda enganosa, jogada de marketing barato para atrair a atenção da leitora desprevenida ou ansiosa por uma polêmica sem acordo ou termo? Não é bem assim, já que do meu conto contei apenas meio conto. Apesar do parágrafo precedente, no qual sumariamente celebro o grande feito das mulheres na história recente, sabemos muito bem que nem tudo é azul nesse mar que descortino. Quantas mulheres não se queixam ressentidas, não raro com razão, do preço que hoje pagam pela liberdade conquistada? É aqui que repiso meu bordão polêmico: Deus me livre de ser mulher!

A mulher saltou o muro e a cerca, arregaçou as mangas, encurtou a saia, profanou seu corpo antes fechado à chave, envolto em sedas e outras máscaras que lhe abafavam a carne e foi para o campo de batalha ao lado e com frequência contra o homem. Este, encolhidos seus poderes, afrouxada a tirania exercida sem contestação, revidou do modo previsível. Mas é certo que as mudanças não se fazem apenas com conflito, batalhas intransigentes travadas entre forças antagônicas. Menos ainda nesse conflito, que tantas vezes começa ou acaba na cama compartilhada, no desejo imperativo que atrai e atrita essas duas metades complementares, mas irredutíveis, dependentes, mas também litigiosas. O que parece, nesse confronto entre termos ambivalentes e inapartáveis, pois ambos se querem e se precisam até para preservar a espécie (melhor dizendo, para superpovoar o mundo), o que parece, dizia eu, é que a batalha se sobrepôs à conciliação entre os sexos. Aguardem o próximo capítulo desta novela sem final feliz aparente.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Debatendo com o leitor



Nota introdutória:

Tomei a liberdade de reproduzir abaixo parte do debate desencadeado pela postagem do meu artigo MEC e Populismo Pedagógico no blog Amálgama, 15 de maio de 2011 (Ver o mesmo texto no meu blog: http://fmlima.blogspot.com/2011/05/mec-e-populismo-pedagogico.html). Considerada a repercussão do assunto na mídia, meu artigo provocou reações e críticas do leitor talvez sem precedente na história do meu modesto percurso como colaborador permanente do Amálgama. Se me decido a reproduzir parte da polêmica desencadeada pelo artigo, a que me parece mais aproveitável e ilustrativa do que aqui qualificarei de debate de ideias na Internet, faço-o baseado na suposição de que ela ambiguamente enriquece e desdobra a matéria considerada no artigo.

Um esclarecimento adicional ao leitor. Desde que passei a escrever para blogues, tive sempre o zelo de ler, ponderar e quase sempre discutir o que o leitor escrevia na seção de comentário. Essa atitude traduzia, antes de tudo, um ponto de vista ético que sempre pautou minha atividade como articulista. Ciente de que escrevo para o leitor, como de resto todos que o fazem, dei sempre importância aos termos da sua recepção, à forma como me lê e me traduz. Ademais, reconheço que em princípio a introdução da seção de comentário, via de relação direta entre o autor e o leitor, constitui um louvável espaço de democratização da cultura e do debate das ideias. O que todavia constato, passados tantos meses de discussão com o leitor, discussão que com frequência exige mais tempo e elaboração da escrita do que o próprio processo de fatura dos artigos e ensaios que posto nos blogues para os quais escrevo, o que ao cabo constato, reitero, é o pífio ou nulo proveito dessa forma de interação que, convenhamos, pouco serve ao legítimo debate das ideias.

Exponho sumariamente dois procedimentos recorrentes que me parecem invalidar ou corromper a intenção de quem intervém na seção de comentário inspirado pelo propósito de adequadamente praticar o exercício de democratização, de esclarecimento e introdução de um pouco de ordem no caos das interações entre o autor e o leitor correntemente saturadas de mal-entendidos, predisposições tendenciosas, quando não pura e simples má fé. O primeiro procedimento parece-me derivar da singular capacidade que tantos leitores revelam de ler no texto o que nele não se encontra. Observo a tempo que procurei selecionar o que há de mais aproveitável nos termos inconciliáveis da polêmica. A documentação que abaixo transcrevo ilustra um pouco esta questão. Embora ressalte no corpo do artigo, também em várias respostas que postei, o fato de que todo sistema linguístico é composto de muitos estratos e variáveis decorrentes de classe, região e grupo cultural, para não falar das infinitas variáveis individuais identificáveis como idioleto ou estilo, vários comentadores, talvez sintomaticamente os mais agressivos e petulantes, insistiram em criticar o que não escrevi. Cuidei também de frisar que a língua é mutável e portanto se transforma através do tempo. Não bastasse a evidência acima anotada, frisei constituírem verdades comezinhas dos estudos linguísticos e mesmo das gramáticas normativas, pois não conheço nenhuma, por mais que se extreme no zelo normativo, que se atreva a refutar verdade tão elementar e encontradiça. Acrescentei ainda que a norma, seja ela qual for, não procede de nenhuma instância transcendental nem é investida de qualquer essência metafísica. As normas, não só as linguísticas, são uma criação humana, portanto mutáveis e corrigíveis.

O segundo procedimento consiste na confusão, não sei até onde intencional ou inconsciente, do comentador que salta do plano do debate das ideias, objetivo primacial da seção de comentário tal como a entendo, para o da ofensa pessoal. Isso fica patente, por exemplo, nos comentários postados por um certo Flávio. Por razões óbvias, não os transcrevo neste post de documentação polêmica do meu artigo. O leitor acaso interessado em conferir a procedência do meu argumento poderá consultar o tom petulante e ofensivo do que escreve, assim como o comentário de uma certa Carol. A julgar pela petulância com que esta presume corrigir minha ignorância, julgo apropriado conferir-lhe um sobrenome digno da excelência do seu saber linguístico. Vou assim identificá-la como Carol Saussure. Afinal, somente a tocante humildade intelectual dessa leitora, digna discípula do arrogante tecnocrata dos estudos da linguagem que é Marcos Magno, supostamente o guru de todos esses tecnocratas que se sentem investidos da autoridade de legislar para os néscios não linguistas o que é e o que se deve ensinar como sendo a língua portuguesa, só isso explica o prenome que nada traduz do seu gênio. Desdobrando o mesmo princípio, por que não passar a chamar Marcos Bagno de Marcos Magno (primor psicanalítico de lapso linguístico de Deonísio Silva em debate recente no programa Observatório da Imprensa) e Flávio, meu opositor mais ofensivo e grosseiro, de Flávio Jakobson?

O que aprendi depois de tanto ruído e fúria que nada significam? Aprendi afinal a inutilidade de teimar em discutir com o leitor em nome da afirmação de um critério ético que bem poucos consideram: o critério da atenção e apreço que devo ao leitor, o outro polo da função comunicativa da linguagem que constitui uma dos sentidos do trabalho de quem escreve. Acredito ainda nele. Do contrário, por que estaria ainda escrevendo? Mas acredito que a função comunicativa que nos associa se traduz acima e à margem da seção de comentário. Portanto, não mais escreverei uma única palavra nesta, salvo nos casos de correção de algum mal-entendido ou revisão necessária. Concluindo, doravante nada farei além de postar o artigo. Que o leitor o leia de acordo com sua inteligência, senso de discernimento crítico, boa ou má vontade. O que sobrar, se algo sobrar, será de todos ou de ninguém.
Abaixo a documentação transcrita da Seção de Comentário do blog Amálgama anexa ao meu artigo MEC e Populismo Pedagógico. Além de ampliada em alguns parágrafos, vai acrescida de algumas correções de linguagem, revisão e mais preciso enquadramento do meu tom polêmico:

Comentário de Fernando da Mota Lima -19 de maio de 2011.
Caros comentadores: Não me dirijo a nenhum, em particular, por serem muitos os argumentos e ainda maiores os mal-entendidos que cercam esta polêmica e meu artigo em particular. Alguns leitores, no geral escudados no linguista Marcos Bagno, cuja petulância argumentativa torna-o digno de chamar-se Marcos Magno, o Alexandre Magno da linguística, tratam meu artigo como se eu acaso ignorasse a variedade efetiva do sistema linguístico. Se nada há de novo sob o sol, como reza o Eclesiastes, esta seria a última das novidades. É claro que toda língua é um complexo de códigos e modos de expressão. Deixei isso claro no artigo quando aludi às variações de classe, região e também individuais. É claro que na intimidade da minha casa, no convívio espontâneo com os amigos, não falo como na sala de aula. Existe o falar das classes pobres e o das pessoas cultas, o do nordestino e o do sulista, o de Tiririca e o de Fernando Gabeira. Vamos ficar discutindo essas obviedades até quando?

O cerne da minha crítica a esses que chamei e chamo de populistas consiste no fato de adotarem uma norma linguística e pedagógica baseada na falsa igualdade da norma culta com a norma do povo iletrado, do estudante carente que vai para a escola e escreve “os livro num presta”. Corrigir esse erro com base na norma culta não é preconceito linguístico. A função da escola é introduzir o aluno no universo da norma culta. É ela que deve prevalecer como norma regente do código das pessoas letradas. Afirmar isso não é incorrer em preconceito de classe ou cultura. Se Ricardo Lima tem razão ao afirmar que a norma culta não é mais certa nem mais errada do ponto de vista científico (leia-se do ponto de vista dos fatos da língua estudados pela linguística), está errado ao recusar a norma culta como critério de correção instituído socialmente. Se ele pensa o contrário, então faça um concurso, um vestibular, qualquer atividade social baseada na norma culta da língua e escreva como o povo iletrado escreve, ou como ele fala no botequim da esquina.

Outra coisa: norma culta não é apenas imposição dos grupos de elite ou dirigentes. É também isso, mas é também saber objetivamente aferível. É também saber transmitido e refinado através de gerações herdeiras e representantes da alta cultura, expressão que emprego isento de arrogância, mas consciente do sentido valorativo que a diferencia de extratos culturais mais restritos e, por que não?, inferiores. Quem pensa o contrário não vê diferença entre Machado de Assis e a subliteratura que infesta a cultura contemporânea. Tampouco diferencia Tom Jobim e Chico Buarque de Garota Safada (o nome dessa banda vulgar já diz tudo) e Chiclete com Banana.
É curioso: qualquer debate sobre questões culturais acaba sempre em desqualificação dessas verdades elementares em nome do antielitismo, do preconceito de classe e região etc. Acusam de elitismo quem afirma que a norma culta é mais rica, complexa e portanto superior às demais. As pessoas que combatem essa verdade elementar, no geral limitadas ou desprovidas de legítima cultura intelectual, aceitam com santa inconsciência o que correntemente se diz no futebol, religião universal do povo. No futebol existe rei, rainha, gênio, fenômeno, imperador, príncipe, clube de elite, e todas as grandezas e até megalomanias. No reino da cultura intelectual, no entanto, não se pode falar em superior ou elite que o mundo dos pseudoigualitários e populistas cai sobre nossas cabeças. Aliás, é na cultura dos extratos inferiores onde mais prolifera o gosto arrogante, não raro ridículo e absolutamente infundado, da megalomania, do desprezo por tudo que esteja abaixo ou supostamente abaixo. Bastaria lembrar a arrogância com que na mídia e na propaganda oficial de Recife vivem arrotando “o maior carnaval do mundo”, “Pernambuco falando para o mundo”, o melhor x do mundo, o melhor y do mundo. A explicação mais elementar dessa arrogância dispensa elucubrações mais sofisticadas: estamos diante da megalomania e da arrogância que não passam de sintoma de subdesenvolvimento ou bovarismo de periférico.
Mais não digo nem me perguntem, pois acho que esse populismo é incurável. Ele é parte do democratismo picareta que tomou conta do país em que vivemos. Isso é mais revoltante quando pensamos que o Brasil é um país picotado pela espoliação, a injustiça, privilégios e preconceitos de todo tipo. A educação é um dos meios mais poderosos para que a gente adquira consciência disso e a partir da aquisição da consciência crítica lute para tornar esse país efetivamente democrático e portanto melhor. Por isso me indigna a incompreensão dos que me julgam elitista simplesmente por defender o direito de as camadas mais pobres e carentes ascenderem a um melhor padrão de vida, que não se traduz apenas em melhores condições de vida material. Ele se traduz também na aquisição de uma cultura mais refinada e complexa, a que nos faculta o acesso a e o consenso pertinente a valores humanistas mais e mais desprezados pelo materialismo predatório que domina a cultura contemporânea. A educação não é tudo, claro, mas é um dos instrumentos fundamentais para essa mudança que não sei quando virá. Postular a suposta igualdade entre a alta cultura e a cultura de massa pode sugerir na aparência a igualdade e respeito pelo conjunto das expressões culturais de um povo como se ele acaso constituísse um todo isento de diferenciação valorativa.
Fernando.

Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 5:55 pm
O papel da escola é ensinar a variedade de prestígio, à qual se dá um valor social e que, como eu também já escrevi em outros lugares, é cobrada nos vestibulares, concursos, situações formais. Entretanto, é necessário desenvolver o pensamento crítico, para que essa variedade não seja ensinada somente de forma instrumental e sem questionamento, como se tivesse sido transmitida por Deus para que alguns poucos preservassem, enquanto que outros vilões a deturpassem. Todas as variedades mudam com o tempo, inclusive a variedade de prestígio. Coisas que no passado eram totalmente abomináveis passam a ser consideradas corretas depois que são assimiladas pelas pessoas que disfrutam de maior prestígio social. NINGUÉM no Brasil se utiliza da “norma culta” utilizada por Machado de Assis, mesmo que tenha a ilusão de usá-la, pois, se o fizesse, seria internado em um hospício. É mais positivo refletir sobre a língua e observar os belíssimos fenômenos envolvidos com a formação do Português Brasileiro do que ficar reproduzindo dogmas acientíficos, movidos por crenças irracionais. Todo brasileiro tem o direito de assimilar, manipular e usar a seu favor a variedade de prestígio, assim como tem que ter toda a liberdade – sem bullying nem patrulhamento – de usar a variedade com a qual expressa as suas emoções e os seus pensamentos. Isso pode ser inclusive inferido a partir da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. O que chamamos de “norma culta” é dinâmico, nunca para de mudar e, por isso, não pode ser idealizado como A forma correta, que melhor permite que alguém se expresse. Se, na minha comunidade, alguém diz: “Oh, Cráudia, sai cá fora e dê uma espiada nesses menino danado, qu’eles num pode ficá sozim”, nada vai expressar o pensamento e sentimento tão bem nessa situação. Na escola, isso deve ser respeitado como uma variedade, ainda que – na escola – se deva compreender que, em situações mais gerais e formais, o nome Cláudia é pronunciado com “L” e não passou pela mudança linguística pela qual passaram PRAÇA (plaza, place, Platz), ESCRAVO (Sklave, slave, esclavo) etc; que, nessas mesmas situações, quando há somente um, se usa “menino”, mas quando há mais de um, se usa “meninos” (diferente do francês, que pronuncia da mesma forma o singular e o plural; do alemão, que tem outras regras de plural, inclusive manter, em diversos casos, a palavra invariável – der Lehrer, o professor; die Lehrer, os professores); que, diferente do inglês, o adjetivo deve também concordar com o nome e o artigo (danados). Mencionam-se aqui outras línguas de propósito, para demonstrar que, linguisticamente, os fenômenos são plausíveis e as línguas mudam. No inglês de Shakespeare, havia mais flexões verbais que hoje. No português, as flexões estão diminuindo também: eu falo, você/ele/ela/a gente fala, eles/elas/vocês falam – e não é impossível que em, digamos, 200 anos, só exista a forma “fala” para todas as pessoas gramaticais. Se usarmos inteligência e observação, compreenderemos muito mais as mudanças linguísticas e as variedades existentes em todos os idiomas.

Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 6:28 pm
Insisto, para que os leigos não caiam nessa: Não há – DE FATO – nenhum tipo de superioridade essencial na variedade de prestígio. Ela precisa ser descrita (sem dogmas, mas sim de fato) e precisa ser estudada/aprendida, Isso é ponto pacífico. Por quê? Por ser a variedade que favorece maior mobilidade social; por facilitar a comunicação, pois é usada de forma mais comum e geral em comparação aos dialetos; por ser a referência em concursos e diversas situações formais, até porque é necessário que algum tipo de padrão comum seja estabelecido. É por isso! Não porque ela é superior, ou seja, não por uma razão transcendental. O simples fato de que essa variedade de prestígio muda é uma prova de que ela não é essencialmente superior. Ela é – ou deveria ser – um acordo comum para facilitar a vida na sociedade. De petista, eu não tenho nada, e discordo do pensamento pseudoesquerdista e populista, do democratismo cínico. Mas isso não me impede de ver a realidade dentro do campo científico, que trata da observação de fatos. Falaram tanto absurdo porque o livro – que nem conheço – observa que não fazer concordância é plausível e normal, que, se as pessoas que entendem do assunto simplesmente se abstêm, o pensamento mítico-dogmático sobre a língua toma conta. A escola tem que, não só, mas também, mostrar que cada comunidade fala como fala e se comunica muito bem dessa forma, para eliminar os estigmas. E, além disso, a escola deve ensinar a variedade de prestígio, pelas razões citadas. É isso.

Comentário de Fernando da Mota Lima
19,05,2011 - 9:47 pm
Caro Ricardo: Sei que meus argumentos serão inúteis, mas talvez esclareçam um outro leitor interessado nesse nosso debate que mais me parece conversa de surdo. Você agora invoca o relativismo de tempo (histórico) e espaço (geográfico) para validar as muitas variáveis linguísticas que segundo você, como todo bom relativista, devem ser igualmente reconhecidas. Não bastasse tanto, você deita falsa cultura de poliglota como se isso acaso conferisse força a seus argumentos. É chover no molhado lembrar que as línguas mudam no tempo e no espaço. A questão não é essa. Vejamos a coisa de outro modo. Toda sociedade, toda cultura humana é composta de um complexo de normas sem o qual ela não se sustentaria. É claro que esse sistema de normas não caiu do céu nem é obra divina, embora muitos crentes assim pensem.

Desde Saussure, um dos fundadores da linguística moderna, sabemos que o signo linguístico é arbitrário, isto é, não é nenhuma essência, nenhuma manifestação metafísica de uma verdade absoluta e universal. Noutros termos, não existe nenhuma relação essencial entre significante e significado. A língua é uma criação humana resultante do trabalho de uma infinidade de gerações. O relativismo dos seus argumentos em nada anula o fato de que ela é composta de estratos que não são fruto apenas de prestígio social ou variação de classe, tempo e espaço.
A besteira que você escreveu sobre Machado de Assis, fosse ela verdadeira, teria internado a mais alta inteligência humanística do Brasil na Casa Verde de Simão Bacamarte.

Leia o último parágrafo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo. Se você é uma pessoa de real cultura intelectual, note que estou qualificando a cultura antes que você venha alegar que todo mundo tem cultura, o que é aliás correto segundo o conceito socioantropológico do termo, você notará que somente uma inteligência extraordinária do ponto de visto linguístico e filosófico poderia traduzir em termos de niilismo radical a concepção da condição humana ali inscrita. Por mais que você force a nota do seu relativismo, não há como pôr no mesmo patamar aquele parágrafo, expressão da alta cultura letrada, com o falar vulgar, iletrado ou mesmo o falar da cultura média. É por isso que Machado exige um leitor altamente cultivado do ponto de vista intelectual. Afirmar essa verdade não é ser elitista. É simplesmente reconhecer que Machado é expressão de uma modalidade de cultura e norma linguística que requer anos e anos de estudo e cultivo literário. No entanto, gente como você aparenta acreditar que tudo é questão de relativismo ou imposição de valor social.

Vou retomar o exemplo do futebol que usei no meu comentário precedente. Como disse, no reino do futebol todo mundo fala de rei, rainha, imperador Adriano, gênio da bola etc. Nunca ouvi ninguém acusar isso de elitismo. Pelé é até hoje reconhecido, com justiça, como o rei do futebol. No entanto, na literatura, na cultura humanística em geral, não falta quem prontamente lance mão de supostos argumentos niveladores das múltiplas expressões da cultura para desqualificar o gênio literário de Machado de Assis, o modelo estilístico que é a sua obra etc. Tratam questões dessa natureza como se tudo se reduzisse a relativismo de gosto ou imposição de prestígio sociocultural.

A explicação me parece simples. O futebol é um esporte baseado num sistema de normas e valores simples que todo mundo entende. Noutras palavras, todo mundo no Brasil tem cultura futebolística, conhecimento básico e comum para reconhecer objetivamente certos valores. Por exemplo: nunca vi ninguém negar talento a nenhum jogador convocado para a seleção brasileira. Há desacordo, claro, acerca de quem é melhor, mas nunca se desqualifica um grande jogador de futebol. Na literatura, nos códigos de linguagem, no debate sobre as normas linguísticas, todo mundo tem opinião e muitos acham que estão certos simplesmente porque não existe verdade universal, porque tudo é relativo etc. Ora, qualquer pessoa pode com facilidade dominar o sistema de práticas e normas que regulam um esporte como o futebol. Ler Machado de Assis à altura das exigências e da profundidade da sua obra é uma conquista intelectual e estética que supõe muitos anos de aprendizagem e experiência. Qualquer pessoa pode num relance identificar o gênio futebolístico de Pelé. Quantas no entanto são capazes de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas assimilando a grandeza singular dessa obra-prima da literatura universal?

Cansei. Já que você não cede, Ricardo, o que você faria se fosse um professor? Em que norma se basearia para avaliar uma dissertação sobre Machado de Assis, por exemplo? Quanto a seu relativismo histórico, no caso pedagógico, seria razoável eu, como seu professor, dar hoje em você uma surra de palmatória alegando que no tempo do seu avô era essa a norma corrente na escola? Ou ainda surrar, quando não impunemente matar, uma mulher adúltera simplesmente por ter sido esta uma prática cultural corrente durante séculos de machismo, notadamente no Nordeste de cabra macho onde vivo? Não é por mudar no tempo e no espaço que a norma deve ser ignorada, ou trocada por qualquer outra, ou nivelada a qualquer outra.

A Cultura muda, sim, repisemos essa platitude. Minha ambição, o sentido da ideologia que professo inspirado pelo humanismo racionalista, é vê-la mudar para melhor. É por isso que me oponho à concepção de cultura hoje corrente, pois, na medida em que valida toda e qualquer expressão de cultura, anula o a noção valorativa da cultura sem a qual não iremos a lugar nenhum. Se você se recusa a estabelecer distinções qualitativas no conceito de cultura, então você precisará logicamente justificar toda e qualquer expressão de cultura simplesmente baseado no critério de que tudo é cultura. Cansei. Como dizem os belos versos de Chico Buarque: “já conheço os passos dessa estrada / sei que não vai dar em nada / seus segredos sei de cor”. Paro antes que alguém diga que esses versos fundidos à música de Tom Jobim, a mais alta expressão musical que existe neste país, são iguais a qualquer das boçalidades que passam por música em megashows de musculação e histeria de massa.Ou mera expressão de classe social, status, distinção estética imposta por meros fatores de ordem social e ideológica.

Comentário de Ricardo Lima – 20 de maio de 2011
Engraçado, Fernando, como as pessoas se enganam quando tentam falar sobre quem – e sobre o que não conhecem. Eu sou uma das pessoas menos relativistas entre as que conheço, ao menos no sentido trazido por você. Além disso, jamais passou por minha cabeça deitar cultura de poliglota, apesar de não me sentir envergonhado de ser fluente em algumas línguas – desculpe se isso parece algum tipo de ataque, mas se trata simplesmente de uma verdade e, em relação à discussão, procuro simplesmente me basear em dados concretos. Acho que lhe faltaram argumentos mais racionais. Não acho que seja elitismo de sua parte considerar que a cultura está atrelada a um determinado padrão linguístico, mas acho que isso é uma ficção, pois tanto a cultura quando o padrão se transformam dentro do processo histórico, o qual envolve inclusive a dialética entre as diversas culturas e variedades existentes em um país. Ou seja, a variedade de prestígio existe, é uma realidade, deve ser aprendida/ensinada na escola, conforme eu também afirmei, mas a compreensão da relação que ela tem com as outras variedades, inclusive o continuum existente, os intercâmbios, fazem com que percebamos que não se trata de algo intocado, mas sim de algo que faz parte do patrimônio cultural – embora não seja a totalidade desse patrimônio, a não ser que queiramos apagar todos os discursos outros que, na realidade, existem. O que gerou essa falsa polêmica foi a ideia equivocada de que estavam querendo ensinar os alunos que é OK falar “errado” e que a variedade de prestígio não seria importante. No entanto, reconhecer que as diversas variedades são reais e não podem ser estigmatizadas é muito diferente disso. Primeiro, falar e escrever “errado” é falar e escrever em desacordo com o contexto, ou seja, de uma forma inadequada à situação de uso. Ou seja, dizer “telefonar-te-ei amanhã” numa roda de amigos é tão “errado” quanto usar “Pô, cara, não deu pra faser (sic) o progeto (sic)” em uma correspondência na empresa. Os alunos têm que ser informados disso. Por isso, têm que saber que, em alguma variedade, “os livro” é aceitável, mas na variedade de prestígio (erroneamente chamada de norma culta) não é. Segundo, ensinar a variedade de prestígio de forma instrumental, sem reflexão, pode ser negativo também. Os alunos têm que saber que não se trata de uma variedade perfeita, mas que está em constante mudança e, com o tempo, vai assimilando elementos antes considerados errados. E isso acontece à medida que aqueles que têm maior prestígio social começam a usar tais elementos. Isso é científico, não é adivinhação nem relativismo de minha parte. Os problemas do aprendizado não estão relacionados de forma simplista com essa discussão, tanto que as deficiências existem em todas as disciplinas. Espero que não lhe ofenda a citação de outras culturas, mas coloco só mais um adendo que mostra que o problema está no sistema educacional, não nessa discussão sobre variedades: nos países onde o sistema educacional funciona de forma mais eficaz – ex.: Alemanha, França, Inglaterra, Argentina etc – você acha que não existem as variedades? Na Alemanha, chega ao ponto, em alguns casos, de falantes de um dialeto não compreenderem os de outro. Os berlinenses não “respeitam” quase nenhuma regra de declinação do Hochdeutsch (alemão padrão) no seu falar cotidiano. No entanto, aprendem bem o Hochdeutsch. Na Argentina, o espanhol tem diversas peculiaridades de vocabulário e gramática, e não se deixa de usar “vos podés” no lugar de “tu puedes” nem por decreto. No entanto, aprendem o espanhol padrão. Ou seja, se a escola cita, em um livro, que existem diversas variedades, que todas devem ser respeitadas etc, isso não é obstáculo para que se assimile a variedade tomada como padrão. Por último, sobre Machado de Assis, creio que simplesmente não tenha compreendido. Só quis chamar atenção para a mudança linguística mesmo, observando que ninguém usa o português que era usado por ele.

Comentário de Fernando da Mota Lima
20,05,2011 - 9:40 pm
Caro Ricardo: você desarma meu ânimo polêmico com seu comentário acima. Não no que se refere à substância dos argumentos, que no essencial reiteram o que já nos dissemos. Você me desarma e tiro o chapéu para o seu tom de civilidade. Educação no sentido equivalente a civilidade é algo que me desarma e pouco encontro no convívio com brasileiros. Isso, friso, é o que mais importa no seu comentário. Vou ainda desdobrar a discussão pela última vez ainda com a intenção de introduzir alguma clareza no nosso debate. Estou me cansando de discutir com as pessoas que no geral comentam artigos meus simplesmente por constatar que a discussão no geral resulta inútil, já que não leva a lugar nenhum. Por isso declarei acima que isso era um diálogo de surdos. Se não damos sentido preciso aos termos fundamentais do debate, é inútil, reitero, continuar discutindo.

Por exemplo: refutei o caráter relativista dos seus argumentos e logo você me retruca afirmando o contrário. Se seus argumentos relativos a variações no tempo e no espaço não são prova de relativismo, então um de nós dois definitivamente não sabe o que é relativismo. Já estou cansado de reiterar as variáveis observáveis em qualquer sistema linguístico. São, noutras palavras, variáveis dependentes de classe social, região, indivíduo. Você simplesmente ampliou o escopo da variável espacial ou geográfica (região) ao mencionar exemplos de comparação linguística, isto é, variáveis de idioma. Além, acrescento a tempo, da variável temporal, que no jargão dos linguistas equivale à diacronia linguística quando consideramos uma língua exclusiva. Não discordamos quanto a isso. Também não discordamos quando você ressalta o prestígio social como um dos fundamentos sociológicos da norma culta.
Portanto, nossa divergência não reside no fato de constatarmos várias normas na língua nem as variáveis de contexto social e linguístico em que se manifestam as normas em questão. Meu argumento central é o seguinte: embora várias normas ou variáveis linguísticas convivam na escola, a norma regente deve ser a culta. Acrescentei no meu artigo que o domínio desta não traduz mera questão de arbítrio ou prestígio social. Traduz essas coisas, reitero minha concordância, mas a questão é mais embaixo e é aí que discordo de você, de Marcos Bagno e todos que polemicamente qualifiquei de populistas.

Uma pessoa intelectualmente culta (volto a frisar que o termo culta está modificado pelo advérbio de modo porque reconheço, seguindo o uso socioantropológico, que toda pessoa é dotada de cultura, mas nem todas são dotadas de cultura intelectual) se identifica pela aquisição e uso da norma culta. Isso supõe juízos objetivos de valor que vocês, apologistas da igualdade linguística, se recusam a reconhecer. O falante limitado ao código restrito, aquele que escreve “Os livro etc.”, não está intelectualmente habitado para perceber a realidade de forma crítica, para formular argumentos e propor alternativas à realidade. É isso o que afirmo no meu artigo.
É fato que não li o livro que gerou a polêmica que nos ocupa. Meu artigo seria obscurantista e ignorante, como disse abaixo o obscurantista e ignorante Flávio, se eu confinasse meus argumentos aos limites da reportagem divulgada pela mídia. Quem sabe ler, sabe que meu artigo visa alvos mais amplos e profundos.
Estudei durante mais de quatro anos numa universidade inglesa onde havia alunos e professores de mais de cem nacionalidades. Portanto, uma verdadeira babel de línguas e culturas. Convivendo com gente de culturas e línguas tão variáveis comunicando-se apenas por terem a língua inglesa como denominador comum, suponho haver aprendido algumas lições preciosas sobre relativismo cultural e linguístico. Mas fico por aqui, Recardo. Apesar das nossas divergências e mal-entendidos, valeu a pena discutir com você, sobretudo quando considero o tom civilizado do seu último comentário.

sábado, 28 de maio de 2011

MEC e Populismo Pedagógico



Repercutiu na mídia o fato de o MEC (Ministério da Educação e Cultura) adotar um livro de português no qual os autores, ligados à ONG Ação Educativa, justificam e validam na escola expressões linguísticas do tipo: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. A julgar pelos critérios linguísticos e pedagógicos adotados na obra, corrigir ou reprovar erros dessa natureza seria incorrer em preconceito linguístico. Aliás, a correção seria injustificada, já que não se trata de erro, mas de simples variação linguística. Há aí uma confusão que procurarei esclarecer adiante.

O MEC justifica a adoção do livro alegando que corresponde aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Suponho, baseado no mesmo critério, que o aluno carente poderia justificadamente escrever “Os Parâmetro Curricular Nacionais”. Infelizmente, não é o meu caso. Sendo assim, sinto-me constrangido a escrever seguindo a norma culta relativa à concordância nominal. Pensando melhor, vou me reeducar lendo esses livros adotados pelo MEC, primores do populismo pedagógico corrente na nossa política educacional, para não ser vítima de preconceito linguístico.
Seguindo ainda as justificativas expostas pelo MEC, a adoção da norma linguística culta nas escolas não passa de um mito do qual ele louvavelmente se declara determinado a nos libertar. É sem dúvida alentador saber que uma das missões confessas do MEC é libertar o aluno da tirania que nós professores sobre ele exercemos erradamente apoiados numa noção normativa que não passa de um mito. Esse mito opressor precisa ser varrido das nossas escolas.

Trocando a justificação da ignorância em miúdos (ou inguinorância, como escreveu Clovis Rossi com preciso corte polêmico na sua coluna da Folha de S. Paulo), insistir numa pedagogia baseada nesse mito seria mutilar culturalmente o código linguístico do aluno. Além de constituir uma forma de violência simbólica, como afirmou João Paulo Filho, essa atitude desprezaria o fato de que a língua escrita “não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos”.
Ora, quem disse que postular uma pedagogia baseada na norma culta da língua é confundir a língua escrita com a língua falada ou com os dialetos compreendidos pela língua portuguesa? O reconhecimento da distinção corrente entre língua falada e língua escrita é uma verdade elementar. Mais que essa distinção, é também elementar o reconhecimento da variedade de códigos linguísticos compreendidos pela língua geral que falamos. Eles decorrem das diferenciações objetivas inscritas nas variáveis de classe e região compreendidas por todo complexo linguístico. Uma coisa é reconhecer e respeitar esses fatos comezinhos da realidade linguística de qualquer cultura, outra bem diferente é desqualificar a norma culta, objetivo e ideal de todo processo educativo, em nome de um suposto princípio de democracia linguística que não passa de populismo pedagógico.

Aparentemente, a política educacional postulada pelo MEC é inspirada em princípios louváveis, tanto que a opinião corrente também aparenta aprová-la. Mesmo alguns críticos que contra ela se pronunciaram, como é o caso do professor Evanildo Bechara, invocam apenas argumentos restritos ao pragmatismo social, que bem entendido significa zelar pelas oportunidades de ascensão social dos estudantes. Dizendo melhor, é preciso induzir o estudante à aprendizagem da norma culta por constituir ela uma das precondições de ascensão profissional baseada na educação escolar. O buraco é mais embaixo, como reza o lugar comum. O episódio que aqui discuto é antes de tudo um sintoma entre muitos de uma pedagogia que mais e mais se impõe nas nossas escolas e o próprio MEC, instituição reguladora do nosso sistema educacional, tende a promover.

Dado que me falta autoridade para discutir aspectos mais amplos e precisos da nossa política educacional, prendo-me unicamente a algumas observações de caráter geral. Formar a criança e o jovem para o exercício da cidadania, um dos alvos da educação, é um ideal agora rotineiramente deformado por idiotices como o slogan “criança cidadã”, que evidentemente supõe a consciência e o exercício da cidadania na infância. Que dizer de um disparate desses? Outro de circulação ainda mais ampla, verdadeiro refrão da pedagogia permissiva e enganadora de adoção generalizada, reside na ilusão de supor que a aprendizagem deve basear-se no prazer. Aprender brincando, aprender gozando, são lugares comuns na representação da experiência educativa. Esse disparate circula nos clipes publicitários das instituições educacionais difundidos pela mídia e, o que é mais grave, é de fato adotado pela escola em geral, assim como em muitos projetos e programas pedagógicos.

Voltando ao assunto específico deste artigo, introduzir o aluno no universo da norma culta da língua foi sempre um dos objetivos do sistema escolar. Do contrário, qual o sentido de educá-lo? Quero dizer, se o objetivo é mantê-lo prisioneiro do código restrito que emprega, reflexo aliás da sua subordinação social e das condições culturais restritas características de um ser em formação, por que então puni-lo com as agruras necessárias de qualquer processo educativo? Ninguém aprende sem esforço, disciplina e constância, tenhamos o bom senso de admitir essa platitude implicada em qualquer experiência de aprendizagem. Ninguém toca violão sem fazer calo nos dedos que desenham uma sequência de acordes no braço do instrumento, assim como ninguém se torna um craque de futebol, valho-me do exemplo mais universal da cultura contemporânea, sem muito suor, aplicação e tenacidade. Se a aprendizagem que qualifica os atores para o reino do entretenimento é assim, o que dizer no âmbito da escola, da educação formal? Os lugares comuns que acabo de mencionar seriam inteiramente dispensáveis, não fosse o clima corrente de fantasia publicitária em que passamos a viver na mídia, nas escolas, nas práticas e representações culturais dominantes.

O populismo pedagógico que denuncio neste artigo é mais grave, também de percepção restrita, porque ele se mascara sob as vestes de uma ideologia aparentemente muito louvável. Ele supostamente se põe em defesa dos oprimidos, das camadas socialmente subordinadas ou ainda das classes desprivilegiadas, como reza outro lugar comum. Por isso é proposto por pessoas que se identificam como de esquerda, quem sabe revolucionárias. Tenhamos no entanto a coragem de afirmar que serve em termos efetivos apenas para manter o estudante pobre no estado de subordinação social que a educação deveria concorrer para transformar. Um dos meios de se alcançar tal ideal consiste precisamente no acesso ao código elaborado da língua, ou na assimilação da norma culta que conduz à consciência crítica da sociedade, à capacidade cognitiva de propor alternativas para a ordem social existente, para o estado de desigualdade e exploração corrente na sociedade brasileira. Introduzir o aluno no universo da norma culta significa, noutros termos, abrir os horizontes da sua consciência para a crítica dos preconceitos e ideias feitas enraizadas no solo social onde domina a consciência espontânea.

Já que os propositores da pedagogia populista e pseudoigualitária invocam argumentos ideológicos de esquerda, quando não francamente revolucionários, conviria ressaltar que nenhum revolucionário que conheço confiou na consciência espontânea do povo. Karl Marx, líder supremo do comunismo moderno, denunciou a consciência espontânea do povo, assim como,nas suas palavras, a idiotia rural, que precisaria ser superada como precondição da revolução proletária. Lênin foi mais longe e postulou a necessidade do revolucionário profissional, cuja função maior seria o exercício de um apostolado revolucionário intransigente, já que o povo, mergulhado na consciência espontânea e alienada, jamais se mobilizaria em favor da revolução, fato que a história das revoluções parece comprovar. A evidência disponível – ou a que conheço, noutras palavras - indica que não houve na história revolução baseada na consciência espontânea do povo.

Mas deixemos a revolução de lado, já que ela não figura nos meus propósitos ideológicos e de resto não identifico nenhuma possibilidade revolucionária no horizonte da história acaso comparável ao figurino das revoluções que sacudiram o século 20. Os limites e fins que viso são bem mais modestos, como suponho sejam também os do MEC e os do establishment pedagógico. O que tenho em mente é o que já assinalei neste artigo: a assimilação da norma culta da língua, ou do código linguístico elaborado, como uma das precondições de uma consciência social crítica, passível assim de propor mudanças necessárias no quadro de uma sociedade caracterizada por condições iníquas de desigualdade e exploração do povo. Propor orientações pedagógicas do tipo que discuto neste artigo, atinentes ao ensino da língua portuguesa, é apenas concorrer em termos efetivos para a manutenção das condições sociais que a pedagogia populista supostamente combate.
Recife, 15 de maio de 2011.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Etnocentrismo, Universalismo e Relativismo




Este artigo compõe ainda a moldura teórico-conceitual necessária para a adequada exposição e desenvolvimento da substância da disciplina cultura brasileira que tem ocupado fração significativa da minha atividade docente. Dentre os três conceitos acima, o primeiro é mais simples e fundamental. Tão fundamental que constitui um dos princípios metodológicos indispensáveis para quem de fato queira compreender sociologicamente qualquer sociedade e sua cultura. Os dois restantes, universalismo e relativismo cultural, são bem mais complexos e polêmicos. Embora tenha isso em mente, preciso abordá-los de algum modo no contexto deste artigo.

Comecemos, portanto, pelo sentido do termo etnocentrismo. Como a composição da palavra já o indica, ser etnocêntrico é adotar como centro sua própria etnia. Dizendo isso de um outro modo, é tomar a nossa cultura, no sentido antes explicitado, como o centro de normalidade e sentido do mundo. Uma pessoa etnocêntrica comporta-se como se a sua cultura, os valores fundamentais da sua cultura, fossem o centro e o critério do que é certo, normal, verdadeiro e portanto melhor. O mais grave é que procedemos desse modo de forma espontânea. Mesmo o sociólogo, o antropólogo treinado pela sua ciência para reconhecer que existe no mundo uma extraordinária diversidade de culturas, algumas dotadas de valores, práticas e sentidos completamente incompatíveis entre si, mesmo este profissional das ciências sociais incorre inconscientemente em atitudes etnocêntricas.

Exponho um exemplo histórico que ilustra essa questão melhor do que qualquer exposição puramente conceitual e teórica. Quando o colonizador português e o jesuíta aportaram na costa brasileira, defrontaram-se com um povo e uma cultura radicalmente diferentes da sua. O que fizeram eles, com sua cultura técnica e sua religião mais poderosas? Impuseram ao indígena uma cultura que representou para este um verdadeiro processo de extermínio e supressão da sua identidade. Foi o que hoje chamaríamos de lavagem cerebral. Além de vestirem o índio e lhe imporem uma religião completamente incompatível com a sua, impuseram-lhe valores econômicos e culturais baseados numa noção de individualismo e propriedade privada que eram o avesso da cultura tribal ou comunitária dos grupos indígenas.

Como hoje perfeitamente sabemos, valores psicossociais típicos de uma pessoa moldada pela economia capitalista, como aqueles associados à economia privada, ao lucro, à exploração econômica do outro, ao espírito de acumulação material etc, eram totalmente estranhos às culturas indígenas. Também a noção de individualismo, inscrita no cerne dos valores psicossociais acima referidos era totalmente alheia ao mundo primitivo que o português ocupou e depois passou a colonizar no início do século XVI. Raciocício semelhante aplica-se aos valores religiosos e outros que são fundamentais para a articulação do que entendemos como identidade cultural.
Devido aos motivos acima esboçados, o etnocentrismo é mais que um conceito; ele é, na verdade, um dos fundamentos metodológicos da investigação da realidade cultural. Sabemos que o termo método quer simplesmente dizer caminho ou conjunto de meios que o estudioso adota para chegar ao alvo do seu estudo ou investigação. Portanto, o etnocentrismo é um obstáculo tão grave que na prática anula qualquer possibilidade de conhecermos efetivamente a realidade que estudamos.

Como já observei, somos espontaneamente etnocêntricos. Por que isso acontece? A razão provável reside no fato de que assimilamos ou internalizamos a cultura na qual nascemos e nos formamos, através do que antes designei como processo de socialização, como se ela fosse o centro do mundo, a expressão do que há de certo, aceitável e verdadeiro em termos culturais. A cultura torna-se para nós algo que nos molda, que se converte numa espécie de segunda natureza para nossa vida. É por isso que pensamos com a nossa língua, expressamo-nos com a nossa língua de modo tão espontâneo que ela passa a funcionar na gente como se fosse algo de natureza inconsciente. É por isso que não conseguimos compreender verdadeiramente outra cultura, sobretudo quando é profundamente diferente da nossa, se não pusermos nossa cultura entre parênteses. É também por isso que se pode com certeza afirmar que essa disposição espontaneamente etnocêntrica é um dado universal, isto é, manifesta-se em todo e qualquer grupo humano, em toda e qualquer cultura.

Acredito que essa operação mental necessária à superação do etnocentrismo não é totalmente possível, mas é possível o suficiente para que a gente se coloque na perspectiva do outro, na cultura do outro. Este é o único meio possível de compreendermos a realidade de uma outra cultura. É também por isso, e por ter consciência do quanto sua percepção da realidade é etnocêntrica, que o antropólogo pratica pesquisa de campo, vai viver no meio de uma tribo durante tempo suficiente para ser aceito e assimilar os valores e percepções daquela cultura até sentir-se em condições de traduzi-la de algum modo para os códigos da sua cultura de origem.

Gilberto Freyre designou o processo mental e metodológico acima descrito com o termo empatia. Mas do que um esforço espontâneo ou deliberado de identificação com o outro, o estranho, o que não é parte da nossa cultura e dos nossos valores fundamentais, a empatia significa tornar-se o outro. Gilberto Freyre procurou exemplificar esse fenômeno indicando seu próprio exemplo, a maneira como procurou compreender sociológica e antropologicamente o processo de formação da cultural brasileira baseado nas três matrizes que adiante estudaremos: a indígena, a lusa e a africana. Ele observa então que para escrever Casa-Grande & Senzala tornou-se empaticamente o índio, o colonizador luso, o escravo africano, o homem patriarcal, a mulher, a escrava, o menino da casa-grande e toda a galeria impressionante de tipos sociais que desfilam nas páginas da sua obra-prima.

É no sentido acima que é justo dizermos que, como método de investigação, o relativismo cultural é uma necessidade. É preciso, noutras palavras, partirmos do pressuposto da infinita variedade das culturas e da singularidade de cada uma delas. O problema com o conceito de relativismo, sobretudo no seu uso corrente, é que muita gente salta deste fato metodologicamente adotado pelas ciências sociais para afirmar que cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra. Afirmam ainda que não podemos julgar nenhuma cultura, pois cada uma, sendo única, é intraduzível fora de si própria.

Se levamos o relativismo a esse extremo – algo traduzível no lugar comum: cada cabeça, cada sentença, pensemos ainda no célebre postulado do filósofo grego Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas” – então ficamos de mãos atadas para julgar qualquer valor, costume ou prática de outra cultura. Propondo um exemplo concreto: dentro dessa moldura não temos como julgar horrores como o nazismo ou culturas onde a mulher é sujeita a formas brutais de opressão. Neste último caso, bastaria lembrarmos o caso recente, de repercussão mundial, da iraniana Sakineh, acusada de adultério e portanto condenada, segundo as leis e práticas culturais do seu país, à morte por apedrejamento público.

Mas eis que aqui entra em cena o outro conceito chave, o conceito de universalismo cultural. Ele constitui o oposto ou avesso do relativismo. A primeira vista, parece insensato falar de universalismo quando observamos a extraordinária diversidade e até antagonismo das culturas humanas. Além disso, estamos vivendo numa atmosfera cultural baseada na defesa intransigente do relativismo e da infinita variedade de particularismos culturais. Cada cultura, sentindo-se ameaçada pela presença dominadora dos processos econômicos e culturais da globalização, reivindica sua singularidade, sua autonomia ilusoriamente separada da rede de intercâmbios de todo tipo que atravessa nossa realidade cotidiana. Os movimentos das minorias (aqui incluído o da mulher, que estatisticamente não é minoria), também clamam pela singularidade da sua cultura ou subcultura.

Diante do quadro acima, que poderia descrever com maior amplitude de exemplos, qualquer defesa de uma perspectiva universalista é não raro desqualificada como dominação mascarada do Ocidente ou das forças culturais dominantes. Isso sem dúvida ocorre em muitos casos. Mas importa lembrar que, privados de critérios universalistas, ficamos de mãos atadas para tomar posição, para julgar situações de opressão ou horror concretos, como é o caso da iraniana Sakineh, acima mencionado. Que posição tomar diante de ditaduras brutais que desprezam os direitos humanos mais elementares? Denunciar essas violações é simplesmente fazer o jogo do imperialismo ocidental, que inventou o código dos direitos humanos?

Outra questão. Ou melhor, falo agora de uma evidência. Todos nós, seres humanos, compartilhamos certas características fundamentais, não obstante a diversidade de costumes e valores culturais que nos separam. Nosso aparelho biológico, nossas emoções fundamentais, nossas necessidades primárias apontam para um sentido de universalidade que me parecem transcender as inegáveis e desconcertantes diferenças constatáveis na face dos hábitos, práticas e valores culturais. É isso, de resto, o que nos autoriza a falar de uma espécie humana comum, apesar da sua pluralidade espantosa.

O crítico relativista pode objetar às ponderações universalistas acima afirmando que o conceito universalista não passa de uma abstração, no caso generosa, desmentida pela observação mais elementar da clamorosa variedade das culturas humanas. Essa variedade é um fato, como já assinalei. Quanto ao caráter abstrato do conceito de universal, ela é também constatável nos conceitos que a ele se opõem, como os de identidade, singularidade cultural etc. Aliás, qualquer operação conceitual supõe um processo de abstração constitutivo da própria atividade cognitiva. Além disso, conceitos dessa natureza implicam construções mentais e imaginárias características da representação mítica da realidade. Quero dizer, não só o conceito de universal encerra componentes míticos, mas também os de cultura e seus qualificativos. Nada de mais mítico, por exemplo, do que a noção corrente de cultura brasileira, assim como a de identidade cultural.

Por isso concluo que, mito por mito, antes o universal que fornece parâmetros éticos passíveis de transcenderem os limites da singularidade cultural por definição fechados sobre si próprios. Se queremos e precisamos estabelecer comparações éticas, comparações entre valores culturais, não há como assim proceder sem explícita ou implicitamente adotar valores transcendentes aos fatores comparativos em questão. Mesmo o crítico ou estudioso relativista incorre nesse tipo de precedente, quer o admita limpidamente ou não. Todos os nossos grandes nacionalistas culturais, portanto relativistas em maior ou menor grau, adotaram procedimento semelhante e traçaram nas suas obras relações de comparação entre culturas. É fácil verificar esse procedimento comparativo nas obras de Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro...

Essas ponderações finais constituem antes pontos necessários de reflexão e debate do que verdades objetivamente sustentáveis. Como antes observei, estas questões da cultura são objeto de debates acalorados e polêmicas aparentemente insolúveis. Sugiro para quem queira apreciar mais amplamente estas questões dois livros muito importantes de Sérgio Paulo Rouanet. Sua abordagem é apaixonadamente universalista e portanto seu tom é às vezes muito polêmico. Mas a leitura dos dois livros que abaixo indico é muito proveitosa, seja você um adepto da perspectiva universalista, seja relativista.
Sérgio Paulo Rouanet – As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Idem – Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Ver também:
http://fmlima.blogspot.com/2010/09/robinson-crusoe.html
http://fmlima.blogspot.com/2010/11/o-preconceito-do-preconceito.html
http://fmlima.blogspot.com/2010/09/robinson-crusoe.html
Recife, 1 de março de 2011.